Os Corvos de São Jorge
Ventos do Passado
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- Nota do autor
Os Corvos de São Jorge
Ventos do Passado
Nuno S. Tavares
Nota do autor
Em 1998 realizou-se em Portugal um referendo que tinha como objectivo que os portugueses decidissem se queriam ou não que o território nacional continental fosse administrativamente dividido em regiões autónomas. O Referendo da Regionalização, como ficou registado para a História, teve um índice de abstenção acima de 50% e o "não" venceu com cerca de 60% dos votantes. A Regionalização fora chumbada pelo povo.
A história que se segue decorre numa realidade alternativa, muitos anos depois deste referendo, tendo como simples pressuposto a vitória do "sim" nesse mesmo referendo.
Qualquer semelhança com pessoas, entidades, realidades ou qualquer outra coisa que possa parecer-se com o que aqui está descrito é pura coincidência e talvez resultado de alguma alucinação de quem escreve.
Boas leituras!!!
0.1
12 de Junho.
Lisboa.
A noite de céu limpo num tom cinza-azulado, clareado pelo meio luar intenso, fazia sobressair a Lua que iluminava a cidade já por si mergulhada em luzes urbanas. A noite era de festa, era a noite de Santos Populares, a noite de Santo António, o pináculo de um mês tradicionalmente dedicado à diversão na capital. Por toda a cidade, o Santo António, o santo padroeiro de Lisboa, que teria o seu dia assinalado no seguinte com um feriado municipal, era comemorado um pouco por todos os bairros típicos, lugares de ruas estreitas apinhadas de gente, portugueses e estrangeiros, residentes e turistas.
O cheiro a sardinha espalhava-se pelo ar, impregnando o ambiente citadino com o aroma de carvão misturado com o peixe ou a carne. Nem todos eram amigos da sardinha e alguns deslocados, alguns desrespeitadores das tradições, pediam uma febra de porco para colocar na fatia de pão, ao invés da bela, saborosa e tradicional sardinha.
A cerveja corria dos barris, servida à pressão em copos de plástico que na manhã seguinte iriam compor a passadeira de lixo que sempre ficava nos passeios para que alguém limpasse. Também a serviam em garrafas pequenas, também elas esquecidas aquando vazias, largadas com os copos de plástico inteiras ou em cacos. Alguém viria limpar... Também havia vinho e bebidas espirituosas. O pessoal queria festa e nunca ninguém ouvira falar em festa sem álcool.
A multidão espalhava-se nas ruelas, uns encostados às paredes sujas engalanadas com decoração festiva, outros a andar daqui para ali e dali para aqui. A massa humana deslocava-se como a lava que escorre de um vulcão, lentamente, pela encosta, pessoas com os braços no ar, protegendo o copo a pingar e a sardinha a escorrer no pão. Fitas coloridas, compostas de figuras de papel, cruzavam as vielas, ligavam prédios separados pelas vias de circulação, essencialmente pedonal. Lisboa era uma cidade cujos bairros típicos se fechavam cada vez mais ao trânsito automóvel.
As janelas tinham manjericos, aliás, tudo tinha manjericos. Todos com mensagens espetadas, todas a começar com o típico "Ó meu rico Santo António...". Havia todo o tipo de desejos que andavam sempre à volta do mesmo. Porém, apesar de centenas, senão milhares de mensagens, naquele ano nenhum papel trazia a mensagem que certamente, daí a alguns dias, milhares... ou talvez milhões de pessoas, desejariam que o santo cumprisse. E seria algo do género "Ó meu rico Santo António, padroeiro desta cidade de encantar. Livra-nos do demónio, que virá para nos matar".
A cacofonia de vozes embrulhava-se com a cacofonia de músicas. Falava-se português com diversas sonoridades, desde a endémica, à cantada do outro lado do Atlântico até ao português de tropeções do hemisfério sul. Pelo meio, muito espanhol e imenso inglês, algum francês e outros dialectos irreconhecíveis. Onde houvesse música, havia fado. Somente alguns locais fugiam à regra, dando uma oferta diferente a quem queria festa noutro ritmo.
Por norma, o ponto alto das comemorações das festas populares em Lisboa era o desfile das marchas, grupos de marchantes representando os seus bairros numa fraternal competição acérrima, bairrismo levado ao extremo saudável a que pode ir um desafio.
Como sempre, a Avenida da Liberdade engalanara-se para receber o evento. Às luzes urbanas diárias juntavam-se os holofotes que fustigavam o espaço com luz, de forma que nada ficasse escondido dos espectadores e da transmissão televisiva. O trânsito fora cortado naquele dia e quase toda a avenida era usada para o evento, se bem que apenas um sector a meio funcionava como uma espécie de sambódromo à portuguesa. Bancadas eram montadas a ladear o asfalto nos passeios largos entre a via central e as laterais. Pelo meio, a tribuna de honra com acesso apenas a convidados com requisitos especiais. Tudo aquilo trazia muito interesse, cada marcha apadrinhada por figuras conhecidas. A cantoria não se diferenciava muito entre cada marcha, a batida era igual em todas, mudavam as letras e talvez a música. Cada grupo recreativo treinava afincadamente para o desfile, preparativos que começavam muitos meses antes, pessoas que dedicavam quase todo o seu tempo livre, depois de um dia de trabalho, para treinar e produzir todo o conjunto de fatos e adereços. Só mesmo com muito amor se conseguia ser tão eficiente em algo que se fazia voluntariamente. As marchas poderiam ser sonoramente idênticas umas às outras, porém, visualmente eram um mar de criatividade, cultura, diversidade e cor.
Naquele ano, o desfile das marchas populares não era o único grande evento da cidade. Na Praça do Comércio iria acontecer um festival de música com várias bandas convidadas. E se na Avenida da Liberdade se juntavam muitas pessoas para além das centenas de marchantes, a Praça do Comércio estava apinhada de espectadores que não enjeitaram a hipótese de assistir a um concerto tão bom e gratuito. Nem todos os lisboetas eram fãs de santos e marchas. Por isso, não foi estranha a enchente na grande praça emblemática de Lisboa.
O grande palco fora elevado em frente ao Arco da Rua Augusta, tapando completamente a visão do rio a quem viesse por essa rua pedonal. As traseiras do palco estavam viradas para o arco e todo o sector entre eles estava vedado para melhor mobilidade de técnicos e artistas. A estrutura era enorme, elevando-se acima do monumento atrás de si. Um gigantesco bloco negro donde brotavam luzes fortes, coloridas, ora para o palco, ora para o público.
As bandas seriam todas portuguesas. Estamos a falar de um evento patrocinado pelo governo nacionalista lusitano, o qual já demonstrara querer fazer do período entre o Dia de Portugal e o Dia de Santo António um momento de exaltação nacional.
As vias rodoviárias a norte e a sul da praça foram cortadas para evitar ter carros a passar tão perto dos espectadores, até porque muitos gostariam de estar a assistir ao longe, saboreando ao mesmo tempo a noite na margem do rio Tejo. Os restaurantes que funcionavam em redor da praça mantiveram-se em funcionamento, mas sem esplanadas, reduzindo a capacidade de jantares, mas contrabalançando com pequenos balcões a vender bebidas e snacks aos espectadores do concerto.
A massa humana aqui também era impressionante, milhares de jovens e menos jovens tapavam o recinto da Praça do Comércio até ao rio. A estátua do rei D. José I era uma ilha que sobressaía no meio da multidão. Na frente desta, um sector reservado aos técnicos de luz e som que trabalhavam em sintonia com o palco.
A Lua incidia o seu brilho nas águas do rio, destacando as três fragatas da Marinha portuguesa que permaneciam ancoradas no Tejo há três dias. Os três navios mais poderosos da Marinha marcaram presença nas comemorações do 10 de Junho e ainda continuavam ancorados entre as duas margens para estranheza de muitos curiosos. Para lá destes, a margem sul escura ponteada por pequenas luzes alaranjadas com maior ênfase em Cacilhas. Perto da Ponte 25 de Abril, também ela iluminada, o Cristo Rei sobressaia no alto da encosta onde a primeira travessia rodoviária lisboeta do rio Tejo desembocava.
A noite era de festa...
A noite deveria ser de festa.
Ninguém soube dizer com clareza como tudo aconteceu. Calcula‑se que as melhores testemunhas foram os que não sobreviveram. No palco do concerto estaria a decorrer a participação da segunda ou da terceira banda. Até nisto a informação era contraditória. A meio de uma canção, aconteceu uma brutal explosão no meio do público. Mais tarde, a conclusão seria que a bomba estava dissimulada no equipamento técnico do sector que dava apoio ao palco, perto da estátua do rei. A brutalidade da explosão ceifou a vida dos técnicos que ali estavam e mais duas centenas de pessoas que se encontravam à volta. Muitas outras centenas ficaram feridas com gravidade, sofrendo no chão empedrado da praça. O pânico tomou conta do local e os espectadores começaram a fugir.
Teria sido um acidente?
Os acontecimentos seguintes tiraram as dúvidas.
Vindos não se sabe bem donde, vários elementos vestidos de negro e encapuçados, apareceram empunhando armas automáticas. Quem se deparou com eles, julgou serem elementos das forças policiais, brigadas de intervenção rápida para acorrer a algo que poderia ser um acto de terrorismo. Contudo, teria sido demasiado rápida a sua aparição. Estes elementos anónimos começaram a disparar para as pessoas, abatendo a sangue-frio todos os que conseguissem até haver quem lhes fizesse frente.
Os poucos polícias que faziam segurança ao evento foram abatidos com facilidade. Os terroristas avançaram pela praça pelo lado poente, espalharam-se em várias direcções disparando indiscriminadamente. Não deveriam ser mais que dez, mas sem oposição e com tantas munições, a matança fora sangrenta. Nem os feridos eram poupados. Quase todos os que não conseguiam, feridos da explosão ou das balas, eram executados impiedosamente com um tiro.
Um atentado terrorista.
Não havia outra forma de o descrever.
Quando finalmente apareceram mais polícias e agentes do SIALE para lhes fazer frente, o grupo iniciou a sua fuga, desaparecendo com a mesma rapidez com que haviam surgido do nada, brotando da confusão causada pela violenta explosão.
No concerto estavam milhares de pessoas. Mais tarde, o balanço viria a cifrar-se em perto de quatrocentos mortos e cerca de mil feridos com mais de metade em estado grave, o que desencadeou o caos nos hospitais da cidade.
A confusão interrompeu o desfile na Avenida da Liberdade. Primeiro o som assustador da explosão, depois a onda de choque e, por fim, as pessoas em fuga vindas de sul. As forças de segurança preocuparam-se em proteger as poucas individualidades que assistiam às Marchas.
As emissões televisivas foram interrompidas. Os principais canais de televisão suspenderam a programação para colocarem no ar blocos noticiosos de última hora. Equipas de reportagem foram enviadas para o local, uma vez que se perdera o contacto com os repórteres que acompanhavam o evento na Praça do Comércio. Inúmeros vídeos e fotos começaram a circular nas redes sociais, no Instagram, TikTok, Facebook... Filmagens de gente que gravava a actuação em palco no momento da explosão, filmagens dos terroristas ao longe a metralhar inocentes, fotos do fogo, dos feridos, gente a fugir, muitas tremidas e outras desfocadas.
Cerca de meia hora depois, o atentado foi reivindicado pelo grupo terrorista que já tinha feito outros atentados em Lisboa, naquele ano, entre eles o assassinato de um ministro. Logo de seguida, o ministro da Administração Interna falou aos jornalistas para condenar o acto e prometer perseguição a todos os elementos do grupo. Seria feita justiça e a pena de morte voltaria a Portugal, jurou ele. O gabinete do primeiro‑ministro informou que o chefe do governo iria fazer uma declaração ao país. Curiosamente, ninguém sabia do Presidente da República...
Portugal vivia tempos muito complicados, tempos que se vinham a agravar desde o início do século. A sociedade portuguesa fracturava-se, os ódios eram semeados e potenciados por quem lucrava com eles. Para muitos, aquele trágico acontecimento seria previsível, apesar de ninguém sonhar com um resultado tão brutal para além dos seus perpetradores.
Quem estava por detrás deste grupo terrorista?
Para se perceber melhor como foi possível chegar aqui, temos de recuar aos finais do século XX e inícios do século XXI...
1.1
Muito se dissertou acerca do resultado que deu a vitória aos defensores da Regionalização, principalmente o elevado número de abstenções que servia de argumento aos derrotados para a repetição do referendo. Outra das questões era saber se o povo estava, de facto, a par do que era a Regionalização, no que se baseava e quais as suas consequências. Numa sondagem realizada no início do ano seguinte, oitenta porcento dos inquiridos não fazia ideia de como o país seria administrativamente dividido, apesar de isso já estar definido no momento do referendo.
Com a legitimidade oferecida pela vitória do "sim" no referendo, o país foi dividido em oito regiões administrativas autónomas, as quais já estavam assinaladas antes da consulta popular, mas que poucos manifestaram interesse em querer saber. Por isso, só quando o plano foi colocado em prática é que os portugueses acordaram para a nova realidade.
Portugal continental ficou então dividido em oito regiões autónomas, Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes e Alto Douro, Beira Litoral, Beira Interior, Estremadura e Ribatejo, Lisboa e Setúbal, Alentejo e por fim o Algarve. Cada região teria o seu governo e assembleia regionais, descentralizando o poder, mas respondendo sempre ao governo nacional do país. E claro, cada região teria a sua capital regional onde estes órgãos seriam sediados.
Os conflitos de interesses começaram logo aí, nessas designações.
Entre Douro e Minho abrangia os distritos de Viana do Castelo, Braga e Porto. Braga só aceitou a designação de capital da região para o Porto, caso a assembleia regional fosse na cidade dos arcebispos, um pouco à imagem do que acontecia nos Açores, onde a presidência do governo regional está em Ponta Delgada na ilha de São Miguel e a assembleia regional está na Horta que fica na ilha do Faial. Após muita discussão, o governo regional ficou no Porto, a assembleia em Braga.
Os distritos de Vila Real e Bragança compunham a região de Trás-os-Montes e Alto Douro. Vila Real foi designada capital de Trás‑os‑Montes e Alto Douro sem grande alarido, apesar de algumas vozes descontentes em Bragança.
A Beira Interior continha os distritos de Viseu, Guarda e Castelo Branco. Viseu ficou com o destaque vencendo a candidatura a capital da região, sede do governo e assembleia regional. Os políticos não viam com bons olhos ter as instituições regionais em cidades longínquas como Guarda e Castelo Branco.
Coimbra ficou com a sede do governo da Beira Litoral e entregou a assembleia a Aveiro. Eram os dois distritos cujas fronteiras delimitavam a região e demonstraram sempre grande entendimento na organização regional.
Estremadura e Ribatejo era composta pelos distritos de Leiria e Santarém. Houve muita celeuma entre as populações, mas Leiria não abdicou de ficar com a sede do governo regional e da assembleia na região.
O Alentejo, a maior região autónoma do país, englobava os distritos de Évora, Beja e Portalegre. Beja e Évora dividiram o poder, relegando Portalegre para segundo plano. Alguém teria de ficar a perder, três capitais de distrito para duas sedes. Beja chegou a tentar querer para si ambas, justificando que assim nenhuma das outras era favorecida. E porque haveria de ser Beja a sediar o governo e a assembleia? Num golpe de teatro e com muitas movimentações de bastidores, Beja e Évora chegaram a acordo e Portalegre foi vencida nas suas pretensões. Desde essa altura que os portalegrenses se sentem excluídos pelo governo regional.
O Algarve acabou por ser a região onde a organização política foi mais tranquila. Faro era o distrito, já possuía as instituições mais importantes da região e ficou com o governo e a assembleia. Algumas vozes tentaram fazer-se ouvir na tentativa de descentralizar, sugerindo o governo a barlavento e a assembleia a sotavento ou vice-versa, mas as coisas acabaram como haviam sido planeadas ao início.
Na região de Lisboa e Setúbal, composta pelos distritos com o mesmo nome, a capital do país manteve todo o seu poder legislativo e recusou a proposta de implementar a assembleia regional em Setúbal com receio da tendência comunista vir a ser fracturante no futuro da região.
Assim, a proposta de lei votada favoravelmente em referendo e que pretendia descentralizar o poder no país e melhorar o futuro de cada cidadão transformou o território em focos de luta de poder.
No espírito do povo começou a crescer a crença de que o "sim" à Regionalização fora um enorme tiro no pé.
As primeiras eleições legislativas pós aprovação da Regionalização realizaram-se quase um ano depois do referendo. E os eleitores penalizaram os partidos de esquerda, fervorosos adeptos da Regionalização, votando em larga maioria nos partidos de direita, os quais haviam manifestado serem contra a divisão administrativa do território.
A coligação de direita comprometeu-se a resolver a situação, tendo alguns dos seus candidatos avançado com a promessa ilusória de reverter o referendo, o que não viria a acontecer.
No início do século XXI, já com a nova estrutura governativa regional pronta a operar, realizaram-se as primeiras eleições regionais no continente português. A população estava tão descontente com as várias forças políticas que os vencedores eram imprevisíveis em quase todas as regiões, quase parecendo terem sido eleitos numa roleta. Ninguém conseguiu maiorias em nenhuma região, à excepção do Alentejo em que o Partido Comunista dominava. O Socialismo venceu em Lisboa e Setúbal, os Sociais-Democratas no Algarve e na Beira Interior. Entre Douro e Minho ambos os partidos tiveram longas semanas de negociação para formar um governo de coligação. Com a ajuda dos Populares, os Sociais-Democratas conseguiram Estremadura e Ribatejo, mas tiveram de formar nova aliança com os Socialistas para governar na Beira Litoral.
O país tornara-se uma manta de retalhos, esventrada por interesses e sede de poder, criando um ambiente quase perfeito para a formação de novos partidos políticos. Muitas dessas novas forças políticas eram criadas por dissidentes dos antigos partidos que dominavam o panorama da política desde 1974, fracturando cada vez mais essas forças partidárias históricas, reduzindo-as nas suas fatias parlamentares.
A criação e dissolução de partidos tornou-se tão regular que quase nem era notícia, alguns conseguiam eleger deputados nas eleições legislativas seguintes para passados quatro anos desaparecerem do Parlamento e da realidade.
Neste período, somente dois partidos novos se conseguiram formar e consolidar-se ao ponto de começarem a dominar o poder legislativo. O mais antigo, se bem que apenas em dois anos, era o MPP, Movimento Povo Português, criado por figuras de renome da política que atravessaram a crise com a imagem imaculada, mesmo tendo a sua maioria passado pelos partidos do regime. O outro, era uma força radical, extremista de ideais questionáveis, o PNL, Partido Nacionalista Lusitano.
Circularam rumores que o projecto da Regionalização previa a reorganização do poder local, fundindo e eliminando alguns municípios e freguesias. Só que o mau estar das populações para com a nova organização política era tal que os partidos optaram por não mexer em nada.
O poder local foi a sobrevivência de muitos políticos do regime, pois todos sabemos que em eleições autárquicas não são os partidos que ganham, mas sim os rostos a que a população se habituou, políticos de proximidade. E isso criou em muitos municípios uma espécie de hereditariedade do cargo, passando as presidências de câmara de pais para filhos, tios para sobrinhos... Havia concelhos do país totalmente dominados pelas mesmas famílias.
Vinte anos após o referendo da Regionalização, os partidos que tinham assento parlamentar nessa época praticamente deixaram de existir no parlamento, reduzidos a meia dúzia de deputados, à excepção do Partido Comunista que, não tendo muito mais deputados na Assembleia da República, continuava a governar a região autónoma do Alentejo.
O MPP foi o primeiro partido, fora do habitual arco governativo desde a democracia, a conseguir vencer umas eleições legislativas. Só que teve a infelicidade de encontrar um país afundado numa enorme crise económica.
Liderado pelo professor Flávio de Melo, o MPP venceu com minoria, conseguindo formar governo com o apoio dos resistentes deputados sociais-democratas e socialistas, um apoio envergonhado sem direito a lugares no governo de forma a não antagonizar o povo contra o recém-eleito primeiro-ministro. Nessas eleições, o segundo partido mais votado foi o PNL, apesar de muito longe dos vencedores, mas ultrapassando comunistas e verdes coligados em terceiro e aliados do governo em quarto e quinto.
Os desastrosos governos de início de século haviam atirado Portugal para bem perto da bancarrota. A juntar a isto, a crise económica mundial arrastou as maiores economias para a Recessão, puxando consigo as mais fracas como a portuguesa. Por isso, ao receber a legislatura, o MPP viu-se obrigado a pedir apoio financeiro ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Central Europeu por via da União Europeia, levando a subida de impostos e a uma austeridade na vida dos portugueses nunca antes vista. Porém, era o único caminho para salvar o país.
Quatro anos de inferno financeiro, foi assim que ficou conhecido o governo de Flávio de Melo. Quatro anos a fazer os portugueses pagar pelas loucuras de governantes anteriores, sem que o povo percebesse porque haveriam de pagar pela ignorância ou criminalidade dos actos desses indivíduos. Para acentuar o desagrado dos eleitores para com o governo, o líder do PNL, o engenheiro Pinto Henriques, um dos seus fundadores e mentor, como comandante da oposição, atacava o primeiro‑ministro com acusações de incompetência e apresentando-se sempre como se tivesse a solução para todos os problemas do país, caso fosse ele a governar.
Em consequência desse desgaste de quatro anos, Flávio de Melo perdeu as Legislativas seguintes para Pinto Henriques e demitiu-se do partido. E foi assim que o PNL conquistou o governo e com uma surpreendente maioria absoluta.
Contudo, a demissão do professor Flávio de Melo não o afastou da política. Experiente, inteligente e bastante consciente da realidade, rapidamente percebeu que só poderia combater aquela força extremista que alcançara o poder governativo através do mais alto cargo da nação, a Presidência da República. Sendo assim, empenhou-se em construir uma candidatura sólida para as Presidenciais seguintes.
Para a História, essa eleição foi das mais concorridas e disputadas. O marechal Costa Almeida, apoiado pelo PNL, foi o vencedor da primeira volta, à frente de Flávio de Melo. Porém, sem os 51% necessários para a vitória final, o que obrigou à segunda volta, somente com os dois primeiros classificados. Os candidatos que haviam ficado com os votos que supostamente dariam a eleição ao militar retiraram-se do panorama ou promoveram o seu apoio a Flávio de Melo. Consequentemente, o ex-primeiro-ministro venceu com 55% dos votos do eleitorado português.
Assim, este era o cenário político em Portugal, o professor Flávio de Melo era o Presidente da República, o primeiro-ministro era o engenheiro Pinto Henriques, o governo do Partido Nacionalista Lusitano e a Assembleia da República dominada pelos nacionalistas lusitanos com forte oposição dos deputados do Movimento Povo Português, alguma contestação da fatia comunista e o quase silêncio da meia dúzia de deputados que restavam das antigas forças partidárias governativas.
1.2
A manhã de Inverno era de Sol e Pinto Henriques observava o exterior através da janela do seu gabinete no Palácio de São Bento. Perto de completar sessenta anos, Pinto Henriques era um homem de porte austero, rosto fechado e imagem fria como aço. Usava o cabelo penteado para trás, onde as têmporas grisalhas avançavam numa área cada vez maior. O olhar cínico, a expressão insensível, a arrogância... Era temido e gostava de o ser, adorava que as pessoas tremessem só de pensar em si. Orgulhava-se da subserviência que quase todos lhe devotavam, algo que construíra com o passar dos anos e conquista de um poder cada vez mais forte.
Pinto Henriques não era um homem alto, mas também não era baixo. Era encorpado com uma barriga maior que o aconselhável. Vestia sempre fatos pretos, gravatas cinzentas e camisas de um branco imaculado. Bem barbeado, não abdicava de um bigode ralo e das patilhas bem aparadas. A sua visão já não era tão boa como antigamente, mas a suficiente para a maior parte das ocasiões e recusava-se a usar óculos em público, pois considerava-o um sinal de fraqueza. No pulso esquerdo, um relógio de ouro. Na mão esquerda, no anelar, a aliança de casamento. Na direita, no dedo mindinho, um grosso anel de ouro.
Pela janela do seu gabinete, avistava o topo do edifício da Assembleia da República e muitos telhados da capital. Pinto Henriques odiava Lisboa, odiava ter de permanecer na cidade que um dia apelidara de Sodoma e Gomorra portuguesa, referindo-se à praga de prostitutas e homossexuais que nela via. Aliás, Lisboa sempre fora o alvo dos seus argumentos, a cidade dos calões, terra de chulos que viviam à conta do trabalho e riqueza do Norte. Os ideais do PNL, criados por ele, basearam‑se sempre no nacionalismo, na extrema-direita, no ódio aos imigrantes, xenofobia com especial ênfase nas comunidades provenientes das antigas colónias, na defesa da religião católica contra qualquer outra... Porém, com o crescimento de apoiantes e aumento do seu poder junto do povo e tempo de antena para difundir aquilo que os nacionalistas lusitanos defendiam para Portugal, o partido começou a divergir para uma incidência de ataques à capital, pois esta já quase não era uma cidade portuguesa, tal era a corja estrangeira que nela vivia.
Por estranho que possa parecer, estas visões alucinadas foram ganhando cada vez mais adeptos. Num país onde a crise prolifera e as pessoas desesperam com o dia a dia, qualquer doutrina fora do normal bem pintada, bem disfarçada, difundida não na sua real forma, mas da forma que os desesperados a querem ouvir, acaba por ser recebida como a solução de todos os males.
Pinto Henriques não vivia em Lisboa, apenas vinha à capital em obrigação das suas funções de chefe de governo. Adorava a sua terra natal, a cidade do Porto. O único inconveniente do regresso a casa era ter de aturar a mulher de quem há muito se fartara.
Não havia dúvida que chegara onde pretendera, alcançara os objectivos a que se propusera quando criara a doutrina nacionalista lusitana. Porém, os tempos avizinhavam dificuldades e os ventos que o haviam embalado pareciam agora soprar contra si.
Ouviu-se bater à porta. O primeiro-ministro voltou-se, acentuando a expressão fechada. Na sua habitual voz forte, meio cavernosa, permitiu:
— Entre!
A porta abriu-se e por ela surgiu uma mulher alta, morena de pele acetinada. Parecia uma modelo de desfile de moda, linhas corporais bem traçadas, rosto angelical... Vestia um traje formal, onde a saia sobressaía à atenção por ser mais curta que o devido, uma regra dele. Bárbara tinha pouco menos de trinta anos e exercia funções de assessora do primeiro-ministro. Contudo, as suas obrigações profissionais resumiam-se a três tarefas: fingir decentemente que era assessora dele, ser competente em ajudá-lo a descomprimir no gabinete, sempre que o chefe de governo sentisse necessidade, e aquecer-lhe a cama em todas as ocasiões em que ele dormisse fora de casa.
— Chegou o senhor ministro da Administração Interna, o doutor Raimundo Antunes para falar com o senhor engenheiro.
Pinto Henriques anuiu e fez um gesto para que ele entrasse.
Raimundo Antunes era alguns anos mais novo que o seu chefe de governo. Conheciam-se desde a juventude e este talvez tenha sido o primeiro grande aderente à doutrina de Pinto Henriques. A sua função no governo era a de ministro da Administração Interna. No entanto, a sua função principal era a chefia do SIALE (Serviço de Informação em Assuntos Lusitanos e Externos), uma espécie de polícia política que agregava a defesa dos interesses do Estado... Ou melhor, a defesa dos interesses do partido contra ameaças internas ou externas.
O homem que entrou no gabinete era uma figura franzina que aparentava alguma fragilidade. Nada poderia ser mais errado. Raimundo Antunes era tudo menos frágil e talvez fosse a segunda figura mais poderosa do regime. Era o "braço-direito" de Pinto Henriques, apelidado à "boca calada" de Himmler. O cérebro de toda a estrutura de controlo de informação, onde implementara a censura, acabara com a liberdade de imprensa, perseguia contestatários, vigiava tudo o que pudesse ser uma ameaça e controlava todos os dados de todos os cidadãos nacionais ou não que circulassem dentro de território português. Como poderia um partido tão novo e tão recente no governo ter capacidade para tudo isto? Graças aos contactos de Raimundo e ajuda de figuras influentes dos Serviços Secretos dos Estados Unidos da América, as quais lhe forneciam os meios em troca de toda a informação que esses mecanismos obtivessem.
Raimundo sorriu ao cumprimentar o outro. Não revelava um rosto tão fechado, mas tinha um olhar maquiavélico por trás das lentes redondas de uns óculos sem aros. O cabelo rareava na sua cabeça, o que o levava a usar o que restava num corte muito curto.
Pinto Henriques era mais alto e mais gordo. Recebeu o cumprimento com a forma fria como lidava com tudo diariamente. Assim que a porta se fechou, questionou:
— Então?
Raimundo Antunes abriu a pasta e retirou algumas folhas que o auxiliaram na informação que pretendia transmitir.
— Fizemos uma sondagem acerca da intenção de voto para as próximas Regionais. — começou. — Claro que vencemos com uma maioria esmagadora.
Pinto Henriques fez um sorriso escarninho e socou a própria mão num gesto vitorioso.
— Calma, Henriques! — alertou o outro. — As sondagens são enganadoras. Conseguimos implementar um tal clima de medo na população, desde que chegámos ao poder, que as pessoas têm medo de manifestar opiniões contra nós.
— Ainda bem! É assim que queremos o povinho.
— Sim, sim... Só que isso dá-nos uma noção errada do resultado de umas eleições livres. — explicou Raimundo. — Segundo as nossas fontes no SIALE, com eleições livres, iremos perder algumas regiões. Só mesmo o Entre Douro e Minho é garantido.
— Podemos controlar as eleições? — questionou o primeiro‑ministro, sentando-se na sua cadeira de costas voltadas para a janela.
— É difícil. A oposição vai querer observadores internacionais para averiguar a veracidade do acto eleitoral.
— Era o que faltava, ter essa corja da União Europeia a mandar "bitaites" nas nossas eleições.
— Se recusarmos, mais vale dizer que estamos a adulterar as eleições. E iria virar a comunidade internacional contra nós. — argumentou Raimundo, acentuando ainda outro problema. — E ao perdermos as Regionais, é quase certo que perdemos as Legislativas.
— Foda-se! — vociferou o primeiro-ministro, dando um soco no topo da mesa de trabalho. — Era suposto conseguirmos nos quatro anos de legislatura o controlo total para que o poder não nos fugisse das mãos.
— Nem tudo correu como o planeado.
— Pois...
— E não nos podemos dar ao luxo de perder as Legislativas. Se isso acontecer, bem podemos começar a pensar em fugir do país. — alertou o ministro. — Viria ao de cima tudo o que andámos a fazer desde que chegámos a São Bento. E só uma pequena parcela disso chegaria para apodrecermos na prisão.
— Fugir do país também não é solução. — contrapôs Pinto Henriques. — Sabes bem que algumas dessas coisas seriam suficientes para que fossemos perseguidos não só aqui como lá fora. — Raimundo anuiu. — Temos de pôr a máquina partidária toda a funcionar para modificar esse desfecho.
— Só que não temos tempo.
— As Regionais são daqui a um ano. Podemos fazer muito num ano.
Raimundo abanou a cabeça e entregou-lhe um relatório.
— Um dos meus infiltrados no Palácio de Belém conseguiu obter essa informação.
Pinto Henriques leu o relatório, saltando as partes insignificantes e concentrando-se no real problema.
— Tens a certeza disto? — interrogou, desejando que tudo não passasse de rumores.
— A fonte é fiável. Isso que está aí não é garantido, mas é uma possibilidade bastante forte.
— O cabrão do Flávio de Melo poderá estar a pondera dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas?
— Deveremos levar em conta que tenha realmente pretensões de o fazer. O gajo é esperto e tem noção que o nosso momento é mau e que umas Legislativas em breve poderiam trazer para o poder os seus correligionários do MPP.
— Foda-se! Não há quem meta um tiro no meio dos cornos daquele cabrão?
A pergunta era retórica e Raimundo não se manifestou. O silêncio instalou-se na sala. O primeiro-ministro pareceu ponderar a situação, equacionando como poderia reverter a situação a seu favor. Olhou para o seu "braço-direito" e questionou:
— Tens alguma ideia para combater isto?
— Sim. — confirmou o ministro com segurança. — Um golpe de estado. Temos de afastar o Flávio de Melo da Presidência da República.
— E como faremos isso?
Raimundo Antunes sentou-se na cadeira defronte da secretária do chefe de governo. Envergando um sorriso trocista, citou o outro:
— "um tiro no meio dos cornos daquele cabrão".
Pinto Henriques não pareceu convencido.
— Isso só iria acentuar o mal-estar da comunidade internacional contra nós. — vaticinou. — Mesmo negando, a culpa ser-nos-ia atribuída. Não pode ser. Temos de o obrigar a abdicar do cargo e substituí-lo por um dos nossos.
— E como faremos isso?
O primeiro-ministro ficou a ponderar a situação perante o olhar do líder do SIALE. As ideias começaram a formar-se na sua cabeça, como peças de puzzle que se juntam e transformam o abstracto em algo real.
— Vamos raptá-lo. A ele e à família. Obrigamo-lo a demitir-se.
— Vamos virar o povo contra nós. As pessoas parecem amá-lo como se ele fosse um anjo. Então com aquela postura de líder preocupado, sempre a meter-se em tudo, coisas que não lhe dizem respeito. Então quando critica o governo, o povinho parece que vai ter um orgasmo.
— Para implementares um regime autoritário, para implementarmos o regime que nos interessa, uma ditadura, não precisamos de agradar ao povo, somente aos militares. Se tivermos os militares do nosso lado, estamos seguros.
— Mas a comunidade internacional cai-nos em cima, ao fazermos isso. — lembrou Raimundo Antunes. — A União Europeia fode-nos logo com cortes nos financiamentos, lixa-nos as contas, deixa-nos à beira da bancarrota e obriga-nos a pedir um resgate ao Fundo Monetário Internacional. Claro que perante esse cenário, esses cabrões só auxiliarão o país se nos afastarmos.
— Temos de ter um trunfo que os condicione.
Raimundo olhou para o tecto, fazendo contas onde poderia encontrar esse trunfo. Acabou por sugerir:
— Podemos cercar as embaixadas dos países mais poderosos.
— Estás doido, Raimundo? Atacar uma embaixada é um acto de guerra. Invadiam-nos no dia seguinte.
— Não os atacávamos. Dávamos só a entender...
Pinto Henriques abanou a cabeça, refutando a sugestão e interrogando:
— De que serve um refém que todos sabem que não iremos molestar?
O silêncio regressou. As mentes de ambos vasculhavam as peças seguintes do plano. Pinto Henriques levantou-se e tornou a olhar para o exterior avistado da janela do seu gabinete, a maldita capital do país, a ignóbil Lisboa. E nesse instante, fez-se luz na sua cabeça.
— Já sei! — exclamou com uma expressão dura vitoriosa. — Teremos o maior grupo de reféns alguma vez visto. Faremos desta cidade o nosso trunfo contra a comunidade internacional.
De olhos esbugalhados, Raimundo observou incrédulo o seu líder. Aquela ideia parecia uma completa loucura, um absurdo que o levou a questionar mentalmente se o outro não estaria a ensandecer.
Indiferente a isso, Pinto Henriques explicou a sua ideia:
— Teremos de escolher a data ideal. Tudo terá de acontecer em simultâneo. E precisamos dos militares.
— Achas que os militares estão na disposição de entrar num plano desses?
— Temos o nosso ministro da Defesa, o marechal Costa Almeida.
— Ele tem muita influência nas Forças Armadas. Achas que alinha?
— Sim, alinha. — afirmou com toda a segurança. — Alinha porque será ele a ser nomeado para a Presidência. Assim que afastarmos o cabrão do Flávio, a chefia do Estado fica a cargo do presidente da Assembleia da República. E este, como bem sabes, é do nosso partido. A seguir, vamos nomear o marechal.
— Isso é constitucional?
— Caguei para a Constituição, Raimundo! Para esta Constituição. Mas, mesmo pela que está em vigor, se conseguirmos afastar o Flávio do cargo, cabe ao presidente da assembleia ocupar o cargo, tal como acontece nas ausências do Flávio em visitas de Estado ao estrangeiro. E o presidente da assembleia pode nomear um substituto, caso a condicionante do Flávio seja prolongada ou irreversível. Mesmo assim, quando for chegado o momento, iremos apresentar e fazer aprovar uma revisão constitucional, ou seja, implementaremos a nossa Constituição, a nossa lei.
— Precisaremos de dois terços da assembleia.
— Não te preocupes, Raimundo, na devida altura verás como a aprovaremos.
— Ok, ok. E depois?
— A oposição vai insurgir-se. E perante a impotência para nos fazer frente, vão apelar ao estrangeiro. — prosseguiu Pinto Henriques. — No mesmo momento em que raptarmos o Flávio, as Forças Armadas cercam a capital.
— Vão ser precisos centenas, senão milhares, de tropas. E veículos militares. — lembrou Raimundo. — Uma movimentação dessas atrairá muitas atenções.
— Nada disso. Vamos propor que o desfile militar da comemoração do 10 de Junho seja em Lisboa. Assim, teremos uma justificação para ter tantos militares e carros de combate na capital.
— E queres raptar o Presidente em pleno desfile militar?
— Não. O desfile é no 10 de Junho. No dia seguinte, deslocamos parte das tropas para posições estratégicas. No dia 12, à noite, são as Marchas Populares. O Flávio de Melo não falha um desfile. Está sempre na tribuna com o lacaio do Diogo Pereira ao lado, junto da populaça como ele gosta. É nessa noite que executamos o golpe, que o raptamos e que os militares sitiam a capital.
Raimundo anuiu.
— Sim. Estou a perceber a tua ideia.
— Só temos de nos aguentar até lá.
Raimundo ajeitou as abas do casaco cinza.
— Mesmo que dissolva o parlamento, as eleições nunca serão antes do Outono. — disse convicto. — Mas, Henriques, com um plano desses, porque não havemos de ser mais ambiciosos?
— Como assim, Raimundo?
— Podemos aproveitar para aniquilar completamente a oposição. — sugeriu o MAI diante do olhar atento do líder. — Com o Flávio de Melo, estará não só o Diogo Pereira como o Manuel Teixeira. Logo aí capturamos o presidente do governo regional de Lisboa e Setúbal e o presidente do MPP respectivamente. Decapitamos literalmente a cúpula do MPP. Prendemo-los com base numa merda qualquer que inventaremos até lá. — Pinto Henriques ouvia-o com uma expressão entusiasmada. — Para além disso, enviarei vários agentes do SIALE para capturar todos os deputados do MPP. Nós temos toda a informação acerca deles, fazemos vigias constantes, não será difícil interceptar todos nessa noite. — Fez uma pausa, como se estivesse a fazer contas. — Sem os deputados do MPP, teremos mais de dois terços do Parlamento para nós. A oposição dos comunistas e restantes rafeiros desses reles sobreviventes dos antigos partidos do poder será irrelevante. Poderemos alterar tudo o que quisermos na Constituição.
— Não tenho essa certeza, Raimundo. Teríamos de consultar um constitucionalista experiente para nos responder à questão. E isso poderia levantar suspeitas.
— Concordo.
Raimundo ponderou a questão. O seu líder de governo fez uma expressão de que pensariam nisso mais tarde. Contudo, o MAI teve mais um momento de inspiração.
— Como te disse, iremos capturar os deputados do MPP, Henriques. Podemos usá-los a nosso favor, coagi-los a votarem favoravelmente a nossa Constituição. — O primeiro-ministro revelou-se desconfiado do sucesso dessa hipótese. — Sob ameaça, farão tudo o que quisermos.
— Sim, isso parece ser uma ideia interessante. — concordou Pinto Henriques. — Mas, temos de engendrar uma justificação para a nossa acção de afastar o Flávio.
— É muito provável que o Flávio de Melo vá anunciar a dissolução da Assembleia da República antes de Junho. — continuou Raimundo. — Por isso, iremos surgir como uns rebeldes injustiçados que estão a tentar fazer o melhor por Portugal e que foram boicotados por um presidente que só tem em agenda fazer com que os seus correligionários voltem ao poder. Entretanto, planearemos algo mais para impactar o povo contra ele.
No rosto de Pinto Henriques brotou algo raro, um sorriso, uma expressão de vitória anunciada. Contudo, com a mesma rapidez com que surgira também desaparecera.
— Seria importante ter algum apoio dos nossos amigos no estrangeiro.
Os amigos no estrangeiro eram pessoas ou movimentos políticos afectos a doutrinas extremistas de direita, alguns dos quais financiadores do próprio PNL. Se algumas dessas entidades se moviam nas sobras do poder em alguns órgãos de soberania dos países, outros eram partidos com representação parlamentar, uns com mais expressão que outros. Vivia-se uma época em que a Europa parecia caminhar para um contexto político semelhante ao que existia um século antes.
Raimundo Antunes concordou:
— Sim. Tenho um dos meus homens de maior confiança num périplo pela Europa em conversas com essa malta toda. Tem enviado relatórios periódicos. Não tens com que te preocupar.
Pinto Henriques levantou-se e circulou pelo gabinete, ponderando todo o plano.
— Sim... É bem capaz de resultar. — concluiu.
Raimundo Antunes também se levantou.
— Se estiveres de acordo, irei dar instruções aos nossos embaixadores nos Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha. Não poderemos declarar abertamente que estamos a fazer reféns os nossos próprios cidadãos em Lisboa. — O primeiro-ministro assentiu em concordância. — Irão levar uma mensagem secreta de que se houver intervenção deles, começaremos a... matar reféns.
— Resta saber se eles se importam com a morte de cidadão estrangeiros.
— Não somos África, Henriques. A morte de europeus nunca é bom para a imagem dos governantes, faz passar uma ideia de impotência. Para além disso, aqueles que realmente poderiam fazer alguma coisa estarão do nosso lado. Os americanos são amigos dos nossos interesses porque isso significa um aumento da posição deles aqui. E a actual liderança acarinha bastante ideologias como a nossa. Os principais países europeus estarão manietados por estarem minados com problemas internos ou porque os nossos aliados no seu seio nos protegem. Não te preocupes, Henriques. A comunidade internacional vai ladrar, mas a caravana avançará à mesma.
— Mesmo assim, é importante assegurar-lhes que tudo faremos para manter a segurança das suas embaixadas em Lisboa.
— Sim, sim... Mas, com esse compromisso irá também um convite, uma abordagem ligeira, para que as desloquem para o Porto. Afinal, um dos nossos objectivos futuros será transferir a capital para lá.
Pinto Henriques anuiu:
— Sim, mas isso é mais complicado.
— Pois. Acho que isso é algo para o qual a população ainda não está preparada. A tradição é muito forte. Mesmo nos locais onde dominamos o eleitorado, uma alteração dessas não cairia bem.
— Porque são estúpidos. — adjectivou o primeiro-ministro, irritando-se. — Não percebem que estão a ser subservientes a uma cidade que os trata como lixo.
Num tom irónico, Raimundo Antunes concluiu:
— Acho que só se destruíssemos a capital é que concordavam com a deslocação do centro do poder de Lisboa para o Porto.
Pinto Henriques olhou-o com seriedade, ponderando o que o outro acabara de dizer.
— Isso pode não ser assim tão descabido. Afinal, teremos a cidade cercada por militares.
— Por Deus, Henriques! Não estás a pensar bombardear a cidade.
— Não, não. Nada disso. Mas, pensa só nisto. Sitiamos e controlamos a capital. Mantemos os órgãos do Estado a funcionar com normalidade, enquanto vamos perseguindo a oposição. Daremos caça a esses canalhas do MPP... Só que podemos não nos limitar a isso. Perseguiremos todos os lisboetas.
— Como faremos isso? As pessoas não andam com a naturalidade escrita na testa.
— Vamos começar a cortar recursos na cidade, luz, água, comunicações... — prosseguiu Pinto Henriques. — As pessoas vão começar a querer sair da cidade. Os militares controlam todos os acessos. Só poderão passar com a apresentação de documento de identificação, cartão de cidadão ou passaporte. Os militares deixarão passar todos, excepto os naturais de Lisboa. Ao fim de algum tempo, só teremos na cidade a escumalha. Lisboa começará a perder importância, as empresas quererão deslocalizar-se para outras regiões. Nós também nos veremos "obrigados" a transferir serviços do Estado.
— As pessoas irão revoltar-se. Teremos uma onda enorme de contestação na cidade.
— Espero bem que sim. — desejou o chefe de governo. — Será o nosso pretexto para que os militares entrem na cidade e comecem a... abater a população e a causar destruição.
Raimundo Antunes demonstrou algumas dúvidas:
— Isso poderá demorar muito tempo. Não sei se será viável ter os militares num período tão longo destacados num cerco. Podem começar a aparecer manifestações de descontentamento. E se os militares se revoltam contra nós...
— Isso não vai acontecer. Eles vão ter um imenso ódio por esta cidade.
— Estás muito confiante.
— Já me conheces há alguns anos. — recordou Pinto Henriques. — Não achas estranho que esteja a obrigar um gajo a abdicar da Presidência e a colocar lá outro que não eu?
— É um dos nossos.
— Mas não sou eu.
— Ok, ok. E então?
— O marechal Costa Almeida é um dos militares mais conceituados deste país. Respeitado e amado pela grande maioria das Forças Armadas.
— Por isso é que o convidámos para ministro da Defesa.
— Um tipo que não controlamos.
— Sim, Henriques, é verdade. — concordou. — Agora que falas nisso, é de facto estranho que o tenhas escolhido. Estás sujeito a que o tipo te fuja ao controlo, que não seja um mero pau-mandado.
— Então ouve com atenção! — exclamou o primeiro-ministro. — Quando o Costa Almeida tomar posse, tu vais arranjar alguém para lhe meter um tiro nos cornos.
— O quê? — questionou Raimundo perplexo.
Pinto Henriques explicou:
— Arranjas um tipo de confiança. Garantes-lhe imunidade. Iremos facilitar a passagem dele até ao marechal. Ele enfia-lhe umas balas no corpo e grita coisas do género "os lisboetas nunca se vergarão", "viva Lisboa", enfim... merdas deste estilo. Um dos agentes de segurança do marechal terá a missão de abater o gajo, como vingança.
— Tu queres um Oswald. — concluiu Raimundo. — Caraças, Henriques. Queres fazer uma réplica do assassinato do JFK.
— Conhece a História e estarás sempre um passo à frente dos teus adversários. — disse o outro com um sorriso. — Após isso, o que achas que os militares vão sentir por uma cidade que lhe matou um ídolo? O que vão sentir pelos seus habitantes?
— E o SIALE pode espalhar a informação de que existe na capital um grupo de tendência terrorista que engendrara o assassinato do Costa Almeida e poderá estar a planear mais golpes.
— E aí tens mais uma razão para mantermos a capital cercada. Na realidade, aos olhos de todos, só estamos numa caça a assassinos e terroristas.
— Podemos provocar alguns atentados em nome dessa suposta organização criminosa lisboeta. Alimentar a revolta daqueles que permanecem retidos em Lisboa.
— E com isso, como te disse há pouco, — repetiu o chefe do governo. — será o nosso pretexto para que os militares entrem na cidade e comecem a... abater a população e a causar destruição.
— A partir daí, começaremos a preparar a opinião pública. — completou Raimundo Antunes. — Não será difícil transferir a capital para o Porto.
— Deus te ouça, Raimundo! Será o dia mais feliz da minha vida.
O líder do SIALE partilhou o sorriso vitorioso do primeiro‑ministro.
— Voltando à questão internacional. — retomou o MAI. — Também darei instruções aos nossos na Comissão Europeia para transmitirem a mensagem de que condicionar a acção do nosso governo pode aumentar a escalada de conflito na capital.
— E a ONU?
— O nosso embaixador nas Nações Unidas estará a par disto. Com a passagem da informação aos embaixadores locais, o Concelho de Segurança estará ao corrente da... situação.
— Tens lá a China e a Rússia... — lembrou Pinto Henriques.
— Que se estão a cagar para que matemos portugueses. — lembrou o ministro. — A China mantém os interesses intactos em Portugal, já lhes asseverei isso. A Rússia tem mais com que se preocupar. Achas que os russos vão intervir em defesa do MPP ou do comum cidadão lisboeta? Ainda se fosse a União Soviética... Poderiam vir em socorro dos comunas. Agora a Rússia? Não te preocupes.
Pinto Henriques parou defronte do seu ministro e colocou uma mão no seu ombro.
— Caramba, quase podias acumular a pasta dos Negócios Estrangeiros com a tua da Administração Interna.
— Deixa lá isso para o paspalho do Coelho. Ele julga que é responsável por essa pasta, mas não passa de uma marioneta nas nossas mãos.
Os dois riram confiantes.
— És brilhante!
Raimundo Antunes fez um gesto a desvalorizar o elogio.
— Disseste que teremos o apoio dos militares. — recordou o líder do SIALE.
— Sim, o Costa Almeida irá garantir-nos isso.
— Acho que seria importante termos o apoio da Igreja.
— Achas? — questionou o primeiro-ministro, cruzando os braços e fazendo um semblante de quem não concordava com essa importância. — Não somos um país assim tão religioso.
— Sim... Mas... Sempre demos uma imagem de crentes e defensores da Igreja Católica. Começar a matar cidadãos... Enfim, acho que seria bom ter uma figura da religião a demonizar os lisboetas.
Com um sorriso trocista, algo nefasto, Pinto Henriques concordou e disse:
— Algo me diz que já pensaste na pessoa para fazer esse papel.
— O Rathesleon.
— O Arcebispo de Braga?
— Sim. — confirmou Raimundo. — O homem tem uma contenda contra Lisboa, tal como tu.
— E que lhe podemos oferecer em troca da sua ajuda? O homem não vai colaborar connosco só porque sim.
— Oferecemos-lhe o Patriarcado.
— Acabaste de dizer que o homem não suporta Lisboa e ofereces‑lhe um cargo cá?
— Não, Henriques. Retiramos o Patriarcado a Lisboa e oferecemo-lo a Braga. — explicou o MAI. — É isso que ele quer. Sempre defendeu que transferir o Patriarcado de Braga para Lisboa fora uma ignomínia.
— Bolas, isso foi há séculos.
— Seja como for, dá-lhe isso e tê-lo-ás na mão.
Pinto Henriques mostrou-se céptico.
— Não é preciso uma autorização da Santa Sé ou algo do género?
Raimundo Antunes encolheu os ombros.
— Não faço ideia. Mas, isso já será com ele. Na prática, estamos a oferecer ao Rathesleon a chefia da Igreja Católica portuguesa. Ele depois que trate do resto.
— E o actual Patriarca?
A resposta de Raimundo foi uma expressão de quem demonstrava que não seria difícil ajudá-lo a sair do caminho. Fez um sorriso sarcástico:
— É um religioso. Podemos ajudá-lo a ter uma morte santa.
1.3
A chuva caía abundantemente, embatendo nos vidros do luxuoso Jaguar que circulava pelas ruas de Londres, rumo às vias rápidas exteriores. O destino era Heathrow. O veículo fora alugado com motorista para transportar o seu cliente entre o centro da cidade e o aeroporto.
No banco traseiro, o cliente, Rafael Guerra, um empresário português de sucesso, que conquistara a pulso toda a sua riqueza. Oriundo de uma família humilde constituída unicamente pela mãe, Rafael sabia bem o que era a luta pela sobrevivência de quem não tinha dinheiro. A sua mãe, uma heroína, mulher de coragem e luta, tudo fez para que nada faltasse ao filho. Podiam existir dificuldades, mas nunca faltou comida na mesa. A mãe trabalhava numa fábrica de calçado, fazia limpezas, o que fosse preciso para que o filho comesse, se vestisse, estudasse e conseguisse ser alguém na vida. Rafael cumpriu o desejo da mãe, mas já não foi a tempo de retribuir, pois a doença levara-a demasiado cedo, pouco depois de se formar, tinha ele vinte e poucos anos. Já lá iam mais de dez, mas a mágoa da sua morte continuava em si como uma tatuagem, como se parte dele tivesse padecido junto com ela.
Rafael nunca conhecera o pai. Dele apenas sabia que era um merdas nascido em berço de ouro que engravidara a mãe e a abandonara com o mesmo desprezo com que se abandona um saco de lixo. Odiava-o profundamente, odiava uma imagem abstracta, o retrato de um homem que só existia na sua imaginação, a personificação do sofrimento da mãe. Ela nunca lhe contara muito, quase nada, acerca do seu progenitor. Rafael chegara a pensar em contratar alguém para encontrar o velhaco, mas isso seria uma traição à memória da mãe. Se ela quisesse que ele soubesse quem era, ter-lhe-ia revelado a sua identidade. Fosse como fosse, o ódio nunca o abandonara. E desejava ardentemente que a vida desse homem tivesse sido um inferno.
O trânsito intenso despertou-o das memórias. Recusava-se a conduzir em países onde as pessoas conduzem do lado errado da estrada. Sentia-se cansado e algo aliviado por regressar a Portugal, à sua vida, aos seus negócios. Nas últimas três semanas estivera em digressão por alguns países, começara nos Estados Unidos, regressara à Europa pela Alemanha, seguira para França e terminara o périplo no Reino Unido. Não era uma viagem de negócios, fora um favor a pessoas importantes, pessoas cujas ligações lhe permitiram o sucesso profissional de que se orgulhava.
O carro parou defronte do Terminal 2. O seu voo estava marcado para daí a duas horas com destino ao Porto. O motorista parou num sector abrigado da chuva, saiu do carro e foi abrir a porta ao seu cliente.
Rafael saiu do Jaguar sentindo o vento cortante, salpicando-o de gotículas de chuva. Segurou a pasta de trabalho na mão esquerda e recebeu a mala de viagem com a direita, dispensando o motorista. Era um homem que respirava confiança e caminhava com imponência, cabeça erguida e orgulho em si próprio. Quem lhe dera que a mãe o pudesse ver agora. Vestia um fato Armani caríssimo, aliás como era seu hábito, protegido por um longo sobretudo que lhe terminava abaixo dos joelhos. A chuva salpicara-lhe os sapatos elegantes, manufacturados em Portugal, outra característica sua, só usava calçado fabricado em Portugal, uma espécie de homenagem à mãe que tantos anos trabalhara numa dessas fábricas.
Avançou pela cacofonia de passageiros que se cruzavam em todas as direcções, ora para um balcão de companhia aérea, ora para uma porta de embarque. Rafael tinha uma imagem que faria qualquer mulher olhar duas vezes, ou mais, para ele. Era alto, encorpado, rosto digno de uma pintura renascentista, olhos claros, cabelo escuro penteado para o lado e uma barba espessa sempre muito bem aparada. Respirava carisma e olhava para todas as pessoas com um laivo de superioridade que não era mais que a defesa que criara ao longo da vida para combater os que o olhavam com essa mesma superioridade, quando ele era apenas um pobre miúdo filho de uma mãe solteira.
Parou defronte do quadro com a lista de voos em actualização permanente. Vociferou um palavrão bem português ao ver a indicação de que o seu voo estava atrasado. Afinal, só daí a quatro horas estaria previsto o início do embarque. Caminhou numa passada pesada, possesso por ver os seus planos alterados. Iria chegar ao Porto quase de madrugada. Deslocou-se até ao sector onde despachou a mala de viagem. Teve noção de que fora extremamente antipático com a funcionária, mas pouco lhe importou.
Segurando a pasta de trabalho na mão, Rafael caminhou pelo gigantesco terminal. Segurava o telemóvel na mão e consultava os emails, indiferente aos restantes seres vivos.
Apesar de faltar muito tempo para o seu voo, Rafael prosseguiu para a zona de controlo de acesso ao sector de embarque. Constatou que estava irritável, cansado... Queria chegar a casa, tomar um banho e dormir. Aquela parte era sempre a mais aborrecida das viagens, onde quer que fosse, uma fila longa de passageiros, a espera, chegar à zona de controlo, puxar um tabuleiro, retirar os aparelhos electrónicos da pasta, separar tudo, tirar o cinto, o relógio... Ficar de olho para se certificar que nada ganhava pezinhos em mãos alheias... Já para não falar nas vezes em que também o obrigavam a descalçar. Para além de tudo isto, ali no Reino Unido, ainda tinha o controlo fronteiriço de identificação. Não, definitivamente não estava com pachorra para aquilo.
Controlou a irritabilidade e tudo se desenrolou com naturalidade, passando pelo pórtico de detecção de metais e recolhendo todos os seus pertences.
Tomou café num Starbucks. Ainda faltava bastante tempo para o seu voo, daí que optou por ficar sentado na esplanada larga, junto aos corredores centrais, que dava apoio aos estabelecimentos comerciais do terminal. Durante alguns minutos, concentrou-se no telemóvel, mensagens e mais mensagens, assuntos para tratar que se atrasariam com o seu atraso. A companhia aérea portuguesa demonstrava cada vez menor profissionalismo, atrasos nos voos, falhas nos serviços... Até se falava no corte de algumas ligações aéreas, muitas com o Porto como destino. Claro que o actual governo português jamais deixaria isso acontecer.
A sua atenção foi atraída para a mesa ao lado, onde uma jovem se sentara de frente para ele. Permitiu-se a observá-la discretamente. Vestia um vestido escuro de malha com gola alta, mangas compridas e bainha curta. Nas costas da cadeira depositara um robusto blusão de corpo inteiro que a protegera certamente do dilúvio exterior. As pernas cruzadas esguias eram delineadas por meias de lã escura que surgiam por baixo da bainha do vestido e terminavam no topo das botas de cano alto que calçava e que lhe tocavam os joelhos. O cabelo era castanho-claro e a pele alva. O rosto estava parcialmente escondido por duas lentes negras, o que tornara impossível perceber se ela também estaria a olhar para ele. A expressão era triste, a boca de lábios finos tinha o mesmo ar delicado do nariz singelo. As mãos procuraram algo dentro da pequena malinha e dela retirou um telemóvel. Rafael nem se deu conta de que continuava com o olhar cravado nela. Porém, ela parecia nem dar pela existência dele. Numa observação mais atenta, Rafael notou dois traços cruzarem as faces dela, duas lágrimas que escorriam sem pudor abaixo das lentes. Ela soluçou com a concentração no ecrã do aparelho. Ele não tinha dúvidas de que estava a chorar. Porque estaria uma mulher tão atraente a chorar?
Repentinamente, o telemóvel dela soltou uma música possante, um toque de chamada que fez Rafael quase saltar da cadeira com a surpresa. Ela atendeu com a naturalidade de quem deveria achar que aquele toque estrondoso fosse a coisa mais usual para ter como aviso de chamada.
Para sua surpresa, Rafael ouviu-a falar português. Entre tantos estrangeiros, tantas nacionalidades, tantas línguas, a pessoa que se sentara na mesa ao lado falava português. E era português de Portugal, já que em Londres é mais normal ouvir português do Brasil.
A conversa foi rápida, entre soluços de mágoa e muitas lágrimas, ela avisava a pessoa que lhe ligara que o voo estava atrasado. Ao desligar, depositou o telemóvel sobre a mesa e retirou os óculos escuros. Rafael reparou nos olhos verdes inundados. Ela continuava a não reparar nele, era como se toda a realidade à sua volta fosse um filme. Limpou as lágrimas com um lenço de papel.
Nesse instante, Rafael agiu por impulso, fez algo raro em si, agiu primeiro e pensou depois.
— Tenho a certeza que tudo se vai resolver.
Ela não escondeu a surpresa por aquele estranho se estar a dirigir a si. Encarou-o com o olhar magoado de quem carpia mágoas à tempo suficiente para ter umas pálpebras quase inchadas. Contudo, olhou-o com segurança, com confiança, era uma mulher de personalidade forte. A forma como o olhou, desarmou completamente Rafael. Sim, ali estava um olhar onde não se importaria de perder. Sentiu um baque no coração, um formigueiro no estômago.
Rafael temeu ter sido intrometido, nos dois segundos que passaram como se fossem duas horas, receou que a reacção dela fosse agressiva, ofendida.
— Infelizmente não. — respondeu num tom amargurado. Agora que falava para si, Rafael pôde avaliar melhor a voz suave, meio arrastada, terrivelmente sensual. — É daquelas coisas que não têm solução.
Numa tentativa de ser sedutor e espirituoso, Rafael retorquiu:
— Ora, na vida há solução para tudo, menos para a morte.
— Pois... — soluçou ela.
Merda, tocara na ferida sem querer. Então era isso...
— Lamento. — Ela aceitou a palavra com um acenar de cabeça. — Alguém próximo?
— O meu... o... o meu pai.
Bom, ali estava algo que ele não sabia o que era, perder um pai. Nunca tivera pai. Porém, calculou que seria semelhante a perder uma mãe. E esse caminho ele já percorrera.
— Lamento. — repetiu. — Eu perdi a minha mãe há mais de dez anos e ainda sofro com a sua ausência.
Ela fez um sorriso sofrido.
— A minha mãe faleceu há três anos.
Estupidamente, a primeira ideia que veio à cabeça de Rafael foi que então não fora a mãe quem ligara. Quem teria sido? O namorado? Sim, deveria ter sido o namorado. Uma mulher tão bonita não seria certamente descomprometida.
— Calculo que esteja a regressar a Portugal para o funeral. — Ela anuiu. — Também estou de regresso a Portugal. — Ela não manifestou qualquer interesse nas palavras dele. Rafael ignorou e forçou o assunto. — Só que a nossa bela companhia aérea tem o voo atrasado.
— O meu também está. — partilhou, recolocando os óculos no rosto, como quem fecha a porta ao diálogo.
No entanto, Rafael não era homem para desistir às primeiras adversidades.
— Vai para Lisboa?
Ela abanou a cabeça.
— Porto.
Rafael ofereceu-lhe um largo sorriso.
— Que curioso. Eu também.
A reacção dela foi neutra, não dando para concluir se a informação lhe agradara, desagradara ou fora simplesmente irrelevante. Ele estendeu a mão na sua direcção e apresentou-se:
— Chamo-me Rafael.
Mais uma vez, nos escassos segundos de noção horária, Rafael receou ficar com a mão no ar, uma resposta de "que tenho eu com isso" ou outra reacção desagradável. Porém...
— Clara. — informou, apertando-lhe a mão com delicadeza.
Um arrepio atravessou-lhe a espinha ao sentir o toque suave da sua pele. Não conseguia perceber o que estava a acontecer ali, nunca sentira nada semelhante, nem com aquela que fora a sua relação mais longa, quatro anos de namoro até se chegar a um acordo tácito de que tudo terminara. Seria por estar solteiro há vários meses? Não... Ainda duas noites antes fora para a cama com uma belga que conhecera num bar perto de Leicester Square. Não, não era falta de sexo, não era falta de afecto ou de amor. Era...
Não sabia explicar.
— Posso fazer-lhe companhia, enquanto esperamos o nosso voo?
Nova lágrima escorreu pelo rosto dela. Apesar disso, Clara olhou-o com segurança por trás das lentes.
— Não me importa a companhia. — disse ela. — Até me agrada não estar sozinha. Mas, se pensa que isso será um abrir de porta a outras intenções, prefiro que se vá embora.
— Não se preocupe. Tem a minha palavra. — descansou-a, aproveitando para se transferir da sua mesa para a dela. — Seremos só dois portugueses com o voo para casa atrasado e a fazer companhia um ao outro.
1.4
— É a primeira vez que te vejo sorrir. — apontou Rafael, encantado.
O sorriso desapareceu do rosto de Clara, quase como se sentisse que um sorriso não era permitido a uma filha que perdera o pai.
Nem deram pelo tempo passar. Sentados na esplanada com a mesa entre eles, conversavam havia quase duas horas e toda a realidade que os rodeava pareceu inexistente. Nesse tempo, Clara ficou a saber que ele era um homem bem-sucedido profissionalmente, accionista de algumas empresas de lucros avultados e dono de alguns negócios importantes, não referindo outras actividades paralelas que exercia e que eram a razão de estar em Londres. Relatou-lhe as suas origens humildes sem complexos, falou da mãe com orgulho em cada sílaba. Procurando não transmitir a raiva que sentia nas palavras, partilhou com ela a história do pai, o crápula que abandonara a mãe.
— Desculpa, estar a contar-te isto. Falar assim do meu... do tipo que engravidou a minha mãe. Tu terás certamente uma ideia bem diferente do que é um pai.
— Sim. — concordou, esboçando um sorriso afectuoso. — O meu pai era o inverso de tudo o que contaste do teu. — Olhou-o nos olhos com uma expressão terna. — Obrigada por essa franqueza. Não é algo que se conte a uma estranha.
De facto, Rafael estava surpreendido consigo mesmo. Sempre fora muito reservado em relação aos pormenores da sua vida privada, principalmente das suas origens. Contudo, sentiu-se seguro em desabafar com ela.
— Sem querer que isto pareça um "lugar-comum"... Não te sei explicar. Estou a conversar contigo e vejo-te como se te conhecesse há muito tempo.
Clara não se pronunciou. Permanecia atenta a que certos limites não fossem ultrapassados e não houvesse interpretações erradas. Escolheu mudar de assunto e falou de si. Conversavam com o olhar bem cravado nos olhos do outro, sem qualquer retraimento. Rafael ouviu-a com toda a atenção. Clara estava a estudar em Londres, um doutoramento em História. Ela adorava História, desde pequena, algo que fora muito influenciado pela mãe, professora de História. Sem que tivesse essa intenção, Clara deu pistas em relação à sua idade. Rafael fez contas rápidas, tinha mais oito anos que ela. Era filha de uma família abastada da região transmontana, na zona do Douro Internacional, onde a família possuía uma propriedade com vinhas a perder de vista.
— Vives sozinha em Londres?
— Sim. — confirmou com naturalidade. — Ao início, ainda partilhei um apartamento com uns amigos, mas acabei por preferir ter o meu espaço. — Forçou uma expressão divertida. — Sou muito ciosa do meu espaço. Gosto de ter o meu canto, um lugar onde possa estar sossegada sem ninguém a incomodar. Talvez sejam efeitos de ser filha única.
Um pormenor assaltava a mente de Rafael, uma pergunta, uma dúvida que ele queria esclarecer. Porém, receou que ao tentar saciar a curiosidade pudesse ser de alguma forma ofensivo. Mesmo assim, procurou um meio para alcançar o fim pretendido:
— Tens saudades de Portugal? Dos amigos... do namorado?
Clara lançou-lhe um olhar sério. Percebeu onde ele queria chegar. Mais uma vez, as defesas levantaram. Não queria mal-entendidos.
— Sim. Tenho saudades de Portugal. — respondeu com distância. Olhou para o relógio. — Talvez fosse melhor irmos andando para a nossa porta de embarque.
Segurando o casaco no braço, caminharam lado a lado em silêncio. Furaram pelo meio da multidão de passageiros que se movimentavam para partir ou que acabavam de chegar dos quatro cantos do Mundo. Rafael concluiu que cometera um erro, ao tentar saber demais. Ao fim de quase dez minutos, alcançaram a porta de embarque do seu voo.
Quase todas as cadeiras estavam ocupadas, uma vez que já muitos passageiros aguardavam o embarque. Os diálogos em português acentuaram-se e deram a Rafael um gostinho de regresso a casa. Pelos altos vidros virados para as pistas, ele viu que a noite caíra por completo, apesar de pouco passar das cinco da tarde. A chuva continuava impiedosa e provocava nas inúmeras luzes exteriores um efeito esbatido no vidro. Apesar da fraca visibilidade, era notório que o avião que os transportaria para o Porto ainda não se aproximara da manga de embarque daquela porta.
Clara não parou a passada e sentou-se num lugar vago, entre um senhor idoso que conversava animado com o seu grupo de amigos e uma chinesa meio ensonada. Não se mostrou muito preocupada se ele se sentaria por ali ou mais longe ou até se aquele seria o momento em que se afastariam.
Rafael encontrou um lugar vago na fila de cadeiras defronte de Clara. Sentou-se e ficou a observá-la. Clara recolocara os óculos escuros, como se quisesse passar a mensagem que aquelas últimas horas foram agradáveis, mas estava na altura de cada um seguir o seu caminho. Sem saber o que dizer para a recuperar, limitou-se a olhar para ela, contemplando a sua beleza, gravando ao máximo aquela imagem na sua memória para recordar quando ela não passasse disso mesmo, de uma recordação.
— Que se passa? — questionou, séria, sem evitar fungar, lutando contra as lágrimas.
— Nada.
— Desde que te sentaste que estás a olhar para mim.
— Desculpa.
— Não precisas de pedir desculpa por olhar para mim.
Apesar de estarem rodeados por dezenas de pessoas, gente que na sua maioria falava a sua língua, ninguém se interessou pela conversa.
— Não é por isso. — esclareceu ele. — Desculpa a pergunta que te fiz. Não queria deixar-te desconfortável.
— Não deixaste. — respondeu sem convencer.
— Não voltaste a falar comigo.
— Não tinha nada para dizer.
Rafael assentiu. Ok. Se era assim que ela queria terminar o momento de ambos...
O homem sentado ao lado de Rafael levantou-se, segurando o seu saco de viagem e afastando-se para ir falar com outra pessoa que estava duas filas mais distante. Para sua surpresa, Clara levantou-se do seu lugar e veio sentar-se a seu lado.
— Não gosto que me perguntem se tenho namorado. — confessou, retirando os óculos e olhando Rafael nos olhos. — Não tenho problema em dizer se tenho ou não, mas soa sempre a uma pergunta feita com segundas intenções.
— Não tive essa intenção. — interrompeu ele, desviando o olhar.
Clara já não chorava, mas os olhos estavam húmidos. Soltou um sorriso sarcástico.
— Não tens jeito para mentir.
— Eu não...
— Não consegues dizer-me isso, olhos nos olhos. — atalhou ela.
Rafael tinha jeito para mentir, conseguira inúmeras vezes alcançar os seus objectivos fruto da mentira e da falsidade. Mas, não com Clara. Ela era diferente, era...
Não conseguia explicar.
— Tudo bem. — concordou ele. — Posso ter essa curiosidade. — Olhou-a nos olhos, sorrindo-lhe com afecto. — Acho que sei a resposta.
— Achas?
— Não interessa. É irrelevante, Clara. Gosto simplesmente de estar contigo. Podes ter namorado, ser casada, enfim... É-me indiferente. Gostava só que, depois de chegarmos ao Porto, pudéssemos ser amigos.
Clara ficou em silêncio. O sorriso esfumou-se. A expressou facial foi uma mistura de tristeza e seriedade. As lágrimas voltaram.
— Desculpa... — sussurrou, procurando um lenço de papel. — Estou demasiado sensível. — Limpou o rosto e assoou-se com elegância. — Desde que recebi a notícia da morte do meu pai que a realidade parece um vidro fosco. Nunca pensei que se pudesse chorar tanto. — Recompôs‑se. Os olhos verdes húmidos deram tréguas. — Por um acaso do destino, cruzámo-nos e tens sido um suporte involuntário... Não sei como teria aguentado esta espera sozinha. Se calhar, a chorar dez vezes mais. — Um sorriso ferido despontou. — Pelo menos, atenuaste a minha tristeza. Sim, confesso, também gosto da tua companhia. — Ele retribuiu‑lhe o sorriso com um semblante feliz. — Vão ser dias complicados, quando chegar ao Porto. O funeral... — Soluçou. — Podemos trocar contactos. Combinar um café, quando estas brumas na minha vida se dissiparem.
Nesse instante, ecoou um sinal sonoro por todo o espaço, alertando os presentes para uma mensagem. Uma voz feminina, em inglês, enunciava o voo deles e adicionava a informação de que o mesmo fora cancelado. A indignação espalhou-se pelos passageiros que aguardavam. A mensagem foi repetida em português e, tal como em inglês, sem avançar qualquer explicação para o cancelamento.
— Isto não pode estar a acontecer. — suspirou Clara, agastada. Se tudo tivesse corrido normalmente, àquela hora já estaria em casa. — Cancelado? Porquê?
A massa de passageiros moveu-se quase em uníssono para o balcão da porta de embarque onde a funcionária da companhia usara o microfone para transmitir a notícia. Perante as pessoas, ora em português ora em inglês, respondia que não tinha mais informações e que se deveriam deslocar ao balcão da companhia aérea no aeroporto para mais pormenores.
— Espera aqui. — pediu Rafael a Clara, levantando-se da sua cadeira.
Barafustando com enorme indignação, as pessoas dispersaram, seguindo as instruções da funcionária, sem deixar de gritar impropérios acerca da empresa titular do seu voo.
— Porque é que cancelaram o voo? — questionou Rafael, assim que chegou ao balcão.
— Não tenho mais informações. Terá de se deslocar ao balcão de atendimento ao cliente da companhia.
— Quando é que nos levarão para o Porto?
— Não sei. Terá de se deslocar ao balcão de atendimento ao cliente da companhia.
— Vão arranjar-nos alojamento até arranjarem voo?
A funcionária quase que o ignorou, nem olhou para ele e repetiu:
— Não tenho essa informação. Terá de se deslocar ao balcão de atendimento ao cliente da companhia.
— Olhe para mim! — exigiu Rafael num tom forte, o que trouxe alguma apreensão à funcionária. Mesmo assim, manteve a postura altiva e lançou um olhar ao segurança. — Fale com o seu superior, seja ele quem for. Contactem a companhia em Portugal e digam-lhe que um dos passageiros do voo que cancelaram é Rafael Guerra. — Fez uma pausa, vendo o segurança parar a seu lado. Ouviu-o perguntar em inglês se estava tudo bem. Rafael respondeu no lugar da funcionária que sim. Ela fez sinal que estava tudo bem. Rafael continuou. — Informe-os que este atraso e cancelamento estão a causar-me muitos prejuízos. Quero que me arranjem um voo para o Porto o mais rapidamente possível. Se já não puder ser hoje, quero que tratem de me arranjar um hotel de cinco estrelas em Londres. Ah... Informe-os que viajo com uma amiga, pelo que deverão arranjar dois quartos nesse hotel e dois bilhetes em classe executiva para o próximo voo para o Porto. Entendeu tudo?
A funcionária revelou-se céptica. Seria bluff? Ou aquele indivíduo seria realmente alguém importante? Rafael leu-lhe o pensamento.
— Espero que não demore muito tempo a fazer isto que lhe disse. Se quiser, eu posso telefonar directamente para o CEO da companhia. Só que isso ia fazer com que você amanhã estivesse desempregada. — O olhar assustado dela revelou que o levava a sério. — Fixou o nome?
— Senhor Rafael Guerra.
— Senhor doutor Rafael Guerra. — corrigiu prepotente.
Sem perder mais tempo, Rafael regressou às filas de cadeiras.
Clara aguardava sentada, conforme ele lhe pedira. Exceptuando três ou quatro lugares, todas as cadeiras daquele sector de embarque estavam vazias.
— Então?
— Vão tratar do assunto.
Clara não se mostrou muito crente:
— As pessoas foram todas embora. Iam reclamar... Ninguém conseguiu saber nada aqui. Parece que só no apoio ao cliente é que dão informações. Talvez seja melhor também irmos lá e...
— Espera um pouco, Clara. — pediu com tranquilidade. — Aquilo deve estar apinhado de gente.
— Mas, temos de arranjar um voo alternativo, quem chegar primeiro...
Rafael interrompeu-a. Sem ter intenção, colocou a sua mão sobre a dela. Ela não a rejeitou.
— Confia em mim, Clara.
Clara não conseguia disfarçar a impaciência. Temia ficar retida em Londres, não conseguir voar para Portugal e falhar o funeral do pai. As lágrimas voltaram. Tornou a esconder o rosto com os óculos escuros.
Rafael também se deixou vencer pela impaciência, olhando constantemente para o relógio. Será que tinha de ser ele a ligar para os seus contactos privilegiados?
Começaram a chegar mais pessoas, passageiros do voo seguinte a embarcar naquela porta. Sem interesse, ele viu no ecrã que se destinava a Amesterdão.
Um homem baixo, envergando uma farda da companhia aérea que lhes cancelara o voo, aproximou-se deles. Tinha um aspecto obeso, um cabelo oleoso e deixara a simpatia em casa.
— Senhor doutor Rafael Guerra? — questionou, prostrando-se em frente a ele. Rafael confirmou a identidade correspondendo à antipatia. Ele olhou para o lado. — A sua amiga? — Nova confirmação. — Só teremos voo para os senhores, amanhã. Conforme solicitou, reservámos dois quartos num hotel de cinco estrelas na cidade. Na saída do terminal terão um carro e motorista para vos levar ao hotel. Já colocámos as vossas malas no veículo. Também têm mesa reservada no restaurante do hotel para jantarem. Logo que seja possível, enviaremos para o senhor os bilhetes do novo voo, em classe executiva como solicitou. Amanhã, enviaremos uma viatura ao hotel para vos trazer novamente ao aeroporto. — Entregou-lhe um cartão. — A companhia tem todo o gosto em suportar todas as despesas e lamenta todos os incómodos que lhe causámos. Tem aqui um cartão com o meu contacto, caso precisem de alguma coisa.
— Obrigado. — agradeceu Rafael de forma fria.
O homem afastou-se e desapareceu no meio da multidão de passageiros.
Clara observou tudo com espanto. Rafael encontrou o seu olhar embasbacado, completamente incrédula com tudo o que ouvira.
— Eu bem te disse para confiares em mim.
— Vejo que tens amigos importantes. — constatou, pegando no casaco para o acompanhar.
— Não são amigos...
Iniciaram a caminhada pelo longo terminal, pelas inúmeras portas, rumo à saída.
— Obrigada, Rafael! — agradeceu, dando-lhe o braço.
Ele aceitou com agrado que ela tivesse tomado aquela iniciativa. Era bom tê-la tão perto, encostada a si.
Voltaram a passar no controlo de identidade. Afinal, estavam a reentrar no Reino Unido. Tal como o funcionário dissera, na saída, parado e protegido da chuva por uma pala de betão, um Mercedes de gama alta com os quatro piscas ligados. Junto do carro, um homem de fato com uma placa branca com "Mr. Rafael Guerra" manuscrito à pressa.
O trajecto nas estradas onde se conduz do lado errado foi feito em silêncio. Não porque a relação deles tivesse esfriado ou sido novamente atingida por uma pergunta errada ou um comentário despropositado. Foi em silêncio porque estavam cansados.
Sentados no banco traseiro, Rafael correu o risco de colocar a sua mão sobre a de Clara. Não se olharam, não se manifestaram. Clara limitou-se a virar a sua a apertar a dele entre os seus dedos.
1.5
O elevador subia vagarosamente para o quinto piso do hotel. Rafael encostara-se a um dos lados e olhava com ternura para Clara que retribuía o olhar, encostada na parede oposta. Entre eles, um funcionário do hotel com a bagagem de ambos agia com o profissionalismo de tentar ser invisível.
Na chegada ao hotel, o motorista acompanhara-os à recepção e deixou as malas junto ao balcão, informando que estaria de volta na manhã seguinte para os transportar de novo ao aeroporto. Rafael anuiu e agradeceu. Como previsto, o hotel tinha dois quartos para eles, um para Mr. Rafael Guerra e outro para Miss Clara Jordão. Haviam recebido indicações de que eles jantariam no hotel, pelo que solicitaram saber a que horas queriam a refeição. Rafael informou que iriam subir aos quartos e que voltariam a descer para jantar, queriam a mesa para daí a quinze minutos.
As portas do ascensor abriram-se quando o número cinco surgiu no ecrã digital. Rafael indicou ao empregado que fosse à frente para os conduzir aos respectivos quartos.
O 510 e 511 localizavam-se lado a lado. Rafael dispensou o funcionário do hotel, assim que chegaram às respectivas portas.
— Tens preferência? — questionou ele, apontando-lhe os dois cartões de acesso aos quartos. Clara encolheu os ombros e recebeu um aleatório. — Vou só colocar a mala e o casaco lá dentro.
— Eu também. Até já!
Em menos de dez minutos, estavam novamente no elevador a descer até ao piso do restaurante. Clara largara o casaco e os óculos escuros. Era evidente que se penteara e retocara a maquilhagem, disfarçando o inchaço das pálpebras. O olhar esverdeado permanecia com a vermelhidão ténue causada pelos momentos chorosos. O vestido de malha assentava-lhe como uma luva, definindo-lhe a elegância corporal. Rafael também largara o sobretudo no quarto e a pasta de trabalho. Manteve a indumentária formal, mas abdicara da gravata.
O restaurante estava bem composto de clientes. Com o temporal que se abatia sobre Londres, não era difícil perceber que os hóspedes optassem por jantar no hotel, apesar do elevado custo das refeições. No entanto, a bem da verdade, quem tinha dinheiro para pagar um quarto ali, melhor pagaria a refeição.
— Se pretendias impressionar-me, admito, estou impressionada!
Ficaram sentados numa mesa a meio do amplo salão, frente a frente.
— Não. Não tive essa intenção.
— Tens amigos bem colocados na companhia aérea!? — alvitrou Clara.
Rafael não se pronunciou. Não tinha amigos bem colocados na administração da companhia aérea, tinha contactos privilegiados com quem mandava nas pessoas que lideravam essa mesma administração.
A refeição foi feita ao sabor de conversa de circunstância. Clara afastou-se dos assuntos que a fizessem lembrar o pai, de forma a evitar mais lágrimas, e falou dos seus estudos em Londres. Rafael ouvia-a com toda a atenção, demonstrando interesse em tudo o que ela dissesse. Clara também o ouvia com total interesse, os seus relatos de como conseguira os seus primeiros negócios, as lutas que travara, a satisfação de alcançar os seus objectivos... Tudo acompanhado por um prato leve e uma garrafa de vinho tinto reserva.
A ideia era fazer uma refeição rápida e regressarem aos quartos para descansarem. Porém, a conversa estava tão agradável que o jantar já decorria há quase uma hora.
— Posso fazer-te uma pergunta pessoal? — pediu Clara. — Pode ser algo melindrosa. Não levo a mal que não queiras responder.
Sentindo uma felicidade que há muito não sentia na companhia de alguém, Rafael sorriu divertido e disse:
— Não, não sou casado. Nem tenho namorada.
— Não era isso que te ia perguntar. — retorquiu séria. — Nem tão pouco me interessa esse lado da tua vida privada.
Preocupado em que voltassem a cair num clima de esfriamento, Rafael permaneceu sorridente e concedeu:
— Estava a brincar. Podes perguntar o que quiseres.
A seriedade não abandonou o rosto de Clara.
— Nunca quiseste conhecer o teu pai?
O sorriso desapareceu da expressão de Rafael. Clara percebeu que tocara mesmo num ponto melindroso. Ia desculpar-se e recusar uma resposta, mas Rafael disse:
— Mentiria se dissesse que não tive essa curiosidade.
Fez uma pausa, como se recordasse algo.
Clara interpretou-o como uma recusa em abordar o assunto.
— Desculpa, não devia ter perguntado...
— Não é algo de que costume falar. — prosseguiu ele. — Aliás, nunca falei do meu pai com ninguém, excepto com a minha mãe. E com ela foram poucas vezes, não era tema que, obviamente, lhe agradasse.
— Não precisas de te sentir na obrigação de o fazer comigo, só porque... — soluçou, mas lutou contra as lágrimas que a tornaram a ameaçar. — ... só porque eu estou a sofrer com a morte do meu.
Rafael manteve o olhar no dela, sério, quase duro, mas com um laivo de afecto na expressão.
— Não, não o faço por isso. Faço-o apenas porque me sinto confortável em desabafar contigo. — explicou num tom terno. — Só que não tenho nada de bom a dizer acerca disso. E parece-me um pouco nefasto estar a falar mal de um pai, quando acabaste de perder o teu. Ainda por cima, duas pessoas que são tão paradoxais.
— Obrigada por isso. Obrigada pelo cuidado que demonstras por mim. E fico feliz que te sintas confortável comigo ao ponto de falar em coisas tão pessoais, tão... — Não sabia muito bem como definir. — Também me sinto confortável contigo.
O sorriso voltou ao rosto de Rafael.
Uma música estridente ecoou da pequena mala de Clara, pendurada nas costas da cadeira. Alguns dos hóspedes mais perto olharam para eles com uma expressão aborrecida.
— Tens de mudar esse toque. — sugeriu Rafael.
Clara retirou o telemóvel e atendeu:
— Olá Dolores! Sim, liguei há pouco... Ainda estou em Londres, cancelaram o voo... Não, não te preocupes, estou bem... Amanhã... Estou num hotel, a companhia suporta os custos... Não te preocupes. Ligo-te amanhã, quando estiver para partir. Beijinhos.
Desligou.
— A tua família preocupada contigo. — adivinhou Rafael.
— Sim... A Dolores é como se fosse família. É a governanta da nossa casa. Conhece-me desde que nasci. Ela e a irmã são as pessoas responsáveis por tudo o que diz respeito à vida doméstica da minha família. E acabaram por ser a companhia do meu pai na minha ausência. — Sorriu atrapalhada. — Não, não é nada disso. São duas senhoras de muito respeito.
Rafael riu.
— Tens de acreditar em mim. Não me passou pela cabeça isso que possas estar a pensar.
Antes de guardar o aparelho, Clara olhou para o ecrã e viu as horas.
— Talvez seja melhor subirmos. Está a ficar tarde.
— Sim, tens razão.
Abandonaram o restaurante e caminharam vagarosamente até ao elevador. Entraram no transporte e subiram na companhia de mais um casal com aspecto caucasiano, os quais continuaram a subir depois de o elevador parar no quinto piso.
Rafael e Clara não trocaram uma única palavra e prosseguiram a passada vagarosa pelo corredor do hotel, numa postura inconsciente de quem não queria que os momentos partilhados tivessem um fim. Pararam exactamente entre as portas 510 e 511, uma distância de cerca de um metro. Clara retirou o cartão da mala e olhou para Rafael.
— Obrigada por tudo. — disse com um semblante triste. — Foste um raio de Sol em toda a minha neblina. — Soluçou e duas lágrimas despontaram, escorrendo pelas suas faces.
Ele sentia um carinho enorme por ela. E vê-la chorar começava a tornar-se cada vez mais doloroso.
— Posso dar-te um abraço? — pediu Rafael. — Juro que é sem segundas intenções e será com todo o respeito.
Clara sorriu por entre o choro.
— Iria saber-me bem esse abraço. — concedeu.
Rafael anulou a pouca distância que os separava e envolveu-a nos seus braços. Apertou-a com ternura e sentiu-a soluçar mais. Não abriu os braços e deixou para ela a iniciativa de terminar o momento, ficando atento a essa reacção. Clara permaneceu frágil, chorosa, encostada ao seu corpo, sem mostrar qualquer sinal de querer afastar-se. Ele tinha tanto carinho por ela que, instintivamente, decidiu beijar-lhe os cabelos. Ela não reagiu. Rafael apertou-a ligeiramente, intensificando o carinho, baixou a cabeça e arriscou-se a beijar-lhe a face. Não trocaram qualquer palavra e o silêncio do ambiente tranquilo do corredor envolvia-os numa paz quase celestial. Clara não se importou com o beijo e, em resposta, colocou os braços à volta da cintura dele. Tornou a soluçar. Rafael voltou a beijar-lhe o rosto, saboreando a lágrima que descera pela bochecha dela. Clara virou o rosto e Rafael respirou a sua respiração soluçada. Evitando qualquer impulso que estragasse o momento, Rafael afastou o rosto do dela, mas sentiu os braços de Clara apertarem-se na sua cintura. Sem saber muito bem o que fazer, nem teve tempo para reagir, quando Clara surpreendentemente levou a boca aos seus lábios.
O beijo aconteceu como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se fossem namorados de longa data. A boca dela sabia a morango com um travo a sal proveniente das lágrimas que continuavam a escorrer pelo rosto. Começou por ser um toque de bocas, pequenos beijos, carinhos de lábios. Depois, tornaram-se beijos mais intensos, os lábios não se descolavam e as bocas abriram-se...
Clara cortou o beijo. Travou de súbito, apesar de não afrouxar minimamente o abraço nem permitir que ele suspendesse o seu. Olhou-o nos olhos, revelando uma expressão triste misturada com uma sedução intensa. Rafael julgou que ela colocara um fim ao beijo e iria recriminar-se e dizer que aquilo não se iria repetir...
Errado.
Clara parou para o olhar. As lágrimas não cessaram e isso parecia dar ainda mais intensidade ao verde apaixonante. Voltou a beijá-lo. Desta feita, com muita paixão. Para alguém habituado a controlar todas as situações, Rafael estava consciente que era ela quem tomava as rédeas do momento. Beijou-o com ferocidade, abrindo a boca para invadir a dele com a sua língua. Parecia quase que o queria morder, comê-lo...
Mais uma vez, Clara findou o beijo abruptamente. Desta vez, abriu o abraço e deu sinal que ele deveria fazer o mesmo. Rafael estava meio aparvalhado com tudo aquilo e nem sabia o que haveria de dizer. Clara não disse nada, limitando-se a colocar o cartão na fechadura da porta do seu quarto. Abriu-a e entrou perante o olhar e postura imóvel de Rafael. Uma vez lá dentro, virou-se para ele e segurou a porta, dizendo:
— Queres entrar?
Quase como um autómato, Rafael entrou no quarto e parou defronte dela. Clara fechou a porta, colocou o cartão no suporte que ligava toda a electricidade do espaço e passou por ele, quase como se não existisse. Parou a meio da divisão, tornou a olhar para Rafael e pediu:
— Podes voltar a abraçar-me?
Rafael despiu o casaco e atirou-o para cima da cadeira ali ao lado. Caminhou até ela, abraçou-a e retomou o beijo sem perder tempo.
Nenhum deles saberia dizer quantos minutos decorreram. No silêncio do quarto, os únicos sons que se ouviam eram as suas respirações ofegantes e o som dos lábios a entrechocar. Longos e agradáveis minutos em que permaneceram assim, abraçados um ao outro a trocar beijos.
Nunca controlaria o que pudesse acontecer a seguir. E na verdade, Rafael nem se importava que assim fosse. Clara findou os beijos, olhando-o intensamente. Já não chorava, mas o verde brilhante continuava húmido. Não disse uma palavra e afastou-se para se sentar na poltrona perto da cama. Moveu-se como se ele não estivesse ali. Tranquila, começou a desapertar o fecho das botas e descalçou-as. Rafael nem se apercebeu que ficara como uma estátua a observá-la.
— Vais ficar aí a olhar para mim? — questionou Clara num tom amável e com um sorriso trocista. — Não queres tirar essa roupa?
Sem desviar o olhar dela, Rafael começou a desabotoar a camisa. Viu-a levantar-se da poltrona, levar as mãos por baixo da saia e puxar os collants de lã. Tornou a sentar-se e despiu cada perna vagarosamente e com enorme sensualidade. Ele respondeu, despindo as calças e juntando‑as à camisa na cadeira onde já estava o casaco. Clara levantou‑se novamente. Em pé, as suas mãos seguraram a bainha do vestido e puxou-o para cima para o despir pela cabeça. Rafael viu a totalidade das suas pernas esguias, as cuecas em estilo boxer feminino que a cobriam da cintura até às virilhas, a barriga, o umbigo singelo... O vestido continuou a subir e para surpresa dele, constatou que ela não tinha sutiã, dando por si a olhar para dois seios redondos pequenos de volume perfeito e mamilos ténues.
Clara ficou atrapalhada com a última fase de despir o vestido. Parecia que a gola não queria passar pela cabeça, deixando-a a debater-se com os braços presos nas mangas e cega pelo tecido. Rafael aproximou‑se, ainda com os olhos no peito dela. A sua vontade maior era colocar uma mão sobre cada seio. Porém, segurou-lhe os braços e disse:
— Espera. Eu ajudo-te.
Com delicadeza e carinho, puxou o tecido de malha e libertou-a do vestido. Ela encarou-o com um sorriso envergonhado, suspirando:
— Anda uma mulher a tentar ser sensual...
Rafael beijou-a, mas ela afastou-o. Atirou um olhar para a única peça de roupa que ele conservava, como se lhe indicasse que se esquecera de algo. Ele percebeu. Olhos nos olhos, Clara despiu os seus boxers. Rafael não evitou que a sua atenção despontasse para o tufo de pelos claros entre as virilhas. Ela pareceu ler-lhe os pensamentos.
— Não estava a contar que isto acontecesse. Teria certamente feito uma visita à esteticista antes.
Rafael sorriu e fez uma expressão a desvalorizar.
— És perfeita! — elogiou, despindo também os seus.
Clara fez um semblante de espanto, ao vê-lo completamente nu. Quase estremeceu. A natureza fora generosa com Rafael... demasiado generosa.
Se Rafael percebeu o seu espanto, ignorou. Aproximou-se dela e pegou-lhe ao colo, qual noivo recém-casado que transporta a sua esposa pelo quarto para a cama. Beijou-a com ternura e depositou-a sobre o colchão. Deitada, Clara puxou-o para si.
O que sucedeu a seguir aconteceu com incrível naturalidade. Nem parecia que se tinham conhecido naquele dia. Tudo se desenvolveu como peças de puzzle que se encaixam na perfeição. Ele era extremamente dócil e carinhoso com ela. Os receios de Clara foram infundados, Rafael fora paciente o suficiente para que ela descobrisse que a generosidade da natureza cabia completamente em si, sem dor e com agrado. Para além disso, Rafael era um homem que sabia com mestria como dar prazer a uma mulher, provocando nela vários orgasmos antes de depositar em si toda a libertação do dele.
Extasiado, Rafael deixou-se cair para o lado vago da larga cama individual. Clara aproveitou o movimento para sair do colchão. Ele ficou a contemplar o seu corpo nu a deslocar-se pelo quarto até ao WC privado. Ficou com dúvidas sobre o futuro. Como reagiria ela, após aquilo? Mal tivera tempo para a olhar depois do orgasmo. Esperava que ela tivesse ficado ali, mais algum tempo, ambos a olhar para o tecto de mão dada e a sorrir feitos parvos. Ao invés, ela saiu da cama como se tivesse pressa em se ir embora. Ouviu a água a correr, a descarga do autoclismo... Segundos depois, a porta reabriu-se. Clara reapareceu com uma expressão neutra e indiferente a estar completamente nua na sua frente.
— Se quiseres usar... — sugeriu, apontando para a porta donde saíra. — Estás à vontade.
Era certamente uma indicação educada, uma forma polida, de lhe dizer para se arranjar e ir embora. Rafael saltou do colchão e seguiu a sugestão. Ela avançou para o lado da cama oposto ao dele, evitando que se cruzassem. Começou a sentir-se desconfortável e não se demorou muito no WC.
Ao voltar ao quarto, Rafael encontrou Clara já deitada entre os lençóis e o grosso edredão. Sorriu-lhe, procurando interpretar o que lhe ia na mente, sem sucesso. Viu a sua roupa na cadeira e dirigiu-se para lá.
— Fica comigo, esta noite! — ouviu-a pedir num murmúrio.
— Queres que durma contigo?
— Não quero ficar sozinha. — confessou. — Importas-te?
— Claro que não. — respondeu ele, esquecendo a roupa e avançando para a cama.
Clara levantou o edredão para que ele entrasse, revelando que permanecia nua. Rafael enfiou-se nos lençóis e deitou-se a seu lado. Clara aninhou-se ao seu corpo, encostando a cabeça no ombro dele. Rafael colocou o braço a envolver-lhe o tronco e a mão sobre a sua barriga. Ela deu-lhe um beijo no rosto e acariciou-lhe o peito musculado, pedindo-lhe que apagasse a luz.
Envoltos na escuridão do quarto, Rafael sentiu-a soluçar. Percebeu que ela estava a chorar, as memórias do pai haviam voltado. Não havia nada que pudesse dizer para atenuar a mágoa, daí que se limitou a apertá-la mais contra si e a beijar-lhe o cabelo. Aos poucos, deixou-se adormecer.
A princípio Rafael não sonhou, mas depois o seu dormir tornou‑se intranquilo, trazendo-lhe para o guião dos sonhos a imagem da mãe, o seu sofrimento grávida e sozinha, a figura abstracta do homem que a abandonara... Viu-se ao lado da mãe grávida, auxiliando-a, dizendo-lhe que nada tinha a temer e que ele estava ali para a proteger do crápula abstracto. Estranho, como podia ele estar adulto ao lado da mãe e ao mesmo tempo dentro da sua barriga? Mesmo assim, não conseguia dizer a si próprio que aquilo era um sonho. Tornou a ver-se ao lado da mãe. Agora já não era adulto, era uma criança indefesa. Não conseguia proteger a mãe e o homem abstracto dava sinais de o querer arrancar a ela, separá-lo da mãe. De súbito, o sonho apagou-se. As cenas tormentosas foram-se desvanecendo na sua mente adormecida, como se se afastassem para longe, repousando-o.
Sentiu toques quentes no pescoço. Eram toques reais. Constatou que já não estava a dormir, mas pouco conseguiria ver se abrisse os olhos. Mesmo assim, demorou alguns segundos a reencontrar a realidade, onde estava, com quem estava. Percebeu que os toques quentes eram beijos ternos que Clara lhe dava no pescoço. Estava acordada e silenciosa. Tinha uma mão no seu rosto e a coxa sobre a sua cintura. Sentiu os seus seios encostados ao tronco. Decidiu dar sinal de si acariciando-lhe as nádegas.
— Acordei-te? — murmurou num tom sensual.
Rafael respondeu com um riso baixo. Usando o braço com que a envolvera ao adormecer, puxou-a para cima de si. Ela colaborou, rolando e deitando-se sobre ele. Procurou-lhe a boca no escuro.
Deveria ser madrugada. Pela janela, fracos sinais da claridade da iluminação urbana da cidade. As coxas de Clara deslizam pelas pernas dele. Sentiu o corpo dela elevar-se ligeiramente para manobrar a excitação que despontara nele. Mais uma vez, transformaram-se num só como se tivessem nascido um para o outro.
Desta vez foi demorado, muito demorado. Saborearam cada momento como se fosse uma preciosidade. Clara controlou o ritmo, os movimentos, seria ela a conduzir a dança. Rafael não se importou, fora assim desde o primeiro beijo, tendo sido diferente somente quando fizeram amor pela primeira vez e ele ficara por cima, ele ditara o ritmo. Agora, era ela quem estava por cima, seria ela a tocar aquela música. Rafael sentiu-se nas nuvens, Clara também sabia como dar prazer a um homem.
O orgasmo foi simultâneo e brutal para ambos. Ela deixou-se ficar sobre ele, beijando-o com ternura. Encostou a boca ao seu ouvido e sussurrou:
— Sinto-me mal em estar a trair o meu namorado.
A confissão foi surpreendente e atingiu Rafael como uma lança que lhe trespassava o coração. Ficou petrificado. Ouviu-a sorrir trocista e voltou a sussurrar:
— Estou a brincar contigo, tonto. Não tenho namorado.
Ele respirou de alívio. Abraçou-a com firmeza e respondeu ao sussurro:
— Agora já tens.
Foi a vez de Clara se surpreender. Não esperava aquilo.
— Vamos com calma. — alertou sem diversão na voz.
Rafael percebeu a mensagem. Contudo, não era o momento para aquela conversa.
Clara rolou para o colchão. Estendeu-se de lado com as costas voltadas para ele. Rafael virou-se e encostou o peito às costas dela. Clara pressionou-se contra ele e aninhou-se como uma concha, procurando a sua mão no escuro e puxando-lhe o braço para que a envolvesse.
Adormeceram pouco depois.
Só voltaram a acordar ao amanhecer, quando o despertador do telemóvel de Rafael ecoou estridente pelo quarto.
— Ainda falas tu do meu toque de telemóvel... — protestou Clara, ensonada.
Rafael desligou o apito, lutando para acordar. Voltou-se para Clara e reparou na vermelhidão dos seus olhos, sinal claro que voltara a chorar durante a noite. Beijou-lhe os lábios com ternura.
— Hora de levantar. — disse ele. — Temos um avião à nossa espera.
— Se não cancelarem... — receou, quase desejando isso para que pudesse dormir mais um pouco.
Saindo da cama, Rafael procurou a sua roupa e vestiu-se de forma atabalhoada, dizendo:
— Vou para o meu quarto. Preciso de um banho. Encontramo‑nos daqui a uma hora. Venho aqui ter contigo.
— Está bem. — concordou, atirando o edredão para trás e começando a levantar-se.
No seu quarto, Rafael tomou um banho, barbeou-se e perfumou‑se. Vestiu uma camisa lavada, uma gravata nova e o fato do dia anterior. Decidiu desfazer a cama onde não dormira, pois ninguém tinha nada que saber que dormira no quarto da amiga. Arrumou as suas coisas, pegou na mala de viagem, na pasta de trabalho e saiu do quarto. Atravessou o escasso metro que o separava do quarto de Clara e, à hora combinada, bateu à porta.
Clara abriu a porta rebocando a sua mala de viagem. Recebeu-o com uma expressão triste e voltara a usar os óculos escuros. Vestia umas calças de ganga escuras, uma camisola de lã, o casaco longo sobre as costas e calçava as mesmas botas altas.
— Queres ajuda?
Ela abanou a cabeça.
Desceram até à recepção para fazer o check-out. Deixaram as malas com o recepcionista e aguardaram pelo motorista no bar do hotel. Nenhum deles tinha fome e ambos pediram um café forte.
Estranhamente, todos os assuntos pareciam esgotados entre eles. Poucas palavras trocaram ali e na viagem do hotel até ao aeroporto. Foram recebidos por um funcionário da companhia aérea que recolheu as suas bagagens de porão. Seguiram para as filas de acesso ao controlo de passageiros e bagagens de mão. Depois, nova passagem pelas autoridades alfandegárias para controlo de identidade. Por fim, estavam na zona de espera, junto à sua porta de embarque.
— Estás bem? — questionou Rafael.
— Que te parece? — ripostou com alguma agressividade. — Estou a caminho do funeral do meu pai.
Rafael não conseguia perceber aquela alteração de estado de espírito. Optou por não insistir.
Cerca de meia hora mais tarde, uma hospedeira aproximou-se deles e pediu que a acompanhassem até ao balcão. Colocou-os no início da fila V.I.P. e informou todos, pelo microfone, que se iria iniciar o embarque.
Clara e Rafael foram os primeiros a avançar pela manga de embarque até à entrada do avião. Dois elementos da tripulação recebiam os passageiros junto à porta do cockpit. Ofereceram-lhes um largo sorriso e bons dias.
Clara sentou-se junto à janela. Rafael, a seu lado, acomodou-se, aproveitando os últimos minutos antes de descolarem para consultar as mensagens no telemóvel.
Os restantes passageiros foram entrando. Não havia muitos para a classe executiva, daí que quase todos os que ali passavam iam para as filas da classe económica.
— Desculpa se fui bruta, há pouco. — disse Clara, subitamente. Rafael sorriu e encolheu os ombros como se não tivesse importância. — Estão a ser momentos horríveis.
Rafael esperava que ela não estivesse a incluir a noite anterior no rol.
— Eu compreendo.
Não voltaram a falar em toda a viagem.
O voo demorou cerca de duas horas e meia. Aterrou no Aeroporto Sá Carneiro ao fim da manhã, fustigado por uma chuva miudinha. Não era um aeroporto de muito movimento e, entre a saída do avião e o controlo alfandegário, decorreram pouco mais de quinze minutos.
A última etapa era a recolha da bagagem nas passadeiras criadas para o efeito. Aproximava-se o momento da separação.
Enquanto esperavam que malas e sacos começassem a brotar para a passadeira, Clara telefonou a Dolores a avisar que já chegara. Em resposta, soube que o motorista da família já a esperava à saída do aeroporto.
Rafael interrogava-se se Clara estaria a lamentar a iminente separação ou se lhe era totalmente indiferente. Não dava sinais de se importar que depois de recolherem as malas pudessem nunca mais se voltar a ver. Não era o local ideal, mas aquela conversa tinha de acontecer.
— Clara!
— Sim?
Ele ia para expor os seus sentimentos, mas vacilara nos instantes finais.
— Vais voltar a Londres, depois do funeral? — acabou por perguntar.
— Ainda não sei. Tudo depende de como ficaram as coisas com a morte do meu pai. Alguém tem de tomar conta dos negócios da família. — Fez uma expressão agastada. — Não faço ideia.
— Gostava de te voltar a ver. — confessou ele.
Clara sorriu e aquele semblante terno regressou ao seu rosto.
— Sim. Também gostava muito.
As malas começaram a sair para a passadeira.
Rafael concentrou-se nas palavras, esforçou-se para ser o Rafael habitual, seguro e confiante. Num tom firme, disse:
— Quero que saibas que foi tudo muito especial. Não quero que isto tenha sido um caso de uma noite.
Ela desviou o olhar, incapaz de o encarar. Fez um gesto para recolocar os óculos escuros a esconder-lhe os olhos, mas teve a sensatez de que isso não seria correcto, naquele momento. Encarou-lhe o olhar sem se importar com o regresso das lágrimas.
— Sinto-me mal com tudo isto. — afirmou. Antes que ele contestasse, fez um gesto para que a ouvisse. — Não tem nada a ver contigo. Sinto-me mal por me estar a sentir feliz contigo, quando deveria estar a sofrer pela morte do meu pai.
— Tu estás a sofrer com a morte do teu pai. — argumentou Rafael. — E não me parece que estejas a ofender a sua memória por estares feliz. Não me digas que o teu pai não te quereria feliz ao invés de te ver em lágrimas?
— Não é isso...
— Ouve, Clara. É-me importante que saibas que és especial para mim. Quero conhecer-te melhor.
Ela soltou uma risada pelo meio dos soluços.
— Ainda melhor? Acho que já me conheces toda.
Ele retribuiu o sorriso.
— Sabes ao que me refiro.
Clara assentiu.
— Vou ter alguns dias complicados. — partilhou, retomando a seriedade. — Vai ser o funeral... Depois há sempre coisas a tratar. Sou a sua herdeira, devem querer colocar-me a par de tudo. Enfim... Peço-te paciência. Dá-me uns dias. Temos o contacto um do outro. Quando eu sentir que é altura, que estou preparada... Eu ligo-te. Concedes-me esse desejo?
— Claro que sim.
Clara abraçou-o e beijaram-se com muito amor.
As malas de ambos surgiram na passadeira. Rafael puxou ambas. Caminharam lado a lado até à saída do aeroporto.
Clara viu de imediato o carro da família e o seu funcionário. Voltou-se de novo para Rafael e deu-lhe um último beijo de despedida, um beijo apaixonado, um beijo profundo. Tiveram dificuldades em se afastar. E quando o conseguiram, Rafael cravou os olhos nos dela.
— Eu amo-te, Clara!
A declaração surpreendeu Clara. Fê-la hesitar. Rafael esperou por uma reacção semelhante à dessa noite, "vamos com calma". Ela tornou a eliminar a distância entre eles e beijou-o novamente, despedindo-se com a frase que ele jamais esqueceria:
— Duvido que me ames tanto quanto eu te amo a ti!
2.1
— É exequível ou não?
A pergunta era do engenheiro Pinto Henriques e dirigida ao seu ministro da Defesa, o marechal Costa Almeida, o qual observava um mapa da região metropolitana de Lisboa.
A reunião acontecia no gabinete do primeiro-ministro, à volta da mesa arredondada instalada para assuntos que não exigissem todo o concelho de ministros.
— Cercar a cidade de Lisboa? — questionou o militar. — Tudo isso só para afastar o Presidente da República do cargo? Porque não lhe metem um tiro nos cornos?
— Outro... — proferiu baixinho Raimundo Antunes que também assistia.
— Não podemos assassinar o Presidente. — contestou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Coelho Ferreira, o qual também fora convocado para a reunião. — A comunidade internacional caía-nos em cima.
Coelho Ferreira era um homem franzino, típico diplomata e não tão faccioso da doutrina nacionalista lusitana quanto os seus pares. Tinha mais ou menos a mesma idade de Raimundo Antunes e muito mais classe.
Costa Almeida olhou para ele com desdém. Envergava orgulhosamente a sua farda militar e tinha uma postura de quem parecia ter engolido o cabo de uma vassoura. Usava um cabelo curto grisalho e o rosto era frio onde se destacava o olhar gélido. Era o mais velho dos presentes, um septuagenário completamente fanático da doutrina militar e defensor da governação feita por militares.
— Arranjem um bode expiatório. — sugeriu.
— Ninguém iria acreditar que não estávamos por detrás disso. — argumentou Raimundo Antunes.
Impaciente, Pinto Henriques insistiu na pergunta:
— É exequível ou não?
Costa Almeida tornou a olhar para o mapa, debruçou-se sobre a mesa e explicou:
— Teremos de criar uma zona de fronteira. Parece-me que a melhor estratégia é usar a CRIL como linha divisória. Podemos espalhar veículos militares em toda a via, desde a ponte Vasco da Gama até Algés.
— Parece suficiente. — concordou Raimundo Antunes, olhando para Pinto Henriques e procurando o seu aval.
— Sim... — concordou o primeiro-ministro. — E a sul?
— Bloquearemos os acessos às duas pontes e colocaremos as fragatas militares no Tejo para controlar qualquer travessia. — respondeu prontamente o militar.
— Tanta coisa para obrigar o Presidente a demitir-se? — questionou Coelho Ferreira. — Sitiar a capital?
— Não se trata só da demissão daquele estupor. — esclareceu Pinto Henriques. — Depois de o apanharmos, isso será fácil. É mais para controlar alguma reacção internacional.
— Vão protestar, mas nenhum país tomaria uma atitude bélica contra nós. — insistiu Coelho Ferreira. — É uma questão interna.
— Ó Ferreira! — irritou-se Pinto Henriques. — Se a UE tomar o partido do Flávio, vai manietar-nos com os cortes dos financiamentos ao país. A União Europeia jamais admitiria um golpe de estado num país membro da União. Já para não falar que, em resultado disso, o FMI e o BCE fodiam-nos logo.
— Sim… — concordou o ministro dos Negócios Estrangeiros. — Porém, não me parece digno usarmos os nossos cidadãos como reféns…
— É apenas para condicionar a comunidade internacional, Coelho.
— Mesmo assim, Raimundo, não me parec…
O líder do SIALE interrompeu-o com deselegância, agastado com aquele fuinha que nada tinha a ver com o estilo dos verdadeiros nacionalistas lusitanos. Revelando entusiasmo, Raimundo Antunes referiu:
— Seja como for, é uma oportunidade para eliminar a oposição.
Coelho Ferreira arregalou o olhar, mas não lhe foi permitido verbalizar nada.
— Sim. — confirmou o primeiro-ministro. — Vamos prender todos os deputados do MPP e aprovar um decreto a ilegalizar o partido.
— Com que argumento? — questionou o ministro da pasta internacional.
Não obteve resposta.
Costa Almeida pigarreou, chamando a atenção para si.
— O cerco servirá para impedir entradas e saídas, correcto?
Pinto Henriques ponderou a questão, uma vez que não queria revelar a totalidade do plano maquiavélico que engendrara com o seu MAI. Raimundo respondeu por si:
— Iremos controlar as entradas e saídas. Os militares devem impedir a saída de todos os naturais de Lisboa, bem como todos os estrangeiros...
— Isso é uma loucura. — interrompeu Coelho Ferreira. — Isso sim, reter cidadãos de outros países é que é motivo para uma intervenção contra nós.
— Não são turistas, pá! — insurgiu-se o líder do SIALE. — Esses deixamos sair para que voltem para a terra deles. Estou a falar dessa corja de imigrantes que andam a chular este país.
— Não acredito. Vocês querem fazer uma limpeza étnica?
— Ó Ferreira! — chamou Pinto Henriques. — Tem lá calma. Não é nada disso. Não se trata de etnias. Somos todos portugueses, excepto esses... — Fez um gesto de desdém, desistindo de os adjectivar. — Vamos reter os lisboetas e essa estrangeirada porque precisamos de ter reféns na cidade. Assim que se souber do cerco, vai tudo querer sair. De nada nos serve uma capital vazia. — O MNE abanou a cabeça, descrente. — Ó Ferreira, faz mas é o teu trabalho. Sê um diplomata e vai mantendo o estrangeiro satisfeito com as tretas que lhes vamos passando.
— Continuo a não perceber o cerco. — Coelho Ferreira não desistia com facilidade. — Para quê tudo isso, se só queremos afastar o Flávio de Melo?
— Estamos a implementar uma ditadura. — explicou Raimundo Antunes num tom que fazia o outro parecer um retardado. — Ainda agora falámos sobre isso. Achas que UE vai ficar impávida a ver um estado-membro implementar algo que vai contra todos os seus princípios?
— Tal como referiu o senhor engenheiro, cortavam logo todos os apoios financeiros a Portugal! — A afirmação veio de Laurentino Pinto, o ministro das Finanças, outro dos presentes que se mantivera calado até ao momento. Era o mais novo de todos, aspecto acanhado, pouco falador e um génio com os números. — Na prática, iriam combater-nos a tentar arruinar-nos.
Pinto Henriques abriu os braços e olhou para o seu MNE, dizendo:
— Percebes agora, Ferreira? O cerco é a nossa garantia para que não nos tentem lixar.
Coelho Ferreira abanou a cabeça, discordando do plano, mas consciente que não venceria aquela contenda. Desistiu de argumentar e afastou-se para uma posição de observador.
— E quanto tempo preveem para esse cerco? — quis saber o marechal.
— Meia dúzia de dias. — mentiu o MAI. — Em menos de uma semana, nomeamo-lo Presidente da República, aniquilamos o MPP e alteramos a Constituição para que o PNL fique com poder ilimitado para colocar o país nos eixos.
— Esta operação militar vai custar uns milhões aos cofres do Estado. — avisou Costa Almeida. — Serão precisos muitos militares, carros de combate e navios. Já para não falar nas munições, caso as coisas se compliquem.
— Nada se vai complicar! — exclamou Raimundo Antunes com segurança.
— Nós não temos dinheiro para isso! — alertou Laurentino Pinto. — O Orçamento do Estado não comporta isso.
— Tiras de onde for preciso. — ordenou Pinto Henriques. — Quando as coisas voltarem ao normal, estabilizamos as contas.
O ministro das Finanças não se opôs, não era homem com fibra para uma atitude dessas. Se queriam que ele desse o dinheiro todo aos militares, ele assim faria, nem que para isso o retirasse à Saúde, à Educação... Onde tivesse de ser.
Não havia muito mais a dizer ou a planear. Cabia agora ao marechal Costa Almeida tomar as medidas necessárias para colocar o plano em prática. E foi com esse compromisso que se despediu de todos e abandonou o gabinete. Coelho Ferreira aproveitou para não perder mais um minuto que fosse ali, no meio daquele grupo de loucos. Mesmo assim, iria empenhar-se em cumprir a sua parte do plano. Por fim, já com a cabeça a ponderar números, a pensar onde tirar e onde pôr o dinheiro dos cofres do Estado, Laurentino Pinto também saiu do gabinete do primeiro-ministro. Somente Raimundo Antunes permaneceu.
— O teu homem? Já regressou? — questionou Pinto Henriques, logo que ficaram sozinhos na grande sala. O outro assentiu. — E?
— Foi um sucesso!
— Ainda bem.
O líder do SIALE olhou para o seu chefe e questionou:
— E a questão da Igreja? Falaste com o Rathesleon?
— Ainda não. Vou marcar uma audiência com ele. — respondeu Pinto Henriques. — Sabes que o gajo gosta de se fazer importante. Por isso, vou agir como se ele, de facto, fosse importante.
— Ele é importante!
— Sim. Para os nossos planos, ele é importante. — concordou o primeiro-ministro. — Só espero que o consiga convencer. Sei que o Patriarcado é importante para ele, mas...
— Achas que poderá rejeitar?
— Pode recear que a situação lhe fuja ao controlo. Não te esqueças que ele, por muito importante que seja em Portugal, não passa de mais um peão do Vaticano. Tem ambições de chegar ao Colégio dos Cardeais.
— Receias que possa recusar.
— Gostava de ter mais garantias.
Raimundo Antunes sorriu. Sem perder tempo, abriu a sua mala diplomática e retirou uma pequena pasta com algumas folhas, as quais entregou ao outro.
— O que é isto, Raimundo?
— Lê. Se não o convenceres com o Patriarcado para Braga, talvez o atraias com isso.
Pinto Henriques observou o relatório que o MAI lhe passou. Leu atentamente, não escondendo alguma surpresa ao receber aquela informação.
— Chantagem? — questionou Pinto Henriques.
— Não! — refutou completamente Raimundo. — Iríamos criar um inimigo. Proponho que lhe alimentemos o vício. — Sorriu de forma demoníaca. — Não nos faltará produto entre os reféns.
2.2
O ambiente era sempre muito movimentado naquele bar, mas ele gostava do espaço, onde a clientela não era excessiva nem se corria o risco de ficar envolvido numa calma entediante.
Por norma, o balcão era o local de aterragem, um dos bancos altos, o mais próximo possível do ecrã amplo sempre ligado no canal de desporto. Presença regular, conhecia todos os empregados. A clientela era na sua maioria masculina sem que isso representasse um lugar vocacionado só para homens.
Aquilo poderia ser descrito como um bar-restaurante, um balcão comprido com dois rapazes de porte forte a servir maioritariamente cervejas, enquanto outros três rapazes mais quatro raparigas bonitas atendiam as mesas.
A luminosidade era baixa, espalhando uma penumbra confortável sobre as muitas mesas. As paredes, forradas a madeira, eram contornadas por cubículos mais recatados onde os assentos eram semelhantes a sofás, desenhando uma espécie de U em volta de uma mesa quadrada, onde não conseguiriam estar à vontade mais que três ou quatro pessoas.
Existiam mais dois ecrãs estrategicamente cravados nas paredes, todos nos canais de desporto. Contudo, ele ficava sempre pelo balcão...
O desporto era uma paixão antiga, talvez tão antiga quanto a sua própria vida que nem sequer se poderia considerar assim tão avançada, pois não tinha mais que vinte e tal anos. Em miúdo, o seu sonho era igual ao de tantas outras crianças, ser jogador de futebol. Porém, rapidamente percebeu que não tinha o mínimo jeito, uma centelha que fosse de talento para pontapear uma bola, a qual parecia quadrada a cada vez que encontrava os seus pés desajeitados. Contudo, se cedo percebeu que nunca seria futebolista, também teve noção que mais que praticar desporto, a sua verdadeira sede era a competição, o desejo de vencer. Sempre fora um puto esperto e, perante o fracasso do seu gosto em jogar à bola, o avô disse-lhe algo que nunca esqueceria: "Talvez não tenhas nascido para ser um entre onze, mas sim o tipo que comanda esses onze". E a partir desse dia, o seu objectivo seria tornar-se treinador de uma equipa de futebol.
Nascido numa aldeia transmontana, a vida nunca fora fácil. Ele era aquilo que se poderia chamar um filho fora de época, o mais novo de nove irmãos, nascido quando os pais eram quase cinquentenários e o irmão mais velho bem poderia ser seu pai. Para dificultar mais o futuro, os pais baptizaram-no com o nome de Valério. Claro que não o fizeram com a intenção de prejudicar, como é óbvio, apenas gostavam do nome. Só que era óptimo para atrair bullying na escola.
Valério sempre fora uma criança carismática, personalidade forte, inteligente e calculista. Enfrentava todas as adversidades e ninguém se ficava a rir de si. Fisicamente robusto, a natureza não fora generosa no seu crescimento, o que fazia dele o tipo mais baixo entre os rapazes da sua idade. Completou o ensino primário na escola da vila perto da aldeia e prosseguiu os estudos em Bragança até ingressar na Universidade, altura em que se aventurou sozinho a fazer o curso superior de Educação Física em Lisboa. Viveu na capital com a ajuda financeira dos pais e dos irmãos, tendo a possibilidade de regressar a casa somente no Verão e nas quadras festivas. Foram tempos difíceis em busca do sonho.
A vida na grande cidade afastou-o quase por completo das suas raízes. No último ano da Universidade tomou a iniciativa de procurar emprego, uma forma de se desprender da dependência financeira da família. As ausências tornaram-se cada vez mais prolongadas até a sua visita à família se resumir ao Natal e à Páscoa. Tentara um emprego num qualquer clube, nem que fosse como roupeiro, só para poder respirar aquele ambiente de competição. Porém, o melhor que conseguira fora um part-time como estafeta num escritório de advogados que, com o final do seu curso, se transformara num emprego a tempo inteiro a auferir o ordenado mínimo. Tinha o curso superior de Educação Física, mas decorridos dois anos da sua formatura, continuava a entregar pastas e dossiers num escritório de gente formal e altiva.
Valério era um tipo solitário. Vivia na Amadora desde que os colegas com quem partilhava um humilde apartamento em Lisboa, nos tempos de estudante, seguiram as suas vidas após o fim dos estudos. Não tinha luxos e o seu entretenimento eram aqueles serões no bar, a ver desporto nos canais que não poderia pagar para ver em sua casa.
A noite de Inverno era amena com ligeiro sabor a Verão. O dia fora a mesma merda diária a que se habituara a enfrentar, fazendo-o temer se não começava a deixar-se afundar no marasmo dos sonhos perdidos. Sentado a cerca de cinco metros do ecrã, rodeado de desconhecidos, ia bebericando a imperial, fazendo-a render. As imagens mostravam o directo de um jogo decisivo do campeonato inglês, Liverpool e Manchester United disputavam um título que fugia a ambos nas últimas temporadas. Claro que Valério não conseguia evitar olhar para aquilo com o sonho de um dia, num qualquer acaso da vida, poder vir a estar num daqueles estádios a treinar uma das equipas mais competitivas do mundo.
A atenção para o jogo foi desviada para a chegada de um casal que entrara no bar, parando junto a uma das raparigas que tinha como função conduzir os que queriam uma mesa para jantar e os que pretendiam somente uma bebida no bar. O olhar de Valério cruzou-se com o do homem, um indivíduo quase cinquentão, já com as têmporas grisalhas, envergando fato formal. Reconheceu-o de imediato, atingido pela surpresa de ver o seu chefe ali.
Doutor Alberto Brito Craveiro Assunção, um nome tão prepotente como quem o pavoneava. Era advogado e um dos sócios do escritório da área legal donde provinha o ganha-pão de Valério. Milionário, ostentava o seu poder e riqueza como se desejasse esfregá-lo no rosto de cada pobre alma que se cruzasse no seu caminho. Feroz em tribunal, dizia-se que era temido até por alguns juízes e ninguém desejava tê-lo como adversário numa sala de audiências. Fazia-se pagar a peso de ouro, fruto do currículo de constantes vitórias e consequentes lucros dos seus clientes.
Os olhares de ambos cruzaram-se, mas o advogado ignorou-o por completo, como se nem tivesse reparado que Valério ali estava. Contudo, este sabia que não se livraria de um qualquer comentário jocoso e rebaixante do patrão, quando tivesse a infelicidade de se cruzar com ele no trabalho, algo que acontecia quase diariamente.
No entanto, o olhar de Valério saltou inadvertidamente para a mulher que acompanhava o advogado. Esta aparentava ser bastante mais nova, talvez da idade do próprio Valério o que a fazia parecer uma filha que ele sabia que o outro tinha. No entanto, Valério já vira a filha, uma adolescente que herdara toda a prepotência do pai. E não era ela quem ali estava.
Apesar da distância, foi-lhe possível constatar a deslumbrante beleza daquela estranha, uma mulher com quem rapazes como ele só podem sonhar. Morena com o cabelo preto comprido a cair solto sobre os ombros, envolvendo um rosto fechado delicado de falsa candura, corpo curvilíneo, vestia calças de ganga escura e um casaco fresco negro que lhe chegava aos joelhos, a camisola branca terminava acima do umbigo e favorecia a feminilidade do seu peito. Deslizava sobre sapatos de salto alto que a ajudavam a ficar ao nível dos ombros do acompanhante. O seu aspecto informal contrastava com a formalidade do advogado e acentuava a diferença de idades entre eles.
Fosse quem ela fosse, não seria certamente a esposa, Cláudia de Melo Craveiro Assunção, a filha do presidente da República. E mesmo que estivesse na mais completa ignorância, isso não impediu Valério de lhe atribuir o papel de amante.
O casal foi conduzido para uma das mesas mais recatadas, um daqueles cantinhos de sofás, junto à parede. Os seus rostos ficaram parcialmente obscurecidos pela penumbra, mas mesmo assim era-lhe possível observar algo raro no advogado, os sorrisos.
Valério evitou observá-los, mas a curiosidade era maior que o receio de ser apanhado pelo chefe a espiá-los. Viu a forma deliciada como ele olhava para ela, as expressões de flirt, as mãos a tocarem-se... Nesse momento, o advogado olhou para o balcão, mas Valério conseguiu disfarçar a tempo. Apesar de o ter ignorado à entrada, o temível Craveiro Assunção sabia que ele estava ali e parecia incomodado com aquilo que o seu empregado pudesse ver.
O tempo foi passando e mais clientes entraram no bar restaurante, aglomerando-se no balcão, de tal forma que Valério acabou por ficar suficientemente escondido para melhor os observar. Para sua surpresa, viu o advogado a beijar a sua acompanhante nos lábios. Não havia dúvida, era a amante.
A fase decisiva do jogo de futebol na televisão acabou por desinteressar Valério do casal. Que lhe interessava aquilo para além da inveja de não estar no lugar do patrão? Para além disso, o seu Liverpool precisava de ganhar o jogo para ser campeão e o resultado permanecia numa igualdade sem golos. As preferências entre os presentes dividiam‑se entre as duas equipas, discutiam-se lances quase como se estivessem a ver o Benfica a discutir o título nacional de futebol com o Porto. Valério abstinha-se de intervir na discussão, só que os empregados do balcão, conhecendo a sua preferência, espicaçavam-no com "bocas" a favor dos de Manchester.
O Liverpool quase marcou o primeiro golo, quando Valério sentiu uma mão, vinda por trás, tocar-lhe o ombro para chamar a sua atenção. Voltou‑se no banco e, para sua surpresa, deu de caras com o patrão.
— Doutor Craveiro Assunção? — interrogou, como se só naquele momento tivesse dado pela sua presença.
O outro ignorou a pergunta e, olhando-o com a altivez do costume, exigiu:
— Chega aqui!
Valério saltou do banco onde estava sentado, não evitando dirigir o olhar para o lugar onde o chefe estivera e constatando que a morena lá permanecia. Furou por entre os atentos clientes aglomerados no balcão de olhar cravado no ecrã e perfilou defronte do patrão, agindo inconscientemente da mesma forma subserviente de todos os dias.
— Foi bom encontrar-te aqui. — começou o advogado, dando uma entoação de que teria sido tão bom como encontrar um rolo de papel higiénico no meio do pinhal num momento de necessidade. — Vou ter de sair. Podes ficar a fazer companhia à minha sobrinha até eu voltar?
— Sobrinha? — questionou Valério aparvalhado.
Mesmo notando o tom de dúvida, o advogado optou por desvalorizar e direccionou o olhar para a mesa onde estivera.
— Aquela rapariga! — apontou com desdém. — É minha sobrinha. Trouxe-a a jantar, mas surgiu um imprevisto e tenho de me ausentar. Mas volto! Ficas com ela? — A pergunta não admitia recusa. — Fazes-lhe companhia só para que não fique sozinha. — Olhou em volta. — Com tanto gajo sozinho que aqui ainda... Tu percebes.
Valério anuiu.
Alberto Craveiro Assunção fez-lhe um sinal com o dedo para que o seguisse e regressou à mesa. Valério seguiu atrás de si, qual cachorrinho bem-mandado. Circularam por entre as mesas ocupadas até alcançarem o lugar onde a rapariga depositava a atenção dedilhando o touchscreen do telemóvel.
Sem intenção de perder tempo, Alberto Craveiro Assunção pegou no casaco ao mesmo tempo que ela o olhou surpresa pela presença de um terceiro elemento.
— O meu empregado fica contigo até eu voltar. — informou numa afirmação de quem estava habituado a debitar ordens.
Ela cravou o olhar naquele rapaz de cabelo despenteado, entroncado e baixo para os seus padrões ideais de altura num homem. Achou-o desajeitado e tão desinteressante como a bula de um medicamento. Não perdeu mais que cinco segundos na observação.
Valério ficou sem saber como agir. Viu o patrão afastar-se indiferente a ambos e desaparecer na saída. Tornou a olhar para a bela amante do patrão.
Sentindo o seu olhar, ela voltou a observá-lo, dizendo:
— Vais ficar aí de pé, especado, a olhar para mim?
— Não... — respondeu meio engasgado e sentando-se no lugar onde outrora estivera o chefe.
Na mesa ainda permaneciam os pratos sujos, aguardando que alguém os viesse levantar. O copo dela tinha vinho branco, proveniente de uma garrafa cara meio cheia. Valério não resistiu a olhar para ela, contemplando o rosto concentrado no ecrã do telemóvel, apreciando o nariz singelo de ponta arrebitada, as maçãs do rosto deliciosamente ponteadas por pequenas sardas, os lábios finos pintados num tom recatado, as sobrancelhas bem aparadas... Nesse instante, ela encarou-o, surpresa e incomodada por o encontrar a observá-la, dando-lhe a contemplar os seus olhos azuis profundos, pequenos e penetrantes.
— Que foi?
Apesar de agressiva, a sua voz era sedutora.
Sem nenhuma razão aparente, Valério sentiu o aroma adocicado do seu perfume, uma fragrância silvestre meio selvagem que lhe assentava na perfeição.
— Nada... Nada. — respondeu, intimidado. Ela voltou a desinteressar-se dele. Valério temeu que o silêncio o tornasse ainda mais ridículo e sentiu necessidade de fazer assunto. — O seu tio não deve demorar.
A expressão confusa revelou toda a surpresa por aquele comentário.
— Tio?
— O doutor disse que era sobrinha dele... — justificou quase a medo, como se tivesse dito uma barbaridade, lamentando a estupidez de fazer referência a algo que ele próprio sabia ser mentira.
Ela riu. Tinha um sorriso encantador, o que não atenuou em nada a barreira invisível de gelo que Valério sentia entre eles.
— Sobrinha. Essa é boa! — exclamou divertida. — Já me chamaram muita coisa, mas sobrinha... — Adoptou uma postura mais séria, falando com naturalidade. — O teu patrão não é meu tio, é meu cliente!
— Cliente?
— Sim. Eu sou acompanhante, sou... percebes?
Sim, Valério sabia o que era uma "acompanhante", era uma prostituta de luxo só ao alcance de carteiras bem recheadas. A sua resposta foi um anuir tímido.
— Isso incomoda-te?
— Não. — negou ele. E de facto não o incomodava.
Para sua surpresa, ela largou o telemóvel dentro da pequena malinha e centrou a atenção nele.
— Também és advogado?
— Não. — Abanou a cabeça na resposta, sorrindo com ironia. — Trabalho na distribuição. — Não tinha forma de dizer a sua função sem se sentir diminuído perante ela.
Contudo, ela não demonstrou qualquer juízo e prosseguiu:
— Como te chamas?
Definitivamente as perguntas não o estavam a favorecer.
— Va... Valério. — respondeu, obtendo um franzir de rosto.
Porém, ela não teceu qualquer comentário à invulgaridade do nome.
— Eu sou a Kayla.
Numa nova tentativa de quebrar o gelo, Valério disse:
— Olá Carla! Prazer em conhecer.
Kayla abanou a cabeça e, qual mãe a ensinar um filho pequeno, emendou:
— Não é Carla, é Kayla!
Valério enrubesceu pela reprimenda.
Kayla não era o seu verdadeiro nome, tal como Valério suspeitara, mas também não se atreveu a questionar qual seria.
O pequeno diálogo foi interrompido por alguma algazarra junto ao balcão. Para sua tristeza, o Manchester United marcara e roubara irremediavelmente o título ao Liverpool.
— Com isto tudo, foste privado de ver o jogo. — constatou ela, percebendo o seu olhar nos ecrãs.
— Daqui também se vê.
— Quase nada.
De facto, estavam posicionados longe de qualquer dos ecrãs.
— Não faz mal. — desvalorizou Valério. — Não me importo de estar a fazer-lhe companhia.
— Não precisas de me tratar por "você".
Uma funcionária aproximou-se da mesa para levar os pratos.
— Vão desejar sobremesa? — questionou, reparando ou não que o homem daquela mesa não era o mesmo.
Kayla recusou, solicitando:
— Não. Mas, traga-me outro copo, por favor.
A rapariga acatou o pedido e afastou-se.
— Já que me estás a fazer companhia, não me vais deixar a beber sozinha. — explicou Kayla, parecendo afável na postura escudada que não atenuava. — Gostas de vinho branco?
Valério respondeu afirmativamente no momento em que o novo copo era deixado na sua frente.
— Sei que o teu patrão te disse para me ficares a... guardar. Mas, se tiveres algum compromisso, podes ir, não há problema.
— Só se quisesse ser despedido. — retorquiu ele sem pensar. Arrependeu-se de imediato. — Dito assim, até parece que está a ser um frete ficar a fazer-lhe... a fazer-te companhia.
— A minha companhia nunca é um frete! — afirmou ela consciente do seu valor, quase de forma arrogante. — Mas, também os homens que têm a minha companhia pagam para isso e obtêm um retorno que faz valer cada cêntimo.
— Acredito que sim.
O semblante dela pareceu ganhar uma expressão diferente e a sua voz mudou para um tom ainda mais sedutor:
— Hoje estou ocupada com o teu patrão, mas posso deixar-te o meu contacto. Se quiseres, agendamos uma noite destas. Que dizes?
Valério fez um sorriso descrente, não conseguindo acreditar no que ouvia.
— Teria muito prazer em voltar a ver-te. — confessou ingénuo.
Kayla debitou-lhe o seu preço à hora e das vantagens do desconto de a contratar para uma noite inteira.
Atingido pela realidade, ao perceber que ela apenas o tentava angariar para cliente, e com o súbito sonho estraçalhado, Valério confidenciou:
— Não me parece que tenha dinheiro para isso.
Ela pareceu divertida e ripostou:
— Quando poderias dispor para passar uns momentos comigo?
Três horas com ela pagariam um mês da sua renda. Não tinha qualquer hipótese... Mesmo assim, estupidamente, avançou com...
— Vinte euros.
Kayla fez uma expressão de escárnio.
— Lamento. Vinte euros não te chegam nem para me tocares com a ponta dos dedos.
A resposta foi cruel e desnecessária. Ele sentiu-a. Ela percebeu-o e arrependeu-se da forma como falara, mesmo não o tendo manifestado, pois o seu telemóvel apitou uma mensagem.
Segurando o pequeno aparelho, Kayla concentrou a sua atenção no ecrã. Leu a mensagem abanando a cabeça descontente.
— O teu patrão acaba de me dispensar. — informou irritada. — Diz que não pode voltar, que pague a conta que depois acertamos o valor e que podes ir embora. — Olhou para Valério. — Se não fosse um cliente habitual, nunca mais tinha hipóteses comigo.
— E agora?
— Acabei de ficar com a noite livre. — constatou com desprezo. Não conseguiu esconder o quão furiosa estava. — Resta-me ir apanhar um táxi. A menos que tenhas ponderado o teu interesse em mim.
Kayla sabia bem que ele não tinha dinheiro para a ter naquela noite ou noutra qualquer. Porém, fora o alvo fácil para despejar a raiva que estava a sentir por ter sido dispensada e ver esfumar-se a verba que iria lucrar naquela noite. Fez sinal ao primeiro funcionário que viu, solicitando a conta.
— Achas que tenho culpa disso? — questionou Valério, provocando surpresa nela.
— Quem disse que tens culpa?
— De repente, começaste a falar comigo como se tivesse culpa do meu chefe te ter dado com os pés.
A forma prepotente como ela falara irritou-o e fê-lo falar sem filtro.
Kayla percebeu que estava a ser injusta.
— Desculpa, tu não tens culpa.
Valério fez um gesto a desvalorizar, como se as últimas palavras tivessem sido apagadas.
— Não te posso pagar, mas posso levar-te a casa. Tenho o carro lá fora, não precisas de ir de táxi.
O pires com o papel da conta foi colocado defronte dele. Kayla apressou-se a puxar a despesa para si, dizendo:
— Não quero incomodar-te mais que este tempo todo que já perdeste comigo.
— Não é incómodo nenhum.
Sem revelar a sua decisão, ela pagou a conta.
Valério insistiu:
— Vives longe?
— No Parque das Nações. — respondeu, deixando-se convencer.
Àquela hora, sem trânsito, a quinze minutos dali.
— Anda, eu levo-te. Não me custa nada. — Sorriu procurando sem sucesso ter algum charme. — Sempre é uma forma de atenuar a contrariedade desta noite. — E uma forma de prolongar a companhia dela.
Kayla arrumou a carteira dentro da malinha e levantou-se do seu lugar, sendo copiada no movimento por ele. Nem se deu ao trabalho de confirmar que aceitava a boleia e avançou por entre as mesas dando como certo que ele a seguiria.
A noite estava amena e muito agradável, deixando a adivinhar a iminente chegada da Primavera. Não se viam muitas pessoas na rua, uma vez que aquele não era um local típico de diversão nocturna.
Caminharam lado a lado. Com os seus saltos altos, Kayla era ligeiramente mais alta. Valério não evitou o orgulho de ter uma mulher tão bonita, sedutora e atraente perto de si, mesmo que fosse somente para lhe servir de motorista até casa.
Tal como Valério, o seu carro também era humilde, um automóvel com quase vinte anos. Adivinhando o pensamento que pudesse ir na cabeça de Kayla, justificou:
— Não é a "bomba" onde vieste, mas garanto-te que nunca me deixou apeado.
2.3
Não houve qualquer diálogo ao longo da viagem. Coube aos altifalantes do rádio a missão de fazer ambiente ao longo do trajecto pelas ruas quase desertas da capital. Só já perto do Parque das Nações é que Kayla falou para dar indicações do caminho para a sua morada.
— É aqui. — informou ela, apontando para um prédio recente numa rua do bairro do Parque das Nações.
Valério observou a fachada, calculando que um apartamento daqueles estaria certamente ao nível do preçário dos serviços de Kayla. Ele parou o automóvel defronte do local, lamentando que tivesse chegado o momento em que ela se despediria e nunca mais se voltariam a ver.
— Queres subir? Posso oferecer-te um café?
O convite de Kayla foi tão surpreendente que deixou Valério sem reacção. A única coisa que conseguiu foi sorrir.
Sem nunca perder o semblante sério, altivo, Kayla alertou:
— Não sou de enganos, Valério. Sou uma mulher muito frontal. Não quero que interpretes mal o convite. Não vamos terminar na cama.
Valério abanou a cabeça e, num tom simpático, confidenciou:
— O teu convite foi tão inesperado que nem pensei o que quer que fosse.
Kayla manteve o olhar cravado nele.
— Vou dizer-te uma coisa, mas juro que não é com intenção de te magoar. — retorquiu ela. — Pelo que pude perceber, és um apreciador de futebol. Eu confesso que não perco muito tempo com isso, mas tenho algumas noções de futebol. — Ele ouvia-a atentamente. — Se nós os dois fossemos equipas de futebol, eu era certamente uma equipa para jogar a Liga dos Campeões, enquanto tu serias uma equipa de campeonatos distritais. — Valério assentiu. Apesar do golpe provocado pelas suas palavras, o que ela dizia era verdade. — Não tens como jogar comigo. Somos de campeonatos muito diferentes.
— Sim, tens razão. — concordou. Talvez fosse melhor despedirem-se por ali.
— Nunca iremos para a cama um com o outro. — insistiu ela para que não restasse a mínima dúvida. — A menos que tragas dinheiro para isso.
— Pouco provável... — suspirou ele.
Kayla tocou-lhe o braço.
— Esta noite foi injusta para ti. Foste arrastado para uma situação que não te dizia respeito, perdeste o jogo que vias com tanto interesse e... — Sorriu com simpatia. — E ainda levaste com o meu mau humor. Sim, eu sei que não fui propriamente simpática contigo. — Passou a mão pelos cabelos negros. — E apesar de tudo isto, tu ainda te ofereceste para me trazer a casa. — Apontou para dois carros mais à frente. — Vá, tens ali um lugar para estacionar. Sobe uns minutos e deixa-me oferecer-te um café.
O apartamento de Kayla situava-se no sexto andar. Não era muito grande, entrava-se directamente para a sala, um espaço amplo com a cozinha ao fundo, sem paredes a dividir para além de um balcão. Ao lado da cozinha, um corredor de acesso ao único quarto e ao WC. A sala era composta por uma mesa de vidro com quatro cadeiras, um sofá comprido em L auxiliado por uma mesinha de madeira escura. Defronte do sofá, um grande ecrã LED estrategicamente colocado para ser visualizado da sala e da cozinha.
Kayla apontou-lhe o sofá.
— Senta-te! Fica à vontade. — Despiu o casaco. — Dá-me uns minutos, vou só trocar de roupa, tirar o fato de trabalho.
Valério sentou-se, avaliando o espaço. Não era um apartamento muito grande, mas deveria ser bem caro, quer fosse comprado ou alugado. Ao lado daquele, o seu andar arrendado na Amadora era uma barraca. Sentou-se no sofá comprido, no sector maior do L. Ao fim de alguns minutos, Kayla reapareceu na sala.
Sem qualquer constrangimento, Kayla envergava um pijama amarelo e cinzento composto por calças largas que lhe escondiam os pés descalços e uma camisola de mangas curtas com uma gola tão larga que o seu ombro esquerdo estava descoberto.
— Preferes outra coisa ou pode ser café? — questionou com naturalidade. — Também pode ser uma bebida com álcool, se preferires.
— Pode ser café. — escolheu, meio atordoado por estar ali.
Kayla foi para a cozinha.
Valério voltou-se no sofá e ficou a observá-la. Em pijama a circular na cozinha, concentrada na máquina de café, ela continuava tão sensual como quando a vira entrar no restaurante.
— Queres açúcar? — ofereceu, entregando-lhe uma das chávenas que carregava.
— Não, obrigado.
Kayla sentou-se no sector mais pequeno do L.
Beberam o café em silêncio. Valério estava tão nervoso que receou que isso se revelasse ao pegar na chávena. Conseguiu controlar a tremedeira.
— Costumas ir muitas vezes àquele bar? — questionou ela, após beber um pouco do seu café.
— Algumas. Gosto de ficar lá um pouco a ver o futebol.
Kayla sorriu com ironia.
— Os homens e o futebol. Por vezes até parece que ver vinte e dois gajos atrás de uma bola vos dá mais prazer que o sexo.
— A mim, não. — respondeu ele, mesmo percebendo que ela não o dissera para obter uma resposta.
— Eu não gosto de futebol. — partilhou Kayla, terminando o café. — Nem de outra modalidade desportiva… — Interrompeu-se para corrigir. — Na verdade, gosto de ver Curling. Sabes o que é?
— Uma pessoa a atirar uma pedra sobre gelo e outras duas com vassouras a correr e a varrer.
Kayla soltou uma gargalhada. Era a gargalhada mais linda que ele já presenciara.
— Sim, é isso. — confirmou divertida.
Valério não queria que aquele momento terminasse, mas tanto a sua chávena como a dela estavam vazias. Era hora de partir. Porém, encontrou uma ponta por onde continuar a puxar o novelo da conversa:
— Infelizmente, hoje em dia, quase tudo o que é jogos de futebol é transmitido em canais de televisão pagos, o que é incomportável para mim. Por isso, ir até ao bar e beber uma cerveja é a forma mais económica de os conseguir ver.
— Percebo. — retorquiu, completamente indiferente a esses problemas.
Nesse instante, o telemóvel de Kayla começou a tocar. Era estranho que alguém tivesse o desplante de estar a telefonar a outra tão tarde. Contudo, Kayla não pareceu incomodada e pegou no aparelho com a mesma naturalidade com que o faria a meio da tarde. Olhou para o ecrã e levantou-se, dizendo:
— É um cliente.
Valério fez um movimento para se levantar, mas ela gesticulou com a mão, indicando-lhe que se deixasse estar.
— Não demoro. — avisou, afastando-se para o quarto e atendendo a chamada.
Com o olhar a percorrer o espaço envolvente, Valério aguardou que ela regressasse. Não teve a mínima curiosidade em saber o teor da conversa e, mesmo em silêncio, ele não conseguia ouvir a voz dela no interior do quarto.
O sofá era confortável e o telefonema demorou mais que o esperado. Sem saber como, deu por si a ser acordado gentilmente por Kayla.
— Ah... Oh... Bolas! Desculpa, adormeci.
— Não faz mal. — desvalorizou ela com um sorriso honesto. — Eu é que peço desculpa por ter demorado.
— Tudo bem. — retribuiu, levantando-se do sofá. — É melhor ir andando.
— Espera! — pediu Kayla, travando-o. — Estás cheio de sono. Não estás em condições de conduzir. Podes passar cá a noite... — Franziu o rosto em advertência. — No sofá, claro.
— Não quero incomodar.
— Não incomodas nada. Prefiro que fiques aí, a saber que tiveste um acidente por adormeceres ao volante.
— Isso não iria acon...
— Está decidido, Valério. Vou buscar uns lençóis e um cobertor.
Kayla deixou-o novamente sozinho na sala.
Era uma sensação estranha para ele, não se importava de passar a noite em casa dela, mas não seria como nos filmes, não terminariam na cama. Ou será que algo poderia acontecer? A questão esfumou-se no seu cérebro, logo que ela retornou com um par de lençóis, uma almofada e um cobertor quente.
Entregando-lhe tudo, Kayla apontou para o corredor, indicando:
— Aquela porta é o WC. Estás à vontade. Só não deixes a tampa da sanita levantada, OK? É um defeito que vocês homens têm, nunca sabem voltar a baixar a tampa.
— Não sofro desse mal.
— Pois... — retorquiu, descrente. — A outra porta é o meu quarto. Por isso, não te enganes.
— Podes dormir descansada.
Sem perder tempo, Kayla afastou-se para o corredor sem olhar para trás e desejando:
— Dorme bem!
— Tu também.
Valério só se voltou a mexer quando ouviu a porta do quarto dela a fechar. Até lá, permitiu-se a observá-la da cabeça aos pés enquanto caminhava pelo espaço amplo e desaparecia no corredor. Depois, estendeu os lençóis e o cobertor, ajeitou o melhor que conseguiu a sua cama improvisada e despiu parcialmente a sua roupa. Enfiou-se lá dentro e adormeceu quase de imediato.
Muitas horas mais tarde, Kayla despertou do seu sono repousante. Ao fim de alguns instantes, lembrou-se do jovem que ficara a dormir no seu sofá. Quando se deitara, deixara propositadamente a porta do quarto fechada, mas destrancada, curiosa de saber se ele teria coragem de tentar algo. Agora que pensava nisso, recriminou-se pelo risco, não o conhecia assim tão bem para ter garantias que não acordaria com uma das suas facas de cozinha encostada ao pescoço. Ele não se arriscara. Que teria ela feito, se ele tivesse entrado no quarto? Perante uma tentativa de a seduzir... Constatou que não sabia a resposta, podia dar-lhe dois estalos ou deixá-lo concretizar os seus desejos.
Mas ele não viera. Será que teria gostado que ele viesse?
Naquele fim de manhã acordara com uma sensação de desejo no corpo. Sim, estava excitada. E na sala, Valério ainda deveria estar a dormir, pois não se ouvia um som que fosse do exterior do quarto. Pensou nele num modo analítico, fixou a sua imagem na mente para confirmar que ele não fazia minimamente o seu género. Contudo, por vezes, um homem não precisava de parecer um deus grego para a seduzir, bastava algum carisma, segurança e confiança. Valério não revelava ter nada daquilo.
Só que o final da manhã estava quente... O seu corpo ansiava por sexo, o sexo que lhe fora recusado ao ser dispensada pelo advogado. Na noite anterior só lamentara o dinheiro que não ganhou, mas pela manhã juntava-se a isso a ausência de prazer.
Levantou-se da cama. A sua respiração estava alterada. A sua consciência lutou contra o seu corpo, estaria a criar um precedente inédito, se fosse para a frente com aquilo. Só fazia sexo por dinheiro, raramente se envolvera com um homem só pelo momento de prazer e nunca fizera amor. Jurara a si mesma que não daria esse rebuçado ao jovem que a trouxera a casa nessa noite, o rebuçado que era o seu corpo, a sua competência em dar prazer a um homem. E não seria difícil cumprir esse juramento, não fosse ter acordado com aquele fogo que por vezes a consumia e a fazia seduzir um homem para que a foda lhe apagasse a chama do desejo. Eram as tais fodas gratuitas com gajos de uma vez e que ela depois desprezava e nunca mais voltava a ver. Porém, Valério parecia um tipo decente, gostara dele como pessoa, como ser humano. Raramente se cruzara com gente assim e as poucas foram mulheres que, verdade seja dita, mais tarde ou mais cedo acabavam por a desiludir. Sim, se calhar, também ele o faria assim que a oportunidade surgisse. Bolas, ainda se ele fosse um pouco mais cativante... Sorriu para si. Sempre era melhor que um vibrador. Que se lixe!
Saiu do quarto. Estava tudo silencioso. Do corredor era impossível vê-lo deitado no sofá. Não se ouvia nada. Pelo menos não ressona, pensou. Deu dois passos e travou. Despiu as calças do pijama. Não lhe queria revelar logo tudo, mas queria ir já pronta para alguma acção. Atravessou a cozinha procurando adivinhar a reacção dele quando a visse meia despida. Tornou a parar. Faltava algo. Regressou ao quarto, ao móvel onde abriu uma gaveta e retirou um preservativo.
Novamente na saída do corredor, tornou a ponderar se o devia fazer. O vibrador não pediria reciprocidade. Não seria complicado dispensar... Porém, ela queria um homem, um pénis real bem rijo que a penetrasse. Era isso que o seu corpo queria, não um pedaço de borracha fálica.
Decidida, atravessou de novo a cozinha. Só que, conforme se aproximava da sala, algo parecia não estar bem, ou pelo menos, não estar como ela esperava. Ao conseguir observar as almofadas do sector maior do L, encontrou-o vazio, somente com os lençóis e o cobertor bem dobrados e a almofada a enfeitar o monte como uma cereja no topo de um bolo.
Toda a sua excitação sofreu uma onda gélida de decepção. Olhou em volta como se Valério pudesse estar escondido num qualquer esconderijo impossível. Chegou mesmo a virar-se para o corredor na esperança de que ele pudesse estar no WC. Mas, não estava... Ele fora embora sem se despedir.
A sua atenção foi captada pela folha manuscrita sobre a mesinha de madeira. Pegou-lhe com curiosidade e leu-a com semblante sério até o sorriso lhe despontar nos lábios.
No papel, Valério deixara escrito o texto:
"Obrigado por me teres deixado passar a noite no teu sofá. Quero dizer-te que gostei muito de te conhecer e conversar contigo. Concordo com tudo o que disseste, somos equipas de níveis muitos diferentes. Mas, mesmo as grandes equipas jogam com os pequeninos, os de menores recursos, os amadores. Fazem-no em jogos amigáveis. E eu gostava que a minha equipa jogasse amigáveis com a tua. Resumindo, gostava que pudéssemos ser amigos. Deixo-te neste papel o meu número, se quiseres voltar a tomar café comigo, jogar o amigável. Valério."
— Tolo! — exclamou para ninguém. — Se tivesses ficado, agora estarias a ir para o quarto comigo, para a minha cama. — Recolocou a folha no lugar onde ele a deixara. — Talvez tenha sido melhor assim.
Toda aquela situação resultara no esfumar do seu desejo. Contudo, algo despertara nela, algo proveniente daquelas poucas linhas que ele lhe deixara. Sim, talvez pudesse abrir essa porta, talvez o pudesse deixar ser algo que ela nunca tivera na vida, um amigo.
Sentou-se no sofá, no mesmo lugar onde ele dormira. Estava frio, sinal de que ele se fora embora há já algum tempo. Pensou em ligar-lhe, o número estava mesmo ali naquele papel e o telemóvel à distância do quarto. Que lhe iria dizer? "Olha, acordei com vontade de foder e tu já cá não estavas". Não, nada disso, seria o mesmo que lhe dizer que estava disposta a fazê-lo com ele. E agora que o fogo se apagara, não tinha a mínima vontade que isso acontecesse e, só de pensar nessa hipótese, no facto de que estivera quase a fazê-lo, deixava-a retraída. Mas... Queria o amigo.
Haveria tempo e oportunidade para esse telefonema. Ao invés, optou por pegar no telecomando e ligar a televisão. Era um canal de notícias e um qualquer segmento noticioso mostrava o Arcebispo de Braga, D. Narciso Rathesleon. Perante aquela imagem, Kayla ficou estática, imóvel como uma pedra, o olhar fixo no ecrã. Depois, subitamente, desligou a televisão. A expressão animada de sorriso juvenil que o texto de Valério lhe havia deixado no rosto desaparecera por completo. Pegou nos lençóis, no cobertor e na almofada e regressou ao quarto.
2.4
Acontecera duas décadas antes...
Conceição tinha treze anos, tantos quantos os que vivia no orfanato, onde uma noite alguém a deixara recém-nascida. A instituição era gerida por freiras, as quais a recolheram com um misto de pena e recriminação por quem cometera a insensibilidade de abandonar um bebé na noite fria de Lisboa, mesmo que o tivesse feito à porta delas. A bebé fora registada com o nome de Conceição, uma vez que ali fora encontrada no dia da Senhora da Conceição.
A vida num orfanato não é fácil para nenhuma criança. Conceição não fugia à regra e para acentuar as dificuldades, era também uma rapariga rebelde, sempre a desencaminhar as amiguinhas da sua idade que viam nela uma espécie de líder para as rebeldias, deixando as freiras com o juízo em água. Fosse pelo seu carisma, fosse pelo facto de parecer mais velha que a sua real idade, Conceição destacava-se sempre do grupo, uma menina alta de cabelos negros, olhos azuis profundos, rosto angelical e corpo a ganhar formas de mulher.
Naquele orfanato só viviam raparigas das mais diversas idades, desde as quase recém-nascidas até às adolescentes a chegar à maioridade, altura em que abandonavam a instituição, caso a sua vida não tivesse tido outro rumo como a adopção.
Conceição e todas as raparigas estavam ansiosas pela visita daquele dia. Fora-lhes dito que um ilustre visitante, um homem importante da Igreja, viria visitar o local para ficar a conhecer o trabalho das freiras e como elas eram laboriosas e eficientes na educação que davam àquelas crianças. Por isso, se não quisessem ser severamente castigadas, deveriam comportar-se na perfeição perante tal individualidade.
Este chegara à propriedade com enorme altivez e todas as freiras se comportavam com grande subserviência perante ele. Para Conceição, era apenas um homem com vestes de padre e aspecto de quem entrava na meia-idade. Porém, jamais esquecera o seu nome, Rathesleon.
As crianças foram mantidas afastadas, excepto no momento em que todas, sem excepção, tiveram de perfilar, qual parada militar, com as suas fardas humildes do orfanato. O padre ou bispo, Conceição não saberia distinguir, Rathesleon atravessou o recinto com um olhar rude, observando-as com prepotência. No final, no seu tom de voz forte cavernoso, falando de forma a que todas ouvissem, elogiou a freira responsável pelo trabalho feito com as meninas. E despediu-se com uma bênção atirada num gesto vago.
As raparigas regressaram aos seus aposentos, tagarelando acerca do acontecimento do dia. Conceição falava com as amiguinhas, quando uma freira surgiu no quarto destas, ordenando a Conceição e a outra rapariga mais nova que a acompanhassem. A situação era estranha. E conforme aquela freira (uma das menos austeras, verdade seja dita) ia recolhendo meninas, as outras ficavam à espreita com a curiosidade a brotar-lhes do olhar.
Conceição viu-se num grupo de dez meninas, onde a mais nova deveria ter uns oito anos e a mais velha quinze. Em fila indiana, seguiram a freira pelos corredores do orfanato até ao sector que normalmente está vedado às crianças, a zona administrativa e do gabinete da directora, a freira mais austera e implacável daquele lugar.
Ao entrar no gabinete, Conceição viu o padre sentado na cadeira da directora, estando esta a seu lado, em pé com o olhar gélido e a expressão fria cravados nas meninas. A freira que as conduzira, ordenou‑lhes que se colocassem lado a lado, defronte da secretária de mogno maciço carregada de papeis.
O ambiente era tenso. O espaço parecia obscurecido, apesar da luz exterior que entrava pela alta janela da divisão. Era como se houvesse uma sombra invisível a pairar sobre eles. O medo começou a apoderar-se das dez meninas, as quais faziam o melhor que sabiam para o controlar.
Ninguém falou. Durante alguns segundos, nada aconteceu, ninguém mexeu, o tempo parecia ter parado naquele instante. Somente os olhos malévolos do clérigo pareciam ter-se movido.
Rathesleon levantou-se da cadeira, movendo-se como um espectro enfiado numa batina negra. Caminhou até ao grupo e parou em frente da primeira menina, curiosamente a mais nova. Não perdeu tempo e passou para a segunda, ligeiramente mais velha. Continuou a observação na terceira, a mais velha de todas, olhando-a da cabeça aos pés e demorando-se no peito quase inexistente. Desinteressou-se e olhou para a seguinte. Também não encontrou interesse. Seguiu-se Conceição.
Ela esforçou-se por não tremer, mas estava apavorada. Evitou encarar o olhar do padre. Ele observou-a com precisão, a camisa cinzenta apertada até ao colarinho, a saia da mesma cor num tom mais escuro que lhe chegava aos tornozelos, as meias brancas, até os sapatos gastos obtiveram atenção. Rathesleon levantou a mão direita e acariciou-lhe o rosto.
— Como te chamas, minha filha? — questionou naquele tom medonho.
— Con... Conce... Conceição.
— Que idade tens?
— Doz... Treze. Treze anos, senhor.
— Deus te abençoe, minha filha! — exclamou com frieza, prosseguindo a observação das meninas.
Conceição não sabia explicar porquê, mas o seu instinto soprava‑lhe que estava em apuros. O homem só falara com ela. Assim que findou a revista, retornou à secretária, parando junto da directora e segredando-lhe algo.
A mulher austera, que deveria ter mais ou menos a mesma idade que o padre, chamou a outra freira e ordenou-lhe que levasse todas as raparigas... excepto Conceição. Sem hesitar, a outra assim fez, dando ordens às meninas como se não passassem de um rebanho a ser pastado.
Quando Conceição ficou sozinha no gabinete com a directora e o padre, o medo tomou proporções elevadas, fraquejando-lhe as pernas. Mesmo assim, resgatando alguma da sua rebeldia, manteve a postura firme.
— Não tenhas medo, Conceição. — disse o padre sem abandonar o tom cavernoso. — Não fizeste nada de mal.
Ela teve vontade de perguntar porque ficara ali, mas teve o bom senso de permanecer calada.
— És uma menina bem-comportada?
Ela anuiu.
— Os burros é que abanam a cabeça. — repreendeu a directora. — Fala!
— Sou sim, senhor.
Rathesleon fez um sorriso escarninho.
— Tens feito as tuas orações?
— Sim, senhor.
O padre tornou a levantar-se, lançando uma expressão cúmplice à freira. Esta afastou-se na direcção oposta àquela por onde as meninas entraram, abrindo uma outra porta. Conceição viu que essa divisão era um quarto, talvez o quarto da directora.
Rathesleon aproximou-se da menina e convidou:
— Gostarias de rezar comigo? — A pergunta só tinha uma resposta. — Vem!
Conceição seguiu o homem da batina para a outra divisão, onde a freira já os aguardava. Rathesleon parou junto da cama e apontou para o chão.
— Ajoelha-te aqui! Quero que rezes um Avé Maria.
Obediente, a menina ajoelhou-se onde ele indicara e juntou as mãos com os dedos cruzados para iniciar a prece.
— Espera! — ordenou Rathesleon. — Antes disso. Quero que desabotoes a tua camisa.
Conceição julgou ter ouvido mal. Sentiu-se perdida e procurou auxílio na freira que se colocara perto do padre. O que obteve foi:
— Não ouviste D. Narciso? Faz o que ele te manda!
Sem outra hipótese, Conceição desabotoou vagarosamente cada botão, desde o colarinho até à cintura. Evitou os olhares adultos que a observavam, envergonhada.
— Despe-a! — ouviu-o ordenar, assim que soltou o último botão.
Novamente, Conceição não tinha escapatória e despiu a camisa, ficando com o tronco nu. Obrigou-se a encarar o padre, num misto de rebeldia e súplica. Encontrou uma expressão faminta que a enojou.
— Hum... Já tens maminhas. — constatou o padre, enquanto desapertava os botões da batina.
A mente de Conceição fora abençoada com o esquecimento. Por mais que tentasse, não se conseguia lembrar do que acontecera a seguir. A memória que se seguiu colocava-a nua na cama da freira, com esta sentada a seu lado, seminua, a sorrir para Rathesleon que se vestia tranquilamente com um semblante saciado e um sorriso demoníaco.
Conceição jazia imóvel no colchão, em posição fetal. Tinha o olhar vidrado e parecia alheada da realidade. Poderia não se lembrar, mas sabia o que acontecera, aquele padre roubara-lhe a inocência.
Aquele dia mudara a sua vida e despertara-a para uma realidade que ela desconhecia até ali. Havia muitas raparigas que eram abusadas no orfanato por padres. Era tudo muito obscuro e feito com secretismo. Nada do que acontecia era comentado, excepto pelas vítimas que conversavam entre si. Nem as crianças que permaneciam incólumes àqueles crimes tinham conhecimento de que aquilo acontecia, até caírem nessa realidade, como acontecera a Conceição. A partir daquele dia, Conceição ficou a fazer parte de um grupo restrito de meninas que eram usadas para fins sexuais no orfanato. E tudo acontecia com a bênção das freiras e a completa impunidade dos padres.
Foi nesse grupo que Conceição conheceu uma outra rapariga, três anos mais velha, a qual se tornara vítima daquele esquema aos nove anos. A empatia entre elas foi imediata. O seu nome era Fátima, mais uma com nome de santa...
Fátima não fora abandonada à nascença, mas retirada pelo Estado aos pais, aos oito anos, por estes a tratarem pior que lixo. O mundo de perversões em que caíra, fizeram-na crescer rápido, muito rápido. Sexualmente sabia mais que muitas mulheres com o dobro ou triplo da sua idade. Aprendeu a tirar partido do desejo tresloucado daqueles seres reles que obtinham prazer em violar crianças. Aprendeu a agradar-lhes, a deixá-los loucos por ela... Aos catorze anos, era ela quem dominava os seus agressores. Conseguiu tornar-se na preferida de um bispo sexagenário que visitava o orfanato periodicamente, convenceu-o a fazer de si exclusivamente sua, o que lhe evitava envolvimentos com mais gajos nojentos, e ainda lhe sacava dinheiro. Conceição aprendeu muito com Fátima, aquela que terá sido uma das suas poucas amigas e a sua professora de sexo.
Conceição sofreu abusos sexuais ao longo de dois anos, altura em que as visitas dos agressores cessaram por causa de um escândalo de pedofilia que rebentara numa instituição de renome nacional. Os criminosos ficaram com medo e afastaram-se temporariamente. Porém, quando a poeira assentou, eles voltaram, mas Conceição crescera demasiado para entusiasmar aquelas figuras abjectas.
Nessa mesma época, o contacto com Fátima perdera-se, uma vez que a outra abandonara a instituição aos dezoito anos. Conceição tinha algumas raparigas mais próximas de si, mas nenhuma partilhava consigo o nível de empatia que tivera com Fátima. Odiava as freiras em particular e os homens em geral, pois todos os que conhecera haviam sido aqueles que entraram no orfanato para abusar de inocentes. Aos dezasseis anos, sem utilidade para o esquema que envolvia os padres nojentos e sem perspectivas de adopção, ela era apenas um peso para a instituição. E as freiras obrigavam-na a pagar o seu peso, encarregando-a de tarefas como limpezas ou fazer recados e compras na rua.
Numa dessas saídas, Conceição reencontrou Fátima. Quase não a reconheceu. Com dezanove anos, Fátima parecia uma mulher de quase trinta, elegante, vestida com roupas caras, mala de marca, telemóvel de última geração... Conceição ficou estupefacta. Tomaram um café numa pastelaria ali perto e a mais velha partilhou o seu segredo.
— Sou acompanhante.
— Acompanhante? Como assim? — questionou Conceição.
Fátima deu uma gargalhada sonora. Depois, aproximou-se da amiga e sussurrou:
— Sou puta. Mas uma puta bem paga. Não imaginas o dinheiro que se pode ganhar nesta vida.
— A sério? — Conceição estava incrédula.
— Tu também ias ter sucesso. — sugeriu Fátima. — És esperta, és linda. — Piscou-lhe o olho. — Foste boa aluna. Ias deixar os homens doidos. Podias fazer uma fortuna.
A hipótese começou a deixar Conceição entusiasmada.
— Pensa nisso, São. Vou deixar-te a minha morada.
Retirou um pedaço de papel e rabiscou um endereço cheio de erros de ortografia.
Conceição estava farta da vida no orfanato e não tinha qualquer vislumbre de um futuro minimamente viável. Vender o corpo a homens com dinheiro parecia uma solução tão boa como qualquer outra. E se fosse para ter a qualidade de vida que Fátima aparentava...
Numa das saídas para ir às compras, Conceição levou consigo os seus escassos pertences que se resumiam aos documentos e saiu do orfanato para nunca mais voltar. Não conhecia muito bem a cidade, mas sempre fora desenrascada e tinha aquele espírito aventureiro acicatado pela rebeldia que sempre lhe correra nas veias. Não tinha dinheiro para transportes, por isso, caminhou alguns quilómetros pelas ruas da capital até encontrar a morada de Fátima, um apartamento com quatro quartos que a amiga partilhava com outras três mulheres profissionais da mesma área, as quais não a receberam com o mesmo entusiasmo que a amiga.
Fátima partilhou o quarto com Conceição e financiou as primeiras compras de roupa e acessórios para aprimorar a beleza da mais nova. Comprou-lhe um telemóvel e ajudou-a a arranjar os primeiros clientes. Conceição era menor, só tinha dezasseis anos, mas Fátima mentiu às colegas para que estas não se opusessem à presença da amiga no apartamento. E repetia frequentemente a Conceição que ninguém poderia saber a sua idade real.
Quando estavam a conversar sobre Conceição ter o primeiro cliente, Fátima disse:
— Tens de arranjar um outro nome.
— Outro nome?
— Sim, São. Conceição não é nome de acompanhante. — lembrou Fátima. — Parece mais nome de beata. Tens de ter um nome artístico.
— Qual é o teu?
— Scarlett.
Conceição ponderou a questão. Nunca pensara em ter outro nome.
— Pensa nisso, São. Não precisas de escolher já.
Contudo, Conceição lembrou-se da foto de uma modelo estrangeira que vira na loja onde tinham comprado roupa. O nome não era comum, pelo menos em Portugal, e pareceu-lhe ser... sexy.
— Kayla. — escolheu sem hesitar. — O meu nome vai passar a ser Kayla.
2.5
Aquela manhã deixara-a estranha. Primeiro fora o despertar com um desejo descomunal de sexo, o que só não resultou num erro do qual se arrependeria porque o jovem que dormira no seu sofá já lá não estava. Depois, o bilhete amoroso que ele lhe deixara, que a tornara receptiva a voltar a encontrá-lo para uma relação completamente diferente daquilo a que estava habituada. Por fim, a visão daquele ser asqueroso na televisão. Tudo junto resultou numa nostalgia que a entregou a recordações, sentada no sofá, solitária com o olhar vago perdido. Havia saudade no seu coração, saudade da pessoa mais querida da sua vida, a sua melhor amiga, Scarlett.
Scarlett confidenciara-lhe um dia que escolhera o nome por sugestão de uma colega, quando se iniciara naquela vida, a qual lhe dera esse nome devido à tonalidade acobreada do seu cabelo. Conceição conhecera Fátima no orfanato, mas a interacção entre elas foi inexistente até àquele fatídico dia da visita de Rathesleon à instituição. Na altura, Conceição não sabia, mas as crianças abusadas evitavam relacionar-se com as outras por receio de numa qualquer distracção falarem sobre os abusos. Devido a isso, eram vistas pelas imaculadas como crianças estranhas. Fátima reparara em Conceição, quando entrou para o orfanato, mas nessa altura foi a diferença de idades que as afastou. Menos de um ano após entrar na instituição, Fátima foi abusada pela primeira vez. Com o passar dos anos, cresceu com inveja das crianças que conseguiam permanecer incólumes aos crimes dos religiosos que visitavam a instituição, inclusive Conceição, apesar de sem saber explicar porquê, sentia um interesse especial nela.
Muitas meninas vítimas de abusos tornavam-se quase seres vegetativos, recolhidos numa concha invisível, alheadas de tudo e à espera da vez seguinte. Outras tornavam-se rebeldes e indisciplinadas e acabavam por sofrer também agressões violentas. Houve duas que se suicidaram na instituição, mas os casos foram abafados. Quase nenhuma fora adoptada, nem parecia haver muito interesse em que isso acontecesse por parte das freiras, uma vez que prostituir meninas lhes trazia benefícios por parte dos abusadores que retribuíam com dinheiro ou influência.
Quando Fátima soube que Conceição fora a vítima escolhida pelo importante clérigo que as visitara, sentiu uma fúria brutal, o que a surpreendeu a si própria e a fez perceber que ao longo daqueles anos, o seu inconsciente desejara que a rapariga de cabelos negros e olhos azuis crescesse imaculada.
A personalidade da mais nova fora seriamente afectada, mantinha a rebeldia, mas perdera o sorriso juvenil e alguma da escassa alegria possível de encontrar num lugar daqueles. Ficara vulnerável, mas erigira um escudo invisível à sua volta para afastar tudo e todos.
Por vezes, Kayla interrogava-se o que teria sido de si, se Fátima não tivesse ido ao seu encontro segurar-lhe a mão. Não gostava de procurar a resposta porque sentia que encontraria algo muito negro no desfecho, se não tivesse tido uma amiga que a ensinara a ultrapassar os momentos em que a violentavam, com quem tivesse aprendido a controlar os seus abusadores, alguém que lhe atenuava o sofrimento com amor.
Fátima segurara-lhe mesmo a mão.
No dia seguinte à visita de Ratheleon, Conceição caminhava no pátio com o olhar vago e a mente num turbilhão de emoções desesperadas. Queria fugir dali, mas não sabia nem tinha para onde ir. Toda a obscuridade que se abateu sobre a sua alma lhe trouxera uma tristeza profunda. Não chorara porque se recusava a parecer fraca, mas o seu coração estava em lágrimas.
Aquele seu estado perdido foi despertado pelo toque nos seus dedos. Sentiu alguém segurar a sua mão e olhou para o lado, encontrando uma das raparigas mais velhas do orfanato, a miúda de olhos rasgados e cabelo cor de fogo, a puxá-la com suavidade e dizendo:
— Vem comigo!
Na altura a caminho dos dezassete anos, Fátima já não tinha interesse para os violadores que visitavam a instituição. Era uma rapariga quase mulher de cabelos ruivos longos e um olhar frio num rosto de expressão oriental. Assistia à queda de outras crianças naquele mundo com a mesma indiferença que outros tiveram para si. Contudo, ver Conceição naquele antro nojento fez despertar algo nela. Levou-a para um canto recatado do pátio, longe de qualquer olhar e abraçou-a com força, segredando-lhe ao ouvido que sabia o que acontecera e que também ela sofrera o mesmo.
Kayla já não se lembrava com exactidão da conversa que tiveram nesse momento. Guardava apenas a noção de que a mais velha fizera com que deixasse de se sentir só. Fátima fora frontal, começara logo por dissipar qualquer dúvida, explicando que nada podia fazer para evitar que aquilo voltasse a acontecer, mas tentaria atenuar todas as marcas e iria mostrar-lhe como atravessar esses momentos.
Na sala do seu apartamento iluminada pela tarde solarenga exterior, Kayla sorriu sozinha com a saudade a fazê-la estremecer. Como gostava que Scarlett pudesse estar ali com ela... Deixou-se regressar às recordações.
Fátima ensinou-a a tirar partido dos homens e a não ser uma mera vítima. Iria tornar Conceição sábia como ela aprendera a ser para controlar os seus abusadores. Ganharam uma proximidade tão grande que não havia tabus na intimidade delas. Conceição aprendeu a dar prazer a um homem, o que no caso desinteressou alguns dos seus abusadores que só retiravam prazer na submissão das vítimas. E também aprendeu a ter prazer, a conhecer o seu próprio corpo e o da amiga. Apesar de nunca o admitirem uma à outra, houvera sempre algo mais que a amizade entre elas. Para além disso, era comum beijarem-se às escondidas. Para Conceição, a intimidade com a amiga funcionava como uma espécie de remédio para os abusos que se prolongaram durante mais de dois anos. Depois... Depois rebentou o escândalo de pedofilia no país e os abusadores desapareceram por uns tempos. Entretanto, Fátima fez dezoito anos e teve de abandonar o orfanato.
O telemóvel de Kayla tocou. Por momentos, julgara ter adormecido e quase perdera a noção do lugar onde estava, como se a realidade fosse a de que era novamente uma rapariga de quinze anos, sombriamente triste pela partida da amiga que ela amava sem saber. O som espalhava-se pela sala de decoração minimalista. Kayla procurou o aparelho que esquecera onde deixara, seguindo o ruído do toque. Sem saber bem porquê, a primeira pessoa que lhe veio à cabeça como estando a telefonar-lhe foi Valério, tomando consciência de que não lhe dera o número ao mesmo tempo que lia o nome do genro do presidente da república no ecrã.
— Espero que tenhas uma boa desculpa. — atendeu ela de forma áspera.
Alberto não perdeu tempo com isso, usando antes o melhor trunfo de todos:
— Não te preocupes, eu pago-te a noite de ontem como se a tivesses passado comigo.
— Ok. Desculpas aceites.
— O meu empregado tratou-te bem?
— Sim.
No outro lado houve silêncio, como se esperasse mais informação. Kayla percebeu, mas não correspondeu ao desejo do cliente.
— Chegaste bem a casa? — acabou por inquirir, novamente com a pretensão de saber mais.
— Sim.
— Já vi que não estás muito faladora.
— Não tenho nada para dizer.
— Estás a castigar-me por te ter deixado pendurada, ainda para mais com um palerma a fazer-te companhia.
Kayla não gostou da referência depreciativa a Valério.
— Foi muito correcto, o teu funcionário. Aliás, se houve alguém que se portou mal esta noite, foste tu.
Alberto odiava ser repreendido, ainda para mais por uma puta, por uma gaja que vendia o corpo ao preço do ouro. Só que pensar nela trazia-lhe também à memória todo o prazer que ela lhe dava. E isso fazia‑o "engolir o sapo".
— Ok, desculpa. Foi um imprevisto.
— Queres contar-me a razão do imprevisto?
— Não.
— Então, acho que também não queres saber mais acerca da minha noite de ontem.
Aquelas palavras levaram Alberto a criar dúvidas que poderiam trazer problemas a alguém:
— Não me digas que tu e o... Aquele gajo não tem dinheiro para ti. Olha, Kayla, não vou pagar uma noite em que foi outro que te fodeu.
Kayla notou a irritação na voz de Alberto. Era-lhe indiferente aquela atitude do advogado. No entanto, aquela suposição iria prejudicar alguém que seria a última pessoa que Kayla queria que tivesse problemas.
— Não, ninguém me fodeu esta noite. — rosnou-lhe ao telefone. — E quanto ao teu empregado, foi muito correcto e até se dispôs a trazer-me a casa para que chegasse em segurança. Pobre coitado não quer problemas com o patrão. Eu recusei, vim de táxi, não quis estar a incomodá-lo mais que o necessário. E tu faz um favor a todos e esquece tudo isso. Não vás agora falar nisso ao rapaz.
— Eu? Falar com aquele estropício? Prefiro perder tempo a falar com um caixote do lixo. Quero ver-te! Quero aquilo que não tive esta noite!
Kayla não estava na disposição de o fazer. Alberto era seu cliente, não era seu dono. Com toda a naturalidade, disse-lhe que teria de esperar, talvez na próxima semana, que lhe voltasse a ligar na segunda ou na terça... E desligou.
Novamente no silêncio da sua sala, onde apenas ruídos fugazes da rua lhe chegavam aos ouvidos, Kayla deixou os pensamentos rebobinarem para os tempos iniciais daquela vida que acabara por escolher para sobreviver.
Fátima, agora Scarlett, voltara a dar-lhe a mão quando a reencontrou, lhe contou naquilo em que se tornara e a convidou a procurá-la para ser uma igual a si, caso quisesse abandonar o orfanato e deixar de ser explorada pelas freiras. Conceição não teve dúvidas naquilo que queria e sentiu-se feliz por reencontrar e voltar a conviver com a sua melhor amiga. No entanto, apesar de retomarem a relação de proximidade e cumplicidade dos tempos em que estavam institucionalizadas, algo se perdera naquela ausência de contacto, perdera-se a intimidade sexual.
Nem Conceição, nem Fátima eram lésbicas. O que acontecera entre elas no orfanato fora um escape, uma forma de partilhar carinho num mundo violento. Uma vez cá fora, longe desse ambiente nefasto, Fátima teve noção que gostava realmente de homens, tal como Conceição que também percebeu que o sexo com eles era muito bom... E escondeu de si própria a sua bissexualidade. Kayla e Scarlett nunca mais voltaram a envolver-se a esse nível. Mesmo assim, Kayla nunca deixou de sentir uma atracção carnal por Scarlett.
Com dezasseis anos, Kayla mudou-se para o apartamento que Scarlett partilhava com outras colegas prostitutas, um apartamento numa zona central de Lisboa, onde recebiam os clientes, quando não eram elas a deslocarem-se a hotéis ou motéis. Kayla partilhava o quarto com a amiga, mas não a cama, isso haviam sido contas de um rosário antigo de duas adolescentes num orfanato. O colchão no chão seria a sua cama.
Jovem e bela, Kayla não teve dificuldade em fazer sucesso no mundo da prostituição de luxo. Muitos homens nunca souberam que estavam a ter relações sexuais com uma menor e em risco de serem presos.
Fátima era uma mulher diferente, desde que se tornara Scarlett. Conceição sentia-o sem saber explicar muito bem em que é que ela estava diferente. Continuava a ser a sua amiga fiel e preocupada. Fátima era para Conceição a irmã, mãe, amiga, amante que nunca tivera na vida, alguém com quem se sentia segura e em quem podia confiar. Porém, existia algo indefinido, algo que Fátima parecia esconder de Conceição. Talvez fosse só impressão...
Ainda antes de atingir a maioridade, Kayla já conseguia ganhar o suficiente para se sustentar e ter uma vida com alguns luxos, os quais tornavam ridículo que continuasse a dormir no chão do quarto da amiga. Por isso, expôs a Scarlett o seu desconforto em permanecer ali e o seu intuito de alugar um espaço para si. A resposta surpreendeu Conceição, pois Fátima perguntou-lhe se estaria interessada em que alugassem um apartamento a meias, noutro lugar, longe das restantes prostitutas que ali viviam. De facto, Conceição notara que a relação de Scarlett com elas já não era a melhor.
Scarlett tinha vinte e um anos e Kayla dezoito quando se mudaram para um apartamento luxuoso no topo de um edifício com um terraço formidável, acima dos prédios envolventes, que tinha vista para o rio e um jacuzzi. Parecia surreal que duas miúdas vítimas de gente tresloucada, abandonadas à sua sorte, tivessem conseguido aquele estilo de vida.
Ao longo dos anos, viveram como duas grandes amigas que eram, a partilhar o apartamento e a ganhar a vida recebendo cavalheiros distintos que largavam autênticas fortunas para ter sexo com elas. Kayla nunca gostara de receber clientes em casa, mas Scarlett justificava que era uma mais-valia e evitava-lhes o incómodo das deslocações. Fosse como fosse, Kayla raramente recebia homens em casa.
Com o passar do tempo, também Scarlett começou a afastar os clientes do apartamento. Kayla nunca percebeu o que motivou essa alteração. Para além disso, as suas ausências eram cada vez maiores, chegava a passar vários dias, por vezes semanas, longe do apartamento. Contudo, mesmo não estando a controlar-lhe os ganhos, a amiga não parecia estar a ganhar o dinheiro equivalente àquele exclusivo com alguns clientes.
O telemóvel voltou a tocar, trazendo-a novamente ao presente. Viu o número, reconhecendo mais um cliente habitual. Atendeu. Era um daqueles homens pouco seguros de si, sem autoestima e que a tratavam como se fosse uma rainha no meio dos plebeus. Pagava-lhe bem e ainda lhe trazia presentes sempre que se encontravam. Estava a ligar para saber se ela tinha disponibilidade nesse fim de tarde. Claro que sim. Havia clientes com quem não tinha de se esforçar muito para ficarem saciados, aquele era um deles. Um dia chegara a aflorar-lhe a ideia de a ter só para si, que ela largasse aquela vida e casassem, ele não se importava de lhe continuar a pagar uma renda para que ela tivesse tudo o que quisesse. Ele só queria tê-la para si. Kayla sentiu-se lisonjeada, mas jamais aceitaria esse papel e recusou a proposta com ternura e algo mais.
Esse pensamento trouxe-lhe a recordação dos últimos meses de vida de Scarlett. Seis anos antes, Fátima conhecera um cliente que se tornou muito especial. Tão especial que lhe propôs que abandonasse aquela vida para ficar com ele. Não, não lhe propusera pagar para que fosse sua em exclusivo, estavam de facto apaixonados um pelo outro. Fátima partilhara com Conceição o que estava a viver, ela era sua amiga e confidente, apesar de Kayla continuar a acreditar que Scarlett não lhe contava tudo, tal como Kayla fazia.
O seu cliente era um militar graduado. Tudo começara normalmente como um cavalheiro com dinheiro que procura uma companhia de luxo para se tornar num homem apaixonado por uma mulher que também se apaixonara por ele. Em pouco tempo, já se encontravam sem que houvesse dinheiro envolvido. Kayla nunca o conheceu, não sabia dizer se fora por mero acaso ou se amiga evitara que isso acontecesse. Conhecia-a suficientemente bem para saber que aquele não era um cliente como os outros e Scarlett acabou por confessar que ele poderia ser "o tal". A princípio, Kayla chegou a suspeitar que o tipo pretendia ser uma espécie de chulo de Scarlett, mantendo uma relação com ela ao mesmo tempo que a amiga mantinha os clientes e, se calhar, com a intenção de que ela partilhasse o rendimento com ele. Felizmente, estava enganada. A relação deles tomou proporções tão sérias que certa manhã Fátima chegou a casa com um sorriso de orelha a orelha e a mostrar-lhe um anel. O militar pedira-a em casamento.
Nos seus vinte e oito anos, Kayla jamais aceitaria perder a independência para se juntar a um homem. Partilhou da felicidade da amiga, escondendo o desânimo por saber que isso seria o esfriar da amizade de ambas. Scarlett também respirava aquele ar de independência rebelde, viver a vida sem amarras, mas já passara os trinta e começava a recear o futuro em que seria preterida por "carne" mais jovem. Por isso, estava decidida a agarrar a oportunidade e a modificar a sua vida, largar a prostituição e tornar-se uma mulher de família, casar com o militar e ter filhos.
O pedido de casamento desencadeou uma série de acontecimentos. O mais notório foi o largar progressivo dos clientes por parte de Scarlett. Ela também manifestou interesse em abandonar o apartamento em breve, uma vez que iria viver com o noivo ainda antes do casamento.
Kayla declinou a possibilidade de se manter naquele imóvel de luxo com uma renda descomunal, mesmo que tivesse capacidade financeira para o suportar. Não queria ter antigos clientes de Scarlett a bater-lhe à porta ou a aborrecê-la por terem sido descartados pela amiga. E Kayla iria aproveitar o momento para encontrar um novo espaço só para si, onde não abdicaria da regra de que nenhum cliente lá entraria.
Duas ou três semanas antes de perder a amiga, Kayla mudou-se para o espaço onde vivia actualmente. Fora tão decidida na intenção de viver noutro lugar que se antecipara à saída de Scarlett.
A amiga também ficou feliz por si, mas nunca encontrou tempo para conhecer a casa dela. Por esta ou aquela razão, afastaram-se um pouco. Scarlett mergulhara numa felicidade com que Kayla não se identificava e onde desconfiava não existir espaço para si. O militar desconhecido iria levar-lhe a amiga. Odiava-o por isso.
Só que acabou por não ser ele a arrancá-la do seu mundo, fora um outro cliente, num estúpido e inexplicável acidente rodoviário.
Pouco tempo antes desse acidente, após alguns dias de ausência de contacto, Fátima e Conceição encontraram-se para almoçar. As duas amigas voltavam a ter um momento só para si como há muito não tinham, uma refeição tranquila para colocar a conversa em dia.
Scarlett estava animada, mas dava sinais de algum desconforto... Talvez não fosse desconforto, agora que Kayla pensava nisso, era mais como se fosse uma despedida. Sim, não tinha muitas dúvidas que aquele encontro seria uma espécie de "gosto muito de ti, és minha amiga, mas não há lugar para ti na minha nova vida". Conceição não o percebeu na altura, mas o tempo e o rever sucessivo daquelas memórias deixavam-na com essa certeza. Sim, aquele almoço fora uma despedida. Só não fora a despedida que Fátima estaria a idealizar. Falaram sobre as vidas de ambas, Fátima partilhou mais algumas vivências com o noivo, o qual naquela altura estava em missão na República Centro Africana numa missão das Nações Unidas e regressaria em breve.
Quando se afastaram, após o almoço, Fátima ficou de lhe voltar a ligar e comprometeu-se a enviar-lhe o convite para o casamento. Conceição acreditara na altura que isso iria acontecer, Kayla actualmente tinha a certeza que nunca seria convidada. Nunca mais voltaram a falar.
Conceição só voltou a ter notícias de Fátima no fim de semana seguinte, quando recebeu um telefonema das autoridades por causa de um acidente. Ao longo da relação com o militar, Fátima nunca se lembrara de alterar o contacto no seu telemóvel em caso de fatalidade, contacto esse que era o número de Conceição.
Não havia familiares, nem ninguém a quem dar a notícia, somente a amiga dos tempos da adolescência, a colega de orfanato, a irmã adoptiva, a amante dos momentos terríveis de provação e tortura. Conceição ficou em choque, quando uma voz desconhecida a informou que a amiga perdera a vida num acidente automóvel, um trágico acidente tão brutal que não tinham dúvidas que tanto ela como o condutor haviam tido morte imediata. Conceição quis saber onde estava o corpo, queria vê-la uma última vez... Não valia a pena, dissera a voz, o acidente fora tão brutal que os corpos ficaram irreconhecíveis.
Dilacerada pela perda, Conceição teve o discernimento de pedir que contactassem o noivo. Não sabia muito, apenas o nome Moniz que poderia ser encontrado no telemóvel dela, assim como encontraram o número de Conceição. Logo que desligou, chorou sem parar, entregou-se a um pranto silencioso e solitário de quem perdera a única pessoa que amara em toda a vida.
Quando tornou a despertar para a realidade, Kayla tinha lágrimas nos olhos. Passados cinco anos, a perda ainda lhe mordia o coração.
2.6
A cidade de Braga estava a ser fustigada por uma chuva miudinha, um daqueles chuviscos que aborreciam mais que aquilo que molhavam. A caravana de carros oficiais do governo do país partira da cidade do Porto e tinha como destino a cidade dos arcebispos, três viaturas de alta cilindrada que avançaram pelo asfalto da A3 como se fossem em socorro de alguém.
Na viatura do meio, sentado sozinho no banco traseiro, Pinto Henriques analisava o relatório que Raimundo Antunes lhe deixara acerca do arcebispo de Braga. Apesar de ser um católico convicto e praticante dentro das possibilidades da sua agenda, o primeiro-ministro nunca nutrira grande simpatia pelo arcebispo. E após ler o relatório produzido pelo SIALE, considerava o indivíduo um ser abjecto.
Não lhe agradava aliar-se a um tipo daqueles, mas Raimundo Antunes era da opinião que deveriam ter o apoio da Igreja. E uma vez que nunca o obteriam do Patriarcado, a fonte seguinte de maior poder religioso em Portugal era a Arquidiocese de Braga. No seu íntimo, desejava que Rathesleon aceitasse a sua primeira proposta, uma vez que a segunda até a si lhe causava nojo.
Os carros prosseguiram pelas ruas da cidade com as luzes a piscar sem respeitar qualquer sinalização de trânsito e abrandando ligeiramente nos cruzamentos para evitar causar algum acidente. A circulação fora cortada na rua de São Domingos entre a rua de São Victor e a rua José Sarmento.
Perto da Arquidiocese, alguns jornalistas aguardavam a anunciada visita do primeiro-ministro Pinto Henriques. E estes só ali estavam porque o líder do PNL tinha todo o interesse em promover aquele encontro, caso contrário, teria mandado afastar tudo e censurado qualquer notícia que se referisse a isso. Sim, a liberdade de imprensa tornara-se uma miragem em Portugal.
Os três veículos aproximaram-se a uma velocidade acima do recomendável. O primeiro da escolta abria caminho, o terceiro fechava o grupo. No do meio, Pinto Henriques e dois seguranças sentados à frente. Todos os elementos da segurança eram agentes do SIALE. O carro que o transportava parou junto à entrada da residência do arcebispo. O segurança que viera ao lado do condutor fora o primeiro a sair e abriu em simultâneo o guarda-chuva e a porta por onde saiu o chefe do governo.
Pinto Henriques rumou ao edifício escoltado por dois homens encorpados que o protegiam da chuva e de qualquer tentativa de lhe acabar com a existência. Acenou hipocritamente aos jornalistas, meia dúzia de indivíduos pertencentes a órgãos de comunicação social reconhecidamente coniventes com o regime nacionalista lusitano. Perto da entrada, um representante da Igreja, um mero secretário de batina, recebeu o primeiro-ministro com respeito protocolar, mas longe de dar ares de subserviência. Por ali, os padrecos deveriam ter todos a mania que tinham poder, tal como o seu chefe, pensou Pinto Henriques.
— Bom dia, senhor primeiro-ministro!
— Bom dia.
— Sua eminência aguarda-o no gabinete. — informou o secretário, olhando de soslaio para os seguranças. — Não precisa de se preocupar, esta casa de Deus não alberga qualquer perigo.
O chefe do governo dispensou os guarda-costas, ordenando-lhes que permanecessem na entrada. Era uma espécie de demonstração de confiança e afinidade para com a Arquidiocese. A seguir, deixou que o homem da Igreja o conduzisse até ao gabinete do arcebispo.
Rathesleon recebeu Pinto Henriques no seu faustoso gabinete. Era um espaço amplo de pé alto, paredes revestidas a papel de parede com duas janelas envidraças emolduradas por reposteiros com cortinados de tecido luxuoso. Entre as janelas, a secretária do arcebispo, uma peça de mobiliário esculpido em madeira da América, onde se encontravam algumas pastas, um relógio de mesa em ouro e uma moldura também em ouro com uma foto de Rathesleon com o Papa. O arcebispo aguardava sentado na sua cadeira semelhante a um trono. Atrás de si, uma pintura a óleo em tela com dois metros de altura por um e meio de largura com o seu retrato a corpo inteiro com as vestes oficiais de Arcebispo de Braga. Não havia qualquer dúvida que o clérigo era um narcisista convicto.
O restante espaço era recheado de opulência, quadros e esculturas, crucifixos em ouro, móveis imponentes... No entanto, o gabinete era sombrio, uma espécie de projecção da alma do seu ocupante.
Rathesleon levantou-se da sua cadeira num esforço pesado, numa lentidão que não revelava fraqueza física, mas mais um demonstrar de quem controlava os tempos por ali. Trajava uma batina negra sem qualquer outra cor que não fosse o colarinho cinzento. A meio do seu avançar sexagenário, Rathesleon tinha já o cabelo completamente branco e mantinha a expressão gélida que sempre o caracterizou.
— Obrigado por me receber, D. Narciso! — agradeceu Pinto Henriques em jeito de cumprimento, usando um tom de voz firme e estendendo-lhe a mão.
Prepotente, Rathesleon estendeu-lhe a mão com a palma voltada para baixo, destacando o anel no dedo anelar para que o outro o beijasse.
O primeiro-ministro abstraiu-se de todo o asco que sentia pelo religioso. Para si, tipos como aquele eram execráveis, homens que abusavam de crianças... Mas, precisava dele, precisava de algo parecido com uma bênção ao que se preparava para fazer no país. Pelo menos, fora o que Raimundo Antunes lhe aconselhara.
— Digamos que fiquei intrigado com o seu pedido para uma reunião. — retorquiu o arcebispo na sua voz cavernosa que ganhara uma rouquidão ainda mais tenebrosa, fruto do avançar dos anos. Apontou-lhe uma das cadeiras defronte da secretária e refez o percurso para o seu cadeirão na mesma passada vagarosa. — Que pode a Igreja fazer pelo seu governo, senhor primeiro-ministro?
Pinto Henriques sentou-se e iniciou o discurso que preparara antecipadamente:
— Este país caminha para o abismo. Nem mesmo com os esforços que temos feito para o colocar nos eixos, as pessoas parecem compreender. Calculo que D. Narciso também o tenha notado. — O arcebispo fez um breve esgar e permaneceu de ouvidos atentos. — Aliás, receio que haja forças que queiram impedir que possamos continuar o nosso trabalho, prosseguir com uma doutrina virada para os costumes, para as tradições, para a defesa da nação e... — Acentuou o tom para lhe dar mais dramatismo. — ...para a religião, a verdadeira religião.
— Sim, concordo que apreciei as medidas do seu governo contra todas as outras religiões. — acedeu o arcebispo com um sorriso torcido. — Bem como as isenções à Igreja e manipulação de algumas contendas jurídicas. — Recolocou o semblante austero. — Não me diga que veio cobrar a "generosidade"?!
Pinto Henriques abanou a cabeça.
— Nada disso, senhor arcebispo. Venho pedir a sua... como definir... a sua solidariedade.
— Como assim?
— O meu governo terá de tomar medidas... digamos... medidas drásticas, de forma a impedir que nos afastem da nossa missão. — explicou num tom cúmplice. — Poderão não ser as medidas mais lícitas, mas são certamente necessárias para o bem da nação.
— Talvez para o seu bem. — interrompeu o arcebispo.
— O meu e... o seu. — retorquiu o primeiro-ministro.
Rathesleon atirou-lhe uma expressão intrigada e algo ofendida.
— A Igreja não se mete em política, senhor primeiro-ministro.
O engenheiro ignorou o comentário.
— Pensei que talvez pudesse estar interessado em ficar com o Patriarcado.
Surgiu um brilho no olhar de Rathesleon que ele não conseguiu disfarçar. Contundo, manteve uma postura fria e redarguiu:
— A última coisa que pretendo é ir para aquela cidade do Diabo. — Benzeu-se para afastar o mal. — A Sodoma e Gomorra dos tempos modernos, como você lhe chamou.
— Sim, o cancro do nosso país. Infelizmente, no Norte trabalhamos para ser chulados pelo Sul. — Sorriu escarninho. — Mas esses tempos vão acabar. E não é isso que lhe proponho. Pretendo ajudá‑lo a trazer o Patriarcado de novo para Braga.
Desta vez, Rathesleon não escondeu o sorriso. Apoiou os cotovelos no tampo da secretária, cruzou as mãos e assentou o queixo sobre elas, numa postura ponderativa.
— Não é o governo do país quem decide isso. — acabou por dizer.
— Temos forma de fazer com que a realidade nos leve a isso.
— Não estou a perceber.
Pinto Henriques colocou as mãos sobre a secretária e alertou:
— Estou certo de que aquilo que lhe vou dizer terá o significado de uma confissão, certo? — O arcebispo fez um gesto para que continuasse. — Vamos ter de tomar atitudes extremas para que não nos afastem do poder. O Flávio de Melo anda a engendrar maneira de recolocar o MPP no poder. Nessas medidas extremas, um dos nossos alvos será a capital e os seus cidadãos. — As suas palavras eram escutadas com um olhar cortante. — Se nos apoiar, afastaremos o cardeal-patriarca de Lisboa e entregamos-lhe o Patriarcado. D. Narciso concluirá que não há condições de segurança na cidade e transfere-o para Braga.
— Até parece simples. — disse o religioso com ironia.
— Sinceramente, não sei como isso se processa. Mas, terá o nosso apoio no que for preciso para o consumar.
— E o que precisa de mim?
— Preciso que... inspire os párocos da sua jurisdição a, por entre as homilias, lançarem comentários depreciativos acerca do povo da capital, como vivem de forma lasciva, descrentes da verdadeira fé, consumistas do nosso esforço... Enfim, tudo o que se possa lembrar para denegrir aquela gente. Que influenciem as mentes dos seus fiéis para que quando formos implacáveis ninguém tenha pena dos nossos opositores.
Narciso Rathesleon recostou-se na cadeira e não disse uma sílaba durante alguns segundos, como se estivesse a equacionar a proposta.
— A sua proposta é interessante. — concluiu com desdém. — Mas, como lhe disse anteriormente, a Igreja não se mete em política, senhor primeiro-ministro.
Aquelas palavras foram um rude golpe nas aspirações de Pinto Henriques, uma vez que julgara que o estava a convencer. Afinal, esse desejo de ter o Patriarcado em Braga era uma "balela" para entreter os seus seguidores. O primeiro-ministro percebeu que Rathesleon queria retribuição para si, não para a Igreja, o que levava Pinto Henriques a lançar a segunda proposta, a execrável proposta.
— D. Narciso é um homem de gosto requintado. — assinalou, olhando em redor.
— Não está a pensar comprar-me, pois não, senhor primeiro‑ministro? Sou um homem da Igreja, a minha riqueza é a fé e não preciso de nada mais que isso.
Que grande treta, pensou Pinto Henriques, aquele homem era falso até à medula. Deitou novo olhar à decoração e findou a observação cravando a sua atenção do clérigo.
— Não me refiro a dinheiro, obras de arte ou outras coisas que aqui tem, certamente por imposição do seu cargo. — Foi a vez de o político usar da ironia. — Refiro-me a algo mais carnal, mais jovial. — A expressão do arcebispo ganhou contornos de irritação. — Nada escapa ao SIALE, nem sequer os apetites sexuais de cada um.
Foi a gota de água. Numa expressão de fúria, Rathesleon levantou-se da cadeira, bateu com os punhos na secretária e indignou-se:
— Como se atreve? Quem julga que é para vir insinuar mentiras? Com que descaramento vem a uma casa de Deus, ao gabinete de um Seu seguidor, injuriar-me?
Pinto Henriques foi surpreendido pela reacção. Sabia que não seria uma reacção simpática, mas não esperava tamanha fúria temperamental. Porém, não se demonstrou afectado e ainda carregou mais no ponto:
— Nós sabemos do seu apetite sexual por meninas. E quando digo meninas, refiro-me mesmo a meninas, crianças.
Rathesleon parecia ir explodir de raiva. No entanto, teve o discernimento de perceber que Pinto Henriques não era um homem qualquer e, apesar do seu poder na Igreja, uma revelação daquelas poderia acabar consigo.
— Então é isso. Chantagem, senhor primeiro-ministro. Veio aqui para me chantagear.
O engenheiro levantou as mãos e fez uma expressão de surpresa.
— Não, nada disso, D. Narciso. — negou veemente, mesmo tendo dito tudo aquilo para deixar essa dúvida no ar. — Não se trata de chantagem. Por favor, acalme-se e deixe-me explicar.
O arcebispo fulminava-o com o olhar, mas acabou por acatar o pedido e tornou a sentar-se.
— Todos nós temos os nossos gostos. — prosseguiu o político. — Sou primeiro-ministro, não sou juiz. Nem pretendo fazer juízos acerca disso. — Sorriu com toda a falsidade. — Só um estúpido quereria fazer de si um inimigo. Quero apenas... — Fez uma pausa como se escolhesse as palavras. — Tentar aliciá-lo. Por favor, D. Narciso! Perdoe-me! Talvez não seja a melhor palavra, mas penso que percebe onde quero chegar. — Tornou a encostar-se às costas da cadeira. — É justo que não seja só a Igreja a lucrar. D. Narciso também deve ser premiado com algo para si. O que lhe quero dizer é que, caso seja solidário com a nossa causa, poderei fazer-lhe chegar... Como dizê-lo? Matéria-prima para o seu apetite? Sim, acho que podemos colocá-lo assim. O que me diz?
O silêncio instalou-se no gabinete. Rathesleon manteve o olhar cravado em Pinto Henriques de tal forma que o outro se questionou se iriam sair raios de fogo daqueles olhos.
— Apenas precisa que os párocos influenciem as populações a seu favor e contra o Sul e os lisboetas? — O primeiro-ministro anuiu. — Penso que podemos chegar a acordo. Mas com uma condição.
— Diga.
— Não vamos estar com rodeios, senhor primeiro-ministro. Aquilo que me está a oferecer são crianças, correcto?
Pinto Henriques fez um esforço para não se sentir enojado consigo próprio. Mentalmente, convenceu-se que eram crianças de Lisboa, tinham o mesmo valor que lixo, por isso não tinha de se recriminar por isso. Engoliu em seco para que a voz não o traísse e confirmou:
— Sim, é isso.
— Muito bem. A minha condição é que quero a sobrinha do Santiago, o cardeal-patriarca.
O primeiro-ministro não fazia ideia de que o cardeal tinha uma sobrinha, nem quem ela era. Rathesleon pareceu ler-lhe a mente.
— O "seu" SIALE saberá quem é, mas eu posso adiantar-lhe que se chama Isabel e tem doze anos.
És nojento, foi o pensamento que Pinto Henriques reprimiu.
— Estou certo que não teremos dificuldade em fazer-lhe chegar o seu pedido. — concordou, levantando-se em sinal de despedida.
Com toda a hipocrisia, Pinto Henriques levantou-se sorridente, agradecendo o acordo que haviam acabado de elaborar. Não se deu ao trabalho de prestar vassalagem ao arcebispo, nem lhe beijaria novamente o anel e muito menos aqueles dedos nojentos.
E assim, estava dado mais um passo no grande plano do PNL de atingir o poder supremo em Portugal.
2.7
A residência da família Henriques localizava-se numa moradia perto do Palácio de Serralves, no Porto. Foi para lá que o primeiro‑ministro regressou após a reunião com o arcebispo de Braga. Encontrou a esposa na sala, a qual cumprimentou de forma distante, e fechou-se no seu escritório. A conversa com Rathesleon perturbara-o mais que aquilo que esperava. Aquele tipo era um criminoso, um pedófilo, mas um mal necessário à causa, à sua causa. Porém, não ficaria impune, pois quando tivessem completado o golpe, Pinto Henriques encarregaria Raimundo Antunes de arranjar meios de o fazer pagar pelos seus crimes. E não iria usar tribunais...
Os pensamentos do primeiro-ministro viraram-se para o planeamento do dia seguinte, teria de regressar a Lisboa... Raios, como odiava aquela cidade!
O ódio de Pinto Henriques por Lisboa era sobejamente conhecido por todos e ele não tinha qualquer pudor em relação a isso. Os seus correligionários consideravam mesmo que essa era a razão do PNL nunca obter bons resultados em Lisboa. Aliás, havia mesmo quem concluísse que era devido a isso que o PNL perdera a governação da região autónoma de Lisboa e Setúbal para o MPP e para Diogo Pereira, o presidente do governo regional. E quando ele adjectivara a capital de Sodoma e Gomorra aniquilara qualquer possibilidade perante o eleitorado alfacinha. Porém, não se importava.
Na verdade, se o seu ódio não era segredo, já o mesmo não se passava com a verdadeira razão desse mesmo ódio.
Pinto Henriques sempre fora um homem com interesse na política, apesar de andar sempre ligado a movimentos pouco credíveis e extremistas. Na juventude partilhava daquele senso comum de que Portugal era um país centralizado na capital, onde tudo parecia ter de fluir para Lisboa, enfim... os comentários que se ouviam nas bocas de tanta gente. Contudo, o seu desagrado para com Lisboa não era maior que o de tantos outros e nem se poderia apelidar de ódio. O ódio viera mais tarde...
Quando tinha vinte e quatro anos, Pinto Henriques era um jovem engenheiro civil a trabalhar numa empresa dessa área no Porto. Não se encontrava oficialmente ligado a nenhum movimento político, mas já seguia com particular atenção os partidos de ideais de extrema-direita que influenciaram em grande parte a criação, anos mais tarde, do seu PNL. Foi com essa idade que conheceu Helena, uma jovem de dezanove anos que estudava pintura e desenho na Faculdade de Belas Artes da Invicta.
Helena nascera em Lisboa, cidade onde vivera até aos dezoito anos, idade com que se mudara para o Porto para ingressar na faculdade. Era muito carismática, sobressaía em qualquer grupo, extrovertida e divertida. Para além disso, também era muito bonita e atraente.
O jovem Henriques vira-a pela primeira vez numa festa em casa de amigos comuns. Quisera saber quem era a rapariga de cabelo negro comprido, aquela que vestia uma camisola de malha castanha, uma saia curta branca e calçava botas altas cinzentas.
Henriques e Helena foram apresentados. Ele demonstrou-se interessado em saber coisas sobre ela. E ela era o tipo de rapariga que falava pelos cotovelos. Curiosamente, pelo seu discurso, Henriques descobriu-lhe o primeiro defeito, convicções de esquerda. Não importava, abster-se-ia de discutir política com ela.
A conversa foi interrompida por uns amigos dela que surgiram na festa. Henriques lamentou a separação, mas estava decidido em não a perder de vista. Tentou por algumas vezes reatar o assunto, mas hesitou em todas, surpreendentemente intimidado por ela. Henriques era um homem experiente, já tivera um bom rol de casos amorosos e nunca se sentira tímido à beira de nenhuma rapariga. Porque é que aquela era diferente?
Perto do final da festa, viu-a ficar sozinha temporariamente, uma vez que se afastara para ir ao WC. Henriques aguardou perto do corredor por onde ela teria de passar na volta. Controlou o nervosismo e aguardou. Helena apareceu alguns minutos depois.
— Olá outra vez. — disse ele, falsamente descontraído.
— Olá... — retribuiu ela curiosa.
— Gostei de falar contigo. Achas que poderíamos tomar um café um dia destes?
— Não bebo café. — respondeu Helena com um sorriso trocista.
— Podemos beber outra coisa qualquer. Ou não beber absolutamente nada. Só conversar.
— Só conversar? — interrogou com um semblante inquiridor. — De que queres falar?
Henriques sorriu.
— Vá lá, não sejas assim. Gostava de te voltar a ver. — Fez um gesto para que ela não dissesse nada. — E não me perguntes porque te quero voltar a ver.
Foi a vez de ela sorrir, divertida. Passou a mão pelo cabelo e não disse nada de imediato, acicatando a ansiedade dele. Por fim, acabou por lhe sugerir um encontro na tarde seguinte no café Majestic.
O encontro no Majestic foi surreal. Ele chegara primeiro, dez minutos antes da hora marcada. Aguardou que ela viesse, o que não aconteceu nos quarenta minutos seguintes. Naquela época não existiam telemóveis, ele não tinha como saber se ela estava demorada ou se viria, bem como ela não tinha como o avisar caso não pudesse vir. O que quer que seja que tivesse motivado o atraso, ele nunca chegou a saber, pois esqueceu-o assim que ela entrou no café.
Helena entrou, mas não o viu. Tal como ele, vestia calças de ganga e uma camisola de mangas curtas no mesmo tom da camisa dele. Procurou-o com o olhar. Henriques ia a levantar a mão, quando a viu ser surpreendida por um outro rapaz. Percebeu pela sua expressão que não imaginava encontrar aquele indivíduo ali. Cumprimentou-o com dois beijos no exacto momento em que encontrou Henriques sentado algumas mesas mais atrás. Disse qualquer coisa ao rapaz, apontando para ele. O desconhecido fez uma expressão de quem não queria atrapalhar, mas, para surpresa de Henriques, acompanhou-a até à mesa.
Henriques foi apresentado como um amigo do Porto. O desconhecido, cujo nome não se reteve na memória do portuense, foi apresentado como um amigo de Lisboa. Este, com enorme falta de tacto, sentou-se com eles à mesa.
Não fosse ter percebido no rosto de Helena que ela estava tão surpreendida com a atitude quanto ele e teria abandonado o local sem olhar para trás.
Helena pediu um chá, o amigo uma "bica" e Henriques atirou o pedido acentuando que queria um... "cimbalino".
O amigo lisboeta tomou as rédeas da conversa, não via Helena desde que esta saíra da capital para estudar, relatou que estava a trabalhar em Gaia e parecia que não se iria calar nas próximas horas. Com enorme charme, ela disse-lhe que gostara de o ver, mas que tinha vindo tratar de um assunto com o amigo portuense.
O intruso percebeu a indirecta para que se pusesse na alheta e atirou um olhar de desdém a Henriques. Porém, sorriu a Helena, levantou-se e sugeriu que se pudessem encontrar um dia destes. Ela respondeu que estudava na Faculdade de Belas Artes, ele que passasse por lá um dia. O tipo insistiu com a proposta de se encontrarem ali, no dia seguinte, àquela hora. Ela concordou, o que deixou Henriques cravejado de ciúmes.
Logo que ficaram sozinhos na mesa, Helena disse:
— Desculpa! Não fazia ideia de que o ia encontrar aqui.
— Não faz mal. — mentiu Henriques.
— Talvez tenha sido demasiado ríspida a despachá-lo. — lamentou ela.
— Amanhã, pedes-lhe desculpa. — retorquiu Henriques com sarcasmo.
Helena percebeu. E Helena não era rapariga de meias palavras.
— Pareces incomodado que eu me encontre com ele amanhã.
Henriques não disfarçou o incómodo, mas disse:
— Não tenho nada com isso.
— Sim, isso é verdade. — concordou ela, revelando outra das suas características, uma mulher independente.
Percebendo que aquele rumo não o levaria a lado nenhum, Henriques procurou abstrair-se do que ela faria na tarde seguinte. Esboçou um sorriso e agradeceu-lhe ter aceitado o convite para sair com ele.
Com muito charme, Helena sorriu e disse:
— Ontem não me deixaste perguntar porque me querias voltar a ver. Mas, hoje quero que respondas a essa pergunta.
A sua forma directa de falar era uma novidade para Henriques, uma novidade cativante. Nem parecia que era ela a mais nova, cinco anos mais nova que ele.
— Sem rodeios?
— Gosto de homens francos.
— Acho-te extremamente atraente, gosto do pouco que conheço de ti e quero conhecer-te melhor.
Helena ficou agradada com as palavras dele, mas simulou indiferença. O assunto ficou no ar, uma vez que ela optou por mudar de tema, querendo saber mais acerca dele. Ouviu-o relatar o que fazia profissionalmente, onde vivia, as suas ambições. Ela contou-lhe pormenores do seu curso, que não estava a ser fácil estar longe da família e que sonhava ser actriz.
A conversa prolongou-se por várias horas. O tempo passara demasiado depressa entre dois seres que, a cada minuto, gostavam mais de estar um com o outro. Helena findou o encontro com a indicação contrariada de que tinha de ir embora. Henriques pagou a conta, inclusive o café que o lisboeta não convidado consumira e não pagara.
— Posso acompanhar-te até casa? — ofereceu Henriques sob as luzes urbanas da rua de Santa Catarina. — Já é noite.
— Prefiro que não. — recusou ela de forma terna.
— Posso voltar a ver-te?
— Claro. Ia gostar muito de voltar a estar contigo.
— Amanhã? — sugeriu ele, tentando substituir o encontro agendado com o outro.
— Sim. — concordou Helena. Sorriu divertida. — Mas, não aqui. — Piscou-lhe o olho. — Há alturas em que três é uma multidão.
Henriques retribuiu o sorriso e pediu:
— Posso dar-te um beijo?
— Podes.
Ele baixou-se para lhe beijar o rosto, mas ela beijou-o primeiro na boca. Fora um beijo terno, sentido, carinhoso, prolongado, só lábios com lábios.
Combinaram encontrar-se na tarde seguinte na Estação de São Bento e daí decidiriam para onde ir. E nessa tarde, enquanto um amigo lisboeta tomava uma "bica" sozinho no Majestic à espera de uma rapariga que não viria, Helena e Henriques faziam amor pela primeira vez.
Durante dois anos, a relação deles pareceu o paraíso na terra. Henriques era um homem feliz, realizado na vida profissional e pessoal e até a política ficara para segundo plano, pois todo o tempo livre era dedicado a ela, ao amor da sua vida, Helena. O namoro tornou-se muito sério, Henriques apresentou a namorada à família e, sem o dizer abertamente, dava a entender que em breve a pediria em casamento. Por seu lado, Helena adiava uma viagem dele a Lisboa para conhecer a sua família e recusava que ele a acompanhasse nas épocas em que retornava a casa dos pais.
Faltava um ano para Helena terminar o seu curso superior. Era excelente aluna e tinha um talento natural para a pintura e para a representação, tendo chegado a participar em algumas peças de teatro amador. Uma vez terminado o curso, seria certo que a permanência dela no Porto teria um ponto final ou, no mínimo, um regresso à capital por tempo indeterminado. Por isso, o Verão seguinte seria uma espécie de data-limite para se decidir a pedi-la em casamento.
Henriques tinha vinte seis anos, um emprego estável e aquela altura parecia-lhe tão boa como qualquer outra para iniciar uma família com a mulher que amava. Começou a planear a forma mais romântica de efectuar o pedido.
No entanto, sem que nada o fizesse prever, sem qualquer indício de que a catástrofe se aproximava, sem qualquer sinal por parte da sua amada que o fizesse suspeitar, a relação deles terminou tão subitamente como começara.
Helena não foi capaz de o encarar. Talvez lhe faltasse a coragem ou temesse não ser capaz de efectivar a separação se tivesse que o olhar nos olhos. Escreveu-lhe uma carta, palavras escritas a negro que pareciam claras diante do estado em que ficou a alma dele. Agradecia-lhe os bons momentos passados, mas estava na altura de cada um seguir o seu caminho. Gostara dele e esperava que encontrasse uma mulher que o fizesse feliz e que o amasse. Iria regressar a Lisboa em definitivo e já deveria estar a caminho, quando ele lesse aquelas linhas. Terminou a missiva com falsos beijos e a sua assinatura.
— Que puta! — foram as primeiras palavras que lhe saíram da boca. As lágrimas corriam-lhe pela face. Foi talvez a única vez na vida em que chorou, tirando os tempos de criança. — Puta lisboeta! Estas sulistas de merda que vêm ao norte a pensar que podem usar um homem trabalhador... São todas umas putas, umas oferecidas. — Limpou as lágrimas com os punhos da camisa. — Lisboa é uma cidade de putas e chulos, como aquele traste... o amigo lisboeta, o "bicas"...
Apesar de toda a raiva, Henriques tentou contactá-la. Só que no Porto ninguém tinha qualquer contacto dela e só sabiam que vivia em Lisboa. Na Faculdade de Belas Artes conseguiu saber a morada, numa altura em que o amor que sentira por ela se desvanecera nas brumas da raiva e apenas o ódio lhe consumia o coração. Valeria a pena fazer a longa viagem até à capital? Talvez pudesse escrever-lhe?
— Para quê, meu estúpido? — questionou-se solitário. — Que vou eu fazer naquele antro de putas à procura de uma delas?
Por isso, o ódio de Pinto Henriques tinha um nome, chamava-se Helena, uma rapariga que ele amara profundamente, que o abandonara e de quem ele nunca mais ouvira falar. E nem mesmo ter conhecido, anos mais tarde, a sua actual esposa atenuou minimamente esse ódio.
3.1
Os Maia eram uma família de classe média-alta que vivia no último andar de um prédio na Avenida de Roma, um apartamento com quatro quartos, uma sala enorme, uma cozinha, duas casas de banho privadas e uma geral. Não era qualquer agregado familiar que poderia ter um domicílio assim em Lisboa, naquele lugar, uma das zonas mais caras da capital. Contudo, tanto Ivo como Sónia tinham empregos que lhes permitiam ter poder económico para tal.
Ivo Maia tinha quarenta e oito anos, era natural de Lisboa, e ocupava o cargo de presidente de uma empresa de tecnologia, a E.T.I.Mac, sediada no Parque das Nações. Sónia era um ano mais nova, nascida na Alemanha, donde viera com os pais ainda bebé, quando o pai viera assumir a direcção de uma multinacional recentemente criada em Portugal. Sónia era médica no Hospital de Santa Maria e dirigia um dos serviços de especialidade. O casal tinha duas filhas, Carla Maia de vinte e um anos que estudava na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Paula Maia de dezassete anos que estava a terminar o décimo segundo ano.
A rotina das manhãs repetia-se para o casal, começando por tomar o pequeno-almoço na cozinha. Ivo envergava o seu visual formal, calças do fato e camisa engravatada. Bebia uma chávena de café que acompanhava com uma fatia de pão com geleia. Quase a ser um cinquentão, conservava uma figura elegante, apesar da barriga proeminente com tendência a aumentar. Usava o cabelo bem aparado e o rosto impecavelmente barbeado. Aproveitava a curta refeição para lançar um olhar às notícias das capas dos jornais que visualizava no Tablet de dez polegadas que o acompanhava para todo o lado.
Seguindo igualmente o seu ritual, antes de sair, Sónia digeria um iogurte de sabores sem açúcar e sem gorduras. Continuava a ser uma mulher lindíssima, extremamente atraente, alguém a quem a idade não deixava marcas. O seu louro natural sobressaía nos longos cabelos que lhe emolduravam o rosto sem rugas de olhar verde cativante, nariz singelo e boca de lábios expressivos. O corpo de ampulheta vestia camisola de malha e calças de ganga que mais tarde seriam cobertos pela bata branca de serviço hospitalar.
Ivo e Sónia estavam casados há vinte e quatro anos, iam a caminho das bodas de prata. A cumplicidade entre eles continuava tão forte como nos tempos de namoro e permaneciam apaixonados e completamente ligados naquele casamento feliz. Existia apenas uma lacuna na sua relação. Nos últimos anos, mesmo partilhando um amor sólido como aço, vinham tendo tendência a afastarem-se na cama, onde eram cada vez mais raros os momentos de paixão e de desejo sexual. Se perguntassem a ambos, nenhum saberia dizer com exactidão quando fora a última vez. O mais curioso era não serem capazes de falar sobre o assunto, mesmo tendo tanta cumplicidade, quando ambos sentiam tanto desejo um pelo outro. Que teria acontecido em algum momento para se levantar aquela barreira invisível entre eles? Naquele momento, na cozinha, Ivo lançou um olhar a uma Sónia distraída a lavar a colher do iogurte, cravando o olhar no seu rabo com uma vontade avassaladora de a abraçar por trás, puxar-lhe as calças para baixo e fazer amor com ela sobre o balcão da cozinha. Quando Sónia olhou para o marido, este disfarçou, aterrando a atenção no ecrã com as notícias. Ela permitiu-se olhá-lo por alguns momentos, fantasiando-se a tirar-lhe o ecrã das mãos, puxar a camisola para cima e enterrar-lhe a face entre os seus seios. Também a sua divagação se esfumou, soprada pela entrada da filha mais nova na cozinha.
Paula Maia herdara a beleza da mãe, uma beleza ainda a precisar de amadurecer, tal como a personalidade da jovem que ainda não ultrapassara a timidez em relação ao mundo. Até junto dos pais e da irmã, Paula se revelava introvertida. A única pessoa com quem estava completamente à vontade era a sua amiga de infância, Benedita, que vivia no apartamento ao lado. Paula exibia a farda do Colégio Alemão onde estudava, cumprimentou os pais com um beijo e apressou-se a comer uma peça de fruta. Ainda mal terminara, quando se ouviu a campainha da porta do apartamento.
Sónia fez sinal à filha que terminasse o pequeno-almoço e caminhou até ao átrio para abrir a porta.
— Olá, Sónia!
— Olá, Benedita! A Paula está mesmo a terminar. Entra!
Benedita tinha a mesma idade de Paula e envergava a mesma farda do colégio. O seu visual era diferente, uma rapariga forte com complexos em relação à sua imagem. Eram amigas desde o berço e inseparáveis. A jovem ruiva era a extrovertida daquele par. Benedita, apesar dos seus complexos, era sempre bem-disposta e animada, o que era uma bênção para alguém com uma história de vida complicada. Benedita vivia com a avó desde o falecimento dos seus pais num trágico acidente de carro. Ficara órfã nos braços de uma avó reformada. Contudo, Genoveva, a sua avó, era uma mulher de fibra e nunca deixou que faltasse nada à neta. Todo este trágico episódio fora acompanhado de perto pela família Maia, daí que existisse entre ambas as famílias uma ligação tão próxima que eram quase uma única família.
As duas raparigas não perderam muito tempo e saíram do apartamento apressadas em direcção à escola.
Ivo levantou-se do seu lugar, carregando a louça da refeição para o lava-louça.
— A Carla voltou a não dormir em casa? — questionou, colocando o prato dentro da máquina de lavar. Ouviu um som confirmativo da esposa. — Temos de ter uma conversa com essa menina.
— Que queres fazer, Ivo? A Carla tem vinte e um anos.
— Mas ainda vive debaixo do nosso tecto.
— E então? Isso é impeditivo de dormir com o namorado? — Ivo fez uma expressão chocada, como se não soubesse. — Vá lá, Ivo! Não me vais dizer que pensavas que a tua filha ainda era virgem.
Ivo pareceu confuso, sem saber o que dizer.
— Na verdade, nunca pensei nisso.
— Com a idade dela já nós...
— Outros tempos. — atalhou ele, desconfortável. — E nós éramos mais responsáveis.
Sónia sorriu, divertida.
— Bem, tenho de ir.
— Dia complicado?
— O costume. — respondeu ela, beijando-lhe os lábios em despedida. — E tu?
Ivo fez uma expressão de tédio.
— Vou ter o dia preenchido com entrevistas com candidatas a secretária.
— Ah... É verdade. A Clotilde vai reformar-se, não é?
Clotilde era a secretária de Ivo desde que este ocupara o cargo da presidência da empresa, uma década antes. Ivo confirmou com um aceno triste de cabeça.
— Infelizmente. É extremamente competente. Não vou encontrar ninguém à altura dela.
— A Clotilde tem... sessenta e cinco?
— Sessenta e seis anos.
— Está na altura de descansar. Tem esse direito, o direito a gozar uma reforma descansada.
— Sim, eu sei... Mas, não é fácil. E nem quero pensar nas candidatas que me vão aparecer hoje...
— Olha! Contrata um secretário. — sugeriu Sónia com humor. — Ainda contratas uma tipa toda jeitosa. — Adoptou um ar de falsa apreensão. — Deverei ficar preocupada?
Ivo agarrou-a pela cintura e tornou a beijá-la.
— Sabes bem que não.
Ela partilhou do momento de ternura, sorrindo-lhe e acariciando‑lhe o rosto.
— Sim, eu sei.
Ambos abandonaram o apartamento e desceram pelo elevador. Sónia iria a pé até à estação de Metro, uma caminhada curta, enquanto Ivo conduziria até à empresa. Voltaram a saborear os lábios um do outro, quando o elevador parou no piso do átrio do prédio. Sónia saiu e Ivo prosseguiu a descida até às garagens.
O trânsito em Lisboa estava o caos habitual, filas de carros em diversas direcções, condutores impacientes, buzina aqui e buzina ali. Ivo saiu do acesso das garagens do seu prédio para enfrentar este cenário diário. Teve dificuldade em entrar na avenida, uma vez que dois outros condutores não lhe facilitaram a passagem, como se estar cinco metros mais à frente fosse uma grande vantagem. No meio de uma imensidão de carros, Ivo tamborilou com os dedos no volante, observando o céu azul daquela manhã que dava sinais do aproximar da Primavera. Acelerava e travava de forma automática, paciente e consciente que de nada valia irritar-se. Pensou em Sónia, sentindo-se grato pela mulher que a vida o fizera encontrar para partilhar a sua, grato pelas filhas, pelo emprego. Tinha noção de que era um homem de sorte.
O carro à sua frente avançou lentamente, não lhe permitindo evitar um semáforo vermelho. O condutor atrás de si buzinou. Ivo ignorou-o. Sónia regressou ao seu pensamento, fazendo-o sentir aquele amor que partilhavam. No entanto, houve um aperto ténue na sua felicidade, aquela sensação de algo que não estava totalmente bem. Reviu a noite anterior, quando já estava na cama e Sónia se deitou a seu lado, naturalmente sensual. O corpo recordou todo o desejo que sentira. Ela deu-lhe um beijo e sorriu-lhe, apagando a luz do candeeiro da mesinha lateral à cama. Ele abraçou-a por baixo dos lençóis, dando sinais de que ainda não tinha sono. Sónia tocou-lhe a mão que a acariciava e, com ternura, afastou-a desejando-lhe que dormisse bem.
Nova buzinadela. Desta vez o sinal estava verde, mas Ivo não reparara. Arrancou com o seu Audi A8 até voltar a ficar parado na fila para lá do cruzamento. Por vezes, sonhava ser como aqueles tipos ricos, que via nos filmes americanos, que são presidentes de grandes companhias e viajam de helicóptero. Que jeito lhe daria isso, ali, para evitar toda aquela acumulação de carros. Sorriu para ninguém. Se tivesse um helicóptero, onde aterraria? Mais umas buzinadelas trouxeram-no à realidade, desta vez fora um desentendimento entre dois condutores na faixa ao lado.
Não demorou nem mais nem menos tempo que o habitual, quando entrou no acesso ao estacionamento coberto do edifício da sua empresa, um bloco de escritórios de quatro andares com vista para o rio Tejo. Estacionou no lugar que lhe era reservado e saiu do automóvel, vestindo o casaco do fato e segurando a pasta de trabalho. Caminhou sozinho por entre os veículos, seguindo a direcção do elevador. Entrou e subiu ao último andar.
O piso da direcção tinha vários gabinetes transparentes ocupados pelas assistentes de cada um dos directores. Atrás de cada uma delas existia uma porta de acesso ao gabinete do elemento da direcção do respectivo departamento, o qual tinha as paredes em madeira e não era visível do lado de fora. Ivo percorreu o corredor até ao fundo, acenando alguns cumprimentos. Era conhecido por ser um patrão autoritário sem ser antipático ou arrogante. Os funcionários gostavam dele. No fim do corredor, um gabinete de vidro maior que os restantes, com uma sala de espera com sofás e uma secretária robusta de madeira onde trabalhava a assistente de Ivo.
— Bom dia, Clotilde! — cumprimentou com um sorriso.
— Bom dia, doutor Maia!
Ivo não abrandou o ritmo e entrou no seu espaço de trabalho. O gabinete de Ivo era uma área ampla, digna do presidente de uma empresa. De frente para a porta ficava a sua secretária com um cadeirão confortável de costas altas. A confrontar a mesa, duas cadeiras de braços. Entre estes móveis e a porta, um sofá e um tapete colorido espesso que abafava os passos. A iluminar toda a área, os vidros enormes da janela atrás da cadeira do presidente com uma magnífica vista para a zona ribeirinha do Parque das Nações e para o rio Tejo.
Clotilde bateu à porta e entrou no exacto momento em que Ivo largara a pasta sobre a mesa e se sentara no seu lugar. Era uma senhora muito elegante que fazia lembrar as actrizes da primeira metade do século passado, bem arranjada com o cabelo grisalho cuidado como se fosse ao cabeleireiro todas as manhãs antes de ir para o emprego. Extremamente profissional, não deixava de ter sentido de humor.
— Preparado? — questionou com um sorriso cúmplice.
Ivo suspirou.
— Lá terá de ser. Por acaso, a Clotilde não quer adiar a sua reforma até... sei lá... aos noventa anos? — Ela abriu mais o sorriso e abanou a cabeça. — Vou sentir a sua falta.
— Não pense nisso agora. — sugeriu, entregando-lhe algumas folhas A4. — São os currículos das candidatas. No canto superior direito tem as horas das entrevistas marcadas a lápis. — Ivo olhou para o relógio. — Assim que a primeira chegar, eu aviso-o.
Ivo anuiu, desinteressou-se dos currículos e concentrou-se no trabalho que tinha para tratar antes da primeira entrevista.
3.2
Sónia saiu da estação de metropolitano da Cidade Universitária pelo lado mais próximo do Hospital de Santa Maria. A viagem entre a sua casa e o hospital era relativamente curta, três paragens, com o único inconveniente de ter de mudar de linha na estação do Campo Grande. A sua cabeça vinha perdida em pensamentos centrados na noite anterior, revendo a intenção demonstrada por Ivo em querer fazer amor, quando ela se enfiou na cama. Sónia também sentira vontade, mas isso implicaria dormir mais tarde e por menos tempo. E perante o pouco gratificante que haviam sido as últimas vezes, ela preferiu refrear o entusiasmo do marido e privar ambos desse momento.
O som de uma ambulância despertou-a na sua caminhada pelo passeio da Avenida Professor Egas Moniz, a via frontal ao hospital. O veículo de emergência furava o trânsito, vindo do lado da Avenida dos Combatentes e entrou no complexo hospitalar quase sem abrandar. Aquele era, talvez, o som mais comum por aquelas bandas. E a reacção das pessoas era quase sempre a mesma, o barulho chamava-lhes a atenção, ficavam a observar como se nunca tivessem visto algo assim e quando o ruído se dissipava, voltavam ao normal como se nada tivesse acontecido.
Sónia parou junto dos semáforos, aguardando perto da passadeira pelo sinal verde para os peões. A seguir, atravessou a avenida e caminhou perto do muro até ao portão de saída de veículos do complexo. Passou pelo acesso pedonal, onde um segurança geria o tráfego automóvel que abandonava o local. Ela olhou em frente, observando o enorme conjunto de edifícios dedicados às mais diversas áreas da saúde, prosseguindo para o sector esquerdo, rumo ao prédio da ponta, aquele que tem vindo a ser a sua casa profissional ao longo das últimas duas décadas.
Existia uma certa paz em caminhar pelo relvado, se não houvesse mais uma ambulância a chegar e se nos abstraíssemos do trânsito intenso nas avenidas que rodeavam o complexo, onde muitos automobilistas se esqueciam que não se usam buzinas perto dos hospitais. Sónia alcançou a entrada do prédio, acenando a algumas caras comuns do seu universo diário. Trocou algumas palavras com colegas que com ela aguardavam que as portas do elevador abrissem. Subiu até ao último andar.
Sónia era directora do serviço de neurologia, um cargo que, só por si, era um certificado da sua competência devido à raridade de alguém na sua idade alcançar aquela função. Cumprimentou todas as pessoas que, com ela, partilhavam aquele espaço de trabalho, desde outros médicos a enfermeiros e alguns doentes internados. Estava habituada aos olhares de inveja de quem queria o seu lugar, aos idolatrados que queriam ser como ela, aos de desejo de quem a via como mulher sensual que era... Criara anticorpos para todos eles. Nunca se iludiu por elogios, nem se abateu pelos comentários depreciativos. Sempre deixou bem claro o nível de relação que poderia existir com os colegas.
No instante em que se aproximava do seu gabinete, encontrou o seu colega mais chato, um homem de meia-idade com pouca noção sobre a sua postura, tal como demonstrava um fraco gosto pela forma como se arranjava. Não trabalhava no seu departamento, mas gostava de passar por lá várias vezes, sempre a lançar-lhe olhares de cão faminto a observar um naco de carne.
Sónia nunca permitia que se ultrapassassem certas barreiras. Tivera de lidar com isso em demasiadas ocasiões. Quando começou o internato em Medicina isso era muito complicado, pois recebia convites desconcertantes dos médicos mais velhos que deixavam pairar no ar os benefícios futuros de lhes agradar. Sónia nunca baixou a guarda, nem nunca se submeteu a esses caprichos. E quando as intenções se tornavam explícitas, ela respondia de forma expressiva, com todas as palavras para não deixar dúvidas, que não seguiria esse caminho. Por isso, naquela fase da sua carreira, tipos como aquele colega eram tão incómodos como uma comichão leve no queixo. E já por mais que uma vez que ela lhe dissera, cara a cara, que o que ele queria nunca iria acontecer. Mesmo assim, o tipo parecia não desistir.
— Bom dia, doutora! — cumprimentou ele, parecendo babar-se.
— Bom dia! — retribuiu ela sem olhar para ele.
— Posso pedir-lhe um favor?
Sónia encarou-lhe o olhar numa expressão neutra e reveladora de alguma impaciência.
— Diga.
— Tenho um interno a meu cargo, só que me surgiu um imprevisto... — O tom era inseguro. Havia uma espécie de névoa no seu olhar. — Queria pedir-lhe se poderia trabalhar com ele, durante a minha ausência...
Algo no instinto de Sónia a fez questionar:
— Está tudo bem consigo, doutor?
Havia preocupação genuína em Sónia. Ele percebeu e, para surpresa da médica, não se aproveitou disso.
— Um assunto pessoal... Fiz uns exames...
Calou-se.
— Percebo. — disse ela sem insistir.
— O rapaz é muito inteligente. Tem-me acompanhado na cardiologia, mas também tem demonstrado interesse na neurologia, daí que... perante isto... lembrei-me que talvez o pudesse...
— Sim, claro. — Forçou um sorriso, apesar de temer sempre que isso pudesse dar-lhe renovadas expectativas. — Ele que venha falar comigo.
— Obrigado, doutora! — agradeceu e afastou-se.
Sónia entrou no gabinete com a imagem daquela conversa em mente. Há muito que perdera qualquer simpatia por aquele colega, mas teve pena dele porque adivinhava que o seu afastamento da função se deveria a razões de saúde complicadas. A seguir, imaginou como seria o estudante que ele lhe iria enviar, ponderando se seria um miúdo tão incómodo e com tanta falta de tacto quanto o seu mentor. Suspirou, lamentando ter aceitado o pedido. Fosse como fosse, se o candidato a médico saísse da linha, ela rapidamente o recolocaria nela. Porém, todas estas dúvidas se dissiparam, ao iniciar o seu dia de trabalho, e aquela conversa com o seu colega foi-se esfumando do seu pensamento.
A meio da manhã, enquanto analisava o processo de um doente, Sónia ouviu bater à porta do seu gabinete. Estava tão concentrada na análise dos papéis que se irritou por estar a ser interrompida.
— Entre! — exclamou para a porta, cravando o olhar intenso com o intuito de recambiar aquela inoportuna quebra no seu trabalho.
Para sua surpresa, viu um rapaz bem-parecido a abrir a porta e entrar. Apesar da postura respeitosa, demonstrava ser confiante em si próprio. Deveria ser pouco mais velho que a sua filha, rosto bonito bem desenhado, alto e aparentemente forte. Sónia deu por si a imaginar como ele deveria ser musculado por baixo da roupa que a bata branca cobria. Sentiu um arrepio na espinha e uma sensação de calor que a sua memória esquecera há muito tempo.
— Sim?
— Doutora Sónia Maia?
— Sim. — confirmou, cativada pelo tom grave da voz dele. Se o ouvisse sem o ver, pensaria tratar-se de alguém muito mais velho. — Em que posso ajudá-lo?
— O meu nome é Sebastião, o doutor...
— Ah. Sim. Ele falou comigo. — atalhou ela numa mistura de vontade em o despachar com o desejo que ele não saísse dali. — Pediu para tomar conta de si...
Mal terminou a frase, sentiu-se envergonhada pela forma como falara, parecia uma avó a quem alguém pedira para tomar conta do neto.
O rosto dele também denotou algum desconforto.
Sónia esboçou um sorriso.
— Peço desculpa. Estou muito ocupada.
— Só vim apresentar-me. — interrompeu Sebastião sem receio de estar a fazê-lo perante uma superior hierárquica. Isso só deixou Sónia ainda mais cativada. — E combinar quando me quer à sua disposição.
Perturbada com as sensações que lhe percorriam o corpo, Sónia rechaçou a ideia que lhe passou em mente de como gostaria de o ter à disposição. Adoptou uma postura mais séria.
— Hoje não estava a contar consigo. Podemos combinar para amanhã? — Ele anuiu. — Então apresente-se aqui logo pela manhã para começar a trabalhar comigo.
— Com certeza, doutora. — concordou, correspondendo à postura séria. — Assim farei. Até amanhã, doutora!
Sebastião não revelou qualquer intimidação por estar na presença dela, algo raro nos estudantes de Medicina com quem se cruzara ao longo dos anos. Isso excitou-a. Recriminou-se por isso. Era uma mulher casada, amava o marido, não havia na sua cabeça lugar para pensamentos daqueles. Sorriu como se tudo não tivesse passado de uma fantasia absurda. Não podia negar que o jovem era extremamente atraente, mas não para si. Talvez se ela tivesse menos vinte anos... e fosse solteira.
3.3
O facto de o colégio ser caro era também a principal razão para ser procurado pelas famílias ricas que com isso pretendiam afastar as suas crianças das outras de um extracto social mais baixo. Claro que nem Ivo nem Sónia pensaram desta forma, querendo apenas que as raparigas tivessem a melhor educação possível, evitando as cada vez maiores lacunas do ensino público. Carla Maia estudara ali e sempre tivera notas excelentes, ao ponto de a sua entrada no curso de Direito da Universidade de Lisboa ter sido uma mera formalidade. Paula ia pelo mesmo caminho, apesar de ser uma presença mais recatada, relativamente à irmã que sempre fora muito sociável e rodeada de amigas. A mais nova das manas Maia não gostava de dar nas vistas e preferia atravessar os dias sem que dessem por ela. Para si, a amizade e companhia de Benedita eram o suficiente. Não precisava de mais ninguém.
A estudante mais mediática do colégio era Patrícia de Melo Brito Craveiro Assunção, cujo nome parecia um parágrafo do livro Guerra e Paz, e era neta do presidente da República, o professor Flávio de Melo. Patrícia, com os seus dezassete anos, tinha tudo o que uma jovem da sua idade podia ambicionar, era linda, rica e usufruía de um estatuto social invejável. Habituada a ter tudo o que desejava, ela namorava o rapaz mais bonito da escola, relacionava-se com quem lhe interessava, era apaparicada pelos docentes e desprezava tudo o resto. Tinha tanto de bonita como de arrogante e prepotente.
Devido a ser neta do presidente da República, Patrícia era sempre acompanhada por dois seguranças, dois agentes da GNR, mais precisamente da USHE, à paisana, que nunca a perdiam de vista e só alargavam o perímetro de vigilância quando ela estava no Colégio Alemão. Lá dentro, o colégio levava a sua vigilância bastante a sério, uma vez que se acontecesse algo à jovem no seu perímetro, isso poderia ter consequências nefasta para a existência da instituição.
Sem que houvesse uma explicação lógica, Patrícia sempre embirrara com Paula e, consequentemente, com Benedita. Essa antipatia era ténue, quando Carla ainda frequentava o colégio, pois Patrícia não queria animosidades com as miúdas mais velhas. Contudo, após a saída de Carla, a neta do presidente não guardou farpas para atacar Paula. Em seguimento disso, conseguira criar o boato de que Paula e Benedita eram lésbicas e juntamente com as amigas humilhava-as dizendo que lá vinha a parvinha com a namorada gorda.
Paula e Benedita enfrentaram essas situações com dificuldade, apoiando-se na forte amizade que partilhavam desde bebés. Isso acabou por isolá-las dos restantes estudantes da escola.
Na verdade, havia mais casos de rapazes e raparigas humilhados pelo grupo de Patrícia. Só que ninguém ousava enfrentar a neta do presidente. A personalidade dela não combinava nada com a do avô ou a da mãe, sendo certo que toda aquela postura fora herdada do pai.
Nessa manhã, em mais um intervalo entre aulas, Paula e Benedita conversavam alegremente, quando foram interrompidas pela voz de Patrícia:
— Lá estão as fufas. — Vinha irritada porque tinha recebido a nota de um teste e ficara muito longe das magníficas notas das outras. — Vocês devem estudar muito juntas, têm sempre notas idênticas.
— Não ligues. — sussurrou Paula a Benedita.
Patrícia virou-se para o seu grupo de amigas, todas fúteis, e concluiu:
— Metem-me nojo, só de pensar como vocês devem partilhar o tempo juntas.
— Ó parvinha! — chamou uma delas, dirigindo-se a Paula. — A tua amiga gorda não te sufoca na cama?
O grupo soltou uma enorme gargalhada, gozando com ambas.
Paula fez um esforço para não desabar em lágrimas perante a humilhação. Benedita olhou para as outras raparigas e odiou-as profundamente.
Reparando no seu olhar, Patrícia manteve o tom:
— Cuidado, amigas! A gorda está irritada. Ainda explode e suja‑nos de banhas.
Nova gargalhada geral.
A humilhação foi interrompida pelo som da campainha do colégio que ecoou para sinalizar o regresso às salas. Os muitos estudantes movimentaram-se para o interior do edifício, seguindo para as respectivas divisões. O grupo de Patrícia seguia imponente, chamando a atenção pelos gritos e risadas.
Paula e Benedita deixaram-se ficar para trás, numa passada lenta e triste, envergonhadas por mais um episódio numa lista de muitos protagonizados pela neta de Flávio de Melo.
No entanto, aquele dia traria um acontecimento marcante.
Ao fim da manhã, após a última aula antes do almoço, as amigas foram as últimas a sair da sala, como era usual acontecer. Desceram as escadas para irem almoçar à cantina, mas antes separaram-se para seguirem destinos diferentes, combinando encontrarem-se daí a alguns minutos para almoçarem. Paula aproveitou para ir à casa de banho, enquanto Benedita tinha de resolver um assunto na secretaria.
Quando estava a lavar as mãos, a mais nova das filhas dos Maia foi surpreendida por Patrícia que entrou no WC sem saber que esta lá estava.
— Olha, olha! — exclamou Patrícia como se falasse com uma terceira pessoa. — Está aqui a parvinha.
Paula não ligou e tentou ignorá-la. Porém, a outra continuou:
— Estás sozinha? A tua namorada não veio contigo?
Paula limpou as mãos sem responder. Isso pareceu irritar Patrícia que vociferou:
— Estou a falar contigo, fufa!
Paula sentiu o corpo a tremer. Por mais que se recusasse a assumir, tinha medo da outra.
— Não… não quero… falar contigo. — gaguejou.
Patrícia puxou-a pelo ombro e voltou-a para si, obrigando-a a encará-la e fulminando-a com o olhar.
— Se eu falo contigo, tu falas comigo! — ordenou Patrícia. Tinham a mesma idade, mas a neta de Flávio de Melo revelava-se mais madura. — És tão estúpida, criatura. Metes-me nojo! Sabes porque é que não gosto de ti? — A tremer, Paula abanou a cabeça. — Por nada em especial, só porque gosto de embirrar contigo. És demasiado reles. — Paula estava à beira das lágrimas, mas resistiu à tentação de desabar num pranto incontrolável. Patrícia soltou um sorriso escarninho. — Gozar contigo torna o meu dia um pouco mais recompensador. Por isso, tive uma ideia! — Fez uma expressão de quem ouvia uma pergunta. — Não, não vou deixar de te gozar e à fufa da tua namorada. — Soltou uma gargalhada. — Alguém tem de combater as fufas da nossa sociedade. Que nojo que vocês são…
— Nós somos só amigas. — justificou Paula, como se isso fizesse alguma diferença.
— Pois… Devem ser, devem.
— Tenho de ir. — disse Paula, tentando afastar-se.
Patrícia agarrou-a pelo braço e continuou:
— Não queres saber a minha ideia?
Paula abanou a cabeça.
— Se calhar estou a ser injusta. — disse com nítida falsidade. — Será que beijar uma rapariga poderá ser melhor que beijar um rapaz? Já alguma vez beijaste um rapaz, criatura?
Paula enrubesceu. E isso provocou uma gargalhada divertida em Patrícia.
— Que rapaz no seu perfeito juízo te beijaria? Só mesmo um daqueles horrorosos... — Fez um esgar de nojo, lembrando-se de algum exemplo lá da escola. Tornou a sorrir. — Por exemplo, o meu namorado jamais te beijaria. Ele é lindo, não é?
Não houve resposta, apenas a tentativa de Paula em se afastar.
— Onde vais? Ainda não acabei.
— Deixa-me... deixa-me ir...
— Oh... pobrezinha. Vais chorar? — questionou Patrícia divertida em ser tão cruel.
Os olhos de Paula começaram a ficar húmidos, mas ela continuava a resistir à tentação de chorar.
Somente elas estavam naquele espaço. Paula desejava que entrasse alguma outra rapariga para que aquela cena tivesse fim. Isso não aconteceu. Para sua surpresa, a neta do presidente olhou-a nos olhos e revelou-lhe um laivo de ainda maior crueldade, a expressão de alguém que tinha prazer em humilhar.
— Onde é que eu ia? — questionou Patrícia sem esperar resposta, depositando a mão abaixo do pescoço da outra, travando a sua iniciativa de se ir embora. — Ah... Já sei. Talvez esteja a ser injusta. Se calhar é bom beijar outra rapariga. Qual é a tua opinião?
Paula encolheu os ombros e gaguejou:
— Não faço... Não faço ideia. Nunca beijei outra rapariga.
— Mentirosa! — insultou Patrícia. Havia algo de tenebroso no seu semblante, uma espécie de prazer em subjugar outro ser humano. Sem que nada o fizesse esperar, a sua mão desceu e acariciou um dos seios de Paula sobre a camisa do uniforme. — Gostas? — Paula estava petrificada e não conseguiu reagir, nem proferir uma sílaba. — Que foi? Não te agrado? Só a tua namorada te pode tocar nas mamas?
Numa reacção impulsionada pelo terror, Paula tentou libertar-se da outra e afastar-se. Patrícia tornou a agarrá-la e tentou beijá-la.
Aquilo aconteceu entre os lavatórios e as cabines privadas. Patrícia era suficientemente madura e esperta para saber que a outra não seria lésbica. Agarrou a colega pelos ombros e forçou o beijo como se isso fosse uma arma para a ferir. Paula tentou furtar-se à investida dos lábios dela na sua boca, mas Patrícia era mais forte. Houve uma reacção de nojo da imobilizada ao toque sorridente dos lábios da dominadora. Só que algo inesperado aconteceu.
O beijo que não pretendia ser mais que uma agressão, uma invasão de intimidade, uma forma nova de humilhação, resultou num beijo saboreado. Tanto Patrícia como Paula foram surpreendidas pela sensação agradável dos lábios da outra. Paula quase nem reagiu, limitando-se a corresponder a um beijo doce, um par de lábios a saborear os seus... Nunca beijara ninguém e sentiu que aquilo era algo maravilhoso, esquecendo temporariamente quem a estava a beijar e como isso poderia ser considerado contranatura. Por seu lado, Patrícia foi tão surpreendida pelas sensações que se lhe despertaram no corpo que a beijou como se estivesse a beijar o namorado, com o mesmo prazer e paixão, sem se aperceber que as suas mãos haviam largado os ombros da sua vítima para lhe acariciar os seios com ternura.
Subitamente, Patrícia pareceu acordar de um sonho... ou seria um pesadelo? Afastou-se, empurrando Paula contra a parede, magoando-a com o impacto inesperado. Fulminou-a com o olhar, visivelmente perturbada, como se a outra fosse a culpada daquilo ter acontecido.
— Puta! Fufa de merda! — insultou Patrícia. Esbofeteou-a com violência, quase fazendo-a cair. — Não te atrevas a voltar a aproximar-te de mim!
E com aquelas palavras, fugiu do WC.
Paula levou a mão ao rosto, acariciando a face vermelha e dizendo para ninguém:
— Podes ficar descansada.
Contudo, não evitou um sorriso. Não pelo beijo, mas por ter visto como a outra ficara alterada com o acontecimento. Recompôs-se e saiu do WC cruzando-se com outras raparigas que entraram a conversar animadas. Caminhou pelo corredor sem conseguir esquecer o beijo. Nunca se sentira minimamente atraída por raparigas. Na verdade, nem por rapazes. Porém, aquele beijo... Ainda sentia o sabor da boca de Patrícia na sua língua. Voltou a sorrir, quase aparvalhada.
Benedita surgiu no corredor, vinda da secretaria.
— Não imaginas quem estava lá. O stor de educação física. — Benedita tinha uma paixoneta pelo professor de educação física. Reparou no rosto de Paula. — Que se passa? Aconteceu alguma coisa?
A amiga encolheu os ombros.
— Cruzei-me com a Patrícia na casa de banho. — informou sem dar grande importância ao facto.
— E?
— O costume. — respondeu, tornando a encolher os ombros.
— Essa gaja é uma puta. Que cabra! Não te fez nada de mal...
— Não! — afirmou Paula sem segurar um sorriso. — Desta vez, acho que ficou mais perturbada que eu.
A frase deixou Benedita intrigada.
— Como assim?
— Nada de especial. Esquece.
Nesse momento, Patrícia apareceu no corredor acompanhada pelas amigas. Seguiam todas na direcção da cantina do colégio para irem almoçar.
Paula receou a eventualidade de qualquer atitude que pudesse vir da neta do presidente. Chegou a equacionar a possibilidade de a outra a tentar humilhar, partilhando com todos o que tinha acontecido entre elas no WC. Talvez lhe gritasse se gostara do beijo, a voltasse a ofender com insultos... Por estranho que isso lhe parecesse, não se importava que todos soubessem que se tinham beijado na boca.
Benedita também esperava insultos, como era costume, mas estranhou a expressão no rosto da amiga. Conhecia-a desde que nascera, Paula não tinha segredos para si e era fácil detectar qualquer reacção diferente. A juntar a isso, viu uma Patrícia passar com um olhar raivoso cravado na amiga, mas sem dizer uma palavra que fosse. Logo que o grupo passou por elas, Benedita encarou Paula e questionou:
— Que aconteceu na casa de banho, entre vocês?
— Não sei... Acho que... Sei lá...
— Estás a esconder-me alguma coisa.
— Que achas que te estou a esconder? Cruzámo-nos, ela insultou-me, eu empurrei-a...
— Tu empurraste-a???
— Foi sem intenção, queria fugir dali. — mentiu.
— E ela?
— Acho que isso a surpreendeu... — continuou a mentir. — E eu aproveitei para sair dali.
Benedita assentiu, grata por a estúpida da Patrícia não ter tido qualquer outra reacção que pudesse ter magoado a sua amiga.
3.4
Ivo estava aborrecido com aquele dia, para não dizer que estava mesmo irritado. Tinha diversos assuntos para tratar e as entrevistas às candidatas a substituir Clotilde privavam-no de tempo precioso. Durante a manhã, tivera duas dessas reuniões.
A primeira fora com uma mulher com um currículo impressionante, secretariara directores de uma multinacional e trazia consigo cartas de recomendação assinadas pelos antigos patrões. Curiosamente, não quis falar sobre as causas da sua saída dessa empresa, o que era estranho e deixava dúvidas no ar que não abonavam a seu favor. Para além disso, denotava uma postura de superioridade e tinha uma simpatia débil e protocolar. Ivo imaginou-se a ter alguém assim no seu dia a dia e colocou-a de lado após a entrevista.
A segunda candidata era mais nova, uma recém-licenciada à procura do primeiro emprego, ou seja, alguém que estaria ali a prazo, o que não era o ideal para Ivo, pois pretendia contratar alguém eficiente que pudesse ocupar o cargo por muitos anos e não uma pessoa a trabalhar diariamente com um olho no aparecimento de outra oportunidade noutro lugar. A jovem era muito simpática e dava ares de ser divertida, quando perdia um pouco a noção donde estava e lhe saía uma qualquer piada, o que lhe provocava logo de seguida uma expressão envergonhada e lamentava a falta de formalidade. Ivo agradecera-lhe a sua vinda ali e despediu-se com a frase comum de "depois alguém a contactará para informar se foi escolhida ou não". Se não aparecesse nada melhor, seria contratada.
Clotilde regressou do almoço. Antes de usufruir da sua pausa para a refeição, a secretária trouxera umas sandes a Ivo que queria aproveitar aqueles minutos para resolver alguns pendentes. Ela entrou no gabinete com o seu sorriso habitual e bem-humorada.
— Tem corrido bem, doutor?
Ivo revirou os olhos e fez uma expressão de tédio.
— Não vou encontrar ninguém à sua altura, Clotilde.
— Não diga isso, doutor.
— Se lhe duplicar o ordenado, pode continuar a trabalhar comigo até eu me reformar? — questionou ele em tom de brincadeira.
Clotilde tornou a sorrir e abanou a cabeça, não como uma recusa, mas sim num gesto falsamente recriminador pela proposta.
— O que achou das candidatas?
— Risque a primeira. Talvez a segunda, não sei...
— Ainda tem mais uma, agora à tarde. — lembrou, procurando algo nos seus apontamentos. — Vem às 15 horas.
— Tenho vontade de anular essa entrevista, Clotilde. Tenho tanto para fazer... Escolhemos a segunda e pronto.
— Até pode escolher a segunda, mas não seria correcto anular a oportunidade de alguém que já contactámos para vir.
— Sim Clotilde, tem razão.
— E não me parece que esteja totalmente convencido com a segunda.
Ivo anuiu e completou:
— Quero é despachar isto.
— Vou deixá-lo trabalhar, doutor. Quando ela chegar, eu aviso-o.
Clotilde saiu do gabinete e deixou Ivo sozinho entregue ao trabalho.
Olhou para o relógio, tinha cerca de hora e meia até ter de interromper tudo para aturar mais uma candidata. Ia a pegar numa pasta com a proposta contratual para instalação de redes num parque empresarial em Oeiras, quando viu as folhas com os currículos que Clotilde lhe entregara de manhã. Pegou no da primeira candidata e atirou-o para o cesto do lixo. O da segunda já não lhe fazia falta e também o atirou para o cesto. Ficou a olhar para o da terceira candidata, curiosamente o que tinha menos folhas, apenas uma para ser mais preciso. Constatou que não perdera tempo a olhar para eles, espreitando apenas para cada um no momento em que recebia a respectiva titular. O terceiro currículo era de uma jovem com vinte e cinco anos que, ao contrário das duas licenciadas anteriores, só tinha o décimo segundo ano. Porém, fizera um curso de secretariado. A experiência profissional era composta por empregos de ocasião em lojas e vinha de um estágio num escritório onde não fora efectivada na função. Ivo olhou para a foto dela, um rectângulo de três por quatro centímetros que mostrava o rosto de uma rapariga de cabelo muito curto que parecia ter sido tirada numa daquelas máquinas de fotos dos centros comerciais ou estações de metropolitano, que ficam prontas num minuto, e depois fora fotocopiada para o currículo. Não tinha maquilhagem, a expressão sorridente denotava cansaço e tinha borbulhas no rosto. Ivo suspirou, lamentando não ter mantido a sua decisão de anular aquela última entrevista. Sem perder mais tempo, atirou a folha para o lado e embrenhou-se em coisas mais prementes a tratar.
Nem deu pelo tempo passar e foi surpreendido com o passar das horas, quando Clotilde bateu à porta assim que ele findara um telefonema.
— Doutor! A candidata chegou.
Ele fez uma expressão agastada e respondeu:
— Mande-a entrar.
Clotilde fez sinal a alguém que aguardava e uma mulher surgiu na entrada do gabinete. Ivo não a viu, preocupado em tomar umas notas referentes ao último telefonema que não queria esquecer. A porta fechou‑se e os passos abafados avançaram na direcção da sua mesa.
Quando Ivo levantou o olhar, foi surpreendido pelo que viu. Na sua frente estava uma mulher elegante de cabelo comprido liso num tom negro asa de corvo e com uma franja cortada a direito sobre as sobrancelhas a cobrir a testa. Os olhos eram castanhos e expressivos, o nariz pequeno ligeiramente empinado e a boca de lábios finos pintada num tom rosa-claro. O rosto não tinha uma borbulha que fosse. Vestia um casaco estilo blazer formal em azul-escuro sobre uma camisola branca de malha justa com decote em V, que acentuava o seu peito, e uma saia da cor do casaco com a bainha acima dos joelhos. As pernas eram esguias e calçava sapatos de salto alto. Resumindo, quase nem parecia a rapariga da foto no currículo.
Ela parou no lado oposto da mesa e estendeu-lhe uma mão nervosa.
— Anabela, doutor...
— Ivo. — completou, apertando-lhe a mão com delicadeza. — Doutor Ivo Maia. — Apontou uma das cadeiras. — Sente-se.
Ela virou-se de costas para ele, procurando a cadeira apontada. Ivo não conseguiu evitar um olhar para o rabo curvilíneo. Anabela girou elegante sobre os saltos altos e sentou-se, cruzando as pernas e revelando as coxas sedutoras. Ivo deteve-se por uns instantes naquele par de pernas esguias. Porém, disfarçou e sentou-se na sua cadeira, lamentando que o seu campo de visão só lhe permitisse vê-la da cintura para cima. Ficou a observá-la como se esperasse que ela dissesse algo, analisando toda aquela surpreendente beleza. Se fosse pela imagem, estava contratada.
Anabela revelou-se desconfortável, aguardando que ele dissesse algo. Ivo tomou consciência que lhe cabia a si comandar aquela reunião.
— Anabela, correcto? — Ela anuiu. — Vive em Lisboa?
— Sim...
— Estive a ver o seu currículo. Não tem muita experiência... — largou Ivo, lançando-lhe uma expressão que pretendia um argumento.
— Não me tem sido fácil arranjar emprego. Tenho trabalhado em lojas de roupa... Há dois anos, decidi fazer um curso de secretariado para procurar um emprego melhor. Fiz um estágio num escritório.
— Só tem o décimo segundo...
Não o fizera com essa intenção, mas Ivo lançava as questões como quem atira razões para lhe mostrar que não se adequava à função.
— No anúncio não colocavam como condição ter um curso superior. — rebateu ela, algo insegura. Ivo não fazia ideia, nunca vira o anúncio de emprego. — Espero sinceramente que isso não me exclua.
Ivo notou uma expressão genuína de receio perante a hipótese de se ver afastada da possibilidade de conseguir o lugar.
— Não, não... — negou ele, mantendo o ar sério. — Não será por isso que a escolheremos ou não. — Falava sem conseguir perceber porque estava a ser tão agreste com ela. — Mas, confesso que as outras candidatas têm currículos mais impressionantes. — Uma névoa triste ensombrou o belo rosto de Anabela. Ivo percebeu e decidiu atenuar as coisas. — O que não significa que estejam em vantagem em relação a si. — Ela sorriu. — Quero falar com as candidatas, antes de escolher. — mentiu. — Por isso, a escolha é baseada num conjunto de várias condições... — que nem ele sabia quais eram. Esboçou um sorriso frio. — Fale-me um pouco de si.
Anabela sabia que muito do que ele queria saber já estava no currículo. Mesmo assim, respondeu:
— Chamo-me Anabela, tenho vinte e cinco anos, vivo em Lisboa e estou desempregada. — Encarou-o com uma expressão de vulnerabilidade. — Desempregada e a precisar desesperadamente de conseguir emprego.
Ivo não esperava aquela sinceridade. Sentia alguma empatia com ela, gostava de ter alguém assim perto de si todos os dias no escritório. Porém, receou que isso fosse perigoso.
— Tem filhos?
Anabela abanou a cabeça com sensualidade e sorriu.
— Não. Não tenho filhos, nem sou casada. Ah... E também não tenho namorado. Por isso, estou totalmente disponível para me dedicar à função.
Houve algo naquelas palavras que deixou Ivo desconfortável. Não quis correr o risco de interpretar mal o que ouvira. Aliás, começou a temer correr qualquer tipo de risco com ela e nas consequências que isso poderia trazer para a sua vida... pessoal.
— Vive sozinha? — foi a questão que lhe saiu.
— Sim. Também não tenho pais para cuidar e que possam implicar ausências forçadas do emprego.
Ela parecia ter a lição bem estudada para conseguir o emprego.
— Vejo que se preparou bem para esta entrevista. Mas, não quero que fique com a ideia de que a pessoa contratada vá ser uma escrava.
— Sei que não, doutor Maia. Só quero demonstrar que estou muito empenhada em conseguir o emprego que está a oferecer.
— Porque está desempregada e desesperada. — contrapôs ele, arrependendo-se de imediato por ser tão rude. — Peço desculpa, não queria dizer isto desta forma.
Anabela encolheu os ombros e fez um sorriso triste.
— Não deixa de ser verdade.
Ivo decidiu usar um tom mais leve, algo mais paternalista. Não queria ser ele a excluí-la da função, pois sentir-se-ia mal por o fazer a alguém que precisava daquele emprego. Preferiu pintar um cenário exageradamente mau para que fosse ela a declinar a proposta de emprego.
— Aquilo que procuro é uma secretária empenhada e dedicada. — começou ele. — A Clotilde, a senhora que a recebeu quando chegou, é minha secretária há mais de dez anos. — Fez um gesto como se afastasse um mosquito. — Noto que muitas pessoas pensam que ser secretária é chegar aqui às nove da manhã, atender telefonemas e sair às seis da tarde. Acredite que não é. Trabalhar para mim é muito mais exigente que isso. Para além de ter de ser muito competente, tem de ser organizada, disponível... O horário é quase secundário, pode exigir muitas vezes que chegue mais cedo e saia mais tarde. — Isso nunca aconteceu em dez anos de secretariado de Clotilde. — Posso até ter de a incomodar num fim de semana ou num feriado. — Sentiu-se confiante que ela iria recusar. — Pode achar que tem toda a disponibilidade agora, mas... Imagine que daqui a algum tempo casa... — Anabela soltou uma gargalhada rouca, terrivelmente sensual. — Não é descabido que isso venha a suceder.
Anabela recostou-se na cadeira, encolhendo os ombros e empinando o peito como se fosse um gesto inconsciente. Ivo reparou na cova parcial entre os seus seios que o tecido não escondia. Ela notou o olhar, fazendo de conta que não vira.
— Agradeço a sua sinceridade, doutor Maia. E peço-lhe que acredite também na minha. — Encarou-lhe o rosto atento com um semblante sério e sedutor. — Estou de facto desesperada para arranjar um emprego. As contas não param e têm de ser pagas. Gostava que fosse este. Não sei porquê, acho que nos íamos dar bem.
Foi a vez de Ivo soltar uma gargalhada que não era mais que um reflexo nervoso por se sentir a pisar terrenos perigosos. Sabia que ela estava a tentar usar a sedução para o convencer e sentia que poderia não estar imune a ela.
— Admito que a Anabela me parece alguém que luta por aquilo que quer. Porém... não estará a exagerar nessa sua certeza?
— Poderá confirmar que sim ou não, se me contratar. Caso contrário, nunca iremos saber. — ripostou com mais à-vontade. Lançou‑lhe um sorriso cativante e irradiou simpatia. — Quero que saiba que estarei totalmente disponível para si, se me contratar para sua secretária. — Ivo não evitou uma expressão surpresa, que tentou disfarçar, ao imaginar até que ponto ela poderia estar disponível. Anabela adivinhou-lhe os pensamentos. — Quando digo que estarei totalmente disponível, quero dizer que estarei mesmo disponível para tudo o que precisar. — Olhou-o de tal forma que Ivo se sentiu trespassado. — Tudo mesmo! Tudo aquilo que quiser de mim.
— Bom... — interrompeu ele, engasgando-se. — Penso que podemos finalizar a entrevista. — Forçou um sorriso. — A tarde já vai a meio e ainda tenho muitos assuntos a tratar.
Levantou-se e foi copiado por ela que, em pé, ajeitou a bainha da saia para baixo. Estendeu-lhe a mão em despedida, dizendo:
— Depois alguém a contactará para informar se foi escolhida ou não.
Anabela apertou a mão dele sem tirar os olhos dos seus.
— Quando escolher, pense em mim com carinho. — pediu num tom meloso.
— A escolha nada tem a ver com carinho, mas sim com competência. — retorquiu com seriedade, procurando rechaçar mais uma investida, temendo não estar à altura de lhe resistir. — Obrigado por ter vindo.
— Obrigada pelo seu tempo, doutor Maia.
Enquanto atravessava o gabinete, Ivo ficou a olhar para o seu corpo esculpido numa silhueta carregada de curvas. Mesmo de costas, Anabela sabia que ele estava a olhar para si e exagerou a forma como maneou as ancas.
Novamente sozinho no seu local de trabalho, a imagem de Anabela permaneceu na sua mente mais algum tempo. Teria ele percebido bem? Teria ela se oferecido a ele ou tudo não passara da imaginação de alguém que está há demasiado tempo sem sexo? Sorriu sozinho ao questionar o que pensaria Sónia se ele contratasse Anabela. Perdeu o sorriso, quando na sua memória reapareceu a noite anterior e a recusa simpática da esposa em fazerem amor.
Os seus pensamentos foram interrompidos por pancadas leves na porta. Clotilde entrou logo a seguir com uma pasta grossa que depositou na mesa do patrão.
— Então? O que achou desta?
Ivo encolheu os ombros.
— Quem é que a Clotilde contrataria?
A secretária ponderou a resposta.
— Não falei muito com elas. Pelo currículo contratava a primeira.
Ivo sorriu.
— Foi a primeira que descartei.
— Não me cabe a mim escolher, doutor. A escolhida irá trabalhar consigo.
— Sim, tem razão.
— Seja como for, tem de contratar alguém a tempo de eu lhe dar algumas "luzes" antes de me reformar. E já não falta muito tempo.
— Sim... Nem me lembre essa tragédia.
Ambos sorriram.
— Tenho a certeza que encontrará a melhor solução.
E com aquelas palavras, Clotilde regressou ao seu posto.
Ivo pegou na pasta que Clotilde lhe deixara, mas a sua atenção regressou à folha com o parco currículo de Anabela. Pegou novamente no papel e olhou para a foto que não lhe fazia a mínima justiça. Curiosamente, não tinha a mesma vontade de despachar a folha para o caixote do lixo, relutante em desfazer-se da foto dela. Estava a ser parvo. Para que queria ele a foto se a poderia ter ali diariamente? Amarfanhou o papel e fez pontaria ao cesto. Deixa-te disso, és um homem casado, amas a tua mulher e ela ama-te a ti. Uma voz maliciosa ecoou no seu cérebro "ama-te, mas raramente faz amor contigo".
Clotilde despertou-o das suas questões, ligando-lhe pelo intercomunicador do telefone fixo para lhe passar uma chamada importante. O telefonema de trabalho durou cerca de uma hora. Quando desligou, o rosto de Anabela tornou a materializar-se no seu pensamento. Que raio, era um homem de meia-idade e estava com tantas hesitações para contratar uma secretária? Não podia ser. Pensou nas três, mas as concorrentes de Anabela eram meras figuras desfocadas perante o esplendor daquela figura feminina sensual e curvilínea. Olhou para o relógio. Eram quase seis da tarde. Nesse instante, a secretária abriu a porta e espreitou, informando:
— Se não precisar de mais nada, vou andando.
— Até amanhã, Clotilde.
A porta estava quase a fechar-se, quando Ivo chamou:
— Clotilde!
— Sim, doutor?!
— Já tomei uma decisão. Não vamos perder tempo. Peço-lhe que amanhã contacte a terceira candidata.
— A Anabela? — questionou Clotilde com surpresa, numa forma que Ivo interpretou como recriminatório e errado.
— Sim, a Anabela. Ela que comece assim que possível. Combine a melhor forma... — Sorriu-lhe, cansado. — A Clotilde sabe como fazer as coisas, não preciso de lhe dizer.
— Fique descansado, doutor. Amanhã trato disso. Até amanhã!
— Até amanhã, Clotilde!
Sentado na sua cadeira de costas altas, Ivo virou-se para os vidros amplos. Lá fora, a noite caía devagar e o rio adquiria uma tonalidade espelhada. Ponderou a sua decisão e questionou em voz alta:
— Que estás tu a fazer, Ivo?
3.5
Naquela manhã, Paula foi sozinha para a escola. Benedita teve de faltar às aulas para acompanhar a avó a uma consulta no centro de saúde. Claro que Genoveva não queria que a neta se ausentasse da escola, mas Benedita estava preocupada e não abdicou de o fazer. Era raro qualquer uma delas faltar às aulas, daí que se poderiam contar pelos dedos de uma mão, as vezes em que as amigas de infância eram vistas pelo colégio sozinhas.
Tinham passado alguns dias, desde aquele encontro, conflito, tentativa de humilhação... Enfim, o que quer que se possa chamar ao momento em que Paula e Patrícia se cruzaram no WC feminino. Fora surreal para ambas. Paula não saberia dizer em que é que isso poderia ter afectado a neta do presidente, a única conclusão a que chegara fora que o bullying diário de que era vítima, por parte desta, dera lugar a um desprezo gélido. Patrícia passou a ignorar completamente a existência da filha mais nova dos Maia. Por vezes, uma das suas amigas ainda atirava uns insultos a Paula e Benedita, mas perante o desinteresse da líder do grupo, também elas optaram por as ignorar.
Ter de ir sozinha para a escola deixava Paula apreensiva, sentia‑se mais vulnerável sem o apoio da amiga de todos os momentos. Não tinha problemas em percorrer o caminho de casa ao colégio, solitária, mas assim que passava o portão da escola, o medo tomava conta dela, um medo que não diminuiu com a ausência de insultos dos últimos dias. Para piorar a situação, viu Patrícia no corredor acompanhada pelo namorado.
Ao ver Paula, Patrícia atirou-lhe um sorriso escarninho e um olhar meio diabólico que fez a primeira estremecer. Enquanto passava por eles, viu a miúda arrogante e prepotente abraçar o namorado e beijá‑lo com profundidade, como se lhe dissesse "Vês? Não sou lésbica como tu". Mas, Paula não era lésbica... Ou seria? Aquele beijo do outro dia levantara-lhe inúmeras dúvidas. Sem perder tempo, Paula ignorou-os e prosseguiu para a sala de aula.
Patrícia não tornou a incomodá-la ao logo dos intervalos da manhã. Pelo menos, até ao último...
Foi no intervalo entre a aula de Português e a aula de Alemão. Paula saiu para o corredor e ia apanhar ar ao pátio. Estava distraída a mexer no telemóvel, a enviar uma mensagem a Benedita para saber se tinha corrido tudo bem com a consulta da avó. Nesse instante, Patrícia aproximou-se de si, assustando-a e sussurrou-lhe:
— Vem atrás de mim, lésbica! — Depois, para disfarçar, gritou. — Acorda, fufa! Estás a sonhar com a tua namorada gorda? — E afastou‑se a rir.
A mensagem foi enviada para a amiga, quase sem olhar para o ecrã e mantendo a observação na cabra que insistia em humilhá-la. Apesar de tudo, tinha medo. E receosa das atitudes da outra, caminhou atenta à direcção dela.
Patrícia seguiu imponente até ao WC. Não olhou uma única vez para trás, certa de que a sua vítima predilecta não se atreveria a desobedecer-lhe. Quando entrou, outra rapariga também entrou, cruzando-se com algumas que saiam. Paula entrou no WC feminino sem saber muito bem como agir. Lá dentro, Patrícia entrava num dos cubículos privados, enquanto a outra colega lavava as mãos indiferente a quem ali estava. A melhor coisa que Paula se lembrou de fazer foi também lavar as mãos. A rapariga foi-se embora pouco depois. Ouviu-se uma descarga do autoclismo.
A porta onde Patrícia entrara abriu-se e a miúda arrogante saiu com uma expressão séria e altiva. Olhou em volta. Baixou-se e espreitou por baixo das portas das cabines privadas.
— Acho que estamos sozinhas. — disse Paula com a necessidade de dizer algo.
Patrícia aproximou-se dela.
— Que aconteceu à tua namorada? Zangaram-se?
— Foi com a avó a uma consulta. — explicou Paula, sentindo-se coagida a confessar-lhe tudo.
— Oh! — exclamou a outra com surpresa exagerada. — Não me digas que a engravidaste e a avó foi levá-la para fazer um aborto?! — Deu uma gargalhada sonora, rindo-se da sua própria piada.
Foi a única a rir. Paula olhou-a com medo, mas deixara de gaguejar na sua presença. E o facto de estarem novamente ali, as duas, sozinhas, trouxe-lhe à memória a forma como Patrícia ficara perturbada da última vez e isso deu-lhe alguma coragem.
— Quero falar contigo! — disse num tom rude e sério. — Temos de esclarecer umas coisas. O que aconteceu no outro dia... Não fiques a pensar que sou fufa, como tu.
— Não sou fufa. — ripostou Paula. — E foste tu que me beijaste.
— Se contas isso a alguém, parto-te esse focinho todo, minha cabra.
— Podes ficar descansada.
— Calculo que tu e a gorda já se tenham rido à grande à custa disso.
— Não lhe contei. — informou a outra com uma tranquilidade que surpreendeu ambas.
— E é bom que não te atrevas a contar. Senão...
— Podes parar de me ameaçar? — questionou Paula. Não o fez como súplica, mas sim como se a chamasse à atenção. — Podes ficar descansada.
Nesse instante, ouviram-se vozes de outras raparigas que vinham a entrar. Patrícia não queria ser vista a falar com ela e essa probabilidade fê-la agir por impulso, agarrando a outra pelo colarinho da camisa da farda do colégio e puxando-a consigo para o interior de uma das cabinas privadas com sanita. Escondidas no interior, Patrícia colocou um dedo sobre o seu nariz, ordenando com uma expressão furiosa que Paula não fizesse barulho.
O grupo entrou. Pelas vozes, deveriam ser umas três ou quatro, tagarelando alegremente sobre futilidades.
No interior da cabina privada, Paula e Patrícia aguardavam, frente a frente, que as outras fossem embora. O espaço era tão apertado para duas pessoas que os peitos de ambas quase se tocavam. Patrícia tinha o olhar cravado na sua vítima de bullying preferida e os ouvidos atentos ao exterior. Paula conseguia sentir-lhe a respiração ofegante, uma espécie de receio... ou seria excitação?
Houve movimento, duas portas bateram, significando que duas delas tinham ido usar as sanitas. O som delas a aliviarem-se ecoou à volta das jovens escondidas. Paula suspirou, mas Patrícia pensou que ela ia falar e colocou a mão sobre a sua boca. Havia algo no olhar de Patrícia que Paula não conseguia descodificar.
As vozes começaram a afastar-se e o WC tornou a ficar em silêncio. Patrícia tirou a mão da boca da outra que permanecia imóvel e completamente submissa. Não disse nada, ficando só a olhá-la com uma expressão séria e altiva. Depois, sem que nada o fizesse prever, beijou-a na boca. Não foi um beijo violento como da outra vez, foi um beijo excitado e terno. Paula correspondeu, sentindo as mãos da sua inimiga puxarem as dela para as arrumar nas suas nádegas. Paula odiava tanto Patrícia quanto adorava beijá-la. Permitiu que a outra fizesse tudo o que quisesse. Sem que o beijo fosse interrompido, quando deu por si, Paula tinha a camisa da farda aberta e as mãos de Patrícia a retirarem os seus seios singelos da protecção do sutiã. Não abriu os olhos, o beijo era mais saboroso se não tivesse distracções. Surpresa, sentiu os dedos da outra a apertar-lhe os mamilos. Ao início, Patrícia parecera querer ser carinhosa, mas foi um momento efémero, optando por os apertar com força, cravando as unhas na pele, beliscando-os e puxando-os com nítida intenção de magoar. Doía, mas sabia tão bem a Paula aquela dor... Tudo, enquanto se beijavam excitadas.
O momento foi interrompido pelo toque de entrada.
— Foda-se! — vociferou Patrícia, pondo termo aquilo. Paula não sabia o que dizer e ficou a olhá-la aparvalhada. — Não fiques a olhar para mim, estúpida! Veste-te!
Ambas as raparigas se arranjaram apressadas.
— Se contas a alguém...
— Não conto.
— Nem à gorda!
— Nem à Benedita.
Já com as fardas compostas, Patrícia abriu a porta e certificou-se que não havia ninguém por ali. Tornou a olhar para Paula. Beijou-a com ferocidade e abandonou-a com desprezo.
3.6
— Estás bem?
A pergunta foi feita por Benedita que estranhara algo na amiga, quando a viu nesse dia. Paula anuiu de forma despreocupada.
— Porquê?
— Não sei... Pareces ausente. Aconteceu alguma coisa na escola?
A imagem de Patrícia surgiu no pensamento de Paula, a cena daquela manhã, a neta do presidente a puxá-la contra sua vontade, violentando-a na sua intimidade, escondidas no interior de uma das cabinas do WC feminino da escola. Porém, ao recordar o momento, a única sensação que lhe percorria o corpo era uma excitação contida. E a lembrança da velhaca que insistia em humilhá-la, só lhe despontava o desejo de a voltar a beijar.
— O normal... — retorquiu distante. — A Patrícia...
— Logo vi. Bem que tenho achado que essa cabra tem andado muito calma. Bastou apanhar uma de nós sozinhas...
— Não foi nada de especial. Já sabes como ela é, embirra com tudo.
Nesse instante, Genoveva entrou na sala onde as duas jovens estudavam. A mesa tinha os livros da escola e os cadernos abertos. A avó de Benedita segurava um tabuleiro com o lanche que preparara para elas. Era uma senhora septuagenária a quem a idade já pesava, tornando os movimentos mais arrastados que noutros tempos. Mesmo assim, os seus traços faciais deixavam adivinhar que na juventude teria sido uma quebra-corações, algo que poderia ser confirmado em algumas fotos de Genoveva, espalhadas pela casa, em que se via uma rapariga ou uma mulher semelhante às actrizes de Hollywood dos anos trinta e quarenta do século passado.
— Espero que não tenhas perdido matéria importante por minha causa, Benedita.
— Não. — respondeu Paula no lugar da amiga. — Foi um dia calmo. E estou a passar tudo à Bene.
Genoveva sorriu.
As amigas ficaram mais algum tempo no silêncio da sala, enquanto Genoveva dedicava algum tempo livre a tratar das plantas. Paula transmitiu a Benedita a matéria que tinha sido leccionada na sua ausência, mostrando-lhe os cadernos para que a amiga copiasse o conteúdo para os seus. Eram duas excelentes alunas com notas suficientemente altas para seguirem o curso que quisessem.
Benedita escrevia concentrada. Porém, Paula tinha a cabeça distante dali e absorvida pela recordação do sabor da língua da sua arqui-inimiga da escola.
Quando a sessão de estudo terminou, a noite já caíra lá fora. As amigas arrumaram tudo o que tinham sobre a mesa e combinaram ver um filme no Netflix, após o jantar, na televisão do quarto de Paula.
— Não tens mesmo nada para me contar? — questionou Benedita junto da porta aberta do apartamento. — Continuo a achar-te muito pensativa.
— Já sabes como sou, Bene. — retorquiu a amiga a sorrir. — Sempre a pensar na vida.
— Não aconteceu mesmo nada de grave com aquela... — baixou a voz para a avó não ouvir. — ...com aquela puta?
— Não, Bene.
Despediram-se e Paula atravessou o pátio de pedra das escadas, entre a casa da amiga e a sua. Meteu a chave na fechadura ao mesmo tempo que ouvia a outra porta fechar. Abriu-a e entrou.
Em casa, ouviu passos seguros vindos dos quartos. A sair do seu, apareceu a irmã.
— Olá Paulinha!
— Olá, mana!
Carla Maia era mais carismática e madura que a irmã. Isso fazia com que parecesse muito mais velha que somente os quatro anos que as separavam. Carla adorava a maninha mais nova que sempre protegera. E Paula amava a mana mais velha que idolatrava. Cumprimentaram-se com um beijo.
— Vais sair? — questionou Paula, olhando para a forma produzida como a irmã saíra do quarto.
Carla vestia uma camisola de gola alta em lã grená e uma saia curta preta. Calçava botas de salto alto que lhe chegavam aos joelhos. O cabelo louro estava penteado com um risco ao meio, caindo comprido para ambos os lados, meio encaracolado. Herdara toda a beleza da mãe, mantinha alguma jovialidade da adolescência visível em Paula e irradiava uma maturidade sensual.
— O Zé Carlos vem buscar-me daqui a pouco.
Ouviu-se uma chave raspar na fechadura da porta do apartamento. As irmãs voltaram-se para o átrio de entrada. A porta abriu-se e por ela entrou Sónia. Cumprimentaram a mãe e Paula afastou‑se para o seu quarto.
— Vais sair? — perguntou Sónia, largando a mala no cabide e denotando um ar cansado. Carla anuiu. A mãe fez uma expressão séria. — Dormes em casa?
— Não sei...
— Carla...
Carla percebeu que viria dali um qualquer aviso, uma repreensão.
— Mãe...
— Carla, cada vez passas mais noites fora de casa. — lembrou‑lhe, fazendo isso parecer errado. — Sei que és uma rapariga responsável, mas... não me parece correcto que durmas...
— Vá lá, mãe. Não vamos agora falar sobre... eu e o Zé Carlos...
— Espero que tu e ele... quando... tomem os cuidados devidos.
Carla nunca tivera problemas em falar com a mãe acerca de qualquer assunto, inclusive de sexualidade. Sónia sempre se preocupara em que as filhas fossem raparigas bem informadas e seguras de que poderiam recorrer a ela para qualquer eventualidade. Nem Carla, nem Paula tinham qualquer relutância em falar com a mãe sobre o que quer que fosse. Mesmo assim, havia pormenores que não partilhavam com a mãe.
— Sim, não te preocupes.
— Usam preservativo?
— Mãe... por favor.
— Nunca é demais lembrar.
O telemóvel de Carla tocou, era o sinal do namorado a indicar que estava a chegar. Parar um automóvel na Avenida de Roma ao fim da tarde era complicado e tentar estacionar era quase impossível. Por isso, o namorado dava-lhe um toque para o telemóvel quando estivesse perto para que ela fosse descendo.
Carla despediu-se da mãe e saiu de casa. Não, havia pormenores que ela não partilhava com a mãe. E a sua intimidade com o namorado era um desses casos. Carla não usava preservativo. E não usava pelo simples facto de que não tinha relações sexuais com o namorado. Por baixo de toda aquela pele de beleza estonteante, carisma e sensualidade escondia-se uma mulher insegura. Desceu no elevador a pensar nisso. Logo no início do namoro, ele tentara que fizessem. Confiante como era, excepto no sexo por inexperiência, colocou os pontos nos "ii", não queria perder a virgindade nos tempos mais próximos, só quando a relação estivesse suficientemente fortalecida para pensarem num compromisso sério com futuro. Ele ficou boquiaberto com a sua posição, mas para surpresa dela, que no seu íntimo receava perdê-lo por isso, José Carlos concordou em respeitar a sua castidade.
O elevador alcançou o piso térreo e Carla saiu para o pátio da escada. Sentia-se uma sortuda. O namorado era seis anos mais velho, mas aparentava uma maturidade de homem quarentão. Tratava-a como uma princesa e amava-a incondicionalmente. Nas noites em que dormiam juntos, houve momentos em que ele tentou... Ela nunca facilitou. E ele nunca insistiu mais que o aceitável para ela. Claro que o namoro entre eles não se ficava pelos beijos, muito menos nessas noites em que dormiam juntos. Carla atenuava-lhe o desejo com massagens que ele retribuía. Conheciam o corpo um do outro na totalidade. Ficou doida quando ele lhe mostrou o que uma língua poderia fazer entre as suas coxas e permitiu que ele lhe ensinasse a dar-lhe prazer da mesma forma.
O automóvel parou defronte do prédio. Carla reconheceu o Renault Clio do namorado e saiu do edifício, atravessando o passeio no seu jeito característico de caminhar com a elegância de uma manequim internacional.
José Carlos aguardou, observando-a do interior do automóvel.
Ele era estudante de Direito, o mesmo curso de Carla. Conheceram-se na Faculdade quando ele retomou os estudos. José Carlos interrompera a sua carreira de estudante para fazer serviço militar. Não fora uma imposição de ninguém, nem uma obrigatoriedade da sua condição de cidadão. Já ninguém ia à tropa contra sua vontade, algo que curiosamente o PNL pretendia alterar. Desde miúdo que adorava paradas militares, gostava de armas e chegara a ser caçador quando visitava um tio que vivia na província beirã. A hierarquia militar encantava-o, gostava do espírito de camaradagem e aquela espécie de irmandade que polvilhava os soldados. Parou o curso de Direito a meio e inscreveu-se para fazer serviço militar. Como sempre praticara actividade desportiva desde criança, passou com facilidade todos os testes físicos e tinha escolaridade para ser mais que um simples soldado ou cabo. Acabou nos Comandos a fazer formação em Lamego.
Nascido em Lisboa, vinte e sete anos antes, José Carlos era filho de um pai solteiro, cuja mãe desaparecera para parte incerta quando ele nasceu, deixando-o nos braços do progenitor. O pai criara-o com a ajuda da tia e era para José Carlos uma espécie de herói que a doença prolongada lhe levara pouco antes de ingressar no Exército. A tropa também o ajudou a atenuar a perda. Esteve cinco anos nos Comandos, deixando quase tudo para trás, inclusive a namorada na altura que recebera muito mal a pretensão dele em seguir a carreira militar, recusando-se a manter um namoro à distância. Curiosamente, manteve a amizade com o irmão dela, um puto muito mais novo que reencontrou na Universidade de Lisboa quando regressou aos estudos.
Ao fim daqueles cinco anos, José Carlos sentiu-se estagnar no Exército. Poderia tentar ascender ao posto acima de Sargento, mas aconteceram coisas que o desagradaram na vida militar, a falta de apoio do Estado, interesses obscuros de altas patentes... Quando o PNL chegou ao poder, não fosse toda a doutrina que José Carlos abominava, e talvez os tivesse apoiado, já que eram um partido político virado para os militares. Sendo assim, tomou a decisão de sair do Exército e retomou os estudos na Faculdade de Direito onde os havia deixado. E foi quando conheceu Carla Maia.
José Carlos tinha uma imagem imponente, alto e robusto com um porte físico musculado resultante dos tempos militares. Para além disso, tinha uma personalidade forte e era um líder natural. Por norma, era sempre a figura destacada em qualquer grupo que incorporasse. Deixara crescer o cabelo e a barba para mudar radicalmente a sua imagem de tropa.
O regresso à Cidade Universitária não foi fácil, uma vez que se sentia deslocado, rodeado de colegas mais novos e olhando para finalistas do seu curso já com a sua idade ou também mais novos. O seu grande amigo, nessa época, era Afonso, o irmão da sua ex-namorada, o qual reencontrara naquele regresso. Nunca haviam perdido o contacto, mas após o reencontro, a amizade simples entre ex-futuros cunhados deu lugar a uma relação de amigos muito forte e inabalável até aos dias de hoje. Uma amizade que não perdera um mínimo de importância, mesmo quando ao fim de um mês após o regresso, Carla Maia entrou na vida de José Carlos.
Ano e meio depois, ali estava ele, grato pela decisão tomada que conduzira a que a sua vida se cruzasse com a da jovem lindíssima que se aproximava do seu carro. Carla entrou sorridente, sentou-se a seu lado e debruçou-se na sua direcção para o beijar de forma profunda e intensa. Um outro carro apitou, atrás deles, talvez motivado pela inveja. José Carlos acenou um pedido de desculpa e avançou para reintegrar o trânsito na avenida.
3.7
Sexta à noite. A melhor altura para a diversão juntamente com as noites de sábado e de véspera de feriado. Contudo, Afonso não era dado a idas a discotecas, preferindo aqueles jantares semanais de amigos.
Afonso estudava Ciências Políticas e, com as suas vinte e duas primaveras, via o último ano do curso a aproximar-se e ponderava seguir uma carreira política. Revia-se no Movimento Povo Português, mas continuava a adiar o passo para uma filiação partidária. Tinha uma figura um pouco nerd, muito intelectual e usava uns óculos que não o favoreciam, quase como se tivesse aproveitado as armações de uma avó para lhe colocar lentes adaptadas a si. Não parecia ser muito forte, mais dado a esforços mentais que físicos e começava a ficar com excesso de peso.
Ele e José Carlos tinham vindo a formar um pequeno grupo de amigos, quase todos alunos universitários. Afonso quisera chamar ao grupo "Os Túnicos", como se fossem uma tuna universitária que não tinha o mínimo jeito para a música e que só se juntavam para comer, beber e passar bons momentos de confraternização. Porém, José Carlos via o grupo de forma mais séria e decidiu apelidá-los de "Corvos" por serem quase todos nascidos em Lisboa e o corvo ser um símbolo da cidade.
Tinham marcado uma mesa num restaurante perto da Doca de Santo Amaro, em Alcântara. Afonso era terrivelmente pontual e queria ser sempre o primeiro a chegar a todo lado. Era cedo e ainda havia mais empregados do que clientes naquele espaço. Uma longa mesa denunciava ser o lugar reservado para o grupo. Afonso entrou acompanhado por outra rapariga, claramente mais velha, de calças de ganga e casaco comprido com um ar informal, mas demasiado formal para um encontro de amigos. O seu rosto revelava semelhanças com Afonso.
Quando Carla chegou ao restaurante com o namorado, José Carlos disfarçou o mal-estar por encontrar a ex-namorada. Nunca mais voltaram a falar, desde a separação, excepto nas raras vezes em que a via com Afonso e se limitavam a trocar um cumprimento verbal frio. Era a primeira vez que ela comparecia a um evento dos Corvos. Afonso sabia que o amigo não gostava de a ter ali, da mesma forma que José Carlos tinha a certeza que fora ela a fazer-se convidada e compreendia que o amigo não iria impedir a irmã de vir.
Ana era um ano mais nova que o ex-namorado. No entanto, já se formara em Direito e procurava exercer num escritório no centro de Lisboa, mais precisamente na sociedade de advogados composta, entre outros, pelo genro do presidente da República. Era uma mulher bonita sem ser deslumbrante e o facto de já ser licenciada atribuía-lhe um estatuto invisível de superioridade em relação ao grupo. Para José Carlos, era a lembrança constante de onde já poderia estar se não tivesse interrompido os estudos, a juntar à animosidade que sentia por ela com a recordação da forma rude e despreocupada com que se recusara a manter o namoro.
Carla encarava a presença de Ana com indiferença, apesar de lá no fundo recear que o namorado ainda pudesse sentir algo por ela. Olhando para as duas, Ana dificilmente poderia ser uma adversária para Carla que temia que ela fosse uma concorrente no coração de José Carlos.
Afonso e José Carlos cumprimentaram-se com um abraço forte. O rosto do primeiro revelava uma espécie de pedido de desculpa pela presença da irmã. José Carlos sorriu-lhe a desvalorizar, atirando seguidamente um aceno frio a Ana que permanecia sentada no lugar que já havia escolhido na mesa. O aceno foi repetido por Carla, que a cumprimentou com o mesmo distanciamento, após dar um beijo a Afonso.
Não havia lugares marcados, mas era usual os dois amigos ocuparem as pontas para que as suas conversas abrangessem todos os presentes. Carla sentou-se no primeiro lugar à sua direita. Afonso encabeçou a ponta oposta e Ana deslocou-se para perto do irmão, pouco à-vontade.
João foi o elemento seguinte a chegar ao restaurante, um rapaz barrigudo sem deixar de ser musculoso. Penteava os caracóis pequenos de forma atabalhoada e tinha uma expressão facial enrugada que lhe dava um ar mais velho que os seus vinte e três anos. Era finalista de Engenharia Civil. Vinha acompanhado pela namorada, uma rapariga baixinha de porte forte, vestida com camisola, calças pretas e botas militares. Vânia era mais velha um ano. Cumprimentaram os presentes, sem esconder a surpresa por verem a irmã de Afonso ali. Sentaram-se a seguir a Carla.
A atenção de todos foi captada pela entrada de um jovem de pele escura. Ao ver o grupo, acenou-lhes e aproximou-se. Descendente de são‑tomenses, Manuel tinha mais um ano que Carla e era colega dela e de José Carlos no curso de Direito. Nascera em Lisboa e vivia com a família na Reboleira. Para pagar as despesas com os estudos, trabalhava como segurança numa empresa do ramo e naquela época estava a guardar a entrada do castelo da capital. Ao ver Ana presente, os seus olhos adquiriram um brilho especial, pois sempre tivera um fraquinho por ela. Ana nunca lhe ligou e manteve-se impávida, ignorando-o, quando após cumprimentar todos, ele deu sinal de lhe querer dar um beijo. Manuel sentou-se em frente a ela.
Quem viria a ocupar o lugar ao lado da irmã de Afonso foi Sancho, o estudante de arquitectura. O grupo gostava de o provocar, na brincadeira, fazendo comentários acerca da sua namorada portuense, uma arquitecta de trinta e quatro anos, mais treze que ele, que conheciam das raríssimas vezes que o viram com ela. Costumava ser Sancho a ir ao Porto encontrar-se com a arquitecta Dulce.
O elemento mais novo do grupo era Dinis que aos dezanove anos vivia o seu ano de caloiro no curso de Filosofia. Entrara para o grupo na recepção ao caloiro, após uma praxe que correu mal. Sebastião, o corvo estudante de Medicina viu-o e auxiliou-o perante a paralisia geral dos autores da praxe, assustados com o sangue que lhe escorria da cabeça. Sebastião acompanhou-o na ambulância e simpatizou logo com ele, pela forma como conversava com ideias bem vincadas, apesar de a cabeça estar toda ligada. Por isso, foi pela mão de Sebastião que Dinis ganhou o seu lugar ali.
Curiosamente, foi Sebastião quem chegou logo depois.
Poucos minutos passados, entrou um rapaz muito alto, magro e de cabelo castanho a rarear no topo. Miguel tinha a mesma idade de João e era seu colega no curso de Engenharia.
Quem também tinha problemas precoces de calvície era Pedro. Porém, este encobria isso usando sempre gorros ou bonés. Desta vez, cobria a cabeça com um gorro colorido que jamais ousou retirar durante toda a noite. Era estudante de Engenharia Informática, um autêntico rato de computadores, o assistente e reparador de qualquer problema informático que se deparasse a qualquer um dos outros. Apesar de ser um indivíduo moderno e sempre atento à novas tecnologias, Pedro era também extremamente conservador, o que se devia claramente ao facto de ser sobrinho do cardeal-patriarca de Lisboa. Era profundamente católico e praticante dos mandamentos da Igreja. Os amigos comentavam com humor, longe dos ouvidos dele, que quem mais deveria sofrer com tanta devoção religiosa deveria ser a namorada.
A namorada era uma mulata cabo-verdiana de uma beleza estonteante. Inês tinha a mesma idade de Carla e uma presença tão arrebatadora quanto ela. Quem a visse com o namorado perguntar-se-ia como conseguira Pedro conquistar Inês, uma vez que visualmente não tinham nada a ver um com o outro. Carla e Inês tinham uma relação muito próxima e eram confidentes uma da outra, daí que Carla soubesse como era exasperante para Inês que o namorado se quisesse manter virgem até ao casamento, mesmo sabendo que não era o primeiro homem na vida dela. Carla ouvia-a nesses lamentos sem nunca ter coragem de partilhar com Inês que exercia a mesma regra com José Carlos. Inês estudava Comunicação Social com o objectivo de se dedicar ao jornalismo, adorava escrever e tinha um blog que actualizava periodicamente sobre moda e beleza.
Faltavam chegar dois elementos. O grupo conversava animadamente, sendo que Ana se limitava a observar sem interesse em participar e algo incomodada com os constantes olhares de Manuel.
Não se falava de nenhum assunto particularmente relevante. E as vozes atenuaram ao verem entrar Maria, mais uma colega do curso de Direito e vice-presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Direito que era presidida por José Carlos. Maria parecia uma bibliotecária com os seus óculos de lentes grossas e o cabelo penteado para trás e preso num rabo-de-cavalo. Por norma, vestia roupas largas, camisolas largas, calças largas, tudo o que pudesse disfarçar o seu corpo, o que deixava antever alguns problemas de autoestima. Porém, não deixava de ser uma rapariga bonita. Não sorria muitas vezes, parecia sempre mal-humorada e a expressão do seu rosto era de constante apreensão, fosse com os estudos, com a associação, com o país ou com as alterações climáticas. Maria vivia com o objectivo de salvar tudo e todos, ser preocupada era uma razão de viver. Entrou acenando a todos e parando junto de José Carlos.
— Temos de falar.
— Que se passa? — questionou ele, notando uma preocupação maior que o normal nos seus olhos.
Maria sentou-se ao lado de Carla com a expressão séria cravada em José Carlos perante a curiosidade expectante dos restantes.
— Chegou uma missiva do reitor à associação. — informou ela. — Segundo ordens provenientes do ministério da Educação, todas as associações de estudantes devem ser presididas por elementos da JNL.
— O quê? — indignou-se Afonso. — Como assim? As direcções são eleitas pelos alunos, não pelo ministério.
José Carlos permaneceu calado, ponderando a notícia. Carla tinha o olhar nele, preocupada e irritada por o tentarem prejudicar.
Foi nesse momento que Fernando chegou.
Fernando era colega de Afonso e um ano mais velho que ele. Era também o outro elemento mais politicamente acérrimo a par do colega. Entrou sorridente no restaurante, mas perdeu esse sorriso ao ouvir a notícia que Maria trouxera.
— Querem pôr o cabrão do Macieira na presidência. — constatou.
Filipe Macieira era o líder da Juventude Nacionalista Lusitana e igualmente estudante na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Não era colega de ano dos corvos ali presentes, uma vez que já era finalista.
— Nem no tempo do Estado Novo o governo geria as direcções das associações de estudantes universitários. — lembrou Afonso. — Não podemos permitir isso.
— E que podemos nós fazer? — questionou Manuel. — Já lidei directamente com esses crápulas da JNL. Têm o apoio das autoridades, fazem o que querem...
— Vamos com calma. — interveio José Carlos. — Os estudantes não vão aceitar imposições dessas.
— Ao que parece, este governo faz o que quer porque tem o apoio dos teus amigos militares.
Foi a primeira vez que Ana falou para o grupo e revelou que ainda existiam coisas mal resolvidas entre ela e José Carlos.
— Há muitos militares que não gostam deste governo. — retorquiu ele sem olhar para ela, falando para todos.
— Pois, pois... — contrariou Ana com superioridade.
— O grande problema deste país é que tem um parlamento em que a oposição é uma merda. — disse Fernando, o qual não tinha simpatia por nenhum partido com acento parlamentar. Crescera numa família de ideais esquerdistas e lamentava constantemente o dia em que o BE perdera o último deputado na Assembleia da República. — Se o Bloco ainda lá estivesse...
— Era a mesma merda, Fernando. — atalhou Afonso. — Se há alguém que ainda incomoda os nacionalistas é o MPP.
— Bah... — proferiu com um gesto de desdém. — Afonso! Quando foram governo sugaram tudo ao povo.
— Não tinham outro caminho, Fernando. Tínhamos o FMI em cima a resgatar-nos. Sabes bem que a margem de manobra era nula.
— Concentremo-nos no que interessa. — alertou Maria. — Temos que pensar como enfrentar esta ordem da reitoria.
— Não têm como enfrentar. — tornou a intervir Ana. — Só resta ao Zé Carlos meter o rabinho entre as pernas e dar o lugar ao outro.
Todos a fulminaram com o olhar.
— Gostava de saber o que fazes aqui? — questionou Fernando que nunca simpatizara com a irmã de Afonso. Tinha uma óptima relação com ele, apesar de serem ideologicamente oposto na política. Mas, não suportava a advogada. — Não me lembro de fazeres parte deste grupo.
— Calma, Fernando! Também não é preciso ser desagradável. — recriminou Manuel. Sorriu para ela. — A Ana é muito bem-vinda.
Ana ignorou-o, preferindo saciar-se do semblante preocupado do ex-namorado. Já Afonso não foi capaz de dizer nada, sentindo-se culpado por a ter trazido.
Subitamente, o silêncio caiu sobre o grupo.
A sala do restaurante estava inserida num antigo armazém da doca, tal como acontecia com muitos estabelecimentos noutros pavilhões geminados com aquele. O interior era decorado com modernidade, traços simples e mobiliário minimalista. Já não havia mesas vazias, a luz em tons de amarelo iluminava o espaço e, lá fora, a noite escura trazia cada vez mais pessoas a passear por ali.
— O teu patrão não é genro do presidente? — questionou Afonso, olhando para a irmã. — Podias dar-lhe uma palavrinha para o presidente intervir.
— Estás doido? — indignou-se Ana. — Achas que ia incomodar o meu chefe com um assunto que não me diz respeito.
— O Zé Carlos é nosso amigo.
— Não é preciso, Ana. — recusou José Carlos, falando pela primeira vez para ela. — Mal está um homem, quando preciso do auxílio dos seus inimigos.
— Não sou tua inimiga, Zé. — contrariou ofendida.
— Mas pareces. — insistiu Carla, revelando um sorriso travesso por ver o namorado a renegá-la.
Ana encolheu os ombros, pouco disposta a entabular qualquer conversa com Carla.
O jantar foi servido e o assunto arrumado a um canto. Não valeria de nada sofrer por antecipação. Naquele momento nada poderiam fazer e José Carlos preferia aguardar que o reitor o chamasse para falar com ele.
Enquanto comiam, os temas foram-se dividindo pelos presentes. José Carlos sossegara Maria e juntamente com Carla conversavam sobre outras questões da faculdade. Afonso e Fernando esgrimiam argumentos políticos dissimuladamente, uma vez que poderia haver algum espião do SIALE por perto. A conversa contava com a mediação de Manuel que não tirava os olhos de Ana.
Sancho saiu da mesa para ir fumar um cigarro à rua. Sebastião foi com ele, mesmo não sendo fumador. Ficaram no passeio da doca entre os altos vidros da fachada do restaurante e a esplanada que começava a encher.
— Como estão as coisas com a arquitecta? — perguntou Sebastião.
— Vão bem. — respondeu Sancho, acendendo o cigarro com o isqueiro, protegendo a chama com a mão em concha. — Quero ver se vou ao Porto daqui a umas semanas.
— Há quanto tempo não se vêem?
— Cerca de um mês.
Sebastião assobiou e, sorridente, alertou:
— Cuidado, rapaz. Tanto tempo a seco, não a engravides quando lá chegares.
— Achas?
Ambos soltaram uma gargalhada divertida.
— Vou ser sincero contigo, Sancho. Achava estranho teres uma namorada tão mais velha...
— Vá lá, Sebastião. Até parece que namoro uma idosa.
— Não é isso. Mas, são treze anos de diferença.
— Que nem se notam, quando estamos juntos.
Sebastião concordou, recordando-se da única vez em que a vira com o amigo. Se não soubesse, diria que ela tinha mais três ou quatro anos que Sancho.
— Percebo-te. — suspirou.
Sancho notou que havia algo dissimulado naquele suspiro.
— Que se passa?
— Acho que estou a ser apanhado por essa cena de gostar de mulheres mais velhas.
— Conta! — exigiu o amigo, fazendo uma expressão curiosa e divertida por ouvir aquilo.
— Fui colocado a trabalhar com uma médica em Santa Maria.
— Não estavas com um cardiologista?
— Sim, mas o tipo ficou de baixa devido a um cancro.
— Lamento.
— Lamenta por ele, não por mim. — corrigiu Sebastião. — O tipo é um chato. E agora... Só queria que a visses. É médica em Neurologia. Deve ter uns cinquenta anos, mas é um mulherão.
— Ui... Uma MILF? Ao teu lado, eu namoro uma colegial.
Sebastião não partilhou da piada.
— Não brinques. E não há nada entre nós. Para além disso, é casada.
— E...? — Sancho foi encarado por um olhar aborrecido. — Quem é ela? — questionou, atenuando a reacção do amigo. — Em Santa Maria? Se calhar a mãe da Carla conhece-a.
Só nesse momento é que Sebastião fez a ligação: Carla era Maia, filha de uma médica de Santa Maria. Ele lembrou-se do apelido da neurologista: Maia, doutora Sónia Maia. Estaria a apaixonar-se pela médica que era também mãe da sua amiga? Ficou sem reacção e boquiaberto.
— Estás bem?
— Sim, sim... — afirmou, meio atrapalhado. — Não deve conhecer, ela é de... Neurologia, se não estou em erro.
— E tu disseste que a tua médica era neurologista.
— Disse? Enganei-me. — confessou com um sorriso forçado. — É cardiologista, como o outro.
Sancho desvalorizou a questão e sugeriu que voltassem para dentro.
O jantar prosseguiu normalmente sem mais nenhum assunto que causasse preocupações. Afonso pediu a conta e Pedro entreteve-se a fazer os cálculos de quanto cabia a cada um em partes iguais.
No final, quando o grupo caminhava vagarosamente para a saída, começaram a despedir-se entre si.
Ana visualizava a cena, consciente que não fora uma presença que deixasse saudades. E pela forma como se comportara, principalmente a reacender a animosidade com o ex-namorado, isso serviria de desculpa para que Afonso se recusasse a trazê-la da próxima vez que se quisesse fazer convidada para se martirizar com a visão de José Carlos com a actual namorada. Sabia que dificilmente voltariam a ficar juntos, mas isso não a impedia de querer prejudicar aquele namoro.
Enquanto se embrenhava nos seus pensamentos, viu Manuel a olhar para ela. O raio do preto não parava de a observar. Sabia o que ele queria... De súbito, encontrou o seu acesso para continuar a estar presente naquelas reuniões.
Os elementos foram trocando despedidas e separando-se, seguindo cada um o seu caminho. Ninguém se preocupou em despedir‑se de Ana. E até o irmão, Afonso, se afastou dela para que nenhum dos amigos se visse obrigado a falar com ela, em consideração a ele.
Manuel foi o único que se mostrou interessado em despedir-se de Ana. Aproximou-se, meio inseguro, sem saber muito bem o que dizer. Ela sorriu-lhe, encorajando-o.
— Bom... parece que está na hora de cada um ir à sua vida. — disse ele, parando na sua frente.
— Não necessariamente. — A resposta surpreendeu Manuel. — Queres ir beber um copo? Só nós dois?
Quererá o cego ver? Quererá o paralítico andar? Manuel não hesitou e concordou de imediato.
Afonso aproximou-se, quando já todos os outros se afastavam.
— Vamos, Ana?
A irmã olhou para Manuel e respondeu:
— Vai sem mim. O teu amigo convidou-me para beber um copo.
Afonso olhou para Manuel, incrédulo, não pelo amigo, mas pela irmã que sabia não morrer de simpatia pelo outro.
— Não te preocupes, Afonso. — disse ele. — Sabes que sou respeitador.
Numa expressão de quem não lhe interessava, apertou a mão ao amigo e disse:
— Divirtam-se!
4.1
Rafael Guerra vivia num hotel do Porto, um hotel do qual ele era dono. Os negócios obrigavam-no a andar sempre em viagem ou então com pouco tempo para se preocupar com coisas como a governação de uma casa. E, ao invés de ter um apartamento desarrumado ou contratar uma empregada doméstica, preferia ter para si uma das suites do hotel e usar o serviço de quartos para tudo o que precisasse.
Num ambiente de fim de tarde chuvoso, Rafael parou o seu Mercedes à porta do edifício, onde um funcionário do hotel o aguardava para se encarregar de estacionar o veículo no parque. Rafael fazia tudo de forma automática, o dia fora cansativo e desde que regressara de Londres que tinha dificuldade em se concentrar no trabalho. As manhãs custavam a avançar e as tardes pareciam não ter fim, mesmo que em todo esse tempo estivesse ocupado em reuniões, telefonemas, análises, relatórios e mais umas quantas chatices. Nunca se sentira assim, ansioso com um formigueiro no estômago e um rosto que não lhe saía da cabeça, o rosto de Clara.
Na despedida, Clara pedira-lhe que aguardasse o seu telefonema. Iria para a casa da família encarar o velório do pai e enfrentar o funeral. Seriam dias difíceis, desgastantes, arrasadores para uma filha que amava o pai com todo o seu ser. Rafael respeitou o seu pedido. Só que já tinha decorrido quase uma semana e Clara não voltara a dar notícias. E para um coração apaixonado, esse tempo eram duas eternidades mais IVA.
Envergando um dos seus tradicionais Armani e segurando a pasta na mão esquerda, caminhou pelo átrio do hotel até à recepção. O hotel era a sua morada fiscal, daí que tivesse sempre a preocupação de saber se fora recepcionada alguma correspondência para si, mesmo sabendo que tudo o que chegasse seria colocado na pequena mesa da sala da sua luxuosa suite no último andar. Prosseguiu para os elevadores, sentindo todo o cansaço pesar-lhe nos ombros. Partilhou o transporte com dois estrangeiros de vestes formais que falavam alemão, uma das várias línguas que Rafael falava fluentemente, mas que evitou demonstrar que percebia o que diziam.
O seu quarto estava num ambiente de penumbra, arrumado como se fosse um cenário de demonstração. Uma funcionária teria vindo ao entardecer para acender um candeeiro para que ele não entrasse na mais profunda escuridão. Trancou a porta, largou a pasta sobre o sofá e despiu o casaco. Alargou o nó da gravata, enquanto caminhava até ao móvel com várias garrafas. Serviu-se de um whisky escocês de dezoito anos. Bebeu um pouco e retornou ao sofá, olhando para a mesinha com vários envelopes em cima. Sentou-se e pegou no telemóvel, olhando para o ecrã com a secreta esperança de não ter ouvido uma chamada de Clara. A expressão de desilusão repetiu-se no seu rosto. Colocou o aparelho sobre a mesinha e pegou nos envelopes. Quase nada que merecesse a sua atenção, à excepção de um sobrescrito com o endereço de um escritório de advogados de Bragança que ele jamais ouvira falar. Abriu-o com curiosidade. Seria algo relacionado com os negócios, certamente. Só esperava que não fosse nenhum aborrecimento jurídico que o obrigasse a incomodar os seus amigos no poder, mesmo que esses amigos tivessem mais uma dívida para com ele, depois da viagem que fizera pela Europa e América.
Começou a ler a carta remetida pelo advogado, uma convocatória para a leitura de um testamento no qual ele estava nomeado. Que raio! Não conhecia o advogado, não estava a ver quem o poderia nomear para herdeiro. Seria alguém a quem tivesse feito algum favor em tempos? Um falecido militante do PNL a oferecer-lhe parte da herança como agradecimento? Havia muitos militantes do partido que eram também mecenas e investiam muito dinheiro nas actividades partidárias, já para não falar noutros "mecenas" mais obscuros que aproveitavam o partido para lavagem de dinheiro.
A leitura do testamento seria daí a dois dias numa propriedade perto de Miranda do Douro. Na carta estavam indicadas a morada, coordenadas GPS e algumas dicas do caminho. Porém, o que interessava a Rafael eram os contactos do advogado, queria ser esclarecido acerca da identidade do falecido.
Na manhã seguinte, no seu escritório, Rafael telefonou para o advogado. Foi atendido por uma voz feminina que transferiu a chamada para o patrão.
— Recebi uma carta sua acerca de um testamento. — começou Rafael num tom que não era antipático, mas que denotava superioridade. — Quero saber de quem se trata. Honestamente, não conheço ninguém em Miranda do Douro e muito menos que me fizesse seu herdeiro.
Houve uma hesitação no outro lado da linha. A voz com uma pronúncia nortenha carregada tropeçou nas palavras, procurando uma forma ligeira de dizer:
— A pessoa em causa é o seu pai.
A revelação atingiu Rafael como um soco no estômago. Ao contrário do que era habitual em si, teve dificuldade em reagir.
— Deve ser algum engano. Eu não tenho, nem nunca tive pai.
— Peço desculpa, doutor Guerra, mas todos nós tivemos um pai e uma mãe.
— O senhor está enganado. Eu nunca tive pai. Alguém deve ter feito alguma confusão. — insistiu Rafael com indignação. — E é lamentável que me incomodem com um assunto destes.
— Por favor, doutor Guerra! — pediu o advogado. — Escute-me um pouco. — Rafael concedeu, sentindo uma raiva profunda, um ódio que diariamente se esforçava por manter controlado, a fúria contra o homem de rosto abstracto que engravidara e abandonara a mãe. — O senhor Basílio nunca o reconheceu como seu filho. Sem querer fazer juízos de valor acerca de ninguém, compreendo a sua posição. Seja como for, nos seus últimos tempos de vida, não sei se por arrependimento ou o que quer que seja, o senhor Basílio decidiu englobá-lo no seu testamento. Veja isto como o pagamento de uma dívida...
— Pagamento de uma dívida? — interrompeu Rafael, irritado. — Acha que a minha mãe era alguma prostituta?
— Por favor, doutor Guerra! Não era isso que eu queria dizer.
— Onde estava esse merdas, quando a minha mãe se multiplicava em esforços para arranjar dinheiro para sobrevivermos? Onde andava esse crápula nos nove meses que uma mulher honesta e traída carregava um filho dele no ventre? Onde estava esse estupor, quando ela definhou com a doença e partiu?
— O senhor tem todo o direito em sentir-se assim. — retomou o advogado. — Lamento que me tenha interpretado mal. Jamais pretendia ofender a memória da sua falecida mãe. Não me referia a uma dívida para com ela, mas para consigo.
— Eu não quero nada desse cabrão.
— Por favor, doutor Guerra! O senhor Basílio já não está entre nós...
— E isso faz dele menos filho da puta? — O advogado não soube o que responder. — Acha que me interessa o dinheiro dele? Não o tivemos quando mais precisámos. Acha que agora que sou rico é que vou submeter-me à vontade dele? Só espero que o "senhor Basílio" esteja no Inferno com um espeto no cu a rodar sobre chamas com uma maçã enfiada na boca.
O advogado desistiu de argumentar. Não lhe cabia o papel de defesa do falecido perante um filho abandonado. Optou por desviar a conversa:
— A leitura do testamento será feita na propriedade da família, amanhã à tarde. Seria importante que estivesse presente. Mais não fosse, uma vez que não quer nada do senhor Basílio, para renunciar à sua parte e não deixar o assunto pendente para os restantes herdeiros.
— Estou preocupadíssimo com isso. — retorquiu com ironia crispada.
— Há herdeiros que nem eram nascidos quando a sua mãe conheceu o senhor Basílio, nem sabiam da sua existência. — explicou o advogado. — O doutor Guerra parece-me uma pessoa de bem. Não acredito que não se importe com danos colaterais sobre inocentes.
A mente de Rafael ponderou a hipótese de o estupor do pai ter mais filhos, se calhar menores, pobres inocentes que não tinham culpa do sucedido, mesmo que tivessem beneficiado de direitos que lhe haviam sido negados. Teve vontade de perguntar se tinha irmãos, mas isso seria concordar que o falecido era seu pai, algo a que se recusava. Acabou por terminar, informando:
— Vou pensar. Se tiver disponibilidade e vontade, talvez marque presença na leitura.
— Agradeço-lhe antecipadamente, doutor Guerra.
O telefonema terminou logo a seguir e estragou-lhe o resto dia.
A cabeça de Rafael era um turbilhão de emoções, Clara não lhe ligara e dava sinais de ter esquecido tudo o que haviam partilhado naquela noite em Londres. "Duvido que me ames tanto quanto eu te amo a ti!", dissera-lhe ela em despedida. Uma merda! Ele sim, amava-a. Já ela... Depois, o surgimento do seu pai... do gajo que engravidara a mãe. Para quê aquilo agora? Sim, sempre tivera curiosidade em saber quem era o cabrão. Só que isso sempre foi visto por si como uma traição à memória da mãe. Se ela quisesse que ele soubesse quem era o filho da puta, tê-lo-ia partilhado consigo em vida. Mesmo assim, se não comparecesse, isso talvez fosse visto pela família do tal Basílio como sinal de fraqueza, vergonha dele, vergonha por não passar de um bastardo. E Rafael sabia bem como aquele tipo de famílias pomposas olhavam para os bastardos... Não, não iria desviar-se, não fugiria àquilo. Iria estar presente e usaria de toda a opulência do seu dinheiro para atirar à cara daquela gente. E no fim, abdicaria da sua parte, esfregando-lhes na cara o desprezo pelo dinheiro que tivesse sido tocado pelas mãos do homem execrável que abandonara a sua mãe.
Como gostaria de ter Clara ali consigo para conversar, para partilhar com ela o que lhe estava a acontecer. Ainda ponderou a hipótese de lhe telefonar, usar aquilo como pretexto, dizer "olha, não imaginas o que me aconteceu". Porém, não seria correcto ou, pelo menos, não era assim que ele funcionava. Ela pedira tempo, ele iria dar-lhe esse tempo, mesmo que o tempo que ela necessitasse parecesse ser eterno.
Decidido em relação ao que iria fazer, cancelou todos os compromissos do dia agendado para a leitura do testamento.
A manhã do fatídico dia estava cinzenta com um manto de nuvens escuras a pairar sobre a cidade do Porto. Rafael não foi ao seu escritório e resolveu alguns assuntos urgentes por telefone ou email a partir do seu hotel. Não saiu do quarto nem para almoçar, ordenando ao serviço de quartos que lhe trouxesse a refeição.
Apesar de se recriminar por o fazer, continuava a olhar constantemente para o ecrã do telemóvel na esperança de lhe ter escapado uma chamada ou uma mensagem de Clara. A sua paixão permanecia silenciosa e sem o contactar.
A seguir ao almoço, escolheu o seu fato mais caro para vestir nessa tarde. Ligou para a recepção e mandou que alguém tivesse o seu carro pronto na entrada do hotel. E desta vez não queria o Mercedes, iria no Porsche.
O trânsito na Invicta estava horrível. Olhou para o relógio. Em condições normais estaria no destino em três horas. Porém, com aquele trânsito, iria chegar atrasado. Não queria saber. Que esperassem.
As nuvens adensavam-se, mas a chuva não marcou presença. Logo que se apanhou na A4, carregou a fundo no acelerador, incitando todos os cavalos do motor a mostrar serviço, deslizando pelo asfalto a mais de 200 km/h. E nem se preocupava com radares de velocidade ou patrulhas das autoridades em carros descaracterizados. Aliás, verdade seja dita, ele não abrandaria nem que visse um veículo da GNR perfeitamente identificado. Se fosse mandado parar e multado, bastaria um telefonema para Raimundo Antunes e a multa iria desvanecer-se em pó. Se fosse só apanhado por um radar, quando vissem a quem pertencia o carro, só um agente pouco inteligente compraria esse problema.
Ao sair para o IC5, teve de abrandar por questões de segurança, uma vez que a estrada não lhe dava as mesmas garantias da anterior. Mesmo assim, continuou a uma velocidade bem acima da lei. Só parou perto de Mogadouro para voltar a olhar para a carta do advogado e inserir os dados no GPS do Porsche.
Conforme foi prosseguindo na estrada, a velocidade foi diminuindo. A voz com laivos de sensualidade que brotava no interior do automóvel ia conduzindo Rafael pela região transmontana, perto do rio Douro e já com Espanha logo ali. O trajecto não chegava a Miranda do Douro, desviava para sul e prosseguia por uma estrada regional ladeada de árvores. Depois, o caminho transformava-se numa encosta em escada atravessada pelo asfalto e múltiplos níveis de ambos os lados cravejados de vinhas. A seguir, tornava a embrenhar-se num bosque que obscurecia um dia já de si enevoado.
— O destino está a cem metros. — disse a GPS.
Rafael abrandou até parar defronte de um enorme portão aberto. Em ambos os lados, duas grandes pedras em granito com o nome da propriedade escavada na superfície, “Herdade dos Jordões”. Acelerou ligeiramente, passando vagarosamente a entrada. Olhou em redor, esperando ser interpelado por um qualquer segurança da propriedade. Não viu ninguém. Pelos vistos, por ali não tinham essas preocupações.
Sentiu um nervoso miudinho, uma ansiedade que se misturava com a sua raiva por tudo aquilo. Iria confrontar-se com a família do homem que desprezara a sua existência.
Após os portões, uma linha recta de piso empedrado fazia a ligação a uma praça circular ladeada de arbustos e uma escadaria de acesso a um palacete de arquitectura do século XIX. Rafael cumpriu os cerca de cinquenta metros lentamente e estacionou defronte da entrada.
O edifício tinha dois pisos acima da escadaria, janelas altas e um telhado de declive acentuado com várias águas-furtadas. Na fachada frontal, apenas uma entrada com duas portas largas entreabertas. Todo o edifício tinha uma cor escura, uma espécie de bordeaux ou algo do género. O telhado era preto, as janelas verdes com portadas da mesma cor. Pelas portas castanhas, saiu uma senhora que deveria ter uns setenta anos, muito bem arranjada, elegante sem ar de riqueza e com rosto sério, olhando para o visitante que chegara e aguardando-o no cimo da escadaria.
Adoptando o seu semblante mais fechado, a postura mais altiva e um ar prepotente, Rafael saiu do carro. Propositadamente, não retirou os óculos de lentes escuras. Apertou o casaco, levando mais tempo que o necessário para começar a subir as escadas.
— Boa tarde! — cumprimentou com frieza, ao chegar ao topo.
A senhora esboçou um sorriso e questionou:
— Senhor doutor Rafael Guerra? — Ele anuiu. — Boa tarde. O meu nome é Maria das Dores. Sou a governanta da casa. — Apontou para as portas de carvalho em tons escuros. — Queira acompanhar-me, por favor.
Ao atravessar a entrada, viu no átrio uma outra senhora da mesma idade, muito parecida com a primeira, que também o aguardava.
— É a minha irmã, Dolores Maria. — apresentou Maria das Dores. — Tal como eu, também é governanta da casa.
— Boa tarde, senhor doutor! — cumprimentou a segunda com reverência.
Rafael proferiu um cumprimento quase inaudível e observou o interior, desde as paredes, o chão e os altos tectos. Ao fundo, uma escada larga de acesso ao piso superior.
Dolores disse:
— Por favor, doutor Guerra. Por aqui.
Rafael acompanhou a senhora que trajava de indumentária idêntica à irmã, a qual o conduziu para um salão amplo com uma mesa comprida em madeira e umas dez cadeiras à volta.
— Peço-lhe que aguarde um pouco. A menina gostaria de falar consigo, antes da leitura. — informou Dolores.
A menina? Que menina? Rafael não perguntou e viu Dolores fechar a porta à sua saída. Quem seria a menina? Barafustou consigo. Não lhe faltava mais nada que ter de encarar uma irmã pirralha a chateá‑lo. Ou pior, uma peste imatura a achar que ele tinha a idade dela e a querer brincar com bonecas. Ou ainda pior, uma criança snob a insurgir‑se por ter um irmão bastardo que vinha abocanhar-lhe metade da fortuna.
Impaciente, parou junto de uma das janelas. Observou o requinte do interior, a decoração, as peças seculares, os quadros na parede. Curiosamente, não havia fotos ou pinturas de qualquer membro da família. Pensara encontrar ali uma robusta pintura do crápula em pose de altivez, esquecendo que algures no Porto uma mãe e um filho sobreviviam sem a sua ajuda. Olhou para o exterior. As vinhas perdiam‑se de vista. Seria tudo deles? Seria tudo aquilo a... Como se chamava o sítio? Ah... a Herdade dos Jordões.
A concentração nos terrenos lá fora distraiu-o. Nem se apercebeu que a porta se abrira e alguém entrara. Só foi despertado para a realidade quando uma voz, que reconheceu, disse:
— Tive esperança que não fosses tu.
4.2
Foi como se o chão lhe tivesse fugido debaixo dos pés. A surpresa atingira-o de tal forma que não teve reacção. Meio aparvalhado, olhou para a mulher na sua frente, uma jovem de cabelos claros a emoldurar um rosto choroso, envergando um vestido negro austero e comprido até aos pés.
— Clara??? Que fazes aqui? — conseguiu perguntar.
Ela pareceu não o ouvir.
— Quando vi o teu nome, tive esperança de que não fosses tu. Devem existir mais homens de nome Rafael Guerra neste mundo, repeti para mim.
Uma voz na sua cabeça parecia soprar a Rafael aquilo que estava a acontecer. Contudo, talvez como defesa, ele demonstrava recusar as evidências.
— Não percebo, Clara. Que fazes aqui?
Clara abanou a cabeça e tapou o rosto com as mãos. Soluçou. Rafael teve vontade de a abraçar, mas o seu inconsciente impediu-o de se mover.
— Lembras-te do meu apelido? — questionou, lavada em lágrimas. — Quando chegámos ao hotel... em Londres? — Ele procurou na sua memória sem que ela lhe desse tempo para responder. — Jordão. Clara Jordão. — Olhou em redor, depois novamente para ele. — Estás na casa da família Jordão. O meu pai... — Tornou a soluçar. — O meu pai é... era Basílio Jordão.
O homem que engravidara a mãe de Rafael, o homem do rosto abstracto na vida dele. O pai de Clara e o pai de Rafael eram a mesma pessoa...
Desta feita, os joelhos fraquejaram. Rafael teve de se apoiar numa das cadeiras para não tombar. Não queria acreditar no que estava a acontecer. Não podia ser verdade, a mulher por quem estava apaixonado, a mulher com quem tivera uma maravilhosa noite de amor num hotel de Londres, a mulher que o completava era sua irmã. Aquilo assemelhou-se a uma daquelas telenovelas medíocres que passavam nas televisões. Puxou a cadeira onde se apoiara e sentou-se, desolado. Subitamente, as memórias em que se via a fazer amor com ela tornaram-se algo contranatura. Ela era sua irmã... Por instantes, não a conseguiu encarar.
Clara também não conseguiu dizer mais nada. A soluçar, puxou a cadeira no lado oposto da mesa e sentou-se.
Ambos ficaram com o olhar no chão, invadidos por uma súbita vergonha em se olharem. Por uma fracção de tempo, a ideia estúpida de que ela já saberia daquilo quando se conheceram passou-lhe pela mente. Afastou tamanha idiotice, mas a confusão em que se viu envolvido não evitou a questão:
— Quando é que soubeste?
Clara virou o rosto para ele. Havia indignação no seu olhar.
— Não estás a achar que eu já sabia quando nós...
— Claro que não. — refutou Rafael de imediato, ganhando coragem para tornar a olhar para o seu rosto.
Ela desviou o olhar. Um muro invisível crescera entre eles.
— Quando cheguei. O meu pai... O meu pai deixara-me uma carta. — relatou num tom arrastado que ia tropeçando em soluços de lamento. — Confessava que tinha um filho bast... um filho de outra mulher com quem tivera um caso amoroso, antes de conhecer a minha mãe. Não deu muitos pormenores acerca do que acontecera ou como acontecera. Também não explicou porque mantivera esse segredo todo este tempo. Informava que sentia a obrigação de te reconhecer como seu filho, antes de morrer e que esperava duas coisas de mim, que te aceitasse como irmão e que aceitasse a sua decisão de te incluir no testamento. — Fez uma pausa. Limpou as lágrimas com um lenço de papel e assoou-se com a elegância que já demonstrara antes. — Foi um choque para mim. Sempre fui filha única. Agora, perdia o meu pai e ganhava um irmão? Ainda para mais, um irmão mais velho. Quase que parecia que esse desconhecido se destinava a suprimir a morte do meu... do nosso pai.
— Não, Clara! — interrompeu Rafael. — Não digas "nosso" pai. Ele não é meu pai.
— Rafael...
— Clara! Escuta. — pediu ele, encarando o seu semblante magoado. Esforçou-se para falar com ternura, o que lhe era difícil sendo o assunto o tipo que abandonara a sua mãe consigo no ventre. — Não quero pronunciar-me acerca do teu pai. Já o fiz antes sem me passar pela cabeça que o estava a fazer. A minha opinião não mudou. Mas, gosto demasiado de ti para não falar sobre isso, sabendo que te vou magoar.
Clara não insistiu e continuou o relato:
— O meu mundo desmoronou-se como se tivesse vivido todo este tempo numa mentira. Adoro o meu pai, sempre foi para mim a melhor pessoa do universo. E agora descubro que tinha um passado escondido? Mesmo assim, perdoei-lhe a mentira ou a omissão da tua existência. Só que...
— Só que?
— Quando falei com o advogado, ele disse-me o nome do meu irmão. Rafael Guerra, anunciou ele com a naturalidade de quem dizia esse ou outro qualquer nome. O teu rosto veio-me imediatamente à cabeça. Sorri como uma parva, pensando que coincidência tão estúpida. Mas, a dúvida permaneceu. Repeti mil vezes para mim que não era possível, o destino não poderia ser assim tão cruel...
— Mas foi... — suspirou Rafael. — Desde que nos despedimos no aeroporto que tenho aguardado o teu telefonema. Não consigo parar de pensar em ti. Tenho as tuas últimas palavras gravadas a fogo na minha cabeça, "duvido que me ames tanto..."
— Pára! — exigiu, impedindo-o de continuar. — Não repitas isso!
— Porquê?
— Porque perdeu o significado. — respondeu segura e intransigente. — Só quero esquecer o que aconteceu em Londres.
Rafael ficou perplexo com o que ouvia.
— Lamento, Clara. Lamento, mas não partilho da tua vontade. Jamais esquecerei o que aconteceu.
Clara levantou-se e adoptou uma postura altiva.
— Acredita que, se dependesse de mim, nada daquilo teria acontecido. Foi um momento de fraqueza. — Sorriu ferida. — Deixei-me levar por estar fragilizada.
Rafael também se levantou, indignado, magoado. Ia protestar, quando se ouviu bater à porta.
— Entre! — permitiu Clara.
Dolores entrou, algo surpresa ao notar o ambiente tenso entre dois adultos que se tinham acabado de conhecer.
— O advogado chegou, menina.
— Ele que entre. — indicou Clara, tornando a sentar-se na mesma cadeira.
O advogado era um homem de idade avançada, já era o advogado da família há décadas. Tinha uma figura redonda, o cabelo a rarear e um rosto que vacilava entre a simpatia e a altivez de quem julga que ser um homem de leis é superior a outro qualquer ser. Caminhou de forma pesada até Clara, olhando de soslaio para o homem em pé que calculou ser o tal bastardo.
— Boa tarde, menina Clara! — cumprimentou, estendendo-lhe a mão. — Mais uma vez, lamento a sua perda. O senhor Basílio era um bom homem. É mais uma estrela no céu, certamente. Que os anjos o tenham em santa paz e descanso.
— Obrigada, doutor. — agradeceu ela.
Rafael encaixou as palavras dele como um insulto para si, pois o homem sabia bem qual a opinião que nutria pelo indivíduo. Esse "bom homem" abandonara a sua mãe grávida.
O advogado contornou a mesa e dirigiu-se a Rafael, estendendo‑lhe a mão:
— Calculo que seja o doutor Rafael Guerra.
Rafael deixou-o com a mão no ar.
— Se não se importa, ande lá com isto. — exigiu rudemente. Olhou para Clara. — Tenho assuntos para tratar e preciso de voltar ao Porto o quanto antes.
— Claro, claro. — concordou o outro, ultrajado por Rafael recusar o seu cumprimento. — Vamos lá, então. — Puxou a cadeira que encabeçava a mesa e olhou para trás. — Dolores, por favor, pode chamar a sua irmã?
A senhora estranhou o pedido, mas apressou-se a fazer o que lhe fora pedido.
Em jeito de justificação, o advogado olhou para Clara e disse:
— O seu pai também as englobou no testamento.
— Não me surpreende. — retorquiu ela com um sorriso sincero.
As duas senhoras entraram na sala e colocaram-se atrás da filha do falecido patrão, mantendo-se de pé. Clara olhou para elas e não abdicou de que se sentassem a seu lado. Rafael assistia a tudo com uma raiva contida a consumir-lhe o espírito.
O advogado iniciou a leitura do testamento. Rafael nem o ouvia, atraído para o rosto de Clara que ouvia atentamente o homem. Sentiu-se magoado, desprezado como já não acontecia desde a sua juventude aquando da última vez em que uma paixão de adolescente esbatera no desinteresse da miúda. Aquele ambiente fazia-lhe mal, queria sair dali, abandonar aquela casa, afastar-se de Clara, sem olhar para trás. O homem prosseguia o monólogo. Rafael observou as senhoras que, com a filha do falecido, mantinham uma atenção cerrada na voz do advogado. Teriam elas sabido da sua existência antes? Será que testemunharam o romance do patrão com a mãe de Rafael?
A voz do leitor do documento regressou aos seus ouvidos:
— ...assim, é minha vontade que Dolores Maria e Maria das Dores recebam cem mil euros cada como símbolo da minha eterna gratidão e por tudo o que sempre deram a esta família.
As duas senhoras ficaram boquiabertas. Clara virou-se para elas, sorriu a ambas.
A impaciência aumentava em Rafael. Queria que o velho despachasse a leitura, queria sair dali. Porém, ao revelar aquela vontade do defunto, o advogado parou a leitura, dando tempo para que elas assimilassem a informação. Entretanto, o som da chuva a bater nos vidros captou os olhares de todos. Rafael bufou irritado, uma vez que a chuva só complicaria a sua viagem de regresso.
— Continue lá com isso! — exigiu ele num tom ríspido.
O advogado retomou a leitura. O documento referia a confissão de Basílio Jordão de que tinha um filho ilegítimo e que era de toda a justiça que o reconhecesse e o englobasse no testamento.
— Agora é que o gajo se lembrou do que é justo? — interrompeu Rafael.
— Por favor, Rafael... — pediu Clara.
O advogado finalizou a leitura da última vontade do seu cliente:
— Quero que todo o meu património fique para os meus dois filhos, Clara Jordão e Rafael Guerra, dividido em parcelas de 75% e 25% respectivamente.
Houve um silêncio pesado na sala.
Rafael não queria a herança. Queria que o defunto, a sua fortuna e todos os que ali estavam fossem à merda. Inclusive Clara. A sua mãe nunca tivera um cêntimo de ajuda daquele crápula, por isso, podiam enfiar a herança no buraco que melhor lhes aprouvesse. Ia para se levantar e ir embora, quando o velho homem das leis empurrou um papel na sua direcção, informando:
— É uma declaração de transferência da sua parte para a menina Clara Jordão, doutor Rafael Guerra. Como me disse que não queria nada, tomei a liberdade de providenciar esse documento.
Rafael olhou para o papel, surpreso com a iniciativa do advogado. Olhou para Clara que não teve coragem de o olhar. E isso só lhe confirmou que ela estava a par daquela atitude. As duas senhoras olhavam-no com expectativa. Mais uma vez, ficou magoado com a postura de Clara. Esperava que contestasse a sua decisão de renunciar à herança, que o queria a seu lado para gerir os negócios da família, um pedido de apoio à sua experiência para a auxiliar num mundo que era completamente estranho a uma jovem estudante de História em Londres.
Ao invés, Clara manteve-se em silêncio e incapaz de o encarar.
De súbito, ocorreu a Rafael que todos estavam ansiosos por se verem livres dele. Era um sentimento contido, retraído para não revelarem como a sua presença era incómoda por ali. Percebeu que a sua existência, naquele instante, era tão nociva quanto fora a existência da mãe na vida do canalha morto, na altura em que engravidara. O crápula conseguira expulsar a sua mãe como um incómodo que se varre para debaixo do tapete. Porém, Clara, as irmãs velhas e o advogado não teriam a mesma sorte. Mais não fosse, Rafael seria credor da velhacaria que o pai de Clara demonstrara todos aqueles anos.
— Não sei onde foi buscar essa ideia. — disse Rafael num tom calmo, empurrando o papel com a ponta dos dedos na direcção do outro e olhando-o com desdém. — Não pretendo abdicar desses 25%.
Clara olhou-o confusa. Ele ainda pensou que ela fosse protestar, mas na sua expressão havia apenas surpresa. O advogado direccionou a atenção para ela, como se procurasse instruções. Clara teve dificuldade em reagir e evitou somente ser precipitada. Correspondeu ao pedido do advogado, dizendo em jeito de despedida:
— Bom... Doutor, penso que está tudo tratado.
— Sim, claro menina. — concordou, levantando-se e sendo copiado no movimento por Maria das Dores e Dolores Maria.
Rafael também se levantou, mas foi travado por Clara.
— Podes esperar um pouco? Gostaria de conversar contigo em particular.
Rafael anuiu e deixou-se ficar na sua cadeira.
O advogado despediu-se de Clara, repetindo mais elogios à memória do seu falecido pai. Com Rafael limitou-se a atirar um "passe bem" e evitou o ultraje de ficar novamente de mão estendida.
— Fico feliz que tenhas mudado de ideias. — disse Clara, quando ficaram sozinhos na sala. — E o nosso pai também.
Aquelas palavras soaram a falsidade. Rafael acreditava que ela teria preferido que ele abdicasse da fortuna, partisse e nunca mais voltasse. Com uma raiva crescente e um coração partido, retorquiu num tom rude:
— Quero que o teu pai se foda no inferno.
Clara ficou com o olhar esbugalhado ao ouvir aquilo. A seguir, demonstrou-se ofendida e o seu rosto endureceu.
— Se não te importas, dentro desta casa, agradeço que moderes a forma como falas do meu pai.
— 25% desta casa também é minha. — recordou com sarcasmo.
— Isso não te dá o direito de o ofender e me magoares.
— Porquê? Só tu é que tens direito de magoar os outros?
— Como assim?
— Tu também me magoaste. — recordou ele com amargura. — A forma como falaste de nós... do que aconteceu em Londres.
— Somos irmãos, Rafael! — afirmou como se ele ainda não o tivesse percebido. — O que fizemos foi incesto, é pecado, é contranatura.
Rafael encolheu os ombros.
— Não altera nada. Continuo a amar-te como te amei naquela noite.
— Ama-me como tua irmã. — pediu, tentando ser carinhosa. — Eu vou amar-te como meu irmão.
— Eu não sou teu irmão. Não quero ser teu irmão!
— Lamento que penses assim. Gostaria que pudéssemos ser próximos. Nunca tive irmãos. Neste momento, és o único elo familiar que me resta.
Rafael abanou a cabeça. Aquela conversa parecia gasta e não os levaria a lado nenhum. Levantou-se da cadeira.
— É melhor ir andando. O tempo está a piorar e eu tenho de regressar ao Porto.
Clara também se levantou.
— Que pretendes fazer?
— Regressar ao Porto.
— Não me refiro agora. Refiro-me ao património. Podes não querer que tenhamos uma relação de irmãos, mas somos sócios. Pelo menos, teremos de dialogar sobre os negócios da família.
— Que propões?
Ela sorriu meio perdida.
— Não percebo nada de negócios. Era o nosso... o meu pai quem sempre administrou tudo. Essencialmente, tudo se baseia na produção de vinho. É esse o ramo empresarial da família. Tenho de falar com o doutor...
— O advogado? Este velho que está com os pés para a cova? Dispenso. Pelo menos, nos meus 25% ele não mexe.
— Ia falar com ele para que me aconselhasse alguém que nos ajude a administrar isto. — explicou sem esconder como estava fragilizada.
Por mais raiva e ódio que tivesse àquela família, por mais magoado que se sentisse com Clara, todo o amor que lhe tinha veio ao de cima.
— Eu ajudo-te! Sabes bem como sou bem-sucedido nos negócios. Tu és a sócia maioritária, podes nomear-me administrador. Se confiares em mim, claro.
— Claro que confio, és meu irmão. — insistiu com ternura.
Rafael irritou-se, porém controlou as emoções.
— Não, não somos. Já te disse, não quero que sejamos. Mas podes confiar em mim. Não misturo negócios com questões pessoais.
— Ok. — concordou, endurecendo a expressão, levantando uma defesa invisível para se proteger dele. — Aceito a tua ajuda para gerirmos isto.
Nada mais havia a dizer. Rafael avançou para a porta. Clara estava no caminho, mas desviou-se ao perceber o seu movimento. Ele parou junto a ela e olhou-a nos olhos, nos seus belos olhos verdes. Teve vontade de a beijar, o seu corpo ansiava por voltar a fazer amor com ela. Sentiu no seu olhar a distância, a frieza, a mensagem de que eram dois estranhos. Para acentuar essa distância, Clara estendeu-lhe a mão e foi cortante:
— Se não somos irmãos, seremos apenas dois sócios a lutar pelo sucesso do nosso negócio. Até breve, doutor Guerra!
A postura inesperada quase deixou Rafael sem reacção. Contudo, retribuiu apertando a sua mão com delicadeza.
— Se é assim que queres... Darei notícias, menina Jordão! — Largou-lhe os dedos gentis. — Ah... Se não te importas, pede às manas que me preparem um quarto nos meus 25% da casa. Terei de voltar e ficar uns dias para analisar o negócio que te vou ajudar a administrar.
E com aquelas palavras, partiu sem olhar para trás.
5.1
Apesar de o SIALE exercer alguma opressão sobre os movimentos sindicais, estes ainda continuavam a ter força suficiente para organizar greves e manifestações nas ruas. O povo estava cada vez mais descontente com o governo de Pinto Henriques e os protestos multiplicavam-se com o passar das semanas. Bem tinha razão Raimundo Antunes ao alertar o seu líder que, se houvesse eleições livres, o PNL perderia o poder.
Num regime de grande controlo sobre a imprensa e alguma repressão a vozes contestatárias, seria normal que qualquer manifestação pública de descontentamento fosse fortemente reprimida. Contudo, Pinto Henriques e Raimundo Antunes eram demasiado inteligentes para caírem na armadilha da vitimização da oposição. Assim, perante as greves, os informadores infiltrados passavam a informação ao SIALE sobre quem eram os cabecilhas grevistas, os quais acabavam disfarçadamente a ser detidos aparentemente por alguma razão que nada tinha a ver com a sua sindicalização. Homens e mulheres que eram apertados na prisão, espancados e até torturados, levando um tratamento por parte dos agentes do SIALE que não lhes deixaria qualquer vontade de repetir os protestos. Se continuassem, acabariam por sofrer algum acidente fatal.
Em relação às manifestações, o governo autorizava-as e fazia publicidade desses acontecimentos como prova de que a liberdade de expressão não morrera em Portugal, conforme apregoava a oposição, permitindo que as pessoas desfilassem pelas avenidas a reclamar direitos. A polícia tinha indicações para escoltar os protestos sem qualquer sinal de repressão. O governo sabia que a repressão sobre manifestantes só iria virar contra si a opinião pública e a comunidade internacional. E de nada servia o controlo da imprensa quando em cada cidadão há um potencial repórter a filmar com o telemóvel e a publicar na Internet. Por isso, a táctica era diferente, permitiam a contestação sob o olhar dos agentes do SIALE, na sua maioria disfarçados, avaliando os cabecilhas e dando-lhes posteriormente caça, longe da ribalta, afastados dos holofotes e olhares do comum cidadão. Vigiavam-nos e mantinham-nos controlados. Se fosse necessário, eram detidos por um delito comum inventado. E se fossem elementos demasiado perigosos, o SIALE dava-lhes sumiço. Tempos negros que pairavam nas sombras de um país, escondidos nos becos escuros, à vista de todos sem que se quisesse ver. A cada dia que passava, o PNL dava mais um passo para a implantação de um regime ditatorial.
Naquele dia, a Assembleia da República voltava a ser palco do debate quinzenal com a presença do governo no hemiciclo. Eram momentos tensos, tal era o ódio que nutriam nacionalistas lusitanos contra os membros do MPP e vice-versa. Também eram os dias em que não faltava um deputado que fosse naquelas cadeiras do anfiteatro, a menos que existisse uma razão incontornável que impedisse essa presença. E as galerias públicas também se encontravam bem compostas de espectadores que, como era lei, não se poderiam manifestar em momento algum.
No topo, virado de frente para os deputados, o presidente da Assembleia, o "pau mandado" de Pinto Henriques, um homem do partido demasiado importante para ser afastado e suficientemente irrelevante para ser atirado para aquele lugar onde cumpria as directrizes do líder do PNL. Estava ladeado por dois secretários. Abaixo deste nível, o palanque onde os deputados vinham discursar para o hemiciclo, o que só acontecia em apresentações de projectos de lei, moções ou outra situação específica. Num terceiro nível inferior, sentados lado a lado, numa espécie de arco e a encarar os deputados, o governo do país.
Pinto Henriques ocupava a posição central, tendo à sua direita Raimundo Antunes e à sua esquerda o marechal Costa Almeida. Depois, os restantes ministros alongavam-se para ambos os lados com especial destaque para Coelho Ferreira e Laurentino Pinto. O primeiro-ministro observava as linhas de deputados com uma satisfação gratificante. Desde o extremo mais à direita do anfiteatro até pouco mais do centro para a esquerda, todos os lugares eram do PNL, cento e vinte deputados eleitos nas últimas legislativas que deram a maioria ao seu governo. A seguir, também de alto a baixo, entre o bloco nacionalista lusitano e a extremidade esquerda, oitenta e oito deputados do MPP. Por fim, nos restantes lugares, dez deputados comunistas, oito socialistas e quatro sociais-democratas. Aos olhos de Pinto Henriques, aquilo era a realização de um sonho, o partido que fundara a ocupar a maioria do parlamento.
Na fila da frente da bancada parlamentar do MPP estava sentado o maior opositor de Pinto Henriques, a seguir ao presidente Flávio de Melo, o doutor Manuel Teixeira, líder do partido. Teixeira era um homem de meia-idade com muito charme, simpático e uma presença cativante de rosto sincero que conseguia ser suficientemente agressivo nos debates de ideias, o que fazia dele um verdadeiro político feroz. Envergava um fato de corte elegante e usava um cabelo quase rapado nas laterais e penteado para a direita no topo.
A seu lado, aquela que era considerada como uma das mais bonitas e promissoras deputadas, alguém a quem previam um futuro brilhante na política e que, talvez um dia, fizesse com que Portugal voltasse a ter uma mulher no cargo de primeiro-ministro. Também havia quem lhe augurasse um futuro ainda mais promissor e considerasse que ela poderia muito bem vir a ser a primeira mulher a ser eleita para a presidência do país. O seu nome era Bruna Drake, uma figura de cabelos negros como as asas de um corvo, rosto bonito e sério, expressão dura, irreverente, sempre pronta para o debate. Envergava o habitual traje composto por calças e casaco formais, de forma a ter uma imagem austera que lhe retirasse o aspecto feminino e puxasse o seu lado mais combatente, talvez mais macho. Não gostava de ser vista como a cara bonita que era e lamentava o protagonismo que ganhara na juventude, aquando líder do MJP, em que se deixara levar pelas entrevistas que a promoviam como futura estrela da política e destacavam o seu lado de rapariga atraente. Com trinta anos, Bruna era líder de bancada do partido e foi a ela que coube a abertura das hostilidades após o presidente da Assembleia lhe ter dado a palavra. Levantou-se do seu lugar e ajeitou o microfone.
— Senhor presidente, senhores membros do governo, senhores deputados! É com enorme tristeza que vejo o estado em que este governo... Perdão! — Olhou Pinto Henriques nos olhos. — Este "desgoverno" está a deixar o país. Temos uma Economia estagnada, onde as empresas e os empresários poucos apoios encontram e são confrontados com uma política fiscal que os estrangula diariamente. A Saúde é um caos, não há médicos nos centros de saúde, faltam enfermeiros e equipamentos nos hospitais, não há medicamentos e as pessoas continuam a morrer por falta de auxílio. A Educação é outro caos, falta de professores e escolas sem condições. — Fez uma pausa para que as suas palavras fossem absorvidas. — Por outro lado, temos uma política militar que funciona como se o país se estivesse a preparar para uma guerra. Este governo aumentou o orçamento do Estado no sector da segurança com o intuito de dar mais condições à PSP e GNR, mas o que temos vindo a observar é que esse investimento se vocacionou essencialmente a financiar o SIALE que não é mais que uma polícia política ao serviço do PNL.
Ao ouvir aquilo, os deputados do PNL insurgiram-se e protestaram contra a deputada. O presidente da assembleia permitiu a contestação, durante o tempo que convinha ao governo, e depois pediu ordem e que deixassem a senhora deputada terminar.
— Lamento que as verdades vos custem a encaixar, senhores deputados. — disse ela, olhando para a bancada opositora. — Recomendo o uso de manteiga.
Nova vaga que protestos dos nacionalistas lusitanos.
— Por favor, senhora deputada! — repreendeu o presidente da assembleia. — Vamos manter a elevação no debate.
Furioso, Pinto Henriques inclinou-se para o lado do seu MAI e segredou-lhe:
— No dia em que dermos caça a esta escumalha do MPP, quero aquela tipa para mim. Vamos ver se ela gosta do uso que vou dar à manteiga nela.
Raimundo Antunes sorriu e assentiu.
Bruna Drake terminou a sua intervenção sob uma enorme salva de palmas da sua bancada, enquanto era apupada pelo partido do governo. Em defesa destes, pediu a palavra o deputado nacionalista lusitano, Viriato Loureiro.
Viriato Loureiro era um homem de quarenta e muitos anos que estava estabelecido na região de Setúbal, ligado a negócios da construção civil e transportes comerciais. Apesar da fraca adesão aos ideais do PNL a sul do rio Tejo, Viriato conseguiu ser eleito como cabeça de lista pelo distrito. Era um homem alto com uma postura hirta e rosto fechado. O cabelo grisalho tinha um corte curto, quase militar, o olhar era frio e tinha uma deficiência no olho esquerdo. Ao andar, coxeava ligeiramente da perna esquerda. O ar emproado não disfarçava a sua falta de classe e a forma bruta e pouco cuidada como argumentava. Procurava cair nas boas graças do líder do partido, daí que aproveitou para usar da palavra para vir em auxílio de quem não precisava:
— Ninguém aqui tem memória curta, senhora deputada. O país não esqueceu o forte aumento de impostos que sofreu no governo de Flávio de Melo. O vosso governo! Em que nos foram à carteira, às carteiras de todos os portugueses. E nem usaram a manteiga que a senhora deputada sugeriu.
Ouviram-se vozes indignadas na oposição.
— Por favor, senhor deputado...
— Peço desculpa, senhor presidente! Deixei-me levar pela ofensa a que todos fomos visados na declaração anterior da senhora deputada Bruna Drake.
Viriato prosseguiu com o seu monólogo, criticando o anterior governo e usando de enorme demagogia ao falar de um país que só ele e os seus correligionários viam. Bruna fervia de fúria e ia para solicitar a palavra, quando foi travada por Manuel Teixeira.
— Não vale a pena. — aconselhou.
Na sensatez que os seus cinquenta e um anos lhe traziam, o líder do MPP impediu que o debate ficasse restrito a troca de acusações. Também já tivera a idade de Bruna Drake e também fora impetuoso como ela, tendo sempre o sangue a ferver quando argumentava consciente de que a razão estava do seu lado.
— É ridículo, o que aquele canalha está para ali a dizer. — retorquiu ela sem conseguir esconder a irritação.
— As pessoas sabem. — lembrou ele. — E no momento devido, será o povo que lhes puxará o tapete.
— Não sei se tenho essa certeza. E ainda falta tempo até às próximas eleições. Demasiado tempo para aturar estes tipos.
Manuel Teixeira inclinou-se ligeiramente para ela e segredou-lhe:
— Menos que aquilo que possas pensar.
Bruna encarou-o com surpresa, esquecendo o deputado que continuava na sua dissertação fantasiosa.
— Como assim?
Ele não explicou e limitou-se a fazer uma expressão de que aquele não era o melhor lugar para falar no assunto.
Viriato Loureiro terminou a sua intervenção e foi aplaudido pela bancada do PNL, a qual prolongou os aplausos demasiado tempo para transmitir a ideia de que ele fora brilhante.
Seguiu-se a participação de um deputado comunista. Este, ao contrário do que vinha sendo habitual, foi comedido nas críticas. Centrou-se muito nas lacunas e desinvestimento pelo qual passava a única zona do país que era regionalmente governada pelo partido comunista, o Alentejo. Pediu mais apoios para a região e maior intercâmbio entre os dois governos. No fim, foi brindado pelos parcos aplausos dos seus colegas partidários.
Por fim, foi a vez de dar voz aos socialista e sociais-democratas que discursaram em linhas idênticas e continuavam a demonstrar que pareciam ainda não ter percebido o quão longe estavam de voltar ao poder.
Terminada a ronda de intervenções dos partidos, a palavra foi entregue ao primeiro-ministro. Pinto Henriques levantou-se do seu lugar central com pompa e atirou um olhar cúmplice à sua bancada. A seguir, ajeitou o microfone e encarou com aspereza a deputada líder da bancada do MPP.
— Senhor presidente, ilustres membros do governo, senhores deputados! Infelizmente, por memória curta ou por cegueira ideológica, quer-me parecer que o MPP se esquece de como arruinou e atirou para a miséria o povo português. Sim! Esse mesmo povo que vocês apregoam no nome do vosso partido. Portugal atravessou um período de trevas, um período de resgate financeiro em que vocês foram muito além daquilo que vos era pedido lá fora. Sugaram cada cêntimo a cada pobre e continuaram a proteger e a manter o corporativismo de quem vos financia. — Ouviram-se protestos na bancada da oposição. E desta vez, nem Manuel Teixeira se conteve. — Calma, calma! Não gostam de ouvir as verdades? Sigam o conselho da vossa jovem deputada. — Adjectivá-la de "jovem" era uma forma de Pinto Henriques menosprezar Bruna Drake. — Este governo tem vindo a fazer um esforço para recuperar o país, temos tomado medidas para devolver aquilo que foi retirado aos portugueses. E não foi só por vocês! — Olhou para a representação minoritário dos outros três partidos. — Desde o 25 de Abril que este país se afunda em medidas gravosas de constantes governos incompetentes. Nós viemos para mudar isso e o povo deu-nos mandato para o fazer. — Tornou a fulminar Bruna com a sua expressão agressiva. — Senhora deputada Bruna Drake, as pessoas que a elegeram para estar aí são iguais às que nos deram maioria absoluta para governar. Por isso, um pouco mais de respeito ao dirigir-se a esta casa de leis. Respeite a democracia!
Ouviu-se um coro de gargalhadas e apupos vindo dos deputados. Bruna Drake levantou-se para protestar que não se via um governo tão antidemocrático desde o Estado Novo.
O presidente da assembleia teve de voltar a intervir e ameaçar pôr fim aos trabalhos da câmara, caso os deputados não se acalmassem e permitissem que o chefe de governo prosseguisse. Aos poucos, as suas ordens foram cumpridas.
— Se é tão mau o que temos estado a fazer, caros deputados da oposição, tenham paciência e aguardem pela voz do povo. — finalizou Pinto Henriques. — Os portugueses são inteligentes. Se estamos a trabalhar mal, com toda a certeza que irão eleger outros para o nosso lugar. Tenham fé e façam como nós, no PNL, que cremos em Deus no Céu e na Democracia na Terra.
Todos os deputados nacionalistas lusitanos se colocaram em pé e ovacionaram o seu líder. E só pararam e tornaram a sentar-se depois de serem chamados a isso por três vezes pelo parceiro presidente da assembleia.
— Brilhante, Henriques! — elogiou Raimundo. — Quase que até eu acreditei nas tuas palavras.
Pinto Henriques riu com gosto. Sabia que em condições normais não teria hipóteses de vencer as próximas Legislativas. E era por isso que, juntamente com os seus cúmplices do governo, andava a engendrar o plano que o faria senhor todo-poderoso de Portugal.
As rondas de interpelações ao governo continuaram. Porém, Manuel Teixeira aconselhou Bruna Drake a não voltar a intervir e deu indicações a outros deputados de segunda linha para questionarem o primeiro-ministro com as dúvidas habituais que o outro contornava, mentia e não respondia.
Em todas as vezes que falou, Pinto Henriques ignorou as minorias partidárias, centrando toda a sua argumentação e confronto com a bancada do MPP. Comunistas, socialista e sociais-democratas eram adversários políticos inconsequentes, enquanto os deputados do MPP eram inimigos de morte.
No final da sessão, como era hábito, todo o governo desapareceu do edifício da Assembleia da República sem que ninguém os visse, escoltados pelo SIALE até às garagens e saindo a toda a velocidade nos automóveis de alta cilindrada.
Nos Passos Perdidos, numa zona afastada dos restantes deputados e de alguns jornalistas que procuravam fazer reportagem do dia na assembleia, Bruna Drake conversava com Manuel Teixeira.
— Aquela história de eleições antecipadas... — sussurrou ela.
O líder do MPP olhou em redor e seguro de que não eram ouvidos, explicou:
— O professor Flávio de Melo está descontente com o governo. Acredito que, em breve, ele possa ponderar dissolver o parlamento.
— É apenas uma crença sua. — concluiu meio desapontada.
— Não é só isso. Há outros factores que podem acelerar essa decisão do Presidente. Mas, sobre isso…
Bruna percebeu que aquele não era o lugar para avançar mais informações. Em resposta, questionou:
— E conseguirá uma justificação plausível para isso? Quer dizer... Ambos sabemos o que estes tipos do PNL andam a fazer nas sombras, mas... E o povo? Podemos dar uma imagem de querer o poder a todo o custo. E isso pode jogar contra nós.
Manuel Teixeira anuiu:
— Sim, tens razão. Mas, quando acontecer, o presidente terá isso bem pensado. Neste momento, o problema é outro.
— Como assim?
— Tenho informações de que o governo possa estar a preparar alguma jogada com os militares. — segredou, atento às redondezas.
— Que tipo de jogada?
— Não sei bem... São rumores que me chegaram. Irei…
Nesse instante, a conversa foi interrompida pela aproximação de Octávio Simões, outro deputado do seu partido.
— A doutora Drake tem de ser mais contida. — admoestou. — Quase parecemos desesperados por chegar ao poder.
Bruna recebeu-o com uma expressão dura.
— Lamento, caro colega, não tenho sangue de barata. — ripostou num tom duro. — Nem partilhar do seu sentido de inactividade. Quando foi a última vez que interpelou o governo ou a assembleia?
— Não se proporcionou. — justificou-se, meio ofendido.
— Se calhar, fazia falta ao partido ter o seu descontentamento neste hemiciclo, nem que fosse só metade daquele que demonstrou contra o nosso correligionário e amigo Diogo Pereira.
Octávio Simões era natural de Setúbal e sempre fez ouvir a sua voz contra a centralização de todo o poder da região de Lisboa e Setúbal na capital. A sua atitude nunca era bem vista dentro do partido, uma vez que ele se tornara um protestante contra o governo da região que era liderada pelo também elemento do MPP, Diogo Pereira.
— Nada tenho contra o Diogo. — argumentou Octávio. — Tenho contra o sistema que insiste em absorver para a capital todos os órgãos de governação. À imagem do que sucede noutras regiões, Setúbal poderia ter ficado com a assembleia regional.
— O senhor sabe tão bem como eu que isso foi uma decisão de governos socialistas e sociais-democratas. — ripostou Bruna, sempre apta a uma discussão. — Numa altura em que o nosso adversário principal é, não só um opositor, mas um inimigo, talvez fosse bom o senhor direccionar a sua energia para esta assembleia, ao invés de tentar sabotar o governo do doutor Diogo Pereira.
— Sabotar? — questionou indignado.
— Bruna... — chamou Manuel Teixeira, procurando que a discussão não aumentasse de tom. — O Octávio já percebeu a ideia.
— Ó Teixeira! Mas, eu ando a sabotar alguma coisa?
— Se não baixas o tom de voz, começas a sabotar-nos a todos aqui. — avisou o líder do MPP. — Não dês razões para que comecem a dizer que há cisões no partido, está bem?
— Mas, Teixeira...
— Eu vou andando. — atalhou Bruna, ignorando Octávio e falando para Manuel Teixeira. — Tenho uma reunião...
Bruna Drake trocou dois beijos na face com o seu mentor e atirou um gesto de despedida ao colega deputado. Sem se demorar, atravessou o longo corredor largo para se dirigir à escadaria e à saída.
No entanto, a jovem promissora deputada ia tão imbuída nos seus pensamentos que nem percebeu que um agente do SIALE a seguia.
5.2
A família Craveiro Assunção vivia numa moradia na zona do Restelo, um lote generoso localizado perto de algumas embaixadas e organizações importantes que sediavam por ali as suas representações. O edifício de dois pisos era composto por vários quartos, um salão de estar e refeições e um escritório que era partilhado pelos donos da casa, ambos advogados. Num sector secundário da casa, a cozinha e as divisões para uso dos empregados. No terreno exterior, um jardim relvado e uma piscina nas traseiras.
Naquele fim de tarde, Cláudia de Melo Craveiro Assunção trabalhava no escritório, depois de um dia de alguma azáfama a tratar de processos. Cláudia tinha quarenta e cinco anos e era filha do presidente de Portugal, o professor Flávio de Melo. Conceituada advogada, ganhara fama como activista pelos direitos das mulheres e contra a violência doméstica. Trabalhava habitualmente pro bono com associações de apoio à vítima e em querelas contra entidades que insistiam em distinguir o sexo dos funcionários na atribuição de direitos e deveres. O pai costumava dizer que ela era a esquerdista da família, mas concordava com os ideais pelos quais a filha lutava.
Cláudia era uma mulher elegante, apesar de aos seus olhos se sentir com peso a mais. Alternava a cor dos seus caracóis entre o preto e o castanho, sempre receosa do aparecimento de "brancas". O rosto era simpático, tão afectuoso com os amigos como era gélido com os adversários. Raramente vestia outra coisa que não fossem camisas clássicas e saias compridas, tudo em tons austeros.
O seu marido era Alberto Brito Craveiro Assunção, três anos mais velho e igualmente advogado, sendo que ele era uma espécie de paradoxo dela na profissão. Defendia todos por mais culpados que fossem, desde que lhe pagassem obscenamente para isso. Para ele, qualquer crime tinha perdão, mediante o que estivessem dispostos a pagar. Pouco lhe interessava a justiça, o quão hediondo poderia ter sido o crime, o importante era o lucro que obtinha no final do processo. Pro bono era um palavrão no seu dicionário. Se tens dinheiro és inocente, se não tens "desemerda-te" que eu não quero saber. Estes eram os princípios do senhor doutor Craveiro Assunção.
Cláudia estava compenetrada na leitura de alguns documentos, quando bateram à porta do escritório. Uma das empregadas domésticas entrou e anunciou a chegada da deputada Bruna Drake.
Bruna e Cláudia eram amigas de longa data, desde a adolescência da mais nova, quando esta dava os primeiros passos no MPP, na ala dos jovens. Bruna teve a sorte de ver as suas capacidades reconhecidas pelo líder Flávio de Melo, o que a aproximou da família e da filha do seu primeiro mentor. Os quinze anos de diferença não condicionaram em nada a relação de amizade que se formou e solidificou com o passar dos anos.
— Olá, Bruna! — cumprimentou a advogada ao recebê-la na sala.
— Olá, Cláudia!
Abraçaram-se e trocaram dois beijos.
— Como correu a sessão no parlamento?
— O circo habitual. — respondeu Bruna, sentando-se no sofá. — O governo continua a gozar com isto tudo.
Cláudia sentou-se a seu lado.
— Espero que isso não vá continuar por muito mais tempo. — desejou Cláudia, dando a entender que algo se passava. Bruna encarou-a com curiosidade. — O meu pai tem partilhado comigo a sua enorme apreensão em relação ao rumo que o país está a levar com este governo. E não coloca de lado a possibilidade de dissolver o parlamento.
As amigas não tinham segredos entre elas, mas o tom ganhou contornos de secretismo, uma vez que se vivia um clima em que parecia haver ouvidos em todos os lugares.
— O Teixeira também me falou nisso.
— Quando acontecer, Bruna, iremos ver-nos livres deles. Os eleitores não lhes vão dar novamente maioria absoluta... Nem sequer lhes darão a vitória. — A expressão no rosto de Bruna Drake não demonstrou qualquer entusiasmo. — Que se passa? Não pareces muito crente nisto.
A deputada olhou em volta, receando que algum empregado as pudesse espiar. Baixou ainda mais o tom de voz:
— O Teixeira contou-me que ouviu rumores de que o PNL anda a tramar alguma com os militares.
Cláudia não escondeu o choque com aquela informação.
— Como assim? Achas que eles estão a preparar algum golpe?
— Não faço ideia.
— Será que suspeitam das peocupações do meu pai?
Com semblante agastado, Bruna retorquiu:
— Poucas coisas escapam ao SIALE.
— Meu Deus... O meu pai tem de saber disso.
— Não te preocupes, o Teixeira tem encontro marcado com ele para o alertar e sugerir algumas medidas de antecipação.
— Que medidas?
Bruna encolheu os ombros.
— Não sei, Cláudia.
Nesse instante, ouviu-se alguém abrir a porta de entrada na moradia. Uma empregada apressou-se a vir receber o patrão que acabava de chegar de mais um estafante dia de trabalho entre clientes e tribunais.
Na verdade, Alberto apresentou um ar falsamente cansado, ou pelo menos, o seu cansaço nada tinha a ver com trabalho. O advogado tirara a tarde para se encontrar num hotel de Lisboa com Kayla e dar continuidade àquilo que fora interrompido naquela noite no bar, onde tivera de se socorrer de um dos seus imprestáveis empregados para fazer companhia à sua dispendiosa acompanhante. A situação não lhe agradara, até porque sabia que o outro não era assim tão estúpido para acreditar na história de ela ser sua sobrinha, o que veio a confirmar quando tornou a falar com Kayla. Porém, tinha estatuto para o outro perceber que, se falasse no assunto a alguém, seria despedido e ganharia um inimigo que o destruiria com a facilidade de quem esmaga um insecto. E certificou-se que ele percebia a mensagem, pela forma como o encarava e falava num tom duro com ele.
O advogado entregou a pasta e o casaco com desdém à empregada, ignorando-a e revendo na sua mente os momentos que partilhara com a prostituta nessa tarde. A gaja era cara, mas valia cada cêntimo.
Ao entrar na sala deu de caras com a mulher e com aquela irritante deputadazinha. Simulou o seu melhor sorriso e avançou para a esposa, dando-lhe um beijo fraternal no rosto. A seguir, estendeu a mão a Bruna e cumprimentou-a com hipocrisia.
A inimizade entre Bruna e Alberto era recíproca. Porém, simulavam suficientemente bem para que isso escapasse à percepção de Cláudia. Bruna também sabia ser hipócrita e recebeu o cumprimento do marido da amiga com o mesmo sorriso falso dele.
— Tenho de ir andando. — despediu-se. — O dia foi estafante e preciso de ir descansar.
— Queres que o nosso motorista te leve? — ofereceu Cláudia.
Bruna aceitou.
— Vou tomar um banho. — informou Alberto quando ficou sozinho na sala com a esposa. — Não foi só a senhora deputada que teve um dia cansativo.
Sem esperar resposta, dirigiu-se às escadas, mas travou ao ouvir:
— Isto está a ficar complicado.
— Algum problema, Cláudia?
Ela olhou para o marido, um homem em quem confiava cegamente.
— A Bruna contou-me que o PNL pode estar em conluio com os militares para efectuarem um golpe de estado.
— O quê? — questionou o advogado com espanto. — Um golpe de estado? Mas, o PNL está no poder. Vão golpear-se a eles próprios? Isso não faz sentido nenhum.
— Não é contra eles, Alberto. É contra o meu pai. — explicou receosa. — É possível que eles saibam aquilo que te contei, que o meu pai está a ponderar dissolver a Assembleia da República?
— Se queres a minha opinião, acho que esta malta do MPP anda a ficar paranoica. Isto não é um país sul-americano.
— Mas, sabes bem que existe grande proximidade entre Governo e Exército. Basta ver pela escolha do ministro da Defesa.
Alberto usou novamente do seu sorriso falso.
— Não te preocupes, Cláudia. Vais ver que isso não passa de rumores sem fundamento. — Retomou o seu caminho para as escadas. — Vou tomar um banho.
Ao entrar no quarto, Alberto Brito Craveiro Assunção certificou‑se que a esposa não o seguira. Também teve o cuidado de confirmar que não havia empregados por perto. Fechou a porta e caminhou até à poltrona junto à parede oposta à cama. Sentou-se, retirou o telemóvel do bolso e procurou um contacto muito especial que tinha na sua lista de números. Ao encontrar o que pretendia, carregou no símbolo para iniciar a chamada. Encostou o aparelho ao ouvido e ouviu os estalidos inconfundíveis e pouco usuais em chamadas comuns, sinal da codificação que tornava a ligação segura e salvaguardada de escutas.
— Boa noite, doutor Alberto! — cumprimentou a voz no outro lado.
— Boa noite, doutor Raimundo! — retribuiu o advogado. — Lamento estar a incomodá-lo, mas tive conhecimento de algumas informações que penso serem urgentes de chegar ao seu conhecimento.
— Diga. Sou todo ouvidos.
— Acabei de saber que, de alguma forma, o MPP tem conhecimento de planos para um suposto golpe de estado que vocês estão a engendrar com a ajuda dos militares.
A informação surpreendeu Raimundo Antunes, o líder do SIALE e MAI. Sentiu uma raiva crescente por isso, pois era sinal que existia uma "toupeira" ou fuga de informação que chegou ao MPP. Contudo, conseguiu disfarçar e fazer a sua voz soar como se nada daquilo fosse importante.
— Como soube?
— Esteve cá aquela cabra da Drake. Não sei como soube, mas veio contar isso à minha mulher. — explicou Alberto. — Mas, para eles não passam de rumores. Eu desvalorizei e tentei passar uma imagem de que tudo não passava de paranoia do MPP. E espero que ela transmita a mesma ideia ao pai.
— Sim... Fez bem.
— Acima de tudo a defesa do partido. — mentiu Alberto.
Raimundo Antunes soltou uma gargalhada.
— E dos seus interesses, doutor Alberto. Não se esqueça de com quem está a falar. Sei perfeitamente o que o move. E o senhor sabe que o PNL nunca esquece, para o bem... e para o mal.
— Não me interprete mal, doutor Raimundo...
— Não, não interpreto. — interrompeu o MAI. — E já lhe disse que quando chegar a hora, o senhor estará protegido.
E desligou.
5.3
O motorista da família Craveiro Assunção deixou Bruna Drake defronte do seu prédio, conforme ela lhe indicara. A noite caíra por completo e as luzes alaranjadas coloriam uma rua de sentido único sem vivalma nos passeios. Bruna saiu do carro e o motorista arrancou logo em seguida.
Por detrás daquela postura forte que demonstrava nas funções de deputada estava uma mulher que sentia medo, medo de um país cada vez mais apertado pelas malhas do nacionalismo lusitano, onde cada opositor do regime era um inimigo do Estado.
A rua onde morava nunca tinha muito trânsito e, àquela hora, eram raros os veículos que por ali passavam. Talvez por isso lhe foi fácil perceber a presença do automóvel que chegara atrás de si e estacionara a alguns metros. Bruna olhou para trás e viu um homem de figura sinistra ao volante a observá-la. Não precisava de ser vidente para adivinhar que se tratava de um agente do SIALE. Nos últimos tempos, os agentes da polícia política do Estado sentiam-se tão senhores de tudo que já nem disfarçavam as suas perseguições.
O silêncio reinava, ouvindo-se apenas um ou outro som de alguma casa ou o ruído constante citadino ao longe. Bruna sentiu as pernas tremer, ao caminhar até à porta do prédio, ouvindo os saltos dos seus sapatos a bater contra a calçada. Temeu que o agente saísse do carro e a atacasse. Porém, este permaneceu ao volante, com o carro desligado, a olhar para ela e a fumar um cigarro.
Não era totalmente seguro, mas Bruna sentiu o medo atenuar quando entrou e fechou a porta do prédio atrás de si. Subiu as escadas com os ouvidos atentos à entrada de mais alguém no edifício. Só descansou por completo ao entrar no seu apartamento.
A deputada Drake vivia no último piso, um pequeno apartamento com um quarto, uma sala, uma cozinha e um WC, espaço suficiente para uma mulher solteira sem pretensões a deixar de o ser. Para além disso, o apartamento tinha uma varanda agradável com vista sobre a cidade.
Bruna despiu o casaco no vestíbulo e descalçou os sapatos, perdendo alguns centímetros de altura. Caminhou até ao quarto para espreitar a rua pela janela, camuflada pela cortina, constatando que o agente ali permanecia. O medo voltou. Que estaria ele ali a fazer? Limitar-se-ia a vigiá-la ou estariam a preparar algo contra si? Será que o PNL ordenara ao SIALE a sua detenção como represália pela sua actuação no parlamento, nessa tarde?
Bruna sabia que ninguém lhe poderia valer, caso o SIALE a detivesse. E com certeza que sofreria um mau bocado até que o seu partido conseguisse todas as diligências para a libertar. Contudo, ela era um membro da Assembleia da República, não podia ser detida assim... Só que Bruna já não confiava na capacidade das leis para travar os agentes do SIALE.
Pensou em ligar a Manuel Teixeira, mais não fosse para que tivesse conhecimento do eventual perigo que ela corria. Porém, optou por ligar à amiga com quem estivera horas antes.
Cláudia, para além da defesa dos ideais já referidos, começara no último ano a exercer funções como advogada de pessoas detidas injustamente pelo SIALE. Era frequente ver a filha do presidente da República envolvida em questões judiciais contra o SIALE nos tribunais. Bruna nunca comentara isso com ela, mas tinha a certeza de que, não fosse o facto de ser filha de quem era e já teria sido ela própria detida... Não, detida não. Bruna acreditava que Cláudia já teria sido assassinada pela polícia política.
Assim, perante todas as hipóteses, Bruna considerou que ela seria a melhor pessoa para a aconselhar e ligou-lhe na esperança de que as suas palavras a acalmassem.
— Não acredito que estejam a pensar deter-te. — partilhou Cláudia, quando Bruna lhe explicou ao telefone o que estava a acontecer. — Pelas informações que me têm chegado, tem sido usual o SIALE manter vigilância sobre os adversários políticos. — Bruna ouviu um risinho apaziguador. — Vê pelo lado positivo, já tens tanto prestígio como adversária do governo que delegaram um agente para te vigiar.
— Dispenso bem esse tipo de prestígio.
— Se falares com o Manuel Teixeira, ele certamente te dirá o mesmo. Ele próprio é seguido pelo SIALE.
— Tenho... Tu entendes, Cláudia, tenho medo, a verdade é essa. Estou aqui sozinha. Tenho medo que o tipo decida sair do carro e me bata à porta para me levar para os calabouços do SIALE.
— Não acredito que isso aconteça. Mas, fazes assim: se ele tocar à tua campainha, ligas-me imediatamente e deixas a chamada ligada enquanto o atendes. Se ele fizer isso, eu saio daqui directa ao SIALE.
— Obrigada, amiga.
— Não te preocupes Bruna.
A deputada sorriu sozinha, vulnerável.
— Nem pareço aquela miúda feroz do parlamento, com todo este medo...
— Pensas que eu também não tenho medo? Achas que por os enfrentar, não vivo atemorizada que me possam fazer alguma coisa? No entanto, é o medo que nos deixa alerta.
— Sim, isso é verdade.
— Já sabes, faz o que te digo, caso o tipo vá aí.
As amigas despediram-se e o telefonema findou. Bruna tentou convencer-se a ficar mais calma, mas não foi fácil. Decidiu abstrair-se de tudo aquilo e ir preparar algo para jantar.
A televisão ligada na sala dava um ambiente de normalidade, afastando a constante busca dos ouvidos dela, por entre o silêncio, de alguma aproximação sorrateira ao seu apartamento. Da cozinha, Bruna ouvia as notícias e deu por si a ouvir a sua voz na intervenção que fizera no parlamento. À sua voz sobrepôs-se a do jornalista que assinava a reportagem e que dizia:
— Mais uma vez, fruto da sua rebeldia de jovem deputada, Bruna Drake interveio de forma ríspida e a roçar a deselegância, confrontado o primeiro-ministro numa demonstração de quem procura esconder erros do passado.
Bruna sorriu lacónica para ninguém. A influência do PNL também já chegara à comunicação social que começava a difundir as notícias segundo a perspectiva nacionalista lusitana.
O carro com o agente continuava no mesmo lugar, quando Bruna voltou a espreitar pela janela do quarto. A sala só tinha acesso à varanda e, para o ver daí, ela teria de se expor. Iria o tipo passar a noite ali?
Sentada numa mesa solitária, coberta parcialmente por uma toalha dobrada, Bruna comeu uma salada de alface, grão, atum e ovo cozido. Mastigava silenciosamente com o olhar cravado no ecrã e os ouvidos no som do aparelho. O noticiário era um listar de acontecimentos no país, difundidos sob o jugo do lápis azul do SIALE. A criminalidade diminuíra por actuação junto dos bairros habitados pelas minorias tradicionalmente representantes do crime. As imagens mostravam a forma musculada como a polícia procedia à detenção de indivíduos mostrados como marginais, na sua quase totalidade com ascendência africana. Bruna abanou a cabeça, ironicamente certa de que todos os pretos eram criminosos da mesma forma como todos os brancos eram honestos. Como podia Portugal ter caído naquela maneira de tratar os seus? Que forma redutoramente estúpida de resumir os males à cor da pele. A seguir, uma reportagem sobre a homossexualidade, vista como um cancro da sociedade. É preciso lembrar que o governo do PNL revertera a lei que permitia o casamento de pessoas do mesmo sexo, já para não falar que passou a existir perseguição a pessoas com orientação sexual diferente do tradicional defendido pelo nacionalismo lusitano. Talvez por isso, muitos dentro do MPP insistissem para que Manuel Teixeira assumisse frontalmente a sua homossexualidade para dar força a toda a comunidade gay em Portugal. O líder do partido nunca considerou ser esse o melhor caminho, pois poderia levar a manifestações que o SIALE aniquilaria com violência. Nessa mesma reportagem, houve uma entrevista a D. Narciso Rathesleon, arcebispo de Braga, que veio defender os bons costumes e que uma sociedade de bem tudo deveria fazer para expurgar "esse tipo de gente" da sua comunidade. Rathesleon apregoou a importância de uma educação religiosa baseada nos ideais da Igreja Católica e congratulou o ministério da Educação pela nova lei que obrigava todos os alunos do primeiro ao décimo segundo ano a estarem presentes nas aulas da renovada disciplina de Religião e Moral. Rathesleon exigiu também medidas que moldassem a mudança da sociedade actual, uma sociedade cada vez mais virada para o sexo, condenando os jovens que subvertiam as virtudes e as boas maneiras. Rathesleon falou de forma cruel dos casais que traíam as juras feitas na Igreja, evitando referir todos os que se haviam unido somente pelo registo civil ou de facto, não deixando de alfinetá-los, adjectivando-os de "gente imoral", mas concentrou a sua fúria naqueles que optavam pelo caminho do divórcio destabilizando a vida dos filhos, esquecendo-se de que o bem-estar das crianças deveria ser a prioridade de todos os adultos, chegando mesmo a olhar para a câmara que o filmava e a proferir que "vocês adúlteros, vocês que traem os laços que a Igreja uniu, prostrem-se perante Deus nosso Senhor e peçam perdão, peçam mil milhares de vezes perdão e talvez, só talvez, possam espreitar pela porta dos justos". Para finalizar, deixou a pergunta no ar "como podem fazer mal a uma criança e conseguirem dormir em paz?". Sim, o mesmo Rathesleon que abusava das meninas do orfanato. Toda a entrevista se impregnara de raiva do clérigo contra quem não respeitava a fé como se Portugal fosse um país do tempo da Inquisição e cheia de elogios à governação do PNL que, segundo ele, devolvera Portugal e os portugueses aos bons costumes. Mais tarde, o cardeal-patriarca de Lisboa, e figura máxima da Igreja Católica em Portugal, viera atenuar estas declarações. Contudo, ao invés de uma entrevista, teve direito a que o noticiário passasse somente o texto que o Patriarcado publicara na sua página nas redes sociais.
Bruna terminou o jantar e levou a louça para a cozinha. Ia para lavar tudo, mas hesitou e decidiu tornar a espreitar pela janela do quarto. Nada mudara, o automóvel permanecia estacionado no mesmo lugar onde ela o vira, ao chegar a casa, e o agente continuava no interior, olhando de tempos a tempos lá para cima. Iria mesmo passar a noite ali? Conseguiria ela dormir, sabendo-o lá em baixo? Preferiu não pensar nisso.
O seu trajecto para a cozinha foi interrompido por mais uma notícia, mais um escândalo de corrupção, mais um grupo económico que lesara o Estado em milhões. Sem o referir abertamente, o jornalista da reportagem deixava implícito que o grupo era também financiador do partido político Movimento Povo Português. Bruna sabia que era totalmente mentira, ninguém tinha ligações a eles, nem nunca fora entregue qualquer dinheiro ao MPP por parte dos visados na reportagem. Mais uma vez, a comunicação do canal público estava ao serviço do PNL. E para a deputada, mais que a irritação pela mentira, era desilusão por saber que a maioria dos que assistiam à reportagem iriam vangloriar-se por aqueles indivíduos terem lesado o Estado. As pessoas viam isso como algo bom porque se sentiam constantemente "roubadas" com impostos e, se houvesse alguém que roubasse o Estado, era visto como uma espécie de vingança. Bruna lamentava esta forma de ver as coisas, uma vez que as pessoas se esqueciam que estavam para o país como um accionista está para uma empresa, se a empresa é lesada, eles são lesados. Porém, ninguém via isto desta forma.
As notícias começavam a desgastá-la. Baixou o volume da televisão e foi para a cozinha lavar a louça do jantar. Tinha uma máquina de lavar para isso, mas sujava sempre tão pouca coisa que preferia lavar tudo à mão. Sem saber bem porquê, veio-lhe à memória os tempos de menina em que a avó a deixava brincar com a água enquanto lavava tachos, pratos, talheres e o que mais houvesse. Ai, a avó... Que saudades, ela tinha da avó.
Bruna Drake nasceu em Coimbra. Por infelicidade, perdera os pais tão nova que não se recordava de estar com eles. As únicas imagens que obtivera deles foram as que conheceu em fotografias. Fora criada pelos avós, os pais da mãe. Também pouco conhecera dos avós paternos para além das fotos. E com familiares do lado do pai, somente mantinha contactos esporádicos com os primos que viviam em Portugal.
Em pequena queria ser actriz, influência de ver telenovelas na companhia dos avós, depois decidiu que seria cantora. Quando a avó adoeceu, a pré-adolescente Bruna decidiu-se pela Medicina, não que tivesse grande aptidão para o sector da saúde, apenas porque queria poder fazer a diferença e salvar pessoas. A avó recuperou e Bruna acabou por aceitar que não tinha vocação para as ciências médicas. Encontrou o seu caminho noutro ramo da ciência, a ciência política. Já no ensino secundário, Bruna envolveu-se no movimento juvenil de um novo partido emergente, o MPP, ganhando destaque pelas suas ideias e a forma acérrima como as defendia, chamando a atenção do seu primeiro mentor, o professor Flávio de Melo, também ele natural de Coimbra e que estivera presente num encontro distrital do MJP (Movimento Juventude Portuguesa, a "J" do MPP) na cidade dos estudantes.
Naquela altura, aquele que seria o futuro primeiro-ministro do país, quisera conhecer pessoalmente a jovem que discursara nesse encontro, a qual acabara de ser eleita para líder da distrital de Coimbra do MJP. A Flávio de Melo quase que lhe custara a acreditar que a rapariga que falara de forma tão segura aos outros jovens no topo do palco tinha somente quinze anos. Não tivera qualquer dúvida que Bruna Drake respirava liderança e poderia um dia ser alguém que chegaria longe na política.
Bruna ficou embasbacada, quando foi apresentada a Flávio de Melo, pois tinha um enorme fascínio pelo líder do seu partido. Conversaram cerca de dez minutos, a agenda do político não permitia muito mais. Ele elogiara-a e deu-lhe o conselho que mudaria a sua vida. Disse-lhe que facilmente seria uma figura importante na região, talvez pudesse vir a ser presidente de câmara ou líder do governo regional da sua terra natal. Contudo, na opinião de Flávio, ela poderia ser muito mais que isso, assim ela quisesse. Daí a dois anos, Bruna iria ingressar na Universidade e ele recomendou-lhe que se candidatasse a um curso superior em Lisboa, de forma a estar mais perto da cúpula do MJP nacional e consequentemente mais próxima das pessoas mais influentes do próprio MPP. Bruna teve muita relutância em seguir o conselho, uma vez que se veria afastada das duas pessoas mais importantes da sua vida, os avós. No entanto, foram estes quem a incentivaram a seguir esse caminho e Bruna foi estudar Ciências Políticas para Universidade Nova de Lisboa.
O avô nunca chegou a ver a neta a completar o doutoramento. Aliás, a vitória mais amarga da vida de Bruna foi a sua eleição para presidente do MJP nacional, dia em que o avô falecera com problemas cardíacos. Bruna tinha dezanove anos e subiu ao palanque em lágrimas, discursando de forma estoica, agradecendo a quem a elegera, mas parca em palavras, finalizando com a informação que iria sair dali para se juntar à avó naquele momento de dor.
O telefone tocou.
Bruna já terminara as suas tarefas na cozinha e deu uma corrida ligeira à sala, onde deixara o telemóvel sobre a mesa. Reconheceu o número e atendeu.
— Então Bruna, está tudo bem?
— Sim, Cláudia.
— Ele continua aí?
— Sim. O tipo continua dentro do carro.
— Se acontecer alguma coisa e precisares de mim durante a noite, mesmo de madrugada, não tenhas problemas. Liga-me, está bem?
— Combinado, Cláudia. Obrigada!
Bruna percebeu que, apesar de a tentar descansar desvalorizando a situação, a filha do presidente da República também estava preocupada com o que o SIALE pudesse fazer contra a deputada. Pensou em voltar a espreitar pela janela, mas não valia a pena, ele certamente que continuava e continuaria lá em baixo a vigiá-la. Largou o telemóvel de novo sobre a mesa e o seu olhar foi atraído para o conjunto de fotos que tinha sobre o móvel adjacente à televisão.
Eram fotos antigas emolduradas em pequenos suportes perfilados. Lá estavam os pais, tão novos, sorridentes e enamorados. Havia uma foto da mãe grávida, a olhar para a câmara com uma barriga enorme, tirada numa visita a Lisboa com o pai, tendo em fundo o recentemente inaugurado Centro Cultural de Belém. O pai não estava na foto porque, obviamente, estava atrás da máquina. Logo a seguir, no conjunto de molduras, a única que tinha dos avós paternos. As restantes fotografias eram dos avós maternos.
O falecimento do avô materno fora um momento duplamente terrível, primeiro pela perda e depois por Bruna saber que a avó ficaria sozinha em Coimbra. Chegou a pensar em abandonar tudo por uns tempos e regressar à cidade onde nascera. Só que a avó não permitiria que a neta se prejudicasse e recusou inflexível que ela o fizesse. Bruna quis trazê-la para Lisboa, mas também esta ideia foi recusada. A velhice foi deteriorando a saúde da avó de Bruna, mas esta ainda viveu tempo suficiente para a ver terminar o curso superior, ser escolhida para a comissão política do MPP e eleita para o seu primeiro mandato de deputada da Assembleia da República. Porém, também ela a deixara, alguns anos antes, despedindo-se deste mundo em paz e sem sofrimento.
Os canais generalistas nacionais já não passavam nada que prestasse para Bruna, após os noticiários. Sentada solitária no sofá, a deputada pegou no comando da televisão e foi mudando de canal sem encontrar nada que a cativasse. Olhou para o relógio, não era tarde. Na manhã seguinte teria de se levantar cedo, tinha reunião do grupo parlamentar. Não tinha sono, nem estava suficientemente tranquila para o encontrar se fosse para a cama. Pensou no desconhecido que a vigiava lá fora. Sim, Cláudia tinha razão, não iriam tentar nada contra ela, caso contrário, já o teriam feito. Mas, como seria amanhã? Iria o tipo segui-la, quando saísse do prédio? Seria detida, mal colocasse um pé na calçada? As dúvidas perturbavam-na. Quando escolhera a vida política estava longe de pensar que viveria um ambiente semelhante ao que os avós haviam vivenciado no tempo do Estado Novo... Abanou a cabeça instintivamente, aquilo nada tinha a ver com o Estado Novo. O regime político que o PNL ambicionava assemelhava-se mais à realidade idealizada por Hitler na Alemanha ou por Mussolini em Itália. Portugal nunca fora assim. Agora é que parecia pretender sê-lo.
6.1
A tarde cinzenta trouxera consigo um ambiente triste e um frio ténue insuficiente para causar incómodo. As nuvens espessas cobriam o céu e ameaçavam repetir a chuva dos dias anteriores. Clara aproveitara a manhã para sair e caminhar pela propriedade da família. Desde a morte do pai, só vestia negro, calças negras, botas negras, casaco negro. Tinha uma imagem tão sombria que só faltava pintar o cabelo louro de preto e usar maquilhagem gótica.
Sentindo a brisa matinal fresca, Clara parou para observar a encosta carregada de vinhas, linhas e linhas de videiras vazias que quase se perdiam de vista. Tudo aquilo era seu... Bom, três quartos daquilo era seu. A sua mente divergiu para a imagem do dono do quarto restante, dos 25% que o seu pai deixara àquele irmão que ela nunca soubera que existia.
A morte do pai foi um golpe duro para si. Já antes fora a perda da sua mãe, mas nessa altura teve o seu pai para a apoiar. Agora, não tinha ninguém. Julgou ter, naquela noite em Londres, quando conheceu aquele homem maravilhoso que a amara como nunca ninguém a amara. Fizera-a esquecer momentaneamente a desgraça e sentiu um laivo de felicidade. Estava decidida a reencontrá-lo após o luto e juntar o seu mundo ao dele, se ele assim quisesse. Fora tudo tão bom que Clara se convenceu que Rafael poderia ser o seu apoio naquele momento de infelicidade. Ainda a caminho de casa, vinda do aeroporto, ponderou a hipótese de lhe ligar e pedir que, se ele pudesse, a acompanhasse no velório e no funeral. Por alguma razão não o fez e congratulava-se por isso, pois teria sido... Não sabia muito bem como caracterizar. Fosse como fosse, após a chegada a casa e a recepção da carta que o pai lhe deixara, tudo mudou. Havia um irmão? Como assim? Mais uma vez, ponderou recorrer a Rafael para a apoiar quando acontecesse o encontro com essa nova figura que partilhava do seu sangue. Esteve quase a fazê-lo, quando teve o discernimento de perguntar ao advogado da família se sabia o nome desse homem. Rafael Guerra, respondera-lhe. Não era possível. Só poderia ser uma coincidência, uma bizarra coincidência. Porém, a dúvida estancou logo a vontade de ligar a Rafael.
Foi muito complicado, confirmar que não era coincidência, quando viu o seu amante de Londres na sala da casa de família, apresentado como o seu irmão bastardo. Foi duro porque ela estava apaixonada por ele, porque sabia que ele também estava apaixonado por ela e porque todo esse amor era agora impossível entre eles. Todo o seu corpo vibrara de desejo, a memória das sensações de prazer partilhado invadiram-na como uma vaga de maré num mar revolto. Fizera um esforço colossal para se abstrair disso e encarar a situação. As lágrimas que chorou ao encará-lo tornaram-se uma mistura de tristezas acumuladas. E mais triste ficou ao perceber o quanto também ele estava perturbado com aquela revelação.
O advogado havia-lhe dito que esse irmão pretendia abdicar da herança, que estava muito revoltado com o que acontecera no passado e não queria nada do pai de Clara. Ela lamentou. Tinha esperança que esse irmão cuja bizarra coincidência o fazia ter o mesmo nome do seu amante de Londres, e que ela desconhecia, pudesse ser uma boa pessoa e vê-la para além das querelas que tinha para com o seu pai. Contudo, ao ver que era o mesmo Rafael Guerra, houve um misto de vontades. Se por um lado desejava que ele cumprisse o que dissera e partisse para sempre, por outro, ansiava que ele ficasse e se mantivesse perto dela. E ele ficou. Sim, queria que partisse, mas quando o advogado lhe entregou o papel, ela evitou olhar para Rafael para não denunciar o quanto desejava que ele voltasse atrás na sua decisão. E surpreendentemente, ele voltou. Mais uma vez, esforçou-se para não revelar a satisfação que sentia. Sabia que o desejava, mas lutava por o ver como um irmão. Lamentava que ele não conseguisse ou não quisesse fazer o mesmo, poderiam ser muito felizes como irmãos... Ou pelo menos poderiam tentar. Ao invés, ele preferia insistir em algo impossível e ela respondeu com uma postura dura. Não iria ganhar um irmão, somente um sócio com quem teria de ter uma relação minimamente cordial.
Um bando de pássaros esvoaçou das árvores atrás de si. Clara tornou a observar a enorme propriedade, viu alguns trabalhadores atarefados a vistoriar as vinhas despidas de folha e fruto. Receou o futuro, não percebia nada de negócios. Poderia confiar em Rafael? Sim, poderia confiar a sua vida ao Rafael que conhecera em Londres, mas... E o Rafael que reencontrara ali? Poderia confiar nele? O seu coração dizia que sim. Só esperava que não fosse o amor a cegá-la.
Um homem de meia-idade saiu por um dos carreiros de videiras e caminhou na sua direcção. Não era muito alto, tinha um porte forte e um rosto de pele curtida e enrugada pelos muitos anos de trabalho no campo. Vestia um casaco grosso e calças sujas de terra que se enfiavam numas galochas de borracha. Perto dela, tirou a boina da cabeça e cumprimentou:
— Bom dia, menina Clara!
— Bom dia, Marcolino.
Marcolino era o responsável por todos os trabalhadores das vinhas da Herdade dos Jordões. Trabalhava para a família de Clara desde miúdo e era talvez o funcionário mais antigo, à excepção das duas irmãs que governavam a casa.
— Como está a correr o trabalho?
— Bem, menina. — respondeu ele, olhando para os campos e prosseguindo com uma explicação que Clara pouco percebeu.
— Com isto tudo, nem lhe perguntei como está a família.
Marcolino fez um gesto a desvalorizar e disse:
— Todos sofremos com a mor... com o desaparecimento do seu pai. Mas, nada que se compare com o sofrimento da menina. — Clara fez um esforço para não chorar, atormentada pela ausência do pai. Marcolino percebeu e apressou-se a mudar de assunto. — Os que estão por cá, vão andando. Já se sabe, a vida não está fácil. Os restantes que estão emigrados, lá se vão safando.
— Estão todos no estrangeiro?
— Quase todos. Só um irmão é que ficou por cá. — Marcolino apontou para as vinhas. — Deve andar por ali. Só ele e eu é que permanecemos cá na terra e constituímos as nossas vidas aqui. Os outros foram todos embora para a França e a Alemanha. Ah... Excepto o Valério, o mais novo, que está lá para os lados de Lisboa.
Clara anuiu.
Marcolino adoptou uma postura hesitante, revelando que algo o atormentava, mas receava colocar a questão. Mesmo assim, devido à importância da resposta, fez um esforço e com humildade expôs o seu tormento:
— A menina Clara desculpe falar nisto...
— Diga, Marcolino. — acedeu ela, sorrindo para que ele se sentisse seguro em falar, apesar de ela própria temer o que dali viria.
— Com o falecimento de D. Basílio, as pessoas estão preocupadas... — Marcolino não conseguia encará-la. — Têm receio do futuro, a Herdade dos Jordões é o ganha-pão de muitas pessoas...
— Não se preocupe, Marcolino. — descansou-o Clara, tornando a sorrir. — Tudo continuará como antes. Diga às pessoas que estejam descansadas. Eu e o meu... sócio iremos administrar a propriedade com a mesma competência do meu pai.
— Sócio? — questionou Marcolino.
Clara pensou em revelar a existência do irmão. Aliás, estava convencida de que o assunto já chegara ao conhecimento dos trabalhadores e da população das redondezas. Porém, não estava na disposição de partilhar um assunto tão íntimo com um funcionário da casa. Limitou-se a dizer:
— Sim. A Herdade dos Jordões tem um sócio minoritário, o doutor Rafael Guerra que irão conhecer em breve.
— Mas, venderam parte do património? — indagou o homem, considerando que a sua antiguidade lhe dava o direito de se imiscuir naqueles assuntos.
— Não. O meu pai deixou-lhe parte do património.
A expressão de espanto no rosto de Marcolino revelou a Clara que afinal o assunto "irmão bastardo" ainda não se espalhara. Contudo, não iria discutir a questão com ele e atalhou, dizendo:
— Bom, tenho de ir andando. Mas, não se preocupe, Marcolino, nada têm a recear. Ninguém irá perder o seu ganha-pão.
Marcolino tornou a retirar a boina da cabeça em jeito de despedida e Clara afastou-se, prosseguindo o seu passeio pelas terras da família.
A estrada de terra batida acompanhava as centenas de linhas de videiras despidas. Em pontos dispersos, Clara via focos de trabalhadores atarefados. Ao verem-na, todos a cumprimentavam com simpatia, sendo que os que estavam mais perto faziam questão de se aproximar e verbalizar os seus pêsames e elogiar a memória do pai. Clara evitava que fossem momentos muito demorados, protegendo-se de cair num mar de lágrimas pela lembrança dele.
O trajecto mergulhou-a em lembranças, recordando os passeios divertidos com a mãe ou os mais sérios que fazia com o pai. Ambos lhe traziam uma imensa saudade. A mãe levava-a por ali, brincando com ela e contando-lhe histórias, muitas da própria História de Portugal e da História do Mundo, o que dera a Clara um nível elevado de cultura geral e histórica. Já o pai levava-a por ali para falar nas terras, na importância dos campos, na riqueza da família, vendo nela a sua herdeira e futura gestora do património da família Jordão. Clara nunca dera muita importância, não tinha particular interesse nos negócios e acreditou que um dia casaria com um homem competente que, em conjunto com o pai, governariam a propriedade e seria o seu marido a ficar com o seguimento dessa administração após a morte do pai. Só que a vida trocou-lhe as voltas. Órfã e solteira, já para não falar que estava apaixonada pelo irmão, tinha pela frente o desafio de comandar aquilo do qual nunca pretendera tomar posse.
O seu telemóvel tocou, despertando-a das memórias. Pegou no aparelho e reconheceu o número de casa. Atendeu a chamada, ouvindo a voz de Dolores.
— Menina! D. Artur veio visitá-la.
— Pede-lhe que espere uns minutos, Dolores. Estou a caminho.
6.2
Começava a cair uma chuva miudinha, quando Clara regressou a casa vinda do seu passeio pelos terrenos da família. Fora mesmo a tempo, pois se tivesse demorado mais uns minutos não se livraria de se molhar. Entrou em casa, sendo recebida por Maria das Dores que a ouvira chegar.
— D. Artur está na sala. — informou.
Clara avançou pelo átrio e virou para a sala de estar, onde o visitante a aguardava sentado no sofá com a mão direita sobre a bengala que sempre o acompanhava.
Artur era um homem de idade avançada já com evidentes traços de desgaste e mazelas provocadas pelo envelhecimento do corpo. A bengala era a sua melhor amiga e o seu apoio constante a cada passo que dava. Contudo, de mente, Artur continuava na plenitude das suas capacidades. Tinha um cabelo espesso branco e o rosto envolto numa barba igualmente espessa e branca. Usava óculos de aros escuros com lentes que colmatavam as lacunas da sua visão debilitada. Vestia sempre fato, fosse em que ocasião fosse, nunca abdicando da postura formal. Era proprietário de vários hectares de vinha, muitos mais que a própria família Jordão. Tal como acontecia com Basílio, o facto de serem homens muito ricos fazia com que as pessoas os tratassem por "Dom". Artur era amigo de infância do pai de Clara, ambos oriundos de famílias abastadas que enriqueceram com a produção de vinho. Era também padrinho de Clara, um convite que lhe fora feito a ele e à esposa, na altura do nascimento da afilhada, devido a essa amizade forte que unia Artur e Basílio.
Clara aproximou-se ao mesmo tempo que Artur se esforçava, com o apoio da bengala, para se levantar e receber a jovem em pé.
— Deixe-se estar, padrinho. — pediu ela sem conseguir evitar que ele se colocasse hirto para retribuir o abraço que ela lhe dava.
— Como estás, minha querida? — questionou ele no seu tom grave, tornando a sentar-se.
Clara encolheu os ombros, triste.
No funeral, o padrinho fora o seu grande apoio, mantendo-se a seu lado o tempo todo. Era a figura mais paternal que tinha na sua vida, agora que o pai falecera. Para Artur, Clara era como uma filha, uma vez que ele e a madrinha dela nunca conseguiram ter filhos. Se tivessem tido um filho e fosse um rapaz, ninguém duvidava que ambas as famílias tudo teriam feito para que os filhos casassem e a sua união fosse a união dos dois impérios da produção de vinho daquela zona do Douro. Claro que, mesmo que isso nunca tivesse sido falado, seria quase certo que Clara iria herdar a fortuna de Artur, o que faria dela uma das mulheres mais ricas da região.
Clara adorava-o, sempre se sentira segura e protegida perto dele, tal como acontecia perto do seu pai. Apesar de ter por perto Dolores Maria e Maria das Dores no velório, nada substituía a presença de Artur. Fora ele que se sentara a seu lado nas cerimónias, que com ela recebeu os inúmeros cumprimentos lamentosos, que a confortou durante a missa fúnebre, que a segurou quando as pernas lhe fraquejaram ao ver o caixão do pai descer à terra.
Contudo, mesmo estando tanto tempo juntos, não houvera oportunidade nem seria a melhor altura para conversarem sobre alguns assuntos importantes. E era por isso que ele ali estava naquela tarde.
Sentada a seu lado, Clara agradeceu-lhe a visita.
— Sabes que podes contar comigo para tudo o que precisares, Clara.
— Eu sei, padrinho. Obrigada!
Ela sorriu, um sorriso dorido de quem continuava a sofrer com a perda irreparável. Ele tocou-lhe carinhosamente o joelho num gesto de conforto.
— Então, sei que já conheceste o bastardo.
— Não o trate assim, padrinho. — pediu ela. — Ele é meu irmão.
— Pelo que sei, não é homem que prime pela simpatia.
Clara não tinha dúvidas que as fontes do seu conhecimento eram o advogado da família, o qual era também advogado de Artur.
— Não era uma situação propícia a simpatias. Afinal, ele ficou a saber quem era o pai, ao fim de todos estes anos.
— E tu ficaste a saber que tinhas um irmão. — lembrou Artur. — E não foi por isso que o trataste mal, pois não? E talvez tivesses mais razões para isso, uma vez que a sua existência te retirou uma parte substancial da herança.
— Ele é rico. Os 25% devem ser trocos para ele.
— Seja como for, não abdicou deles.
— Nem tinha de abdicar.
Subitamente, Clara percebeu que estava a defender com acérrimo aquele irmão que surgira do nada na sua vida. Ela não estava a defender o irmão, mas sim o homem que lutava para não amar.
Antes que o padrinho suspeitasse de algo, mudou de assunto:
— O padrinho sabia?
— Sabia o quê? — questionou com ar comprometido, disfarçando.
— Que eu tinha um irmão?
Seria impensável acreditar que, com a cumplicidade que existia desde miúdos entre Artur e Basílio, este não soubesse a verdade. Por isso, Artur não lhe mentiu.
— Sim, sabia. — confirmou, algo envergonhado. — Acho que era a única pessoa que sabia, até o teu pai ter feito o testamento e reconhecer o rapaz.
— Conheceu a mãe dele?
Artur hesitou. Apoiou as mãos na bengala e depositou os olhos nos nós dos dedos. A sua mente foi aos confins da memória, buscar imagens carregadas das teias de aranha do esquecimento.
— Era uma moça bem bonita. — acabou por dizer. — Uma rapariga do Porto que trabalhava numa sapataria. Conhecemo-la numa viagem que fizemos à cidade, quando fomos a uma reunião. Vínhamos exaustos e felizes. Parámos na sapataria porque o teu pai insistiu que precisava de comprar uns sapatos novos. E não encontraria nada de qualidade por aqui, por isso, lá fomos antes do regresso. Foi aí que se conheceram.
— O pai e a mãe...
— Não, não! — negou com veemência. — O teu pai ainda não conhecia a tua mãe. — Sorriu com saudade. — O Basílio era um mulherengo. — Tornou a adoptar um semblante sério. — Desculpa, Clara! — Ela sorriu e desvalorizou. — Se isto é coisa que se diga... Paz à sua alma!
— E depois? — questionou curiosa.
— Houve uma empatia grande entre eles. — prosseguiu de novo com o olhar perdido nas recordações. — Ela era uma rapariga mesmo muito bonita. Não era difícil ficar encantado com ela. — Olhou para Clara com uma expressão sincera. — Se já não fosse casado com a tua madrinha, não sei se não me teria perdido também de amores por ela.
— E o meu pai perdeu-se de amores por ela. — adivinhou Clara.
Artur não respondeu logo, limitando-se a olhar para o tecto, como se procurasse ver o amigo falecido lá em cima.
— Desculpa, Basílio! — pediu para o vazio. Tornou a olhar para o rosto da afilhada. — Não. O teu pai gostava dela. As idas ao Porto tornaram-se recorrentes. Eu não ia com ele, obviamente. Mas, falávamos sobre isso. O teu pai nunca teve intenção de que aquilo fosse mais que um namorico. Só que depois... ela engravidou.
Clara abanou a cabeça, quase descrente daquilo que ouvia.
— Até custa a acreditar que o meu pai fosse capaz de engravidar uma mulher e abandoná-la.
— Ele estava convencido que fora um golpe para o agarrar. — explicou o padrinho. — A rapariga sabia como o Basílio era rico. Talvez tivesse tentado o golpe... Enfim, percebes o que quero dizer.
Clara imaginou a reacção de Rafael se ouvisse aquilo.
— Mesmo assim, não era razão para a abandonar por completo. — lamentou Clara. — Poderia, de alguma forma, fazer-lhe chegar alguma ajuda financeira.
— Seria o mesmo que reconhecer que tinha um filho. — atalhou cheio de certezas. — E uma das coisas que o Basílio me repetia para justificar a sua atitude era dizer que o filho não era dele.
— Mas era.
— Sim. E ele não tinha dúvidas disso.
— E a minha mãe...
— Nunca soube. — revelou Artur. — E só após a sua morte é que o Basílio alterou o testamento e reconheceu o miúdo.
Clara sorriu.
— O miúdo tem uns oito anos mais que eu.
Artur correspondeu ao sorriso, afirmando:
— Com a minha idade, vocês são todos umas crianças.
Ouviu-se bater à porta. Dolores surgiu na entrada da sala, oferecendo-se para trazer um chá ou um licor. Artur agradeceu o licor, Clara aceitou o chá.
— O que achaste do bast... do teu irmão? — questionou Artur.
A questão apanhou Clara de surpresa, não sabendo muito bem como o caracterizar.
— Não sei muito bem. — acabou por responder. — Não me desagrada ter um irmão, mas sinto que há ali muita raiva e amargura.
— Teria sido bem melhor que ele tivesse mantido o compromisso e abdicado de tudo. Temo que seja um foco de problemas.
— Não creio, padrinho. — defendeu novamente. — Tenho esperança que ele possa ultrapassar isso. Ao fim ao cabo, ele tornou-se a única pessoa com quem ainda mantenho laços de sangue.
Artur não partilhou do seu optimismo.
Dolores tornou a entrar. Trazia um tabuleiro com um cálice e uma garrafa de licor, bem como uma chávena e um bule de chá. Depositou tudo sobre a mesinha defronte do sofá e abandonou a sala.
— A carta que o teu pai te deixou. — lembrou Artur. — Falava em mais alguma coisa, para além deste teu irmão, não falava?
Clara assentiu, enquanto enchia o cálice com licor e o entregava ao padrinho.
— Sim. O pai referiu que o padrinho teria um assunto muito sensível e importante para falar comigo, algo que me poderia parecer surreal.
— É um assunto muito importante e que deverás manter sempre com o mesmo secretismo que o teu pai manteve. Aliás, que o teu pai manteve, tal como eu e os restantes membros daquilo que te vou contar.
Clara serviu-se do chá e aguardou expectante por mais uma revelação. Será que as novidades, as mentiras, as omissões não teriam fim?
Artur olhou em volta, como se temesse que alguém os escutasse.
— Está a deixar-me preocupada, padrinho. — confessou Clara.
— Há muitos anos, o teu pai e eu fundámos uma sociedade... uma espécie de sociedade secreta.
— Oh... Meu Deus. — suspirou ela, agastada.
— Ouve, Clara! É importante. — pediu o padrinho, olhando-a com muita seriedade. — Como sabes, nunca foi segredo para ninguém que tanto o teu pai como eu somos monárquicos. Defendemos a Monarquia no lugar da República. Porém, não nos mantivemos no papel de querer um sonho ou fazer revindicações vãs. Nós criámos uma sociedade secreta que se move nas sombras com o objectivo de ganhar influência em pontos essenciais, de forma a, pelo menos, conseguir um referendo para que o povo escolha entre a Monarquia e a República.
— E é preciso uma sociedade secreta para isso?
— Ao início, optámos por não fazer alarido do grupo. — explicou. — Afinal, algo que não é visto tem mais possibilidades de chegar ao objectivo do que algo que possa ser visualizado e controlado. Só que, com o estado em que o país está actualmente, com este governo com laivos de ditadura, com uma espécie de polícia política, tornou-se imperativo que o secretismo fosse mantido. — Artur bebeu um pouco de licor. — Demos ao grupo o nome de Irmandade Monárquica dos Ducados Extintos e atribuímos a cada um de nós um título nobiliárquico que existira outrora, mas que se extinguira. — Sorriu com algum divertimento. — Não queríamos que, um dia, quando pudéssemos vir à tona, alguém ficasse melindrado. Assim, escolhemos o título de Duque e cada um de nós escolheu o seu. Eu sou Duque de Caminha. Mas, nenhum dos títulos tem valor real.
— E o meu pai?
— O teu pai era Duque da Guarda. — respondeu com formalidade. — Há mais duques que a seu tempo conhecerás.
— Conhecerei? — questionou apreensiva. Chegava de novidades. — Como assim?
— O título dentro da irmandade é hereditário. Se bem que possa ser passado a qualquer pessoa. Cada elemento nomeia um herdeiro do título. Obviamente, o teu pai nomeou-te a ti.
— Obviamente? — inquiriu, meio irritada com um misto de receio e surpresa. — Poderia ter nomeado o meu irmão.
— Achas que iria nomear alguém que ele nem sequer conhecia? — retorquiu Artur em jeito de reprimenda. — Além disso, tu és a sua sucessora natural. E isso faz de ti Duquesa da Guarda, dentro da irmandade.
— Não sei se quero essa responsabilidade.
— Não me parece que tenhas escolha, Clara. — disse ele de forma assertiva. — E devo alertar-te que não podes comentar nada sobre isto fora da irmandade. E muito menos partilhar o assunto com o teu irmão.
Clara abanou a cabeça incrédula, mas respeitou o que lhe era ordenado.
— Calculo que o vosso... o nosso objectivo seja fazer com que o pretendente ao trono se torne rei, correcto?
— Sim, mas não me parece que aconteça com D. Jerónimo.
- Jerónimo de Souvares era o membro real mais importante da Casa de Souvares, a linhagem reconhecida pela Causa Monárquica, e pela grande maioria dos monárquicos, como descendente legítimo do trono de Portugal. O Duque de Bragança (este sim, título legítimo) tinha quase setenta anos e tinha vindo a ser nas últimas décadas o rosto da Monarquia em Portugal. Era casado com D. Leonor de Souvares, três anos mais nova e de quem tinha um filho, D. Luís Filipe de Souvares, um homem de quarenta e cinco anos que era piloto da Força Aérea Portuguesa.
— É no filho, no Príncipe Real, que as nossas esperanças se depositam. — esclareceu Artur. — Chamamos-lhe Príncipe Real porque tem o mesmo nome do anterior, o filho do rei D. Carlos I. E também achamos que é feito da mesma fibra dele. — Olhou para a afilhada com uma expressão facciosa. — O que este país poderia ter sido se aqueles canalhas não tivessem tido sucesso no Regicídio de 1908... D. Luís Filipe teria sido um grande rei.
— O padrinho desculpe, mas tudo isso me parece surreal e altamente improvável.
— Compreendo a tua falta de crença, Clara. Mas, quando conheceres melhor a Irmandade, talvez possas ter uma ideia diferente. — alvitrou Artur. — O regresso da monarquia a Portugal pode não ser tão irreal quanto possas pensar.
— O único meio que vejo, actualmente, para que isso suceda seria obter apoio do partido do governo. — sugeriu Clara. — É do conhecimento geral a inimizade que existe entre o Pinto Henriques e o Flávio de Melo.
— Um golpe de estado?
— Uma Implantação da Monarquia à imagem do que aconteceu com a Implantação da República em 1910. Com o apoio do governo e do PNL, não me parece que fosse difícil de realizar.
Artur anuiu com um sorriso. Agradava-lhe que Clara, sem se aperceber, já começasse a pensar como um deles. Abanou a cabeça e relatou:
— Houve quem tivesse pensado nisso. Fizeram chegar a ideia a D. Jerónimo. Só que ele refutou liminarmente a ideia, justificando que deveria ser o povo a escolher o que queria, se a República se a Monarquia. Para além disso, é público a forte amizade entre o Duque de Bragança e o Presidente da República. Eles foram colegas na escola, chegaram a fazer serviço militar juntos. Acredita, Clara, enquanto for D. Jerónimo o herdeiro ao trono, isto continuará tudo como está.
— Então, pelo que percebo, a Irmandade deverá permanecer adormecida até que D. Jerónimo morra?!
— Não está adormecida, Clara. Continua a mover influências para estar apta a reagir no momento certo.
Clara assentiu vagarosamente, mas revelou uma expressão céptica.
— Que se passa? Noto alguma relutância em ti.
No rosto da afilhada surgiu um sorriso travesso.
— O padrinho desculpe, mas tenho alguma dificuldade em ver os Souvares como herdeiros do trono.
— Porquê? — interrogou Artur, surpreso com aquela posição.
Clara poderia não perceber nada de negócios, entender pouco de vinhos, mas em História, principalmente a portuguesa, tinha um nível cultural muito acima da média.
— Não podemos esquecer que os Souvares são primos muito afastados do último rei de Portugal.
— O último rei não deixou descendência, tal como o irmão mais velho que foi assassinado com o pai. — lembrou Artur.
— Mas havia uma meia-irmã...
Artur fez um esgar aborrecido, incomodado com o assunto que possivelmente já fora abordado noutras ocasiões.
— Uma suposta filha de D. Carlos, de um suposto romance adúltero que o monarca tivera... Poupa-me, Clara. Nunca se conseguiu provar nada disso, nem encontrar factos que legitimassem essa pretensão.
— Também nunca se esforçaram muito para saber a verdade.
— Não digas isso. Se fôssemos a dar atenção a todas as pretensões. — argumentou Artur, revelando o seu lado mais convicto. — A realidade é que a Casa de Bragança foi decepada da sua linhagem. Quase parecia estar amaldiçoada, que Deus me perdoe. — Suspirou com amargura. — O último rei não teve filhos, o irmão não teve tempo para os ter. Sem descendência nos filhos de D. Carlos, o irmão deste poderia ter sido uma alternativa, mas D. Afonso também não deixou herdeiros.
— E com isso, a pretensão ao trono é legitimada na linhagem real que fora banida há dois séculos atrás. Não só banida, como todos os seus descendentes foram excluídos para sempre das pretensões ao trono.
— Isso foi revogado, Clara.
— Mesmo assim. Ele foi o causador de um conflito sangrento.
— E quantos reis não o foram, ao longo dos séculos? — Artur sorriu. — Nunca pensei que a minha afilhada fosse uma defensora tão vigorosa do liberalismo.
— Sou. — confirmou segura. — Mas, não acredito que o padrinho, por defender os Souvares, seja um absolutista.
— Não, não sou. — concordou Artur. — Nem creio que os Souvares sejam. E continuo a acreditar que D. Jerónimo poderia ser um bom rei de Portugal, tal como o seu filho.
— Não ponho isso em causa, padrinho. Só questiono a legitimidade. Não me revejo no bisneto de um absolutista que gerou uma guerra civil.
Artur fez um sorriso condescendente.
— Tu és uma rapariga inteligente e muito conhecedora da História de Portugal. O rei absolutista fez o que achou ser melhor para Portugal. Não te esqueças que o irmão, na minha visão dos acontecimentos, foi um traidor ao encabeçar a independência de uma colónia do reino, o Brasil. Proclamou-se imperador e nomeou a filha sua sucessora em Portugal. Segundo a Lei da época, ao ascender ao trono de um país estrangeiro (tornara o Brasil independente de Portugal), ele perdera todos os direitos ao trono português. Para além disso, o rei absolutista era acarinhado pelo povo que, fustigado pelas guerras e fome, queria um rei forte no trono. Se pensares bem, concluirás que quem começou a guerra civil foi o ex-imperador do Brasil.
Clara ponderou um pouco, como se equacionasse o que ouvira. Porém, a sua mente engendrava a contra-argumentação. Artur adorava aqueles debates com a afilhada.
— Pode ser que tenha razão, padrinho. Mesmo assim, não me revejo no absolutismo desse rei. Mas, abro a minha mente na crença de que D. Jerónimo... Aliás, D. Luís Filipe poderá ser um rei liberal e um monarca moderno.
— Teria sido preferível alguém de linhagem real mais próxima do último rei. — concedeu Artur. — Não discuto que foi uma linhagem que nos deu excelentes monarcas amados pelo povo, o Muito Amado, o Popular, o próprio D. Carlos... Gente com obra importante.
— A Monarquia só caiu por causa dos movimentos europeus, da crescente crispação contra a nobreza. — recordou Clara. — E essencialmente pela ignorância do povo que se deixa levar por ideais questionáveis como se fossem a salvação e a solução para tudo.
— Sim, Clara. — concordou o padrinho com o tom preocupado. — Um pouco à imagem dos tempos que atravessamos. Foi com esse estratagema que o PNL chegou ao poder.
Clara pousou a chávena de chá sobre a mesinha. Recebeu o cálice vazio de licor do padrinho e também o juntou aos objectos sobre o tabuleiro. Tornou a encostar-se ao sofá e questionou:
— A Irmandade tem muitos elementos?
Artur recuperou a solenidade, demonstrando como aquele assunto era sensível. Sem se querer alongar muito, disse:
— A seu tempo conhecerás a resposta e cada um deles.
— Tanto mistério, padrinho. — constatou com alguma diversão.
— Acredita que é essencial. — insistiu com seriedade. — No momento actual, o secretismo pode ser fulcral para a nossa sobrevivência.
Clara percebeu a verdadeira dimensão do que lhe era dado a conhecer e comprometeu-se a tomar todas as precauções necessárias. Até ao momento em que lhe fossem apresentados os restantes "irmãos duques", apenas com o padrinho poderia falar naquele assunto.
Artur olhou para a janela da sala mais perto deles. Começava a escurecer. Contudo, ele ainda não esgotara os assuntos que o haviam trazido ali.
— Clara, admiro o teu conhecimento de História.
— Mas... — retorquiu a afilhada, conhecendo bem o padrinho.
— Preocupa-me a tua capacidade para os negócios. — confessou. — Herdaste um negócio muito valioso. A produção de vinhos da Herdade dos Jordões vale uns bons milhões. Já pensaste como vais gerir isto?
Clara revelou não estar atemorizada pela dimensão da empresa. Ou, pelo menos, não o demonstrava.
— Não sou a única dona. O meu irmão tem um quarto do património e muita experiência nos negócios.
— Tens a certeza disso?
— Foi ele quem mo contou, quando conversámos.
Quando conversaram em Londres, quando estavam a caminhar para um envolvimento que se tornaria impossível. Clara dera-se ao trabalho de investigar o irmão na Internet e confirmara muito daquilo que ele lhe revelara.
— Mal o conheces, Clara. Não sei se poderás confiar assim nele.
— Eu confirmei, padrinho.
— Sim... Mas, não me refiro a duvidar daquilo que te contou. Eu próprio fiz alguma investigação. O Rafael Guerra é um empresário de sucesso. Só receio que a sua motivação venha a ser a destruição do teu património, uma espécie de vingança pelo que aconteceu no passado.
— É o nosso património, padrinho. Também é dele.
— Tu própria disseste que isto seria uma pequena fatia da sua fortuna pessoal. Receio que...
Clara sabia que o amor que o irmão tinha por ela era maior que qualquer sentimento de raiva ou vingança.
— Eu confio nele, padrinho. Acho que lhe devo dar o benefício da dúvida.
— Mesmo assim, não devias deixar que ele afastasse o vosso advogado.
— Tal como o padrinho disse, a minha capacidade para os negócios é discutível. O Rafael percebe muito mais. Se ele acha que devemos afastar o advogado, irei seguir a sugestão dele.
Artur observou-a por um breve momento. Havia ali algo que lhe estava a escapar. Não conseguiu discernir o que era. Olhou para o relógio e disse:
— Está a fazer-se tarde, Clara. Tenho de regressar a casa.
Clara ajudou-o a levantar-se do sofá.
Apoiado na sua bengala, Artur beijou a testa da afilhada com grande carinho. Ela era como uma filha para si. Não escondeu o semblante preocupado.
— Sentir-me-ia mais seguro, se me fosses dando conta de como vão correndo os negócios. — pediu. — Desculpa, mas não partilho da tua fé nesse Rafael Guerra. Posso ir analisando a documentação, os processos... Dessa forma, poderia aconselhar-te, caso ele faça alguma parvoíce.
Clara sorriu e beijou-lhe a face.
— Não se preocupe, padrinho. Vai correr tudo bem. E se eu tiver alguma dúvida, peço o seu auxílio.
Artur concordou vencido, uma vez que temia que a Herdade dos Jordões implodisse à custa do seu bastardo vingativo.
6.3
Era mais uma tarde horrível de chuva a norte do país. O céu tenebroso de nuvens escuras não atenuava nem um pouco, fustigando a estrada com um dilúvio de proporções bíblicas.
Rafael conduzia o Porsche com precaução, mais uma contrariedade, pois gostava de pisar no acelerador sempre que escolhia aquela máquina para viajar. O dia estava a ser para esquecer, uma manhã onde os problemas pareciam ter escolhido a mesma altura para precisarem de resolução, os negócios a sofrerem revezes, uma queda da Bolsa que o fizera perder alguns milhares de euros... E tudo no dia em que se mudaria por uns tempos para a Herdade dos Jordões.
Saíra do Porto após um almoço de negócios, uma refeição que não lhe soubera a nada, onde alinhavara os pontos principais para a aquisição de um terço de uma grande empresa de calçado. Continuava a investir no sector, sempre como uma homenagem à falecida mãe. Gostaria de ter pagado menos pela quota, mas não estava com paciência para negociar mais, quando não lhe saía da cabeça que aquele seria o dia em que iria rever a mulher por quem se apaixonara e que não poderia amar como gostaria.
Fora uma viagem carregada de chuva e mais chuva até que, curiosamente, findou ao aproximar-se da propriedade da família Jordão. Desta vez não precisou do GPS, tinha facilidade em memorizar percursos. Avançou pela entrada da Herdade dos Jordões e parou o carro no mesmo lugar em que ficara da primeira vez. Não se via ninguém e calculou que ninguém o esperava, apesar de ele ter enviado uma mensagem escrita a Clara a informar a sua vinda. Saiu do carro e respirou o ar puro, tão diferente do ambiente citadino. Por momentos, imaginou como poderia ter sido a sua vida se a sua mãe tivesse casado com o homem que a enganara e ele tivesse crescido ali. Esses pensamentos evaporaram-se com a abertura da porta principal do palacete. Rafael viu uma das irmãs governantas da casa a sair. Seria qual? Não se dera ao trabalho de fixar quem era a Dolores e quem era a Dores.
— Boa tarde, doutor Guerra! — cumprimentou do cimo das escadas. Um jovem com vestes humildes, talvez um trabalhador do campo, surgiu ao lado da senhora. Ela olhou para ele. — Vai buscar a bagagem do doutor Guerra, por favor.
— Com certeza, dona Maria das Dores. — acatou o jovem, descendo as escadas.
Então aquela era a Dores. Iria tentar fixar, não que isso fosse importante. Rafael abriu a bagageira do Porsche e indicou as malas ao jovem que pegou em tudo com cuidado e retornou ao edifício como se fosse um burro de carga.
Com um semblante carregado, Rafael subiu as escadas. Apesar de sentir algum atrito na postura da governanta, não iria ser descortês e cumprimentou-a:
— Boa tarde... — Hesitou sem saber muito bem por que nome a tratar. — Posso tratá-la por Dores?
— Claro, senhor doutor. — concordou sem o mínimo sinal de simpatia para além da protocolar. Indicou-lhe a porta. — Faça favor de entrar. Irei mostrar-lhe onde fica o seu quarto.
— Depois de si, Dores. — sugeriu Rafael, aguardando que ela entrasse e o conduzisse pela casa.
O rapaz que transportara as malas já deveria saber para onde levar tudo, uma vez que ao entrar, Rafael não o tornou a ver.
Maria das Dores caminhou um passo à frente de Rafael. Entraram no átrio e seguiram para as escadas. Os largos degraus terminavam a uma altura de meio piso para dar lugar a dois acessos, duas filas de degraus mais estreitos com cerca de metade da largura da primeira, uma à esquerda e outra à direita, na direcção contrária, as quais terminavam num varandim sobre a escadaria maior. A governanta virou para o lado direito.
Todo o ambiente era clássico, muitas pinturas, esculturas e peças de decoração do século passado ou mais. Rafael sentiu-se a caminhar por um palácio da realeza. As paredes eram forradas a papel, as janelas emolduradas por reposteiros pesados, o chão em madeira com o caminho delineado por carpetes que abafavam os passos de quem por ali passava. No tecto alto, um candeeiro imponente com meia dúzia de lâmpadas acesas.
No topo das escadas, no varandim que voltava a ligar ambas as escadarias estreitas, a parede maior tinha uma pintura enorme com três pessoas, um homem, uma mulher e uma criança. Rafael parou e ficou a observar.
— É o senhor D. Basílio, a esposa e a menina Clara. — explicou Maria das Dores, ao vê-lo com a curiosidade cravada no retrato.
Pois... Um retrato de família, um retrato onde ele não estava porque aquela não era a sua família. Ele era apenas um bastardo. Sem se manifestar, Rafael virou-se para a governanta num sinal silencioso para que prosseguissem.
Maria das Dores abriu a porta mais próxima, o que os levou a um corredor escuro que se iluminou fracamente quando ela carregou no interruptor e se acenderam dois apliques nas paredes. Neste espaço não havia quadros, somente dois jarrões chineses a meio do comprimento. O papel de parede era idêntico e o chão alcatifado. Existiam duas portas de cada lado e uma outra ao fundo, a qual estava entreaberta. A senhora explicou que as duas do lado direito eram quartos virados para a frente e do lado esquerdo a primeira porta era um quarto virado para trás e a seguir a porta da casa de banho que servia todos os quartos.
— A menina pediu que preparássemos o quarto maior para si. — disse, apontando para a porta do fundo.
— Este é o sector dos quartos. — concluiu Rafael, quase como quem visita uma casa para a comprar.
Num tom sem qualquer emoção, Maria das Dores retorquiu:
— Sim, este é o sector dos quartos de hóspedes. Os quartos da família são na outra ponta.
Rafael começou a considerar que a governanta não perdia uma oportunidade de o lembrar que ele não pertencia ali. Esperava, para bem desta, que ela não estivesse a tentar comprar um conflito com ele, tomando para si as dores de terceiros. Ela que se ficasse pelas dores que já trazia no nome.
Ao chegarem à porta do fundo do corredor, Maria das Dores abriu-a totalmente e entrou. Rafael seguiu-a e viu o rapaz que trouxera a sua bagagem à espera junto à cama.
— Obrigada, Porfírio! Podes ir.
Revelando o desconforto de ali estar, o jovem apressou-se a ir embora.
Rafael observou o interior, tão clássico como tudo o resto que observara desde que entrara naquele palacete. O quarto era espaçoso com uma cama de casal em madeira de carvalho, composta por um colchão grosso, uma cabeceira trabalhada com floreados abstractos encostada à parede oposta e pés altos esculpidos na mesma madeira.
— Espero que seja do seu agrado, doutor Guerra. Se precisar de alguma coisa, é só chamar.
Rafael anuiu e Maria das Dores retornou à porta para o deixar sozinho. Porém, antes de sair, ele questionou:
— A Clara?
— A menina Clara saiu. Deve voltar ao fim da tarde.
— Obrigado! É tudo. Pode ir, Dores.
Sozinho no quarto, Rafael prosseguiu a observação. Ao lado da cama, na parede frontal à porta, existia uma janela com vista para o jardim. Ele caminhou lentamente até à parede à sua esquerda, onde se arrumava um roupeiro no mesmo mobiliário da cama e existia uma passagem para uma varanda. Esta estava virada para as traseiras da casa e dali era possível observar uma parcela substancial das vinhas da família. Atravessou o quarto para o outro lado, onde foram colocadas uma poltrona confortável e uma escrivaninha com uma cadeira, mantendo o traço do mobiliário clássico, onde ele aproveitou para colocar o seu computador e a pasta com documentos. Esse pequeno escritório no quarto era iluminado por outra varanda, esta virada para a frente do palacete. Desta vez, Rafael abriu as portas de vidro, sentindo o ar frio húmido do exterior. Espreitou lá para fora e viu o largo frontal ao palacete, desviado para a sua direita, onde desembocava o traçado que vinha dos portões de entrada e onde permanecia estacionado o seu automóvel. Novamente no interior, fechou os vidros e despiu o casaco do fato. Só existia mais uma peça de mobiliário, uma cómoda com duas gavetas pequenas e três grandes encostada à parede ao lado da porta do quarto.
Nos momentos seguintes, Rafael dedicou o tempo a arrumar as suas coisas, instalando-se o melhor possível num ambiente que nada tinha a ver consigo. Fora interrompido algumas vezes por telefonemas de trabalho, mais problemas num dia que parecia tão enevoado quando o clima lá fora. Gostaria de ter deitado mão aos documentos referentes à empresa de vinhos, começar a analisar o negócio do qual herdara 25%. Contudo, Clara não se encontrava em casa e não achou por bem começar a meter o nariz nas coisas na sua ausência. Por isso, optou por se sentar defronte do computador e dar andamento a algumas questões pendentes dos seus próprios negócios.
Lá fora, a tarde começou a dar lugar à noite. O Inverno começava a dar tréguas e os dias iam sendo maiores. Mesmo assim, com a chuva que voltara, a claridade esfumou-se, obrigando-o a ligar a luz do candeeiro secular pendurado no tecto. A sua concentração regressou ao ecrã, à consulta da sua caixa de email.
Entre um relatório de vendas e a leitura de uma acta, a sua concentração foi quebrada pelo som de alguém a bater à porta do seu quarto. Detestava que o importunassem quando estava a trabalhar. Era esse tipo de interrupções que dava azo a que se cometessem erros e escapassem pormenores importantes.
— Entre! — concedeu maldisposto.
A porta abriu e ele viu entrar Clara, a qual permanecia com os seus trajes escuros lutuosos. Desta vez, envergava uma camisola azul‑escura e uma saia comprida preta.
— Olá, Rafael! — cumprimentou com reserva.
Ele levantou-se da cadeira para a receber, mas não se aproximou. Esboçou um sorriso e retribuiu:
— Olá, Clara!
— Desculpa estar a incomodar-te...
— Nunca me incomodas, Clara.
Ela encolheu os ombros e permitiu-se a sorrir.
— Quis vir dar-te as boas-vindas. Espero que esteja tudo ao teu gosto.
— Sim, estou confortável.
— Gostas do quarto?
Rafael detectou uma tentativa de fazer assunto, quebrar o gelo que se edificara entre eles, desde que as verdades vieram à superfície das suas vidas.
— Sim. — confirmou ele. Apontou para a poltrona. — Não te queres sentar?
Clara aceitou o convite e deslocou-se meio tímida até ao assento.
— Podes fechar a porta.
— É melhor não, Rafael.
A posição deixou-o intrigado, quase ofendido.
— Não te vou fazer mal...
— Sei que não, Rafael. Não é por ti.
— Então...
— Não quero que se comece a pensar coisas.
— Como queiras. — concordou aborrecido, tornando a sentar-se logo que a viu ocupar a poltrona.
— E então? Fizeste boa viagem, Rafael?
— A possível. Este tempo está horrível. Desde o Porto que a estrada mais parecia um rio. Só melhorou perto daqui.
— Por aqui não esteve muito mau. — referiu, procurando manter assunto. — A Dolores disse-me que tens estado no quarto. Não quiseste ir ver a propriedade?
— Tinha coisas para resolver. — justificou, apontando para o computador. — E estou mais preocupado em ver a papelada da empresa.
— Sim, claro. Hoje já é tarde, mas amanhã posso mostrar-te a que está no escritório, lá em baixo. — sugeriu Clara. — E também gostava de te mostrar a nossa propriedade.
Rafael não tinha grande interesse em passear pelas vinhas. Isso não lhe interessava. O que o preocupava era o lucro, era perceber se o negócio ia nos eixos e se tinha viabilidade para continuar. Anuiu num gesto vago.
— Podemos fazê-lo pela manhã e depois reunimos no escritório e analisamos juntos a papelada. Que me dizes?
Nesse instante, Dolores apareceu à porta do quarto.
— Boa noite, doutor Guerra! — cumprimentou e usou um tom intensamente formal. — Com a sua licença. Espero que esteja tudo ao seu gosto. — Olhou para Clara. — O jantar está pronto, menina. Posso servir?
— Sim. Obrigado, Dolores.
Clara virou-se para Rafael.
— Fazes-me companhia? — convidou. Ele ia a aceitar, mas... — Será a primeira vez que tenho o privilégio de jantar com o meu irmão.
Rafael teve vontade de a lembrar que não era a primeira vez que jantavam juntos, vontade de lhe gritar que não era... não queria ser seu irmão. Ao invés, assumiu um semblante fechado e recusou:
— Não tenho fome.
Clara sentiu a "nega" como uma chapada. Fora levada a crer que ele repensara a sua postura e iria vê-la como aquilo que ela era, sua irmã, e não como aquilo que ele gostaria que ela fosse, sua amante. Correspondendo ao rosto fechado, redarguiu:
— Como queiras.
Sem esconder a decepção, levantou-se da poltrona e caminhou na direcção de Dolores, que se movimentou para o corredor. Antes de sair do quarto, Clara tornou a olhar para Rafael:
— Encontramo-nos amanhã ao início da manhã? Para conheceres a propriedade?
— Sim.
— Não te convido para o pequeno-almoço. — atirou com azedume. — És bem capaz de voltar a não ter fome para partilhar uma refeição com a tua irmã.
Rafael ia a contestar, mas Clara não lhe deu tempo, saindo e fechando a porta do quarto.
Duas horas mais tarde, a necessidade de comer alguma coisa fê‑lo sair do aposento. Não queria pedir nada a ninguém, toda a vida se habituara a não ter criados e só mesmo no hotel fazia uso do serviço de ser servido. Saiu do quarto para o corredor escuro. Teve dificuldade em encontrar o botão para acender a luz, comum a quem não conhece o local por onde circula. Com a ajuda da luz do telemóvel, lá encontrou o interruptor.
A casa estava num silêncio profundo. Rafael esperava encontrar Clara no salão ou que ela viesse ao seu encontro, caso o ouvisse a caminhar por ali. Desceu as escadas iluminadas pelo lustre que só era desligado quando as governantas se recolhiam. Não encontrou ninguém no salão, nem na sala de refeição, onde fora lido o testamento. Não conhecia mais nada e não lhe pareceu correcto começar a bisbilhotar à procura da cozinha para assaltar o frigorífico. Nesse instante, uma voz surpreendeu-o:
— Posso ajudá-lo, doutor Guerra?
Rafael viu Maria das Dores atrás de si.
— Estava à procura da cozinha. Ia comer alguma coisa.
— Bastava chamar, doutor Guerra. — disse ela em jeito de reprimenda. — A culpa é minha. Não lhe expliquei que o quarto tem um botão para nos chamar, caso precise de alguma coisa.
— Pois seria igual. — retorquiu ele. — Não sou adepto de fazer dos outros meus criados. — Notou o olhar condenatório dela. — Posso ter dinheiro, mas não nasci em berço de ouro.
— Nem eu, doutor Guerra. E se bem está lembrado, tanto eu como a minha irmã, recebemos mais que suficiente para não sermos criadas de ninguém, muito menos...
— Muito menos...? — questionou ele, desafiando-a a continuar.
Maria das Dores fez um gesto de desinteresse.
— Aguarde um pouco no salão. Vou preparar-lhe um lugar na mesa e servir-lhe o jantar.
— A Clara...
— A menina Clara já recolheu ao seu quarto.
Rafael aguardou sentado no sofá do salão, onde uma lareira fumegava os últimos resquícios de lenha ardida nesse serão. Ficou a olhar para a televisão desligada e deixou-se relaxar no ambiente silencioso. Ao fim de poucos minutos, Maria das Dores informou-o que poderia passar para a sala de refeições, onde o jantar o esperava. Comeu sozinho na ausência de qualquer som da ampla sala. A governanta desaparecera pela porta ao fundo, certamente o acesso à cozinha, com a indicação que a chamasse se quisesse mais alguma coisa.
No fim, saciado pelo jantar simples e reconfortante, Rafael chamou Maria das Dores.
— Obrigado. — agradeceu. — Estava muito bom.
Maria das Dores assentiu sem valorizar o elogio.
Ele ia a afastar-se, mas não o quis fazer sem antes pedir:
— Desculpe!
Ela encarou-o com surpresa.
— Peço-lhe desculpa, Dores. — continuou. — Se fui inconveniente consigo ou se de alguma forma lhe falei de forma imprópria, peço-lhe desculpa. Eu não sou assim.
— Não há nada a desculpar, doutor Guerra.
— Mesmo assim... Aceite o meu pedido.
— Está desculpado, doutor Guerra.
Rafael sorriu. E para sua surpresa, Maria das Dores retribuiu-lhe o sorriso.
— Tenha uma boa noite, Dores!
— Igualmente, doutor Guerra!
Rafael dirigiu-se para a porta, mas a governanta travou-o.
— A menina ficou muito triste por não ter vindo jantar com ela.
Aquela revelação surpreendeu-o. Não o facto de Clara ter ficado triste, mas sim que a governanta o estivesse a partilhar consigo.
— Eu sei... Mas, isto ainda é tudo muito... Como dizer? É complicado. — Viu na senhora uma expressão de compreensão misturada com discordância. — A que horas é que a Clara toma o pequeno-almoço?
— Por volta das nove.
— Coloque dois lugares na mesa, por favor.
— Assim farei, doutor Guerra.
6.4
A rigidez do colchão dificultara-lhe a entrada no sono. Contudo, uma vez adormecido, Rafael dormira uma noite maravilhosa que só terminou quando o despertador do telemóvel o acordou. Era um homem habituado a levantar-se cedo e a deitar-se tarde. Saltou da cama com energia, vendo a claridade exterior que adivinhava um dia sem chuva e algum Sol. Pegou numa toalha de banho e saiu do quarto em pijama para ir tomar um duche. Preferia ter um WC privado no quarto, mas ali não fazia diferença, pois era o único ocupante daquela ala do palacete. Tornou a deparar-se com o desenho antiquado do mobiliário, da banheira cercada por uma cortina impermeável, as torneiras arcaicas em dourados envelhecidos... Só esperava que a água quente funcionasse.
Finalizado o duche, Rafael retornou ao quarto envolvido na toalha. Teve o cuidado de espreitar se alguém andava por ali, uma vez que não queria confrontar ninguém com a sua seminudez. Escolheu uma roupa mais informal para vestir nesse dia. Se era para andar a caminhar pelas terras, susceptível a encarar pó e lama, um fato Armani não seria certamente a escolha ideal. Vestiu umas calças de ganga, uma camisa às riscas e um pulôver de lã. Calçou umas sapatilhas Adidas... mal‑empregadas... e ficou pronto para descer.
Tal como ele pedira, a mesa da sala de refeições tinha dois lugares para o pequeno-almoço. Não encontrou ninguém, mas ainda faltavam uns quinze minutos para a hora agendada. Só que Rafael era assim, gostava de chegar sempre antes do tempo.
— Bom dia, doutor Guerra! — cumprimentou Dolores, segurando um jarro de café e um tabuleiro com pãezinhos quentes.
— Bom dia, Dolores.
— A menina deve estar a descer. Se quiser aguardar no salão...
— Obrigado. — agradeceu ele sem intenção de sair dali.
Rafael ficou a observar o exterior, o mesmo cenário que vira no dia em que soube que Clara era sua irmã. Desta vez, não seria surpreendido pela sua chegada e esperou-a apoiado nas costas da cadeira onde se iria sentar. Poucos minutos depois, ouviu o movimento sussurrante de alguém a descer a escadaria.
Clara revelou toda a surpresa no rosto por o ver ali. Vinha pronta para a caminhada nos seus trajes escuros e botas de cano alto pretas.
— Bom dia!
— Bom dia, Rafael. — retribuiu, dirigindo-se ao seu lugar na cabeceira da mesa. — Não esperava encontrar-te aqui tão cedo.
— Tínhamos combinado um passeio pela propriedade.
— Sim. Depois do pequeno-almoço.
— Pensei que talvez gostasses da minha companhia para a refeição.
Clara sorriu.
Sentaram-se.
Dolores entrou na sala e cumprimentou Clara. Depositou manteiga, geleias e marmelada na mesa para o pão e deixou o açucareiro perto de Rafael.
— Parece que vamos ter sorte com o dia. — constatou ela com o olhar nas janelas atrás de Rafael. — Está Sol.
Ele anuiu, mas não disse muito mais. Continuava a existir um muro invisível entre eles e inconscientemente, sentiam-se pouco à vontade na companhia um do outro. Talvez por isso, a refeição foi silenciosa.
E o início da caminhada também se revelou silencioso.
Saíram do palacete por um acesso novo para Rafael, uma porta ao fundo do salão que dava para um pátio nas traseiras. Desceram umas escadas e avançaram pelo traço de terra que avançava na direcção das vinhas. Quando se considerou suficientemente longe da casa, Clara questionou:
— Achas que teria sido diferente?
— O quê? — interrogou ele, sem perceber ao que ela se referia.
— Se não nos tivéssemos conhecido em Londres. Se tivesses vindo aqui e me tivesses visto pela primeira vez quando soubeste que era tua irmã?
— Não sei. — Havia sinceridade na sua voz. — Penso que talvez tivesse feito o que tinha inicialmente pensado, abdicar de tudo e distanciar-me disto.
Conversavam com o olhar em frente, evitando encontrar o do outro.
— Fiquei feliz que não o tivesses feito. Não quero perder o único elo de sangue que me resta.
— Importas-te de não falar nisso. — pediu Rafael sem qualquer agressividade. — Gosto muito de ti, mas não pretendo ser teu irmão.
— É incontornável, Rafael. Quer queiras, quer não.
— Sim, pode ser. Só não preciso que mo lembres.
— Lamento que isso te amargure. Eu gosto que sejas meu irmão.
Rafael parou e segurou-lhe o braço, fazendo-a virar-se para si.
— Vais dizer-me que preferes que seja teu irmão, a ser aquilo que fui para ti em Londres?
Clara não fugiu ao seu olhar. Sorriu numa mistura de tranquilidade e conformismo. Não mentiu:
— Sabes a resposta a isso. Só te peço é que em troca da minha sinceridade não a uses contra mim.
— Magoaste-me com as coisas que disseste no outro dia.
— Eu sei. E lamento-o. Se te serve de consolo, digo-te agora que não era verdade. Não te aproveitaste de mim. Sim, eu estava fragilizada, mas quis que aquilo acontecesse. E se não fosses meu ir... Se não fosses, quereria repeti-lo muitas mais vezes.
— Obrigado pela tua honestidade.
— É como eu sou, Rafael. E espero que me dês oportunidade para me conheceres. — Encarou-o com intensidade. — Vou respeitar a tua vontade de não te tratar como um irmão. Espero que me retribuas isso com a aceitação de que nunca seremos mais que bons amigos, para além de sócios.
Ele assentiu e a caminhada prosseguiu.
— Ontem troquei algumas palavras com a Dores. — partilhou Rafael, observando as videiras. — Nota-se que se preocupa contigo.
— Tanto ela como a Dolores. — confirmou. — Ambas me conhecem desde que nasci.
Rafael sorriu.
— Que foi?
— Não consigo deixar de achar piada aos nomes. Maria das Dores e Dolores Maria. Será que a mãe sofreu assim tanto nos partos para lhes dar esses nomes?
— Eram tempo diferentes de hoje. Não deve ter sido fácil.
— Se tivesse nascido uma terceira, chamava-se como? Maria do Suplício?
Clara soltou uma gargalhada.
— Não sejas assim, Rafael. Os nomes podem até nem ter nada a ver com isso.
— Nunca perguntaste?
— Nunca tive essa curiosidade.
Conforme foram avançando, viram alguns trabalhadores entre as vinhas. As pessoas seguiram-nos com o olhar, curiosos naquele homem que acompanhava a patroa. E talvez até adivinhassem quem seria, uma vez que Clara fizera questão de informar os funcionários de um novo sócio da empresa que era também seu irmão. Obviamente, não deu mais pormenores.
Apesar de Clara ser muito afável com todas as pessoas, ninguém se atreveu a aproximar. Somente Marcolino o fez, curioso por confirmar se aquele era o tal bastardo.
— Bom dia, menina! — cumprimentou, retirando a boina da cabeça.
— Bom dia, Marcolino! — Clara virou-se para o irmão. — Este é o Marcolino, o responsável pelo pessoal que trabalha no campo. — Rodou na direcção do empregado. — Este é o meu irmão, o doutor Rafael Guerra.
Marcolino fez um aceno com a cabeça em forma de cumprimento.
— Bom dia, Marcolino!
— Bom dia, doutor!
— Tem aqui umas videiras muito bem tratadas. — elogiou Rafael.
— Obrigado, senhor doutor. Pena ainda estarmos no Inverno e estarem despidas de folha. Quando elas começarem a florescer, verá como isto fica bem bonito.
— Sim. — concordou Clara. — Lá para Setembro, Outubro... As cores são maravilhosas. Fica um cenário lindo. Tu verás.
Não se demoraram muito mais e a caminhada continuou, levando-os no trajecto descendente. Ao longe, avistavam-se alguns montes.
— Ali já é Espanha. — apontou Clara.
Alcançaram um pequeno ribeiro onde corria uma linha de água límpida e fria. Clara convidou-o a sentarem-se numa pedra perto da margem.
— A minha mãe trazia-me aqui muitas vezes, em miúda. Sentávamo-nos aqui e ela contava-me histórias. — Sorriu com saudade. — Não eram histórias infantis, eram histórias da nossa História, sobre Portugal.
Um bando de pássaros levantou das árvores próximas.
— A minha mãe não me contava histórias. — confessou Rafael. — Estava sempre demasiado cansada, o que era natural, tendo em conta as horas diárias que trabalhava para nos sustentar.
Clara temeu que dali viesse mais uma crítica ou impropérios contra o seu pai. Porém, Rafael estava apenas a reviver memórias.
— Foi uma mãe maravilhosa e incansável. Lamento muito não ter tido oportunidade de lhe retribuir tudo o que fez por mim. Não tive tempo...
A voz fugiu-lhe.
— Onde quer que esteja, decerto que continua a olhar por ti e cheia de orgulho.
— Talvez... — retorquiu descrente.
— Sei que estás a fazer um esforço para não referires o pai. — constatou com segurança suficiente para tocar na ferida. — Agradeço-te por isso. E lamento muito que as coisas tenham acontecido como aconteceram. Que o pai não tenha tido a melhor atitude convosco.
Rafael não se manifestou, permanecendo com o olhar vago no ribeiro.
Um corvo grasnou ali perto. No meio da vegetação, um coelho pequeno correu assustado.
— Continuamos?
Clara concordou e ambos prosseguiram a caminhada.
Os terrenos da Herdade dos Jordões eram demasiado extensos para que os percorressem na totalidade. O objectivo era dar a Rafael uma noção relativa da dimensão. O percurso escolhido por Clara levou-os até aos edifícios reservados à produção do vinho. Rafael ficou a conhecer mais alguns funcionários e as instalações onde o vinho passava pelas diversas fases, desde a chegada da uva até ser transformado em bebida e colocado em tonéis que eram posteriormente arrumados na adega da família, um lugar comprido, escuro e húmido onde, para além das pipas, existiam centenas de garrafas.
No regresso a casa, Clara tentou explicar o melhor que sabia sobre o processo de venda. Mesmo não estando muito por dentro do negócio, o pai partilhava muita informação com ela. E Rafael poderia depois saber mais informação nas pastas guardadas no escritório.
Almoçaram animados pela conversa e pela troca de ideias provocada pelo passeio matinal. Rafael reconhecia o potencial do negócio da família Jordão e Clara sentia-se cada vez mais confiante nele para a ajudar.
A tarde foi dedicada ao escritório, uma divisão situada por trás da escadaria ao nível do rés-do-chão com vista para as vinhas. Era um espaço austero, tal como o seu antigo ocupante, D. Basílio. As paredes forradas a papel mal se viam atrás de tantas prateleiras de livros e pastas. No centro, uma secretária de madeira robusta com um tampo amplo. Clara sentou-se no lugar que outrora fora do pai, enquanto Rafael se sentou no lado oposto. Ela entregou-lhe tudo o que tinha para que ele analisasse e observava-o expectante, enquanto Rafael analisava os papeis com a precisão de um censor.
A meio da tarde, o som da campainha da porta principal quebrou o ambiente pacífico e silencioso.
— Quem será? — questionou Rafael.
— A Dolores ou a Dores vão ver. Não deve ser nada de importante. Não estou à espera de visitas.
Um minuto depois, ouviu-se bater na porta do escritório. Dores entrou e anunciou que D. Artur viera fazer uma visita e aguardava no salão.
— Quem é esse?
— É o meu padrinho. — informou Clara. — Deve ter sabido que cá estavas e veio conhecer-te.
— Conhecer-me?
— O padrinho é como um pai para mim. Preocupa-se comigo e está curioso contigo.
— Curioso ou suspeitoso?
— Vá lá, Rafael. Dá-lhe uma oportunidade. É boa pessoa.
Rafael encolheu os ombros e fez um gesto para que ela indicasse o caminho.
Artur aguardava em pé no salão. Tradicionalista e austero, não queria receber o estranho numa posição inferior, preferindo a imponência de estar hirto.
Quando entraram no salão, Clara aproximou-se de Artur e deu‑lhe um beijo.
— Que agradável surpresa, padrinho.
— Olá, querida! — cumprimentou com o olhar de esguelha no homem. A seguir, encarou-o com frontalidade.
— Você deve ser o famoso Rafael, o meio-irmão da Clara.
Antes que Rafael falasse, Clara apresentou:
— Este é o meu padrinho, D. Artur.
— Dom? — interrogou Rafael sem dar sinais de se querer aproximar. — É diminutivo de Domingos?
Artur fulminou-o com o olhar, encaixando a ofensa com sobriedade por respeito à afilhada.
— Por aqui, as pessoas ilustres são tratadas por "Dom". — explicou Artur em tom de reprimenda. — O seu pai também era assim tratado. Talvez seja bom habituar-se a isso, Rafael.
Correspondendo à prepotência do outro, Rafael retorquiu com sobranceria:
— Para mim, quem se trata por "Dom" são os reis. E a última vez que vi, Portugal ainda era uma República.
Clara começou a temer a crescente tensão entre eles. Percebendo que o padrinho se preparava para ripostar, Clara interveio:
— Então, padrinho. Quer tomar alguma coisa?
Artur não respondeu, mantendo o olhar cravado no homem que para si não passava de um reles bastardo que ousava desafiar a sua posição.
— Lamentavelmente, ainda é uma República.
Percebendo o receio no olhar de Clara, Rafael retrocedeu na sua posição. Não queria expor a irmã a um conflito entre si e o padrinho que era alguém de quem ela gostava.
— Se é assim tão importante para si, faremos como pretende, Dom Artur.
— Vejo que és um homem inteligente, Rafael.
— Se não se importa, as cortesias têm dois sentidos, Dom Artur. Bem como a formalidade. Rafael sou para a Clara e para os meus amigos. Para todos os outros sou doutor Guerra.
— Como queiras.
— Como queira. — emendou.
Artur ignorou-o e direccionou toda a atenção para a afilhada.
— Vim saber se precisas de ajuda em alguma coisa, minha querida.
— Obrigada, padrinho. Mas, está tudo a correr bem.
— Talvez fosse bom dar-vos algumas noções acerca do negócio dos vinhos. Nem tu nem o Raf... nem o doutor Guerra estão por dentro desta actividade.
— Nós safamo-nos. — respondeu Rafael pela irmã. — Mas, em todo o caso, agradecemos a sua preocupação Dom Artur.
Artur voltou a olhar para aquele bastardo insolente. Com aquele feitio barraqueiro, calculou que a rapariga simpática da sapataria que conhecera se deveria ter tornado numa rameira que não soubera educar o filho.
— Bom, então nada mais tenho a fazer por aqui.
— Não quer tomar um licor, padrinho? — ofereceu Clara.
Ele olhou para a afilhada. No típico tom amável com que lhe falava, recusou a oferta.
— Talvez um destes dias possas fazer uma visita a este pobre velho.
— Claro que sim, padrinho. — concordou ela, abraçando-o. — E o padrinho não é um pobre velho, é um querido. E eu gosto muito de si.
Clara acompanhou-o até à porta e ajudou-o a descer as escadas até ao carro com o motorista que o aguardava.
— Toma cuidado com ele. — alertou Artur. — Não gostei nada da pinta do tipo.
— Não se preocupe, padrinho. — pediu com um sorriso tranquilizador. — O Rafael não é má pessoa.
Artur não se revelou muito convicto disso. Porém, não insistiu e despediu-se da afilhada com um beijo.
— Não era preciso teres sido tão antipático com o meu padrinho. — recriminou Clara ao regressar ao escritório para onde Rafael voltara. — Podes não concordar, mas deves respeitar certas tradições.
— O teu padrinho parece aqueles coronéis brasileiros das telenovelas.
— O meu padrinho é uma pessoa respeitada na região. E as pessoas como ele são tratadas dessa forma.
— Por "Dom"?!
— Sim.
— Sou republicano, Clara. Não reconheço "dons".
Ela retomou o seu lugar na mesa de trabalho.
— Mesmo assim, não tinhas necessidade de ter sido tão agressivo.
Rafael olhou-a nos olhos e aceitou:
— Ok, Clara, talvez tenha exagerado. Mas, quando o vi no salão, aquela postura, fez-me lembrar alguém que eu nem sequer conheci.
A confusão estampou-se no rosto de Clara. Porém, antes de falar, fez-se luz na sua cabeça.
— Já percebi. Fez-te lembrar o meu pai.
O silêncio de Rafael foi uma confirmação.
6.5
— Adorei o dia de hoje. — confessou Clara, sentada no sofá ao lado de Rafael. — Acho que desde a morte... do pai. Desde que ele partiu que não tinha um dia decente. Obrigada por isso, Rafael.
O salão estava com um ambiente confortável, agradavelmente quente com uma fogueira de cavacos a arder intensamente na lareira. Dois candeeiros de pé alto iluminavam o sector onde eles estavam, o conjunto de sofás e poltronas que desenhavam um círculo irregular defronte da lareira. Não se ouvia qualquer som para além do crepitar das chamas. E nenhum deles teve vontade de ligar a televisão.
— Foi um dia muito agradável. — concordou Rafael, sorrindo e colocando a mão sobre a dela.
Clara não reprimiu o gesto, permitindo que ele lhe segurasse os dedos com ternura.
— E a produção de vinhos? A que conclusão chegaste?
— Não temos com que nos preocupar. Está tudo bem estruturado, o negócio continua a funcionar normalmente. Só teremos de estar atentos. Mesmo assim, irei falar com os distribuidores e com os fornecedores de serviços externos.
— E o que queres que eu faça?
A primeira ideia que lhe veio à cabeça seria responder "quero que faças amor comigo". Porém, não o fez, iria quebrar o momento.
— Tu conheces a propriedade, tens noção suficiente para saber como funcionam as coisas por aqui. E as pessoas conhecem-te, confiam em ti. Se estiveres de acordo, eu posso ficar responsável pela parte empresarial e tu pela parte da produção, uma vez que vives aqui.
Clara olhou-o nos olhos.
— Tu não vais querer viver aqui?
— Não faço parte disto, Clara.
— Fazes parte de mim, Rafael. — argumentou ela. — Gostava que permanecesses por perto.
— Ambos sabemos que temos noções diferentes de como gostaríamos de estar perto um do outro.
Ela retirou a mão da dele.
— Quanto tempo estás a pensar ficar?
— Ainda não sei. Talvez alguns dias. — respondeu, percebendo o afastamento. — Não tenho data prevista.
Nesse momento, Dolores entrou no salão.
— Vão precisar de mais alguma coisa?
Clara respondeu pelos dois:
— Não, Dolores. Obrigada! Se quiserem, podem ir descansar. Eu desligo as luzes.
— Obrigada, menina! Tenham uma boa noite.
— Boa noite, Dolores! — desejaram ambos.
A governanta saiu da sala e o som dos seus passos foi esmorecendo até deixarem de se ouvir. O som fraco de uma porta a fechar foi a confirmação de que estavam sozinhos.
— Elas vivem cá em casa?
— Sim, cada uma tem um quarto no sótão. — explicou Clara. — Esta casa quando foi construída foi pensada para ser uma casa senhorial, com muitos criados. Não é do meu tempo. — Sorriu divertida. — Nas traseiras, a seguir à cozinha, existe uma escada de serviço. É uma escada que só serviria para os empregados circularem. Por essa escada, sobes até ao piso acima do piso dos quartos, o sótão, onde existem vários quartos pequenos e um WC comum. Actualmente, todo o sótão é de uso da Dolores Maria e da Maria das Dores e os quartos delas ficam por cima dos quartos do meu lado.
— Então posso ressonar à vontade que elas não ouvem. — disse Rafael com humor.
Clara levantou-se do sofá e caminhou até uma mesinha pequena com algumas garrafas.
— Não me lembro de tu ressonares.
— Mas espero que te lembres do resto. — ripostou ele em provocação.
Não houve resposta. Clara pegou numa garrafa de licor e encheu um pequeno cálice.
— Queres?
— Faço-te companhia.
Ela encheu um segundo cálice e regressou ao sofá, entregando‑lho. Beberam um gole em silêncio, saboreando a bebida adocicada. Sem que o tivessem combinado, ficaram a olhar para as chamas sem dizer uma palavra, cada um a pensar naquilo que deveriam dizer a seguir. Coube a Rafael retomar a conversa:
— Vais voltar a Londres?
— Não. Pelo menos, não para prosseguir o que estava a fazer.
— E o doutoramento em História?
— Deixou de fazer sentido, para já. — partilhou com o olhar vago no copo. — Sou precisa aqui.
Novo silêncio. As chamas na lareira começaram a esmorecer. Rafael levantou-se para ir buscar mais um cavaco que atirou para a fogueira. O crepitar aumentou, provocando uma excitação das chamas ao consumir mais lenha. Retornou ao sofá e sentou-se bem próximo da irmã. Arriscou-se a voltar a segurar-lhe a mão. Clara permitiu que ele o fizesse e até voltou a palma para cima, de forma a apertarem a mão um do outro.
— Que terias feito, caso eu não fosse o teu irmão bastardo?
— Não digas isso, Rafael. — pediu ela. — Não te chames bastardo. És simplesmente meu irmão.
Ele apertou-lhe a mão com carinho.
— Que terias feito?
— Já te tinha dito. Quando regressei, pensei em ligar-te para me acompanhares no funeral. Só não o fiz por começar a suspeitar do que se veio a confirmar.
— E depois disso? — insistiu ele. — Imagina que nós não éramos irmãos. Que querias que acontecesse?
— Não sei, Rafael. Não pensei nisso.
— Vá lá, Clara. Não acredito.
Ela evitou olhar para ele. Contudo, não se refutou ao assunto.
— Talvez tivesse querido que ficasses alguns dias comigo. Talvez tivesse tentado perceber o que ambos pretendíamos da nossa relação. Talvez estivesse tentada a assumir um compromisso, se também fosse essa a tua vontade.
— Um compromisso? — questionou ele, algo surpreso.
— Não estou a falar de casamento, Rafael. Tenho a certeza que fugirias a sete pés.
— Porque achas isso? — inquiriu algo ofendido.
— Porque não me pareces homem de casamentos. — respondeu com sinceridade.
— Não sei porque pensas isso.
— A tua idade e continuas solteiro... A não ser que já tenhas casado...
— Não, nunca casei.
— Vês?!
— Não quer dizer nada, Clara. Só não tinha ainda encontrado a mulher certa para o fazer. — justificou ele, olhando para o perfil dela que continuava a evitar encará-lo. — Mas, contigo, não tenhas dúvidas que...
— Pára! — interrompeu. Desta vez, encarou-o. — Vamos parar. Estamos a entrar num caminho perigoso.
Ele respeitou o seu pedido.
O silêncio voltou. Ambos se deixaram hipnotizar pelo fogo a arder na lareira. O ambiente estava tão agradavelmente quente que nem dava vontade de sair do salão. O cálice de Rafael estava vazio, o de Clara quase. Continuavam de mão dada, desfrutando do contacto da pele do outro.
Clara deu um último gole no licor e disse:
— Já é tarde. É melhor irmos dormir.
As mãos soltaram-se e ambos se colocaram em pé. Clara colocou a protecção na lareira para evitar que qualquer fagulha saltasse para o exterior e provocasse um incêndio. Rafael esperou por ela, junto à porta do salão, vendo-a desligar os candeeiros e deixar o espaço somente iluminado pelos restos da fogueira que se ia extinguindo aos poucos.
Quando chegou perto dele, Clara voltou a segurar-lhe a mão. Subiram as escadas juntos, sob o lustre alto que iluminava todos os degraus. Sem dizer nada, ela virou para o lanço de escada do lado da ala onde ficava o quarto dele. Prosseguiram a escalada de degraus em silêncio até alcançarem a porta do corredor.
— É aqui que nos despedimos, Rafael. — disse ela, ainda com os dedos na mão dele. — Dorme bem.
Rafael mergulhou naquele olhar maravilhoso dela, queria perder‑se ali, nela, nas emoções que só ela sabia despertar em si. Aproximou-se ligeiramente para lhe beijar o rosto. Ela permitiu-o com a intenção de retribuir. Mas, no último momento, ele desviou-se e beijou‑lhe os lábios.
Clara fez um protesto ténue, tentou resistir sem vontade. Acabou por saborear o beijo sem esconder como estava sedenta daquele momento. No entanto, como se subitamente algo a tivesse despertado, quebrou o beijo e sussurrou irritada:
— Pára! Pára! Pára!
Clara só parou de repetir quando ele a largou, se bem que na verdade ela não fizera qualquer movimento de se afastar para além de desviar o rosto do dele.
— Nós somos irmãos, Rafael! — lembrou, como se o outro se tivesse esquecido. — Não podemos...
— Nunca fomos irmãos em toda a nossa vida. — recordou de forma taxativa. — Bem podemos continuar a não ser.
— Antes não sabíamos que éramos. Agora sabemos.
— Para mim, não faz diferença.
Clara adoptou um rosto duro e afirmou:
— Mas, para mim, faz!
— Como queiras... — ripostou, decepcionado.
Ela sentiu isso e temeu perdê-lo. Tornou a segurar-lhe a mão e fez a confissão:
— Eu amo-te, Rafael! Mas, não podemos... É pecado, bolas. Somos irmãos! Por favor, Rafael. Peço-te que compreendas e aceites isso.
— Não consigo amar-te doutra forma, Clara. Não me peças que te ame como irmã depois de te ter amado como mulher. Não consigo. Não se trata de querer. Simplesmente... não consigo.
— Eu percebo. — lamentou num tom pesaroso. — E eu não consigo esquecer que somos irmãos. Mas, não duvides do meu amor por ti.
— Não duvido.
— Amo-te com uma intensidade tão brutal... Fazes-me arder de desejo.
— Então...
— Não podemos, merda! Somos irmãos! — barafustou, esforçando-se para não levantar a voz. — Merda, merda, merda! Mil vezes merda! Porque é que me haveria de apaixonar por ti? Pelo meu irmão?
— Calma, Clara! — aconselhou, temendo que ela fosse desabar num mar de lágrimas. Sorriu-lhe de forma terna. — Eu também sinto isso. Acho que temos um problema. Ambos somos apaixonados por alguém que não podemos amar. A vantagem é que, sendo essa pessoa um de nós, podemos resolver o problema juntos.
— Não estás a fazer sentido nenhum. — disse ela sem conseguir segurar um sorriso.
— Quero dizer-te que é um problema só nosso. E haveremos de encontrar forma de o solucionar.
— Rafael... Já te disse que nós não voltaremos a...
— Não estou a dizer isso, Clara. Estou a dizer que nos ajudaremos um ao outro a ultrapassar esta situação.
Clara ofereceu-lhe um sorriso afectuoso.
— Não te quero perder, Rafael.
— Nem eu a ti, Clara.
Rafael ficou a vê-la afastar-se para o lado oposto do varandim, na direcção da porta do corredor. Ao chegar aí, Clara olhou para trás e colocou a mão sobre o interruptor que desligava o lustre, dizendo:
— Dorme bem, Rafael!
— Tu também, Clara.
Ao entrar no seu corredor, a luz intensa desligou-se atrás de Rafael ao mesmo tempo que ele ligava os apliques que lhe iluminariam o trajecto final. Caminhou até à porta do quarto com uma mistura de sentimentos. Sabia que estava a criar uma relação forte com Clara, mas não era a relação que queria. Abriu a porta do quarto e desligou os apliques da parede. Deslocou-se às apalpadelas até encontrar o interruptor que ligava a luz do quarto.
Clara não lhe saia do pensamento, assim como o sabor dos seus lábios permanecia nos seus. Lamentava que ela não quisesse assumir os sentimentos que ambos partilhavam, mas percebia que seria mais difícil para ela. Incesto é uma bizarria, é contranatura, mesmo entre irmãos que nunca o haviam sido. Para ele não fazia diferença. Contudo, era obrigado a concordar que seria terrível para Clara assumir aquilo ali, no seio da sua realidade, entre as pessoas que a conheciam desde sempre. Poderia ser, de facto, muito prejudicial.
Para se abstrair um pouco daqueles sentimentos, Rafael sentou-se na sua nova mesa de trabalho e ligou o computador portátil. Ia aproveitar para resolver alguns assuntos pendentes e enviar uns emails. Conseguiu colocar Clara num arquivo temporário da sua mente e concentrou-se na leitura de um relatório do hotel, a dar aprovação para alguns pagamentos, a enviar o consentimento para a abertura de um concurso de contratação de vendedores noutra das suas empresas e analisou os resultados da Bolsa desse dia, os quais lhe haviam permitido recuperar ligeiramente das perdas do dia anterior.
Cansado, desligou tudo e decidiu finalmente ir dormir.
O interior do quarto estava quente. Rafael reparou que nas paredes existiam uns tubos dissimulados que seriam com certeza um sistema antigo de aquecimento. Despiu a camisola e a camisa. Ligou o candeeiro junto da cabeceira e desligou a luz do tecto. Foi quando ouviu bater à porta.
Para sua surpresa, ao abrir, viu Clara imersa na escuridão do corredor. Nem se dera ao trabalho de ligar os apliques. Ela nascera ali, sabia circular pela casa na mais completa escuridão sem tropeçar ou chocar com nada.
— Clara? — foi a única coisa que conseguiu dizer.
— Não consigo, Rafael.
— Não consegues o quê?
— Posso entrar?
Rafael abriu mais a porta, só tendo noção nesse momento que lhe estava a bloquear a entrada. Ela passou por ele, trazia vestido um roupão quente que a cobria do pescoço aos pés.
— Que se passa, Clara?
— Não consigo dormir. — respondeu, atravessando o quarto na direcção da poltrona. Sentou-se. Inconscientemente ou não, deixou que o roupão se abrisse, revelando-lhe as pernas nuas cruzadas. — Estou a arder.
— Não compreendo, Clara. — revelou confuso, dando alguns passos pelo quarto.
Ela puxou o cinto do roupão e abriu as abas. Estava nua e não teve complexos em lhe voltar a revelar a plenitude do corpo que ele amara em Londres.
— Não vou conseguir dormir, sem fazer amor contigo.
Rafael ficou aparvalhado, sem saber o que dizer. Ela manifestara intenções diametralmente oposta, minutos antes.
— Desculpa, Clara, não estou a perceber... Não me interpretes mal, fazer amor contigo é aquilo que mais quero neste momento. Mas, tu disseste...
Clara levantou-se, deixando o roupão despenhado na poltrona. Caminhou nua até ele. Colocou os braços à volta do seu pescoço. O seu olhar era intenso, uma mistura de paixão e desejo.
— Podemos fazer amor agora? — pediu com os lábios quase a tocar os dele. — Amanhã logo vemos como lidamos com isto.
Rafael pegou-lhe ao colo, beijou-lhe a boca e levou-a para a cama.
7.1
Amaro Carneiro não escondia a apreensão, sentado no banco traseiro da viatura do partido que era conduzida por um motorista privado. Ao lado do condutor, um homem de fato e óculos escuros com uma expressão fria, típica de um segurança.
— Ainda nos seguem? — questionou.
— Sim, doutor Carneiro. — confirmou o motorista após uma espreitadela ao espelho retrovisor.
Perto de completar sessenta anos, Amaro Carneiro era natural do Porto e presidente da concelhia portuense do MPP. Fora candidato a presidente do governo regional de Entre Douro e Minho, uma eleição que perdera para o nacionalista lusitano Gomes Pinto. Não perdera por muito, mas perdera. Amaro atribuiu a derrota ao facto de ser divorciado, uma vez que a sociedade a norte do país era ainda muito tradicionalista. E, infelizmente, entre um prestigiado político divorciado e um populista boçal casado, a escolha da população fora para a tradição.
O seu divórcio fora o resultado de um casamento de alguns anos com uma jornalista sueca. Ela era uma mulher extraordinária e o erro fora dele. Amaro fora infiel e ela descobrira. Não houve perdão, nem ele o pediu, aceitando o desenlace natural quando se perde a confiança entre o casal. Talvez por isso nunca tenha voltado a casar, mesmo que o estigma de divorciado o perseguisse a cada eleição. Não queria estar condicionado a um compromisso. Já lhe chegava a política e as obrigações adjacentes à função. Não precisava de uma mulher para duplicar as obrigações na sua vida.
Amaro Carneiro era um homem de classe, uma figura elegante e distinta. Um político reconhecido nacional e internacionalmente. Usava o cabelo grisalho penteado para o lado e o rosto enrugado sempre bem barbeado. Vivia na Cidade Invicta desde sempre. Crescera, estudara e fizera-se homem no Porto. Era um genuíno portuense, bairrista e ferrenho do seu clube. Apesar de ter sido a região onde o PNL cresceu mais rapidamente, Amaro nunca se sentiu identificado com aquela doutrina xenófoba, populista e nacionalista. Sim, era um homem de Direita, mas não de extremos. E odiava que o PNL estivesse tão conotado com o Porto, pois isso só denegria a imagem de uma cidade linda e maravilhosa. Possivelmente, foi isso que o fez dedicar-se à política local, inicialmente ao município e depois à região. Nunca vencera eleições, mas conseguira ser eleito para vereador e nas últimas Regionais para deputado da assembleia regional.
Entrara na política muito novo, inicialmente para os sociais‑democratas. Começou a não gostar de algumas coisas que via, tricas que minavam o partido, fome de poder a qualquer custo, criação de grupos que lutavam contra outros grupos. Não, aquilo não correspondia à sua visão de um partido político que procura o poder para ajudar o povo. Quando saiu, levava a ideia de conhecer o Centro-Direita, o que coincidiu com o surgimento do Movimento Povo Português. Deu-se ao trabalho de conhecer o programa político e identificou-se. Desde que se filiou que nunca mais largou o MPP. Contudo, não tinha ilusões de como era difícil a vida de um opositor do PNL a norte de Portugal. E conforme foi ganhando notoriedade, não só pelo protagonismo na concelhia, mas também pela oposição ao PNL, foi ganhando inimigos. E o PNL não se esqueceu dele, quando chegou ao poder.
O SIALE mantinha-o vigiado constantemente e nem se davam ao trabalho de dissimular a vigia. Naquele momento, seguiam-no desde o Porto a caminho de Viana do Castelo.
Já se habituara àquelas perseguições. Na primeira vez que percebeu que o seguiam, temeu pela sua vida, julgando que seria uma tentativa dos opositores de o silenciarem em definitivo. Só que rapidamente entendeu que apenas o queriam controlado, saber o que andava a fazer, se planeava algo. Passou a ter cuidado com os contactos, não dizer nada confidencial por telefone ou email. Se estava num lugar que não conhecia, não se pronunciava para além de conversa de circunstância. As paredes tinham ouvidos e os telemóveis olhos.
Na semana anterior, estivera em Lisboa, num encontro com o seu grande amigo Manuel Teixeira. O SIALE tinha conhecimento deste encontro, mas não conseguira saber o conteúdo do mesmo. Na sede do MPP existia uma sala semelhante a um estúdio de rádio, completamente insonorizado, onde eram conversados os assuntos sensíveis. O líder do MPP transmitira-lhe informações que aumentaram a sua apreensão em relação ao futuro, daí que estivesse a caminho de visitar outro amigo que teria de ficar ao corrente disso.
Circulavam pela A28 a uma velocidade dentro dos limites. Não queriam dar justificação para serem parados na autoestrada por uma patrulha e depois acabarem todos com umas balas no corpo com a justificação de que tinham provocado desacatos com a autoridade. Uns trezentos metros mais atrás, o veículo suspeito que abrandava e acelerava, sem nunca os ultrapassar. Desviaram na saída para Castelo do Neiva e os seus perseguidores fizeram o mesmo.
— Nada de movimentos bruscos. — disse Amaro ao motorista. — Não queremos que os nossos amigos julguem que os tentamos despistar.
O trajecto tornou-se numa estrada regional, daí que poderiam tentar enganar os seus perseguidores e fugir-lhes. Amaro Carneiro não queria isso. Mostrar-lhes que nada tinham a esconder ajudava a esconder.
Alguns quilómetros mais tarde, o automóvel chegou a uma pequena localidade junto ao mar. Era uma antiga vila piscatória que se tornara num refúgio balnear que tivera nas últimas décadas um forte crescimento de lotes de moradias e edifícios.
A moradia que procuravam ficava na primeira linha de casas, mesmo em frente às dunas e virada para o mar. Não era a primeira vez que Amaro ali ia, mas sim a do motorista. Deu-lhe algumas indicações e apontou o lugar onde queria que ele parasse.
A rua quase não tinha carros. Estavam virados para norte, tendo o mar e a vegetação à esquerda e as moradias à direita. Estava um ambiente solarengo, mas não se avistava vivalma, uma vez que o lugar era mais procurado nos fins-de-semana e, essencialmente, em Agosto.
— Eles estão atrás de nós? — questionou o político.
— Sim. — confirmou o motorista com nova observação no espelho. — Uns cem metros daqui. Não têm como se esconder, não há mais carros.
— Eles sabem que nós sabemos que nos seguem.
O segurança falou pela primeira vez:
— O que quer fazer, doutor Carneiro?
— Sair.
O segurança abriu a porta e saiu do carro. Observou em volta sem perder a noção donde estavam os agentes do SIALE. Fez de conta que não reparou neles e abriu a porta de Amaro. Este saiu sentindo o vento forte e o cheiro a maresia.
A pessoa que o aguardava naquela casa era tão importante quanto ele. Contudo, não se viam quaisquer medidas de segurança. Um logro, pois Amaro sabia que existiam vários seguranças escondidos por ali.
Com uma postura forte e sem medo, olhou para o carro com os agentes da polícia política.
Sim, sei que estão aí e vocês sabem-no.
Caminhou até ao pequeno portão de entrada da propriedade que não parecia mais que uma simples casa de praia de um trabalhador que passava onze meses do ano no estrangeiro a ganhar a vida. Mais um logro, o proprietário trabalhava numa posição importante em Portugal.
O segurança acompanhou-o, mantendo o olhar atento nas redondezas. Amaro não precisou de tocar à campainha, pois ainda nem tinha alcançado o portão, já um homem encorpado e de rosto fechado saia da casa na sua direcção. Ninguém disse nada. O homem alto abriu o portão e permitiu a passagem a Amaro, enquanto o seu segurança tinha ordens para permanecer junto do carro.
O interior da casa estava decorado como o alojamento normal de uma família de classe média. Pinturas simples, um espelho, alguns quadros... Nos móveis, fotos de família... Amaro caminhou até à sala que se encontrava num ambiente de penumbra, devido às persianas corridas que só permitiam a entrada mínima de luz. Lá dentro, somente um homem que sorriu ao vê-lo e o abraçou.
— Olá, Amaro!
— Olá, Sá!
Sá Costa tinha a mesma idade que Amaro. Só que o envelhecimento não o tratara tão bem. O cabelo rareava, ganhara uma barriga acentuada e tinha problemas de visão, o que o obrigava a usar sempre um par de lentes grossas. Tal como Amaro, vestia-se com formalidade. Era um vianense de gema, casado com uma vimaranense há mais de trinta anos. Tornara-se advogado e exercia em Braga. Entrara para o MPP na mesma altura que o portuense e fora aí que se conheceram e construíram aquela grande amizade. Também presidia à sua concelhia, a bracarense, e conseguira ser eleito para a presidência desse município.
— Então? Que novidades trazes? — questionou, referindo-se ao encontro do outro com o líder da oposição ao governo.
— Nada de especial. — mentiu Amaro, caminhando pela sala. — Está tudo como é normal, lá em Lisboa. O governo continua aquilo que nós já sabemos. — Parou perto de um aparelho de som. — Posso?
Percebendo a ideia, Sá Costa anuiu. Amaro ligou a música e colocou o som suficientemente alto para que a sua conversa não fosse ouvida. Ambos sabiam que os agentes do SIALE tinham microfones direccionais que poderiam usar a partir do carro que estava lá fora para captar as suas vozes.
Os dois afastaram-se um pouco das colunas de som e sentaram‑se à mesa. O SIALE teria de ter equipamento muito sofisticado para captar os diálogos no meio da música.
— Então?
— Isto está muito mau, Sá. O Manuel Teixeira obteve a informação que o PNL poderá estar em conluio com os militares para fazer um golpe de estado.
— Um golpe de estado? Mas, eles estão no poder.
— Tenho esperança de que não seja por muito tempo.
— Sim, sei que o Flávio poderá estar a ponderar dissolver a Assembleia da República. — recordou Sá Costa. — Mas a comunicação social tem avançado sondagens que lhes dão maioria absoluta em futuras Legislativas.
— Sabes bem como essas sondagens são feitas, Sá. E com o clima de medo que existe neste país, só um louco admite a um desconhecido que vai votar noutro partido que não seja o PNL.
— Sim, tens razão. — concordou Sá Costa com um semblante apreensivo. — E o que vamos fazer?
— O Teixeira vai falar com o Flávio, colocá-lo a par disto. — relatou Amaro igualmente apreensivo. — Tentar aconselhá-lo a antecipar-se e a tomar medidas que impeçam o golpe.
— E têm informações sobre o plano? Em que consiste o golpe? — Amaro abanou a cabeça. — Temos que nos preparar para o pior. Se eles conseguirem ser bem-sucedidos...
— Se isso acontecer, temos os dias contados, Sá. E não me refiro só na política. Temo que as nossas próprias vidas possam estar em jogo.
— Achas? Bolas, Amaro, isto não é um país sul-americano.
— Com poder absoluto? Com os gajos do SIALE com rédea solta para não se limitarem às vigias?
— A comunidade internacional caía-lhes em cima, Amaro. Não sobreviviam muito tempo no governo.
— Não tenho tanta certeza, Sá. Os gajos podem ser loucos, mas são espertos. Então aquele Raimundo Antunes... Até a mim, a imagem do gajo assusta.
— O Himmler...
— Esse filho da puta e toda a cambada do SIALE.
Calaram-se por alguns instantes. Pela sala, a música estridente continuava a tocar. Ambos ponderavam alternativas, soluções. Foi Sá Costa quem atirou a primeira:
— Estás no lugar mais perigoso para alguém do MPP. Actualmente, o Porto é uma armadilha mortal. Talvez fosse melhor saíres do país.
— E abandonar a minha cidade? O Porto não é o PNL. Eles querem dar essa imagem, mas a realidade é bem diferente. Podes acreditar nisso. Há muitos portuenses como eu que adorariam afogar a corja nacionalista lusitana no rio Douro.
— Mas, estás em perigo. Até eu, em Braga, estou em perigo. Só que não posso abandonar a Câmara.
— Se eles nos pudessem matar sem sofrer efeitos colaterais, já o teriam feito. Não, não acredito que o tentem.
— Se forem bem-sucedidos nesse tal golpe...
— Aí, sim. — concordou Amaro com um sorriso irónico. — Aí, estamos mortos.
Sá da Costa analisou a hipótese e questionou:
— O que achas que lhes poderia dar segurança para executar um golpe desses sem sofrerem consequências por parte da comunidade internacional?
— Terem o apoio dos principais países. — alvitrou o outro. — Só que, mesmo com o crescimento da extrema-direita na Europa, não estou a ver um apoio declarado a um golpe de estado num país da União Europeia, ainda para mais com laivos de ditadura.
— Só que, pelo que percebo das tuas palavras, achas que escondem algo que lhes dará essa segurança.
— Exacto. E o que me consome é não fazer a mínima ideia do que será.
Sá Costa levantou-se da sua cadeira e caminhou um pouco pela sala, equacionando toda aquela informação. Viviam-se tempos estranhos em Portugal, tempos que pareciam ter sido arrumados há muito anos, mas que alguém pretendia resgatar para a realidade. O regresso da ditadura? Parecia surreal em pleno século XXI numa Europa que continuava a ser um exemplo de democracia. No entanto, o perigo existia. Não se via, mas o vento trazia uma invisibilidade de perigo palpável no ar.
— Sá, acho que deveríamos engendrar um plano de fuga, caso os nossos piores receios se confirmem.
— Sim. E reunir as concelhias...
— Esquece as concelhias, Sá. — interrompeu Amaro Carneiro. — Estou a falar de um plano para nos salvarmos a nós. Se formos tentar salvar todos, os planos vão chegar ao SIALE e a nossa linha de fuga fica comprometida.
— Não podemos abandonar os nossos correligionários, Amaro.
— De nada serviremos ao país se formos todos mortos. — concluiu o portuense com frieza. — Teremos de fugir e combater a partir do estrangeiro.
Sá Costa teve um momento de completa petrificação, como se recusasse a ideia de que aquilo ou algo parecido pudesse acontecer em Portugal. Acabou por concordar com a perspectiva de Amaro Carneiro e desabafou:
— Começo a pensar que ser do MPP é tão perigoso como ser comunista no tempo do Estado Novo.
— Lamento discordar de ti, Sá. Infelizmente, acho que ser do MPP começa a ser tão perigoso como foi ser judeu na Alemanha nazi.
— Por Deus, Amaro! Não digas uma coisa dessas. Não estarás a exagerar?
— Deus queira que sim, que esteja!
7.2
A manhã na capital revelava-se acolhedora e solarenga, mesmo que o frio permanecesse. Contudo, no gabinete de Pinto Henriques, as coisas estavam mais enevoadas. Laurentino Pinto aparecera de surpresa para expor os seus problemas ao chefe de governo.
— Estou a dizer-lhe, Henriques, não há como ter orçamento para o financiamento que o meu colega da Defesa exige para o plano que vocês querem pôr em prática.
— Como assim, Laurentino? Bolas, homem, que raio de ministro das Finanças é você?
— Um que não é milagreiro.
— Já lhe disse que tire dinheiro de outras áreas...
— Mesmo assim, Henriques. São muitos milhões. Não consigo...
Pinto Henriques fez-lhe um gesto para que se calasse. Queria silêncio para pensar. Laurentino permaneceu em frente à sua secretária, olhando para o outro sentado a pensar. De súbito, o primeiro-ministro pegou no telemóvel e marcou um número. Encostou o aparelho à orelha direita e aguardou.
Ao fim de alguns toques, uma voz feminina carregada de rouquidão pela nicotina atendeu:
— Bom dia, senhor primeiro-ministro! A que devo a honra deste telefonema para o meu número pessoal?
— Bom dia, doutora Ricardina! — retribuiu ele, usando de um tom afável, algo tão incomum em si que soava a antinatural. — Lamento estar a incomodá-la, mas tenho um assunto que talvez me possa ajudar a resolver.
A mulher no outro lado da linha era Ricardina Trindade, da família Trindade, conhecida por ser dona de um dos maiores bancos privados do país, o BT ou Banco Trindade. Ricardina tinha setenta anos e era uma mulher poderosa com enorme influência no país, sempre com fortes ligações ao poder. Qualquer partido que quisesse governar em Portugal teria de estar nas boas graças de Ricardina. Era conhecida como a "Toda-Poderosa". Na realidade, ela era de todos os partidos e não era de nenhum, limitando-se a usá-los a seu belo prazer. Nesta época, o PNL era a escolha preferencial para os seus interesses.
— E em que posso ajudá-lo, senhor primeiro-ministro?
— Tenho aqui o meu ministro das Finanças com alguns problemas de liquidez financeira. — explicou Pinto Henriques. — Temos alguns projectos importantes para o país que gostaríamos de colocar em prática ainda nesta legislatura e pensei que o BT talvez quisesse ser nosso parceiro comercial.
— Que vos financiasse, quer você dizer.
— Com boas contrapartidas para o BT. — insistiu. — Acho que o BT e a Ricardina nunca ficaram a perder connosco.
— E que projectos são esses?
— São coisas num estado ainda muito embrionário.
— E quer que patrocine fantasias?
— Não são fantasias, Ricardina. São projectos bem estruturados que eu prefiro não aprofundar muito ao telefone.
— Estamos a falar de quanto?
— O doutor Laurentino Pinto gostaria de passar pelo seu escritório e conversar pessoalmente sobre a quantia.
O ministro expressou um semblante de surpresa.
— Caro Henriques, se me está a ligar é porque são muitos milhões. Espero que o seu ministro traga boas contrapartidas.
— Alguma vez a desiludi, Ricardina?
A resposta foi atirada com secura:
— Ele que passe cá esta tarde.
E desligou.
Pinto Henriques largou o telemóvel sobre a secretária, irritado com a prepotência da banqueira. Nada podia fazer, tinha de suportar aquelas atitudes porque precisava dela... do dinheiro dela.
— Quero que vá falar com a banqueira esta tarde. — atirou Pinto Henriques, com raiva, ao seu ministro. — Peça-lhe os milhões que precisa.
— Peço-lhe???
— Implore, se for preciso.
Laurentino ficou confuso.
— E como lhos vamos pagar?
— Como pagamos tudo, com o dinheiro dos contribuintes.
— São muitos milhões, Henriques.
O primeiro-ministro ponderou a questão. Ela queria contrapartidas. Feita uma análise rápida do que a poderia convencer, disse:
— Ofereça-lhe como garantia o banco público.
— O banco público? — interrogou o outro estupefacto. — E se não conseguirmos pagar?
— Ela fica com ele. — respondeu Pinto Henriques com uma naturalidade que chocou Laurentino. — Preciso mais do dinheiro dela que de um banco que não passa de um peso no orçamento anual.
— É um banco público, o único banco público...
— Tem ideia melhor, Laurentino? Pois... Bem vi que não. Vá falar com ela e apresente-lhe a nossa proposta. E não se atreva a dizer-lhe para que queremos o dinheiro. Ela pode ser muito persistente, mas é bom que resista, caso contrário demito-o e mando-o como embaixador para a Síria.
— Não temos embaixada na Síria, Henriques.
O primeiro-ministro fulminou-o com o olhar.
— Não teste a minha paciência, Laurentino. Agora, vá à sua vida.
O ministro das Finanças abandonou o gabinete sem esconder como se sentia ofendido. O chefe de governo ignorou-o.
Por vezes, Pinto Henriques sentia-se como se todos os membros do seu governo fossem uma cambada de incompetentes que não conseguiam fazer nada sozinhos, sem que ele tivesse de os encaminhar ou dar-lhes as soluções. Todos excepto Raimundo Antunes. Quem lhe dera que fossem todos como o MAI...
Aquela manhã não começara nada bem. Para além disso, Raimundo ligara a combinar uma reunião para discutirem novos problemas que haviam surgido. Que merda! Percebeu que estava uma pilha de nervos. A colocação em prática do seu plano parecia estar a tornar-se cada vez mais complicada.
Os seus pensamentos foram interrompidos por uma chamada do seu intercomunicador. A voz da sua assessora ecoou no gabinete:
— Senhor primeiro-ministro, o doutor Raimundo Antunes ligou a informar que está um pouco atrasado. Deverá chegar daqui a meia hora.
Mais essa... Estava apreensivo para saber que relatos problemáticos ele trazia e agora teria de esperar mais tempo. Apeteceu‑lhe gritar e dar dois murros na mesa. Esteve quase a fazê-lo, quando pensou em algo melhor. Abriu uma das gavetas e retirou um pequeno pacote quadrado prateado que colocou no bolso. A seguir, carregou no botão do intercomunicador e chamou a assessora ao seu gabinete.
Bárbara entrou poucos segundo depois. Como era usual, envergava uma camisa formal e uma saia com a bainha a meio das coxas.
— Sim, senhor primeiro-ministro. — disse ela, caminhando até à secretária e aguardando alguma ordem ou tarefa para executar.
Para que é que ele a contratara? Ah... Sim... Para relaxar.
— Podes colocar as mãos sobre a secretária? — disse-lhe em jeito de ordem.
Ela debruçou-se na direcção dele e apoiou as mãos no tampo de madeira, entre grupos de pastas e dossiers.
Pinto Henriques levantou-se e contornou o móvel. Ela permaneceu estática, na posição que ele lhe dissera, com o olhar nas mãos, seguindo o seu movimento até este parar atrás de si. O primeiro‑ministro tocou-lhe as coxas com as mãos fortes, acariciando-as com os dedos grossos e procurando a bainha da saia que começou a levantar até a deixar com as nádegas nuas. Ela não tinha cuecas, nunca tinha, estava habituada àqueles momentos, sabia como se deveria comportar, como ele queria que ela se pusesse. Pinto Henriques tirou a embalagem do bolso, abriu o fecho das calças, deixando-as cair a seus pés, e rasgou o pacote com o preservativo. Colocou-o já com a excitação possível a vibrar de desejo. Colocou uma mão entre as pernas dela, sentiu-a seca. Pouco lhe interessava.
— Afasta as pernas, Bárbara! — ordenou-lhe num sussurro.
Ela obedeceu.
Foi rápido. Era sempre. Não havia paixão ou qualquer sentimento digno do momento. Era apenas uma necessidade, uma forma de relaxar, expurgar a tensão, o stress, afastar os problemas por breves instantes e oferecer a si mesmo aquela sensação de prazer, a ejaculação que depois não sabia a nada. Terminou antes sequer de ela sentir algo parecido com prazer ou ficar sequer húmida, obtendo apenas aquela dor fina de uma investida apressada.
Ela não se mexeu. Fora bem ensinada por ele e sabia que só deveria fazê-lo, quando lhe fosse ordenado. Pinto Henriques retirou a borracha e voltou a vestir as calças.
— Podes ir. — disse-lhe com indiferença.
A assessora recolocou a saia no sítio e afastou-se na direcção da porta, sem dizer uma palavra.
Pinto Henriques estava relativamente mais calmo, quando Raimundo Antunes chegou ao gabinete.
— O cabrão do Teixeira sabe dos nossos planos. — informou o MAI com uma expressão preocupada. — Não sei como soube, mas calculo que tenhamos uma "toupeira" entre os militares.
— Falastes com o marechal?
— Não. Claro que não. Primeiro quis falar contigo.
— Fizeste bem. — concordou, partilhando da preocupação do outro. — Achas que os nossos planos podem estar em causa? Devemos antecipar alguma coisa.
Raimundo Antunes ponderou a questão e caminhou um pouco pelo gabinete.
— Coloquei essa questão a mim mesmo. Pelo que sei, o simples facto de o Teixeira saber do plano não representa nada. Para além disso, não sabemos ao certo o quanto ele sabe do plano. Mas, sendo que só poucos ministros conhecem o plano na sua quase totalidade, penso que o Teixeira terá uma informação limitada.
— Consegues obter mais informação sobre o que ele sabe?
— Não será preciso, Henriques. A essência do problema está no que o Flávio de Melo fará quando ele lhe contar. Segundo a minha fonte junto da Presidência, o Teixeira vai ser recebido pelo Flávio para lhe contar o que sabe. A minha fonte está suficientemente próxima para saber o que irá decidir o presidente. Conforme a atitude que ele tomar, logo vemos a que ritmo iremos dançar.
— E teremos tempo para reagir, Raimundo?
O outro encolheu os ombros.
— Que pode ele fazer? Que farias tu, Henriques, se estivesses no lugar dele?
— Afastava imediatamente a cúpula das Forças Armadas e substituía-a por gajos da minha confiança.
— Isso seria um risco, perante o prestígio que o Costa Almeida tem nas Forças Armadas. — lembrou o MAI. — Demiti-lo com base em rumores?
— Sim, mas se o fizer...
— Não estou a vê-lo a fazer isso, mas... — equacionou o MAI. — Seja como for, a minha fonte irá manter-nos informados. O que me preocupa é quem é essa fonte do Teixeira.
— Não consegues infiltrar alguém no gabinete dele? Recrutar alguém do partido?
Raimundo abanou a cabeça.
— É muito complicado. Já tentámos, mas existe um núcleo duro do MPP que não conseguimos penetrar.
O líder do SIALE sentou-se na cadeira defronte do outro. Por alguns segundos, silenciaram-se em ponderação. O primeiro-ministro aguardou que Raimundo tivesse alguma sugestão, mas perante o silêncio, acabou por lembrar:
— Ao telefone, referiste que poderia haver outro problema.
— O Amaro Carneiro.
— O que se passa com esse?
— Reuniu-se com o Sá Costa.
— E então, Raimundo? Se há tipos que não nos fazem sombra são esses MPPzinhos do Norte.
O ministro da Administração Interna não se revelou tão confiante.
— O Carneiro esteve em Lisboa reunido com o Teixeira que lhe deve ter contado acerca do plano. E não duvido que o encontro com o Sá Costa tivesse acontecido para lhe transmitir essa informação. — informou Raimundo, manifestando um ar preocupado. — Tive uma equipa de agentes a segui-lo e vigiaram o local onde se reuniram. Só que os gajos são espertos, sabem que tentamos escutar as conversas e conseguiram dissimular o assunto com música a altos berros.
— Não percebo porque estás tão preocupado. O MPP do Norte não nos faz mossa.
Raimundo Antunes observou o líder e fez uso da sua perspicácia:
— No lugar do Teixeira, eu não me limitaria a esperar por uma reacção do Flávio de Melo. Começaria a engendrar um plano alternativo para nos prejudicar. O MPP do Norte pode não nos fazer sombra, mas estão presentes num território que consideramos seguro. Logo, estão em posição de nos minar. No lugar do Teixeira, eu teria chamado o Carneiro a Lisboa para delinear um plano para nos lixar no Porto.
— E achas que foi isso que ele foi fazer a Lisboa?
— Não sei, Henriques. Só que o meu instinto diz-me que sim.
— E o que sugeres? Não podemos limpar-lhes o sarampo, por muito que isso me agradasse. Pelo menos, ainda não. — lembrou Pinto Henriques. Contudo, nesse instante, uma expressão de triunfo assolou‑lhe o rosto. — E, além disso, podemos tirar vantagem da existência deles.
— Como assim, Henriques?
— Se for como acabaste de dizer, precisamos de infiltrar alguém próximo do Carneiro. E esse alguém irá actualizar-nos não só acerca das movimentações do Carneiro como as do Teixeira, uma vez que ambos são muito amigos.
— Não será fácil, Henriques. O Carneiro e o Sá Costa são os políticos do MPP mais influentes a norte. E são também muito cuidadosos com as pessoas que se movimentam à sua volta. Não confiam nem nos correligionários do MPP à excepção da cúpula em Lisboa.
— Tenho a certeza de que encontrarás um caminho, Raimundo.
Raimundo Antunes sorriu, aquele sorriso escarninho com laivos de sadismo, e anuiu confiante de que já saberia como o haveria de fazer.
7.3
Octávio Simões sentia-se cada vez mais uma ilha no grupo parlamentar do MPP, uma vez que a sua voz contestatária acerca do poder regional centralizado em Lisboa só lhe trazia inimigos no partido. Os colegas do parlamento não lhe perdoavam que continuasse a manifestar-se contra Diogo Pereira, um homem do MPP que presidia o governo regional de Lisboa e Setúbal e que era muito acarinhado dentro e fora do partido.
Agastado com mais um dia de trabalho parlamentar, Octávio chegou a casa, uma moradia já com algumas décadas, situada a norte da cidade de Setúbal. Como era habitual, estacionou o automóvel em frente ao muro do jardim descuidado, junto ao passeio de uma rua pouco movimentada e onde não era difícil estacionar.
Nem reparou num veículo suspeito arrumado duas moradias mais abaixo. Cabisbaixo, saiu do carro completamente alheado da realidade, distraído ao ponto de não ver que desse mesmo carro saíram dois homens de fato e com os rostos parcialmente cobertos por lentes escuras. Só deu por eles, quando ia para abrir o portão e sentiu a sua presença atrás de si.
— Doutor Octávio Simões? — questionou um deles com um tom grave.
Octávio voltou-se. Antes de conseguir dizer alguma coisa, ambos lhe apontaram as identificações.
— Agentes do SIALE. — constatou, procurando suprimir o receio e o ódio que tinha àquela gente. Ironizou. — Em que vos posso ser útil?
— Acompanhe-nos, por favor! — ordenou o outro num tom que não era agressivo.
— Posso saber para quê? Estou a ser detido?
— Não, nada disso. — refutou o primeiro agente. — Nada tem a temer.
— Posso saber onde me querem levar?
— Não.
Octávio sabia que não valeria a pena resistir. Se não fosse de boa vontade, eles certamente que o convenceriam, nem que fosse de rastos. Por isso, fez um gesto de rendição e deixou-se escoltar até ao automóvel suspeito.
Não se via ninguém na rua. Contudo, os tempos que o país atravessava eram tempos em que qualquer cidadão que presenciasse uma cena daquelas evitaria olhar ou, se possível, evitaria mesmo revelar que existia. Por isso, se fosse para lhe fazerem mal, Octávio não poderia esperar auxílio de ninguém. Nem nenhum vizinho que estivesse a ver nalgum ponto escondido iria dizer mais tarde que testemunhara aquilo.
A viagem foi feita em silêncio dentro de um carro cujo interior cheirava a tabaco. Um dos agentes conduzia, enquanto o outro se sentara ao lado do deputado do MPP. Não proferiram qualquer palavra e Octávio nem perdeu tempo a tentar saber novamente para onde o levavam. Viu que a estrada saía da cidade e tomava a direcção da serra. Tentou afastar o pensamento de que pretendiam executá-lo num lugar ermo. Que raio? Também não era uma figura assim tão importante para que perdessem tempo a querer matá-lo. Porém, por ser tão irrelevante, poucos sentiriam a sua falta.
A viagem pela Arrábida fora comprida, enjoativa e desgastante. Já do lado ocidental da serra, o automóvel entrou numa propriedade perdida na vegetação. O terreno tinha muitos arbustos e árvores altas, somente com um pequeno edifício térreo a destoar da natureza. Pararam em frente ao alpendre. Não era uma casa alta, mas era comprida, com as paredes em pedra ou cerâmica a imitar a pedra. Na fachada virada para eles, a seguir ao alpendre, uma porta principal e duas janelas onde mais agentes aguardavam em vigia.
Octávio estava cada vez mais confuso. O agente ao seu lado saiu do carro e indicou-lhe que fizesse o mesmo. Novamente, foi escoltado no seu caminhar até ao alpendre, subindo os três degraus e parando na porta até ver um terceiro agente a surgir através da abertura.
— Queira acompanhar-me! — ordenou de forma seca.
Octávio entrou, não sendo seguido pela escolta. Ao invés, este terceiro homem conduziu-o pela casa. O deputado atravessou um corredor escuro com várias portas fechadas. Ao fundo, o agente abriu a última porta e indicou-lhe que entrasse. Assim que Octávio atravessou a ombreira, o agente voltou a fechar a porta, deixando-o sozinho.
O espaço era uma sala confortável com sofás, uma mesinha de apoio e um candeeiro alto apagado. A luz natural entrava por duas grandes janelas, iluminando suficientemente o lugar. As paredes tinham quadros abstractos e fotos de alguns elementos do PNL. Também havia símbolos do partido, uma foto da tomada de posse de Pinto Henriques e respectivo governo e outra de família do, mais que provável, proprietário. Octávio reconheceu-o, era Viriato Loureiro, um deputado do PNL na Assembleia da República e líder do PNL a sul.
Nesse momento, a porta abriu-se e Octávio reconheceu os dois homens que entraram. O primeiro, como esperado, era Viriato Loureiro, um homem alto com uma postura hirta e rosto fechado, frio, revelando a deficiência no olho esquerdo. Ao andar, coxeava ligeiramente. A acompanhá-lo, Valentim Passos. Este não era tão alto, nem tinha um porte tão recto e demonstrou alguma afabilidade. Usava uma barba aparada em volta da boca e umas patilhas acentuadas. Eram ambos homens cinquentões de imagem austera e formal. Valentim Passos fora também o candidato do PNL derrotado por Diogo Pereira nas Regionais.
— Boa tarde, Octávio! Obrigado por ter vindo. — disse Valentim, estendendo-lhe a mão.
Octávio apertou-a, lançando com alguma acidez:
— Como se tivesse escolha.
Viriato copiou o cumprimento e também apertou a mão do deputado do MPP. Porém, não disse uma palavra, sentando-se numa poltrona. Foi imitado por Valentim que ocupou outra poltrona e deixaram o sofá mais largo para que Octávio se sentasse.
Mantendo o tom conciliador, Valentim disse:
— Temos observado que o Octávio parece algo deslocado dentro do seu grupo parlamentar. — Sorriu. — Está a ser um incómodo para os seus colegas.
— Não sabia que o PNL agora se preocupava com as relações entre deputados do MPP.
— Pelo contrário. — refutou Valentim. — Por nós, vocês podem matar-se uns aos outros.
— Então não estou a perceber.
— Queríamos falar consigo acerca das suas reivindicações. Sim, você tem razão, o poder desta região deveria ser descentralizado. Já o teríamos feito, se tivéssemos ganho as Regionais em Lisboa e Setúbal.
— Sendo governo central também o podem fazer.
Valentim fez um esgar dorido.
— Não é assim tão fácil.
— Mas é exequível. — Foi a primeira vez que Viriato falou. — E estamos disponíveis a fazê-lo. Não como governo central, mas se vencermos as próximas Regionais.
Octávio expressou um sorriso lacónico.
— Não estão à espera que traia o meu partido, pois não? — O silêncio da resposta foi a confirmação de que estavam. — Esqueçam! Jamais faria isso.
— Nem pela presidência da assembleia regional? — questionou Viriato. Octávio hesitou. — Se ganharmos, não apresentaremos candidato a esse lugar e votaremos a favor do seu nome.
— Não sei se o meu partido me designaria como candidato a esse lugar.
— Poderá sempre mudar de cor, caro Octávio. — sugeriu Valentim. — Afinal, que faz você num lugar onde não gostam de si? Acredite que teríamos muito gosto em o receber no PNL.
A proposta foi tentadora para Octávio Simões. Subitamente, sentiu-se pronto a mudar de filiação partidária.
— Calma, Octávio! — aconselhou Viriato. — Estamos dispostos a recebê-lo, mas ainda precisamos de si no MPP.
— Que querem dizer com isso?
— Até às Regionais, precisamos de alguém de confiança para nos pôr a par do que se passa no MPP.
— Não sou nenhum bufo! — insurgiu-se Octávio, irritado e ofendido. — Não vou trair os meus colegas do partido.
Nenhum dos elementos do PNL se pareceu importar com o ar insultado dele. Limitaram-se a olhá-lo com superioridade.
Valentim soltou uma gargalhada. Foi como se estivesse a ver um programa de humor e alguém tivesse contado uma anedota.
— Poupe-nos, Octávio! Você sabe como os seus colegas não gostam de si. Será que vale a pena essa defesa dos interesses deles quando pode lucrar tanto connosco?
— Não estamos só a falar na colocação do parlamento regional em Setúbal e da respectiva presidência para si, como você tanto gostaria. — interveio Viriato. — É a influência que terá nesta região, o facilitismo que poderemos providenciar para os seus negócios... Quer mais?
Octávio Simões não respondeu. A sua cabeça fazia contas. Qual era o valor da sua integridade? Ficava aquém da proposta que lhe apresentavam.
— Que querem que eu faça?
Valentim Passos e Viriato Loureiro sorriram como dois predadores a observar a presa indefesa.
7.4
A noite no Porto estava fria e sentia-se a humidade no ar. Chovera toda a manhã e toda a tarde. Ao entardecer, as nuvens dissiparam e o Sol quase deu um ar da sua graça. A chuva não voltou e o frio intensificou-se.
Amaro Carneiro observava a iluminação nocturna do interior do seu carro, através do vidro da porta traseira. Viu as pessoas a caminhar pelos passeios, o trânsito intenso, a confusão natural de vidas de uma grande cidade. Como costume, nos lugares da frente, o motorista e o segurança.
O trajecto pelas vias urbanas tinha como destino o Coliseu do Porto, onde iria actuar uma orquestra filarmónica internacional que se deslocara à Invicta para dois concertos que esgotaram em poucas horas. Amaro era um apreciador de música clássica e jamais poderia desperdiçar esta oportunidade. Assim, pela via de contactos com gente conhecida, amigos inseridos na área empresarial dos espectáculos, adquirira um bilhete de camarote, o que era um desperdício, já que iria sozinho ocupar um espaço de quatro lugares. A opção do camarote justificava-se como medida de segurança. Sentado numa plateia seria um alvo fácil a uma tentativa de assassinato por alguém atrás de si ou a passar entre cadeiras. Ainda convidara o amigo Sá Costa e a esposa para o acompanhar, mas o outro declinara. Também ponderou levar o segurança consigo, só que para além de dar uma imagem fraca ao andar com o segurança para todo o lado, também sabia que aquilo seria uma seca para ele. E já chegava ao indivíduo sujeitar-se diariamente à possibilidade de ter de levar com uma bala pelo patrão.
A Rua de Passos Manuel estava caótica. Eram carros a circular com passagem dificultada pelos outros mal-estacionados, eram as pessoas a amontoarem-se para entrar em restaurantes ou outros espaços de convívio, eram as duas situações misturadas quando um carro a evitar outro quase atropelava um peão que arriscara atravessar o asfalto na confusão. Buzina aqui, buzina ali... Perto do Coliseu, Amaro observou as filas que se haviam formado para começar a entrar no emblemático edifício.
— Quer que o acompanhe, doutor Carneiro? — perguntou o segurança. — Amaro recusou. — Posso, pelo menos, ficar consigo enquanto aguarda na fila?
— Não será necessário. — tornou a recusar.
A escassos metros da entrada, Amaro informou que iria sair ali. Não era preciso deixarem-no mesmo à porta. O espectáculo deveria demorar entre duas horas a duas horas e meia, altura em que o segurança o deveria aguardar à porta da sala de espectáculos. Combinados os horários, Amaro saiu do carro sem necessidade de que o segurança lhe viesse abrir a porta. Mesmo assim, o possante homem também saiu da viatura e observou atentamente as redondezas. No meio de tanta confusão, não seria de descurar a possibilidade de aparecer um maluco simpatizante do PNL com uma arma para o abater.
Amaro Carneiro saiu do automóvel envergando o seu fato de qualidade feito por encomenda num alfaiate portuense, numa das casas mais tradicionais do género. Todos os seus fatos eram feitos exclusivamente para si. No braço, pendurava o longo sobretudo que logo vestiu, sentindo a brisa fria da rua. Olhou para as centenas de pessoas que avançavam vagarosamente para o interior do Coliseu e tornou a confirmar os horários com o segurança que repetiu sem falhas a que horas o deveriam vir buscar.
Não gostava de dar nas vistas. As pessoas conheciam-no, mas em situações como aquelas, momentos da vida privada, preferia não ser reconhecido. Puxou as golas do casaco para cima, protegendo-se do vento ténue e caminhou lentamente, descendo a rua, aproximando-se dos espectadores que iriam assistir ao concerto. Viu gente vir de baixo, do lado dos Aliados, outros vindos do lado oposto do passeio, homens e mulheres, juntando-se às filas de acesso. A escassos dez metros de tomar o seu lugar na espera, a sua atenção foi captada pela figura feminina que alcançara a fila alguns minutos antes de si.
Àquela distância, não a conseguia ver muito bem. O que lhe captou a atenção foi a elegância com que se movimentava dentro de um longo casaco de pele que a fazia parecer estar dentro de um urso polar. O cabelo ruivo provocava um contraste interessante com o tom felino do casaco. Não lhe foi perceptível perceber se estava sozinha ou acompanhada por alguém que já se encontrava na fila, uma vez que os separavam umas dez pessoas.
Amaro olhou para o relógio. O concerto deveria começar dentro de trinta minutos. As pessoas avançavam vagarosamente para as entradas. Alguns minutos decorridos e Amaro já vislumbrava as portas do recinto. Tornou a atirar uma olhadela para a ruiva elegante que nem por uma única vez se voltou para trás. Contudo, o seu estado de espírito alterou-se ao ver que as entradas estavam a ser vigiadas por elementos do SIALE. Não estavam identificados, mas Amaro reconhecia aquela escumalha em qualquer lugar. Só esperava que não lhe criassem problemas. Lamentou não ter seguido a sugestão do seu segurança de o manter por perto até entrar. Porém, que faria o segurança contra vários agentes?
A fila única dividia-se perto do seu final pelas portas de acesso. Cada pessoa alcançava a porta que lhe era indicada e mostrava o bilhete a um elemento com vestes da sala de espectáculos que verificava e confirmava o bilhete. Tudo com a supervisão silenciosa dos tipos do SIALE.
Quando chegou a vez da mulher ruiva avançar, o funcionário olhou para o bilhete e virou-o para os agentes atrás de si. Na fila, dois casais avançaram para outras portas. Amaro caminhou automaticamente com o olhar cravado na situação.
— O quê? — ouviu a mulher dizer alto. — Não posso entrar porquê?
— Fale baixo! — ordenou um dos agentes. — Onde pensa que está?
— Eu paguei bilhete! — lembrou ela, exaltada.
O funcionário revelou-se o mais calmo de todos e explicou:
— O concerto está vedado a estrangeiros. Só é permitida a entrada a portugueses. Os cidadãos estrangeiros ou naturalizados terão de adquirir bilhetes de camarote para não importunarem os restantes.
— Você deve estar a gozar com a minha cara. Eu sou tão portuguesa como qualquer um dos que está a entrar.
O funcionário fez um sorriso escarninho e voltou-se para os agentes com uma expressão jocosa.
— Mostre-me a sua identificação! — exigiu o agente do SIALE.
A ruiva levou a mão à mala pendurada no ombro e retirou a carteira furiosamente. Puxou do cartão de cidadão e apontou-o ao homem.
A fila continuava a avançar. Quase todas as pessoas evitavam olhar, ignorando algo que lhes pudesse atrair problemas. No entanto, Amaro não era assim. E já só duas pessoas o separavam da sua vez, quando, mais perto, reparou no rosto de traços asiáticos da ruiva. Percebeu logo o que se estava a passar.
— Você não é uma portuguesa genuína! — exclamou o agente, atirando-lhe a identificação com desdém. — Por isso, o seu bilhete para a plateia não serve. E não me parece que haja camarotes disponíveis.
— O QUÊ? — berrou ela, furiosa. — Você deve estar a gozar com a minha cara, não?
Sem que nada o fizesse esperar, o agente deu-lhe uma bofetada que quase a derrubou.
Foi a gota de água para Amaro. Sem hesitar, abandonou o seu lugar na fila e aproximou-se da cena.
— Que se passa aqui? — interrogou furioso. Não esperou resposta e dirigiu-se à ruiva. — Você está bem?
O agente avançou um passo e colocou-se ao lado de Amaro.
— Cidadão! Volte para o seu lugar na fila. Este assunto não lhe diz respeito.
Amaro ignorou-o, observando a mulher que acariciava o rosto onde fora agredida. Ficou encantado com a beleza do seu rosto, os olhos escuros de rasgo acentuado, o nariz singelo, a boca suculenta bem pintada num tom vermelho-escuro.
— Volte para o seu lugar, cidadão! — ordenou o agente num tom mais rude.
Os olhares da desconhecida e de Amaro encontraram-se. Ele sentiu um arrepio na espinha. Ela disfarçou a humilhação que sentia e forçou um sorriso, desvalorizando a agressão.
Sem ponderar os riscos de se envolver naquela cena, Amaro encarou o agente do SIALE. Antes de dizer qualquer palavra, lamentou constatar que todas as pessoas que assistiam àquilo se mostravam desinteressadas, como se nada tivesse acontecido. Onde estavam os portuenses genuínos? Que era feito daqueles verdadeiros portuenses que já teriam agido, mais não fosse para injuriar aquele cobarde que agredira uma mulher? Ó Deus, que estava o PNL a fazer ao seu povo?
— Volte para o seu lugar, cidadão! — tornou a repetir o agente, preparando-se para lhe segurar o braço.
— O que se passa aqui? — exigiu saber Amaro, desviando-se do toque do tipo do SIALE.
A mulher respondeu pelo homem que a esbofeteara:
— Não me querem deixar entrar. Dizem que não sou portuguesa.
Amaro expressou toda a sua estupefacção e interrogou:
— E desde quando a nacionalidade é critério para acesso a uma sala de espectáculos?
— Está nas regras de admissão. — explicou o funcionário. — Os cidadãos estrangeiros terão de assistir em pontos isolados do recinto, como os camarotes.
— Mas eu SOU PORTUGUESA! — gritou ela.
O agente do SIALE fez um gesto para tornar a agredi-la, mas Amaro entrepôs-se, escudando-a. O segundo agente deu um passo para vir dar cobertura ao colega, mas o primeiro desistiu do gesto.
— E mesmo que não fosse. — disse o político, tornando a olhar para a ruiva. — Tem todo o direito de entrar, se pagou bilhete.
Ela sorriu-lhe com simpatia.
— Não me parece que estes senhores sejam dessa opinião.
— Eu tenho um bilhete de camarote. Se não vir inconveniente nisso, terei todo o gosto que assista ao espectáculo comigo.
— Não quero incomodar. Não posso pedir que um dos seus acompanhantes saia para que eu entre.
— Eu estou sozinho.
A ruiva observou-o confusa. Estranhou que alguém comprasse bilhetes de camarote para assistir sozinho. Seria um daqueles malucos que têm paranoias com o contacto com outras pessoas? Hesitou, relutante em aceitar.
— Cidadão! — chamou o agente. — Vai entrar? Ou então, saia do caminho!
Ignorando a ordem, Amaro insistiu:
— Seria um desperdício não assistir a um concerto destes, não acha?
Ela sorriu.
— Se não se importa de partilhar o camarote com uma estranha... Mas, faço questão em pagar metade do seu bilhete.
— Depois vemos isso. — retorquiu, sem a mínima intenção de lhe aceitar um cêntimo que fosse, e retirou o seu bilhete do bolso do sobretudo. Olhou para o funcionário com uma expressão rígida e usou um tom áspero. — Aqui tem o meu bilhete. A senhora irá acompanhar‑me e fica no camarote comigo. — O funcionário pareceu duvidar. Amaro tornou-se irónico. — Se quiser, pode escoltar-nos até lá para se certificar que a senhora não foge para a plateia.
O homem olhou para os agentes do SIALE. Estes abriram caminho para permitir a passagem. Amaro arrancou o bilhete das mãos do funcionário e entrou na companhia da ruiva.
— Muito obrigado! — disse ela, caminhando a seu lado pelo átrio em direcção às escadas. — Já não é muito comum ver alguém vir em defesa de desconhecidos. Ainda para mais contra estes crápulas do SIALE.
— Não me metem medo. — mentiu. Ele receava-os, daí que andasse com segurança privada. — Além disso, onde já se viu privar as pessoas de aceder onde quer que seja com base na sua nacionalidade?
— Mas, eu sou portuguesa! — insistiu, achando que ele estava a duvidar. — O meu pai é japonês e a minha mãe é coreana. Mas, eu nasci em Portugal.
Amaro olhou para ela. Agora, sob a iluminação do interior do edifício, reparou que o cabelo dela tinha um tom ruivo acobreado, o rosto de feições asiáticas menos vincadas, o que o levou a suspeitar que um dos pais não seria asiático, e os olhos escuros tinham uma tonalidade castanha.
— Mesmo que fosse asiática, africana, muçulmana, indiana, o que quer que fosse, tinha tanto direito a entrar quanto qualquer outro.
Ela sorriu. Tinha um sorriso encantador.
— Mais uma vez obrigado, senhor...
Amaro não evitou um sorriso. Ela não o reconhecera. Ora aí estava mais um ponto a seu favor. Ele adorava conhecer pessoas, na sua vida privada, que não faziam ideia de quem ele era.
— Amaro. Amaro Carneiro. — completou.
O espanto acercou-se do seu rosto.
— Realmente, quando vi a sua cara não me pareceu estranha. O senhor é...
— Por favor, retire o "senhor". Faz-me parecer velho. — A frase fê-lo receber mais um sorriso encantador. Não queria parecer velho ao lado dela, até porque calculou que ela deveria ser bem mais nova que ele. — Trate-me por Amaro.
Sem pararem a passada calma em direcção ao acesso dos camarotes, ela retribuiu:
— Erika. Erika Tamahari.
— Posso tratá-la por Erika?
— Claro... Amaro.
Entraram no camarote. Como cavalheiro que era, Amaro ofereceu-se para a ajudar a despir o imponente casaco de pele, o qual pendurou no cabide junto à porta. A seguir, despiu o seu sobretudo, disfarçando que a olhava. Por baixo do casaco felpudo, Erika trazia um vestido de noite elegante em tons verde-escuro com gola sem decote, comprido até aos pés, e calçava botas cujas biqueiras se viam por baixo do tecido. Ele pendurou o seu casaco ao lado do dela e apontou-lhe a cadeira mais próxima do palco.
A sala já se encontrava bem composta. Poucas cadeiras permaneciam vagas. A hora marcada para o início do espectáculo aproximava-se. Sentada no seu lugar, Erika retirou o seu smartphone da mala e começou a dedilhar no ecrã. Amaro reparou nas suas mãos, os dedos longos, as unhas bem pintadas de verde. Retirado o som ao aparelho, ela tornou a devolvê-lo à mala.
As luzes baixaram. Ouviram-se os primeiros acordes de afinação dos instrumentos. No palco, as cortinas permaneciam cerradas. A intensidade das luzes continuou a baixar até o ambiente ficar numa penumbra quase cega. Uns últimos espectadores atrasados apressaram-se para as suas cadeiras. As cortinas abriram e o concerto começou.
A primeira parte durou pouco mais de uma hora. Amaro saboreou cada nota musical, mas o seu olhar estivera a maior parte do tempo cravado na sua improvável companheira de camarote. No escuro, recordou as suas feições, permitindo-se a analisá-la, concluindo que era uma mulher deslumbrante. Sentiu-se curioso em conhecer o ser para lá da imagem, saber quem era ela para além daquela situação que os juntara, o que fazia... Talvez estivesse a exagerar, contentar-se-ia em convidá-la para sair, passar um bom momento com ela... Quem sabe? Podiam envolver-se. Erika era atraente, mesmo muito atraente. Como seria por baixo daquele vestido? Imaginou-a nua na sua cama.
Um acorde forte despertou-o das suas fantasias. O público aplaudiu freneticamente e as cortinas voltaram a fechar. O intervalo chegara.
— Maravilhoso! — exclamou Erika, encantada.
— Não é muito comum encontrar apreciadores de música clássica na sua geração.
Erika fez uma expressão confusa. A seguir, olhou-o com desafio.
— Que idade acha que eu tenho?
Amaro calculou que ela seria uns vinte anos mais nova. Mesmo assim, exagerou, sorrindo com divertimento e avançando uma sugestão que demonstrava nem ele próprio acreditar:
— A Erika deve ter uns vinte e tal, quase trinta anos.
Ela sorriu e retribuiu-lhe com uma expressão de sedução. Uma mulher gosta sempre de parecer mais nova.
— Tenho trinta e seis anos.
— Não acredito. — ripostou na brincadeira, confirmando a sua suspeita e sentindo-se subitamente velho.
— Quer que lhe mostre o CC? — sugeriu ela, entrando na brincadeira.
— Não será necessário. — recusou simulando o tom de um agente de autoridade. Alterou para um tom normal. — E eu? Que idade acha que tenho?
Erika ponderou, observando-o como se esperasse encontrar a data de nascimento na testa dele. Acabou por dizer:
— Sou péssima para avaliar a idade das pessoas. Receio poder ofendê-lo.
Amaro não insistiu e respondeu por ela:
— Tenho cinquenta e nove anos. Sou um velho.
Erika fez uma expressão discordante.
— Não acho que seja velho. Além disso, em certos homens, a idade é como o vinho do Porto, quanto mais maduros melhor.
— Não me parece que seja o meu caso. — desvalorizou, atirando o engodo para o que gostaria de ouvir.
Ela caiu no engodo:
— Bem pelo contrário. Acho o Amaro um homem com muito charme.
Nesse instante, as luzes voltaram a diminuir até a sala voltar a ficar numa escuridão quase total. Os cortinados do palco foram recolhidos e a orquestra retomou o concerto.
A segunda parte foi tão boa quanto a primeira. Porém, Amaro não a saboreara da mesma forma, uma vez que as últimas palavras de Erika não lhe saíam da cabeça. Estaria ela interessada? Poderia aquela noite terminar muito melhor que aquilo que ele pudesse ter imaginado quando chegara ao Coliseu?
Ao fim de mais hora e meia de espectáculo, de constantes composições musicais, de autênticos bailados de acordes brotados de inúmeros instrumentos, a última nota musical foi tocada e o público explodiu numa salva de palmas extasiada. A ovação de pé durou vários minutos. Maestro e todos os elementos da orquestra multiplicaram-se em vénias de agradecimento. Os aplausos só acalmaram quando os cortinados voltaram a tapar o palco.
— Fabuloso! — afirmou Erika, levantando-se da sua cadeira.
Amaro fez o mesmo e dirigiu-se ao cabide para segurar o casaco de pele, ajudando-a a vesti-lo. Ela agradeceu-lhe com uma expressão meio envergonhada. Logo que ele vestiu o sobretudo, ambos saíram do camarote.
No corredor que ladeava os acessos aos lugares mais caros, as pessoas iam avançando vagarosamente para as escadas. Ao lado de Amaro, Erika voltou a pegar no telemóvel para lhe devolver o som. Amaro decidiu tentar a sua sorte.
— Conheço um bar muito tranquilo, perto da Ribeira. Quer fazer‑me companhia numa bebida?
Erika revelou-se surpreendida. Com uma voz segura e uma face séria, retorquiu:
— Preferia retribuir-lhe o bilhete, pagando metade dele.
Percebendo que o convite fora interpretado como uma compensação pela sua generosidade, Amaro apressou-se a esclarecer:
— Não se trata de retribuição, Erika. Tive todo o gosto em partilhar o camarote consigo. E não quero que me pague nada. O convite é só um convite de alguém que gostou de estar consigo e que não se importava de estender mais um pouco o serão.
Erika parou e tocou-lhe o braço, levando-o a voltar-se para si. Os restantes espectadores passaram por eles como se fossem uma mera coluna no caminho.
— Peço desculpa se lhe dei uma impressão errada, Amaro. — A expressão no rosto dela era de uma candura inocente, mas falava sem disfarçar o tom sedutor. Ou então era assim que olhos e ouvidos dele recebiam a informação. — Aceitei a sua sugestão maravilhosa e adorei partilhar este concerto consigo. — Havia uma honestidade inquestionável no seu olhar. — Sei que apareci sozinha, talvez tenha transmitido uma ideia de disponibilidade que não é real. Sinto-me lisonjeada pelo seu convite, Amaro, mas não estou interessada.
Amaro sorriu derrotado.
— Era só uma bebida.
— Ambos sabemos que a ideia não seria só uma bebida.
Ele anuiu, mas não se rendeu:
— Confesso, Erika! Apanhou-me. Acho-a deveras interessante. E gostava de a voltar a ver. Mas, tem razão. Fiz um juízo errado em dar como adquirido que ao estar sozinha era uma mulher disponível. E peço‑lhe desculpa por isso. Acabei por agir de forma preconceituosa.
Erika revelou-se conciliadora:
— Não diria tanto. Também não sou a Madre Teresa. — Sorriu. Um sorriso que tinha mais de sedução do que uma simples forma de atenuar qualquer sentimento de desconforto. — O Amaro é um cavalheiro. E para além de ter surgido do nada em minha defesa, tratou‑me com uma correcção que já não é muito comum. Não quero que se sinta... como dizer... rejeitado.
Já quase não havia ninguém no corredor. Ao fundo, dois funcionários preparavam-se para começar a limpar os camarotes.
— Mas fui. — lembrou ele sem evidenciar qualquer sinal de mágoa. Sentira a rejeição e desvalorizara-a. — Não se preocupe, Erika. Está tudo bem.
Prosseguiram o trajecto até às escadas e desceram para o átrio amplo que ia ficando vazio. Já não se viam agentes do SIALE em lugar algum.
— Posso dar-lhe boleia até casa? Tenho o meu motorista à espera lá fora.
Erika declinou, falando com simpatia e procurando as palavras mais afáveis:
— Obrigada, Amaro! Não é preciso. Aprecio a sua insistência, a sério. Confesso que me faz sentir valorizada.
Ao sair, Amaro viu o carro parado defronte do Coliseu. Àquela hora já não havia muito trânsito e o veículo pouco atrapalhava os condutores que por ali passassem. O segurança aguardava encostado ao carro, pronto a abrir a porta traseira, enquanto o motorista se mantinha no seu lugar.
— Bom... É aqui que nos separamos. — disse ela, denotando uma certa tristeza na voz.
Amaro sorriu-lhe sem pudor em que se percebesse como estava interessado nela. Não se coibiu de a olhar com desejo, mantendo a forma cavalheiresca como a tratara desde o primeiro momento.
— Peço desculpa por ser um velho chato. Não quer mesmo vir tomar uma bebida?
— Você não é velho, Amaro. É maduro.
— Um eufemismo, Erika.
— Maduro como um cálice de Porto Vintage.
Amaro fez uma expressão grata, encaixando o elogio. Continuou sem se render:
— Podíamos tomar esse cálice juntos...
Mais uma vez, ela ofereceu-lhe o seu sorriso mais encantador.
— Você não desiste, Amaro.
— Dificilmente, pelo que vale realmente a pena.
— Talvez me esteja a sobrevalorizar.
— Não creio.
Erika encarou-lhe o olhar. Perdeu o sorriso. A intensidade nos seus olhos atingiu um nível muito profundo. A voz saiu-lhe séria, sem sedução, honesta, finalizadora:
— Hoje não!
— Hoje não?
— Hoje não.
— E...
— Talvez...
— Será só uma bebida.
— Não teria tanta certeza disso. — rebateu meio envergonhada. — Talvez lhe pudesse adicionar um jantar?!
— Quando?
— Amanhã?
— Sim. Onde a posso ir buscar?
— Ao mesmo sítio onde me vai deixar agora. — sugeriu com um sorriso travesso. — Acho que afinal vou aceitar a sua boleia.
8.1
Fora mais um dia extenuante de trabalho para Valério. Não tanto pelas tarefas, se bem que se sentia a estupidificar naquele lugar. Era mais pelas pessoas, aquela gente que se avaliava pela posição social, pelo dinheiro e pelo que vestia. Pelo menos, não tivera o desprazer de se cruzar com o patrão.
A noite já caíra na cidade, pouco passava das seis da tarde. Valério tinha saudades das tardes de Verão, quando o anoitecer surge já para lá da hora de jantar. Caminhava pelas ruas do centro da capital seguindo o seu percurso diário, desde o escritório de advogados até à estação do Metropolitano. Estava tão habituado que o fazia de forma automática sem registar o que via, quem via ou por quem passava. Verdade seja dita, a sua mente ia perdida noutros pensamentos.
Pensava em Kayla. A deslumbrante Kayla que ele conhecera no bar onde ia usualmente para beber uma cerveja e ver futebol. A profissional Kayla que surgira nesse bar com o patrão. A bela e luxuosa prostituta que ele levou a casa e onde acabou por dormir no seu sofá.
O movimento de pessoas no Metropolitano estava normal para a hora de ponta. Ele passou o seu passe pelo torniquete e desceu as escadas de acesso à plataforma, recordando o momento em que acordara no sofá dela.
Poderia ter permanecido até que ela acordasse. Quisera imaginar, nessa manhã, que ela iria aparecer na sala nua a querer fazer amor com ele. Sentiu-se estúpido por fantasiar algo tão irreal. Sabia que não tinha a mínima hipótese com ela, a menos que levasse algumas notas na mão. Nem saberia muito bem como reagir, quando a voltasse a ver. E talvez Kayla esperasse que ele tivesse o bom senso de se ir embora antes de ela acordar. Optara por lhe escrever um bilhete, colocar um pouco da sua alma e abrir ligeiramente o coração em meia dúzias de linhas.
As carruagens de metro brotaram do túnel, ecoando de forma ensurdecedora na estação. As pessoas posicionaram-se para entrar primeiro, conseguir os melhores lugares ou simplesmente um lugar sentado. Ao parar, as portas abriram-se. Outras pessoas saíram, tendo de contornar quem queria entrar. A confusão do costume. Valério entrou no jogo, não poderia ficar para trás, arriscando-se a não entrar na carruagem. Uma vez lá dentro, segurou-se ao varão e sentiu o transporte a reiniciar a sua marcha.
Regressou às lembranças. Sentira-se estúpido por lhe ter deixado aquele bilhete. Já conduzia de regresso à Amadora e condenava-se por tal parvoíce. Calculou que ela leria o papel e sorriria com aquele absurdo. Fora ridículo e só demonstrava que não estava mesmo ao nível dela, revelando-se ingénuo e... parvo.
O papel continha também o seu número de telemóvel, escrito com o desejo fantasioso de que ela tivesse algum interesse em ligar-lhe. Já tinham passado muitos dias e esse telefonema não aconteceu, pelo que só confirmava que ela não estava sequer interessada na metáfora dos "amigáveis".
As estações iam-se sucedendo. Cada vez saiam mais pessoas e entravam menos. A carruagem começou a ficar mais espaçosa. Valério tinha como destino uma das últimas estações da linha. Tudo seguia com naturalidade, até um grupo de jovens ter entrado na sua carruagem.
Eram quatro, idades entre quase vinte e vinte e poucos. Uns com o cabelo rapado e outros com o cabelo muito curto. Envergavam blusões de cabedal escuro, calças de ganga estilo camuflado e botas militares. Valério reconheceu-os. Aquele tipo de indivíduos proliferava pelas cidades do país, principalmente em Lisboa. Eram elementos da Juventude Nacionalista Lusitana, uma organização política de jovens ligada ao PNL, supostamente um movimento de jovens com ideais nacionalistas lusitanos, mas com laivos de milícia. As pessoas costumavam compará-los em surdina à Juventude Hitleriana.
A sua presença fez com que, na estação seguinte, uma rapariga muçulmana, um casal de chineses e um africano saíssem da carruagem, optando por esperar a composição seguinte. Os rapazes repararam e congratularam-se pelo facto, vangloriando-se com o poder que tinham.
Valério sentiu repulsa por aquela escumalha. Como poderia Portugal permitir a existência de movimentos daqueles, canalhas marginais que viviam para implementar o medo? A resposta estava no partido que governava o país. Sorriu com ironia, constatando que o povo ciclicamente cometia o erro de eleger extremistas para o poder. E o que poderia explicar isso? Valério tinha uma teoria. As políticas liberais e solidárias procuravam agradar a todos e, nesses casos, acabam por não agradar a ninguém. Ao não encarar os problemas, deixam que sentimentos obscuros cresçam nas populações, descontentamentos que se tornam em justificações simples a extremistas para apresentarem soluções para tudo. Se olharmos para a História, para os países com regimes ditatoriais de inclinação extremista, iremos concluir que na maior parte dos casos, eles foram eleitos pelo povo. Porquê? Porque apareciam como uma espécie de antídoto para aquilo que as pessoas pensavam ser os seus problemas. E depois tornavam-se num problema maior. Era isso que estava a acontecer a Portugal. O MPP socorrera Portugal do caos em que os sucessivos governos socialistas e sociais‑democratas o haviam deixado cair. Socorreram-no com medidas impopulares, mas necessárias. Quiseram agradar a todos, não convencendo quem já não gostava do MPP e desagradando a muitos que lhe tinham entregado o voto. Sem querer, abriram o caminho à ascensão do PNL. Limpos de actividade política, de registo de más governações, o PNL chegou ao coração do eleitorado através da demagogia, justificando que o país era consumido pela horda estrangeira que tomava o lugar dos portugueses, que a criminalidade era exclusiva de pretos e ciganos, que a corrupção tinha o seu núcleo em Lisboa, entre muitas outras coisas. As justificações simples são sempre as mais bem absorvidas porque o povinho não gosta de pensar em coisas muito complicadas. Assim, com aquela simplicidade de explicação do mal, o PNL revelava-se como uma solução simples e evidente. Enfim... É com este conceito simples que a democracia continua a eleger ditaduras.
Os pensamentos de Valério foram interrompidos por um momento de tensão. Após parar em mais uma estação, um jovem negro entrou na carruagem. Para sua pouca sorte, entrou logo pela porta em que deu de caras com os jovens da JNL.
— Ei! Ó preto! — chamou um deles. — Acho que estás enganado. A carruagem dos animais é lá atrás.
Os outros riram como energúmenos que eram.
Ninguém dos presentes se atreveu a intrometer-se.
Para espanto de Valério, o rapaz respondeu:
— Se a dos animais está lá atrás, que fazem vocês aqui?
Bolas, aquele era dos rijos, pensou Valério. Simpatizou de imediato com ele. Porém, viu um dos outros aproximar-se e segurar o africano pelas abas do casaco.
— Que disseste, preto?
As portas da composição iam a fechar, mas um dos comparsas do agressor colocou um pé a travá-las.
— Põe-te lá fora, caralho! — exclamou o primeiro, empurrando-o para fora da carruagem.
O rapaz caiu desamparado na plataforma deserta. As portas voltaram a tentar fechar-se. E desta vez, nada as travou. No entanto, Valério saltou da carruagem antes.
A composição do Metropolitano retomou a marcha. Valério viu os rapazes a rirem e a acenar jocosos no interior. Aproximou-se do rapaz que se tentava levantar.
— Estás bem? — perguntou, estendendo-lhe a mão. O rapaz olhou para ele com suspeição. Valério era branco, tão branco como os tipos que o haviam expulsado da carruagem. Hesitou. — Aqueles merdosos não valem nada. Mas, tu fizeste-lhes frente.
O rapaz acabou por aceitar a ajuda e apertou-lhe a mão.
— Valeu-me de muito...
— Estás bem? Não te magoaste? — O outro abanou a cabeça. — É lamentável que as autoridades não acabem com estes gajos.
— Já reparaste que as autoridades estão do lado deles? — lembrou numa pergunta que não esperava resposta.
— És capaz de ter razão, infelizmente.
O jovem ajeitou a roupa e sacudiu algum pó.
— Resta-me esperar o próximo metro e desejar que não encontre mais merdosos.
— Eu faço-te companhia. — sugeriu Valério.
— Não é preciso. — recusou o outro com um sorriso irónico. — Não preciso de protecção.
Valério riu-se.
— Não é para te proteger. Só saí aqui para te ajudar. A minha estação é a seguinte.
A revelação pareceu surpreender o jovem. Vivia-se uma época em que não era comum que estranhos ajudassem estranhos, muito menos um branco ajudar um negro. Estendeu-lhe a mão e disse:
— Chamo-me Manuel. Obrigado pela ajuda!
— Valério. — informou este, apertando-lhe a mão.
Aguardaram alguns minutos. Valério ficou a saber que o outro era filho de naturais de São Tomé e Príncipe. Ele já nascera em Portugal, vivia na Reboleira e estudava na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Para além disso, trabalhava para uma empresa de segurança no controlo de acessos ao Castelo de São Jorge. Conversaram mais um pouco na carruagem, não muito porque o percurso era curto. Despediram-se com novo aperto de mão e cada um seguiu o seu caminho.
Valério passeou tranquilo pelas ruas da Amadora. Curioso, o lugar tinha má fama, mas ele sentia-se mais em perigo com a eventualidade de se cruzar com escumalha da JNL do que passear por ali. Chegou a casa, procurando abstrair-se da realidade de viver sozinho. Talvez fossem os momentos mais complicados no dia-a-dia, chegar a casa para encontrar solidão. Acendeu a luz. O apartamento humilde tinha um ambiente frio, normal por um dia inteiro desabitado. Valério foi até à pequena sala e acendeu a televisão. Ouvir vozes saídas do aparelho parecia atenuar a solidão. Seguiu para a cozinha. Alguma louça suja lembrou-o que deveria tratar disso. Mais tarde... talvez. Procurou alguma coisa para comer. Não lhe apetecia cozinhar. Nunca apetecia. A comida era só para ele, por isso, para quê o incómodo? Preparava sempre algo rápido. A dispensa tinha muitas conservas. Uma cerveja, um pedaço de pão... Estava jantado.
Preparou umas sandes de atum e foi ao frigorífico buscar uma cerveja. Pegou em tudo e trouxe para a sala. Sentou-se no sofá roçado e procurou o telecomando. Antes de começar a comer, saltou pela lista de canais da televisão sem encontrar nada de jeito para ver. Optou por ficar nas notícias enquanto saboreava o jantar. Não registou nada do que viu, limitando-se a pensar na vida e no marasmo do qual via cada vez menos escapatória.
Terminou a refeição e regressou à cozinha, pousando a louça suja junto da restante. Deveria lavá-la. Não estava com paciência. Apagou a luz e retornou ao sofá.
No noticiário falavam de desporto. Resumos dos jogos da jornada do campeonato português. Como seria feliz, se pudesse estar sentado num banco de suplentes como treinador... Nem que fosse do último classificado da última divisão do pior campeonato.
Os seus pensamentos foram interrompidos pelo som do seu telemóvel.
Valério pegou no aparelho. Tinha uma mensagem nova enviada através do WhatsApp. Não conhecia o número do remetente e a mensagem dizia apenas "ainda te lembras de mim?".
Curioso, Valério decidiu responder, suspeitando que era engano ou alguém a querer brincar com ele. Para ambos não estava com a mínima paciência.
"Peço desculpa, mas não estou a ver quem és"
No topo do ecrã, viu surgir num verde carregado a indicação que aquele número estava a escrever. Com o som característico da aplicação, veio nova mensagem.
"Não consegues adivinhar?"
Ok. Alguém queria brincar. Teve vontade de ignorar e atirar o aparelho para o lado. Porém, a curiosidade acicatava-o e também não havia nada melhor para fazer.
"Não conheço o número"
"É natural, eu nunca te dei o meu número. Mas tu deste-me o teu"
Que raio! Quem seria a pessoa? Valério tentou pensar na possível identidade do seu interlocutor. Será que era...
"Quem és?"
"Vais ter de adivinhar"
"Podes dar-me uma pista?"
A resposta demorou. Aliás, demorou tanto que Valério começou a pensar que o desconhecido desistira da brincadeira. Porém...
"Costumas dar assim o teu número a tanta gente?"
Ele estava quase certo de quem seria, mas tinha receio em acreditar.
"Não. Raramente. A última pessoa a quem dei nem me parece que ainda se lembre de mim"
"Se calhar estás enganado"
"Não sei. Diz-me tu"
"Como queres que saiba? Não sei quem foi a última pessoa a quem deste o número"
Valério estava entusiasmado com a possibilidade de ser ela, a mulher que não lhe saía da cabeça e que acreditava já nem se lembrar que ele existia. Mesmo assim, receou estar errado.
"Talvez tenhas sido tu"
"Como era essa pessoa a quem deste o número?"
"Alguém que convidei para jogos amigáveis"
A resposta tornou a demorar. Por diversas vezes surgiu a indicação que o número desconhecido estava a escrever, mas nada aparecia no ecrã. Por fim...
"Sim, sei quem é. Talvez seja ela quem está a falar contigo. Decepcionado? Esperavas outra pessoa?"
"Pelo contrário, Kayla. Fico feliz que sejas tu"
A situação anterior repetiu-se. Em diversas vezes surgiu a indicação de que ela estava a escrever, adivinhava-se mensagem comprida.
"Estou disponível esta noite. Tenho estado muito ocupada. E tu foste embora sem te despedires. Não gostei, mas acho que és bom rapaz, por isso estás perdoado. Achei piada à tua sugestão de jogos amigáveis. E estou interessada se mantiveres o interesse"
"Claro que continuo interessado"
"Sem falsas expectativas, Valério. Sou muito honesta. Sem dinheiro, será só um café"
"Tudo bem, Kayla. Conheço as regras"
"Podes passar por minha casa e vir buscar-me?"
"Quando?"
"Daqui a uma hora?"
"Ok. Aí estarei. Até já. Beijinhos"
Não recebeu resposta.
8.2
Teve dificuldade em encontrar uma roupa que lhe parecesse adequada a um encontro com Kayla. Tudo lhe parecia velho, despropositado, feio... Até ponderou se deveria trocar a roupa interior...
Não sejas parvo, pá! Ela deixou claro que isso não iria acontecer.
Escolheu uma camisola de malha e umas calças de ganga lavadas. Calçou sapatos em vez das habituais sapatilhas e vestiu o blusão que lhe pareceu ter mais estilo.
A noite estava fresca sem que o frio fosse demasiado ou um incómodo. Valério conduziu o seu velhinho automóvel pelas ruas de Lisboa, atravessando a cidade para a zona oriental, para o bairro do Parque das Nações. Não havia muito trânsito e chegou dez minutos antes da hora. Parou em frente ao prédio, em segunda fila numa rua suficientemente larga para não atrapalhar quem quisesse passar, e espreitou como se esperasse encontrá-la na janela à sua espera.
Havia luz no seu apartamento. Valério pensou em esperar a hora combinada, mas estaria a desperdiçar minutos em que poderia estar com ela. Decidiu pegar no telemóvel e enviar uma mensagem a informar que já chegara e que aguardava defronte da porta do prédio. Não recebeu qualquer resposta.
Decorreram alguns minutos. Para matar a ansiedade, saiu do carro e esperou encostado ao muro que ladeava a escada de acesso ao prédio. Tornou a olhar para cima, a luz continuava ligada. Olhou para o ecrã do telemóvel. Confirmou que a mensagem via WhatsApp que enviara fora lida. Contudo, continuava a não haver resposta.
Repentinamente, foi atingido por um súbito receio. Ele não sabia se aquele número no WhatsApp era o número verdadeiro de telemóvel dela. Será que fora mesmo ela a enviar-lhe as mensagens ou alguém a gozar com ele? Será que Kayla contara ao seu cliente, o patrão de Valério, como decorrera a noite em que a conhecera? Teria o patrão visto o bilhete? Teria comentado com outras pessoas? Será que alguém do escritório engendrara aquela brincadeira de mau gosto? Quanto mais esperava, mais acreditava nessa hipótese. Ficou de tal modo receoso que, quando ela surgiu na porta do prédio, equacionou a eventualidade de ela ficar surpreendida com a sua presença ali.
Kayla saiu do prédio sem olhar para ele, como se ainda nem o tivesse visto. Vestia leggings elásticas pretas, uma camisola justa cor de vinho e um blusão escuro cujo fecho começara a apertar ao sentir o fresco exterior. Calçava sapatilhas Nike e trazia o cabelo solto.
A sua postura indiferente acentuou as dúvidas se teria sido mesmo ela a enviar o convite. E começava a pensar que ela já nem se lembrava dele e iria passar sem o reconhecer.
Ao começar a descer as escadas, sorriu-lhe e aproximou-se.
— Desculpa ter-te feito esperar, mas ainda não estava pronta.
— Não há problema. — retorquiu Valério, suspirando de alívio.
Contudo, novo momento acentuou o seu nervosismo. Ela aproximava-se e ele não sabia como reagir. Deveria dar-lhe um beijo? Ela esclareceu as dúvidas, passando por ele na direcção do carro e dizendo:
— Vamos?
Enquanto ela entrava para o lugar ao lado do condutor, Valério tornou a olhar para cima. A luz continuava acesa. Contornou o automóvel e entrou para o seu lugar. Sentiu de imediato o perfume dela, um aroma a citrinos leve e doce. Olhou para Kayla. Ela devolveu-lhe o olhar tranquila. Usava uma maquilhagem simples, somente uma sombra nas pálpebras e um batom suave.
— Onde queres ir? — questionou Valério, ligando a ignição.
— Podemos ir ao bar do outro dia.
A viagem foi feita quase sem diálogos. Valério não sabia o que deveria dizer, intimidado por estar na presença dela. Já Kayla mostrava‑se descontraída e distraída com o telemóvel. A música do rádio falou por eles.
O facto de estarem a ir a um sítio que ele conhecia e a que estava habituado, deixava-o mais confortável.
O bar-restaurante estava cheio, o que não era estranho. Valério costumava chegar com menos gente, mas também vinha mais cedo. As mesas estavam quase todas ocupadas, tal como o balcão. Nos ecrãs passava um jogo de basquetebol da NBA. Uma das funcionárias interpelou-os, reconhecendo Valério e atirando-lhe um "olá" sorridente.
— Mesa para dois?
— Podemos ficar ao balcão. — respondeu Kayla.
Valério preferiria o ambiente mais intimista da mesa, mas não se pronunciou. A rapariga desviou-se para que eles passassem. Cruzaram‑se com alguns clientes do espaço até alcançarem o longo balcão e a sua linha de bancos altos que estavam todos ocupados, à excepção de um. Cavalheiro, ele apontou-lhe o lugar e permaneceu em pé. Kayla sentou-se, cruzou as pernas e ficou virada num ângulo intermédio entre o balcão e Valério.
O empregado que servia as bebidas ao balcão não escondeu a surpresa por ver Valério acompanhado.
— Hoje trouxeste companhia. — constatou de sorriso aberto, deitando um olhar interessado a Kayla. — Namorada?
Valério ia a responder uma explicação, dizer que era uma amiga ou algo parecido. Porém, Kayla respondeu por ele num tom assertivo e sem dar muita confiança:
— Duas cervejas, por favor!
O empregado percebeu a mensagem e afastou-se.
Kayla olhou em redor. Sentiu os inúmeros olhares masculinos sobre si. Estava habituada a chamar a atenção dos homens, sabia como a sua simples presença poderia alimentar fantasias. Calculou que alguns dos aprumados que ali estavam a descontrair após um dia de trabalho se deveriam estar a interrogar como é que um tipo como Valério poderia ter a sorte de estar acompanhado por uma mulher daquela beleza. Por outro lado, sentiu o olhar invejoso das poucas mulheres presentes, especialmente as empregadas. Será que alguma se lembrava dela daquela noite em que ali chegara com o advogado? Olhou para o seu acompanhante, o candidato a amigo a quem ela decidira dar uma oportunidade de o ser. Percebeu que ele estava tão nervoso que nem se aproximava, dando quase espaço a que um "espertinho" se metesse entre eles e quisesse entabular conversa com ela. Assustou-o ao tocar na sua cintura, puxando-o para si.
— É basquetebol? — interrogou, olhando para o ecrã.
Valério ficou ainda mais nervoso. Meio a gaguejar, respondeu que sim, que era a liga profissional americana.
O empregado de bar colocou dois copos altos de cerveja em frente a eles. Kayla agradeceu-lhe com um sorriso e colocou o braço à volta da cintura de Valério. Bebeu um pouco, emanando sensualidade.
Valério quase receava mexer-se. Fora surpreendido pelo gesto dela de lhe envolver a cintura com o braço. Ia para beber a sua cerveja, quando ela se esticou para lhe segredar algo ao ouvido:
— Coloca a tua mão na minha perna.
Que estava a acontecer? Ficou confuso. Teria ouvido bem? Arriscou-se, hesitante, a pousar a mão no joelho dela. Kayla colocou a mão sobre a dele e arrastou-a ao longo da sua coxa. Valério sentiu as virilhas a latejar e temeu que tanta excitação o fizesse sujar as calças como um puto adolescente.
O empregado passou por eles, não evitando reparar na proximidade do casal. Kayla mostrava-se melosa, abraçava a cintura de Valério e ia falando junto ao seu ouvido:
— Estás a deixar os homens cheios de inveja. E as miúdas do restaurante devem estar a perguntar o que tenho eu que elas não têm.
Intimidado, Valério tentou parecer descontraído e respondeu:
— Acho que isso é bastante evidente.
— Quando voltares cá sozinho, — segredou-lhe. — não terás dificuldade em engatar qualquer uma delas.
— Porque achas que estou interessado nisso? — ripostou, bebendo mais um gole. — Não trocava a tua companhia por nenhuma delas.
Com a frontalidade que lhe era usual, Kayla fê-lo sentir a sua respiração na sua orelha e lembrou-lhe:
— Elas não custam dinheiro.
Valério ultrapassou algum nervosismo e baixou-se na direcção dela. Aproximou-se dos seus cabelos, sentindo o perfume do champô a frutos do bosque, e questionou baixinho:
— Não me tinhas dito que ias cobrar-me a companhia.
Ela sorriu divertida.
— Vais ser tu a pagar as cervejas.
Valério anuiu. A sua mão continuava na coxa dela. Ele olhou sem coragem ou vontade de a tirar. Viu que os olhos dela o observavam. Ela leu-lhe as dúvidas no rosto e respondeu colocando novamente a sua mão sobre a dele, pressionando-a contra o tecido das leggings.
Ficaram a olhar para o ecrã. Kayla ia colocando questões acerca do jogo sem realmente ter interesse no que ali se passava. Ele ia explicando, satisfeito por ter assunto com que conversar com ela. Quando ela libertou a sua mão, Valério interpretou-o como estando na hora de parar de lhe tocar a perna. Desta vez, Kayla não o impediu. Continuaram a falar. Quem fora o último campeão? E aquele quem é? É bom jogador? Quem é melhor? A todas as perguntas, Valério respondia com gosto, intercalando com um pouco de cerveja.
A certa altura, arriscou-se a colocar o braço sobre os ombros dela. A resposta foi sentir a sua cintura apertada pelo braço que nunca o largara. E desta vez, encostou a cabeça ao peito dele. Por fim, esticou-se novamente e segredou-lhe:
— É melhor irmos andando.
Não saberia dizer se foi do aparente crescimento de proximidade, se pura imaginação sua. Deixou-se cair na fantasia que ela queria ir embora para que fossem ambos para sua casa. Será que o impossível iria acontecer? Saiu do bar-restaurante excitado com essa possibilidade. Contudo, já na rua, Kayla afastou-se dele, não fez menção de querer sequer que lhe segurasse na mão e com algum distanciamento, sugeriu:
— Amanhã voltas cá. Fazes olhinhos a uma das miúdas e vais ver com a facilidade com que a levas para a cama.
— Não percebo onde viste esse interesse. — indagou, decepcionado.
— Não se trata de interesse. — explicou. — Qualquer um ali dentro ficou com a certeza de que iríamos continuar a noite num lugar mais íntimo. — Encarou-o divertida e com humor. — Para eles, esta noite dormimos juntos. Quando voltares, elas vão olhar para ti e achar que se te levarem para a cama, significa que são tão boas como eu. — Deu uma gargalhada. — Vai por mim, Valério. Sei como as gajas pensam.
Ele não se pronunciou. Aliás, sentiu-se de tal forma decepcionado que não teve a mínima vontade de dialogar.
Tal como acontecera antes, a viagem foi feita sem palavras, sem conversa, somente com a música do rádio. Kayla notou que ele ficara diferente, mas desinteressou-se disso e levou todo o trajecto com o olhar no ecrã do telemóvel.
Valério conduziu imbuído em pensamentos. Fez uma análise às últimas horas, consciente que estava a desperdiçar os últimos minutos na companhia de Kayla. Sabia que, assim que parasse na rua dela, ela sairia do carro e iria despedir-se com o desprendimento habitual. Ele era apenas um conhecido, alguém insignificante que servira para lhe ocupar o tempo numa noite sem nada melhor para fazer. Não olhou para ela, mas visualizou-a mentalmente. Kayla era linda, sensual, carismática, desejável, uma mulher que o fazia sentir um formigueiro na barriga, adorava estar com ela e tinha o sonho irreal e absurdo de que ela, um dia, pudesse ter interesse nele. Contudo, interrogou-se se valeria a pena sujeitar-se a encontros daquele género, sensaborões, que começavam com expectativas que terminavam em desilusão. No bar, a postura dela passara-lhe uma mensagem errada. E ela fizera-o de propósito. Se a confrontasse com isso, talvez ela lhe respondesse que estava a ser ingrato, que só quisera ajudá-lo a seduzir uma tipa para levar para cama. Só que ele não queria uma qualquer, queria-a a ela. E quem lhe dera o direito de tomar decisões dessas por ele? Percebeu que estava verdadeiramente zangado com ela. E tomou uma decisão... Talvez o melhor para si fosse fazer daquele primeiro encontro o último.
Valério contornou a curva, entrando na rua dela. Faltava pouco. Iria sofrer pelo fim de uma relação... Qual relação? Iria sofrer por ter acreditado que poderia ter uma relação com ela, nem que fosse uma simples relação de amizade. Abre os olhos, Valério! Quem és tu ao pé de um mulherão daqueles, alguém a quem só interessam clientes com muito dinheiro? Ele era apenas um divertimento sem valor. Não duvidava que assim que se despedisse dele, sairia do carro sem olhar para trás. E o mais certo seria só voltar a mandar-lhe uma mensagem quando estivesse tão entediada que não tivesse mesmo nada melhor para fazer que solicitar a insignificante companhia dele.
— Chegámos! — disse ele, evitando olhar para ela e desejando que fosse rápida na despedida para que ele pudesse ir sofrer sozinho com o fracasso daquela noite.
Kayla guardou o telemóvel na mala. Nada nela demonstrava ter sequer reparado no estado de espírito fúnebre dele. Contudo, antes de sair, perguntou:
— Estás bem?
— Estou. — respondeu ele sem a encarar. — Estou óptimo.
Não era preciso conhecer muito alguém para perceber no tom dele que nada estava bem. E ele sabia que ela pouco se importaria com isso. Só que teve uma surpresa...
— Valério. Podes olhar para mim? — Ele hesitou, mas acabou por virar o rosto para ela. Surpreendeu-se por ver preocupação nos olhos dela. — Que foi que eu fiz de errado? É notório que estás chateado comigo.
Ele ficou sem saber como reagir, como responder. Não esperava que ela desse importância ao que ele estava a sentir. Prolongar o assunto, só iria abrir a ferida. Preferiu desvalorizar:
— Está tudo bem, Kayla.
Ela não desistiu.
— Se queremos que isto resulte, temos de ser frontais e honestos um com o outro.
— E que estamos nós a tentar que resulte? — ripostou ele com mais agressividade na voz que a pretendida.
Ela encarou-o, séria, por alguns segundos. Depois pediu:
— Podes desligar o carro? Acho que temos de ter uma conversa. — Ele acedeu e girou a chave da ignição. O motor calou-se. — Sempre fui sincera contigo, Valério. Desde o primeiro momento que deixei claro que só te daria aquilo que desejas, cada vez que olhas para mim, se pagasses para o ter.
— Sim, eu sei...
— Espera um pouco. Deixa-me terminar, por favor.
Valério encostou-se à porta e ficou virado para ela, ouvindo-a com atenção.
— Vou fazer algo que raramente faço, Valério. Não sei porquê, mas desde que te conheci que sinto que posso confiar em ti. Pareces um tipo porreiro. — Sorriu com alguma ironia. — Se bem que podes estar a ser porreiro para ver se consegues aquilo que ambos sabemos.
— Não sou assim...
Kayla fez um gesto para que não a interrompesse.
— Vou abrir-te o meu coração. Podes não acreditar, mas não me recordo sequer da última vez que o fiz. E muito menos a quem o abri. Não tenho amigos, Valério. E ao longo da vida, talvez se contem pelos dedos de uma mão os que tive. Por esta ou aquela razão, todos desapareceram da minha vida. No outro dia, quando me trouxeste a casa, achei que te deveria retribuir com um café e com outra coisa que não permito a ninguém, entrar na minha casa. Nunca recebi um cliente no meu apartamento. Aquele lugar é o meu porto seguro. E tu foste tão genuíno naquela noite que eu pensei que valeria a pena deixar-te entrar naquele lugar só meu. — Tornou a sorrir com ironia. — Sim, tu preferias que te deixasse entrar noutro sítio, eu sei.
— Kayla... — Ela repetiu o gesto. Valério insistiu. — Não, Kayla. Espera agora tu, um pouco. — pediu ele, com ternura. — Não me pintes como se só te visse como um pedaço de carne, um objecto sexual. Não sou assim. Sinto-me atraído por ti, não nego. Mas o que possa fazer por ti, o gostar de estar contigo, não significa que só te queira para a cama.
— E no meu caso, desde que tenhas dinheiro, isso é o mais fácil. — contrapôs com uma frontalidade cortante. — Não escondo, nem nego aquilo que sou. Sou prostituta, vendo o meu corpo por dinheiro. Ok, sou de alto nível, eufemisticamente uma "acompanhante de luxo". Mas, não passo de uma puta, Valério. — Ele abanou a cabeça, desagradado com a forma como ela se adjectivara. — É a verdade. — Sorriu afectuosa. — Talvez para ti seja pouco o que te pretendo dar.
— E o que me queres dar?
Kayla desviou o olhar para as mãos. Ao voltar a falar revelou-se incapaz de o encarar:
— Na outra noite, deixei-te entrar no meu apartamento. Seria um café, um obrigado e talvez nunca mais nos víssemos. Depois, ligou um cliente e tu acabaste por adormecer. Não sei como, senti um receio medonho que pudesses ter um acidente por estares tão ensonado. Tu tinhas sido tão gentil comigo em troca de nada. Não me perdoaria, se te acontecesse alguma coisa. Daí ter sugerido que passasses a noite no sofá.
Para atenuar um pouco a fragilidade que ela demonstrava, Valério confessou com humor:
— Ainda pensei que fosses aparecer durante a noite, como nos filmes.
Ela retribuiu o sorriso sem ter intenção de lhe confidenciar que o filme teria acontecido se ele não se tivesse ido embora.
— Deixei sempre bem claro que nunca iria acontecer nada.
— Eu sei, Kayla.
— Até usei a metáfora dos clubes...
— Sim, eu sou a equipa dos distritais.
— Sem desprimor, Valério. — referiu, voltando a olhá-lo.
— Eu sei.
— Era uma forma de me explicar. Talvez um pouco rude, mas para que não houvesse dúvidas. — esclareceu, tornando a desviar o rosto. — Seja como for, na manhã seguinte, quando não te encontrei, fiquei triste porque gostava de me ter despedido de ti. Mas, pronto, tinha sido agradável conhecer-te. E concluí que tu assimilaras correctamente aquilo que te dissera e, uma vez que não terias o meu corpo de borla, eu não tinha interesse para ti.
— Isso não...
Novo gesto dela a travar as palavras dele.
— Até ao momento em que vi o teu bilhete. — Voltou-se de frente para ele sem problemas em o olhar nos olhos. Queria que ele percebesse a sua sinceridade. — Não só assimilaste aquilo que te disse, como soubeste contornar e tocar num ponto sensível. Tu querias ser meu amigo. Por isso, respondendo à tua primeira pergunta, o que estamos nós a tentar que resulte? Uma amizade. E, como te disse, pode não ser aquilo que queres, mas acredita que te estou a deixar entrar num lugar único onde não encontrarás mais ninguém. — Valério sentiu-se grato por ouvir aquilo. Não soube o que dizer. Ela interpretou-o como decepção. — Percebo e não te condeno por não ser aquilo que gostarias. Tens o meu número, caso um dia queiras pagar pela acompanhante de luxo.
Valério queria dizer algo. Procurou tantas palavras para fazer uma boa escolha que acabou sem conseguir dizer nada. Kayla não o demorou mais e abriu a porta para sair e refugiar-se no seu porto seguro para carpir as mágoas por perder alguém que desejara ter como amigo. Nesse momento, ainda incapaz de verbalizar, Valério segurou-lhe o pulso, travando-lhe o movimento. Ela olhou para trás, surpresa.
— Desculpa! Não sei o que dizer. Estava a tentar dizer algo bonito, algo perfeito para o momento, mas acho que me bloqueei todo. Eu quero que resulte. Quero ser teu amigo. E declaro sob minha honra que não terei segundas intenções com essa amizade.
Kayla sorriu. Já tinha uma perna fora do carro. Voltou a entrar. Esticou-se na direcção dele e abraçou-o. Valério adorou o cheiro do seu cabelo no rosto, sentiu o abraço apertado com surpresa, controlou a excitação por os seios dela estarem encostados ao seu peito.
— Podes abraçar-me. — sussurrou-lhe ao ouvido. — Não há problema.
Ele constatou que ficara petrificado com o movimento dela. Porém, não perdeu um segundo e envolveu-a nos seus braços.
Kayla deu-lhe um beijo carinhoso no rosto e findou o abraço. Retornou ao seu banco e repetiu o movimento de sair. Uma vez fora do automóvel, antes de fechar a porta, desejou-lhe uma boa viagem até casa.
Valério ficou a vê-la subir as escadas e a entrar no prédio. Quando ela desapareceu no interior, ele ligou a ignição e iniciou o trajecto de regresso à Amadora. Não era o que queria, mas era melhor que nada...
8.3
Enviara-lhe uma mensagem quando chegou a casa. Ela não lho pedira. Vá lá saber-se porquê, Valério achou que ela gostaria de saber. Ou então, era só uma forma de falar mais um pouco com ela. Viu que a mensagem fora lida, mas não recebeu qualquer resposta.
No dia seguinte, abstraiu-se de pensar em Kayla. Ela que tivesse a iniciativa de o contactar. Isso não aconteceu e ele não insistiu. Justificou a ausência de notícias com o facto de entre o dia em que se conheceram e a primeira vez que ela lhe enviara uma mensagem haviam decorrido muitos dias. Porém... Bolas, seria assim que ela tratava os amigos? Ah... Pois... Ela não tinha amigos e tentava aprender a saber tê-los, com ele.
Ao fim de três dias, Valério enviou-lhe um "olá". Continuou a não haver resposta. Preocupado, quis saber se estava tudo bem.
"Agora não posso. Depois falamos"
Não tornou a ter notícias dela nesse dia.
A chuva caía com intensidade em Lisboa, mais uma daquelas tardes diluvianas de final de Inverno. Quase parecia de propósito, o famigerado Craveiro Assunção encarregara-o de entregar uns papeis importantes no Campus de Justiça nessa tarde. O advogado nunca o tratara bem, só que entregar-lhe aquelas tarefas naquelas condições deixava-o a duvidar se ele não saberia da sua relação com Kayla e procurava castigá-lo.
O vento soprava forte, o que complicava o uso do guarda-chuva. Saiu do escritório e dirigiu-se à paragem de autocarro ao cimo da rua. Não tinha transporte directo dali e teria de trocar de rota a meio caminho. O ambiente dentro do veículo era tão agradável como estar numa sauna vestido para a neve. Os vidros estavam todos embaciados, as pessoas acotovelavam-se, empurravam-se umas às outras, a lei do cada um por si.
Ao sair do autocarro, foi atingido por uma rajada de vento molhada, antes de conseguir abrir o guarda-chuva. Olhou para a pasta de plástico que protegia o conteúdo importante. Caminhou uns cem metros até contornar a esquina e ver a paragem seguinte. Reparou nos cartazes publicitários expostos à intempérie. Dois chamaram a sua atenção, um do PNL a promover as últimas medidas em favor do povo que o governo tinha tomado, outro com críticas do MPP ao governo. O primeiro estava imaculado, o segundo completamente vandalizado.
Aguardou na paragem a chegada do seu autocarro. Para pouca sorte, estava virado contra o vento e a chuva não lhe dava tréguas. Ao fim de dez minutos, o veículo chegou e ele pôde prosseguir o seu caminho.
Entre sair do segundo transporte e alcançar o edifício do Campus de Justiça, Valério levou com mais chuva e mais vento. Sentia-se encharcado e com vontade de deitar os papéis no primeiro caixote do lixo que encontrasse. O que só lhe iria trazer problemas. Enfrentou o mau tempo e acabou a entrar de forma apressada, quase esbarrando num grupo de advogados que vinha na direcção contrária. Não era primeira vez que ali ia, uma vez que o escritório onde trabalhava incumbia-o de tarefas que envolviam deslocar-se lá. Procurou a secção pretendida e entregou a pasta a um funcionário, recebendo em troca o comprovativo da recepção.
Não sentiu a mínima vontade de regressar. Aliás, não tinha vontade de sair dali, já que a chuva parecia ter aumentado. Decidiu ficar perto da porta e aguardar uns minutos para que o temporal acalmasse.
Se a tarde já não corria muito bem, o telefonema seguinte ainda o irritou mais. Ao pegar no aparelho, viu o número do seu irmão. Sem paciência, atendeu com enfado.
— Olá, Marcolino!
— Olá, Valério! Estás bem? Isto se um gajo não ligar, tu também não ligas. — disse o irmão, sempre naquele tom paternalista a reclamar. — Por vezes, penso que te esqueces que tens família.
— Tenho estado ocupado.
— Pois, pois... Olha! Estamos a contar contigo na Páscoa.
— Não sei se vai dar.
— Que merda, Valério. — vociferou o irmão irritado. — Já no Natal não puseste cá os pés.
O telemóvel vibrou, talvez uma mensagem ou um email a chegar.
— A vida está difícil. Não tenho dinheiro para fazer uma viagem dessas.
— Se andas a mendigar, Valério, porque não voltas para a terra? Consigo arranjar-te trabalho na Herdade dos Jordões, tu sabes.
— Eu não ando a mendigar. E não pretendo viver os meus dias a cavar terra.
— Pronto! Lá está o menino armado em moço da cidade. — continuou Marcolino, disponível para ficar a próxima hora a moer-lhe o juízo. — Cá para mim, não tens dinheiro porque o gastas com gajas. Isso é uma terra de putas, rapaz.
— Tenho de ir, Marcolino. Não posso estar ao telefone no trabalho.
— Olha, mas contamos con...
Valério desligou a chamada.
Já ia a guardar o aparelho, quando se lembrou que algo fora recepcionado. Dedilhou o ecrã táctil e viu o símbolo do WhatsApp com novidades. Clicou sem suster a ansiedade. Era de Kayla.
“Olá, amigo! Que fazes?"
Bolas, fora enviada dois minutos antes. Dois minutos que ele perdera a aturar o irmão.
“Olá, Kayla! Vim dar um mergulho ao Campus de Justiça"
Ela estava online e não demorou a responder:
"???"
"Vim entregar um processo ao tribunal. Apanhei uma molha"
"O dia hoje está demais. Nem saí de casa"
"Sortuda!"
Valério esperou algum tempo pela resposta que não veio, nem indicação de que ela estivesse a escrever. A chuva abrandara e ele decidiu arriscar-se a fazer o caminho de regresso ao escritório. Perto da paragem, ouviu a notificação.
"Queres jantar comigo, hoje?"
A felicidade que o atingiu fê-lo esquecer a chuva.
"Pode ser. Mas, nada muito chique"
O autocarro que o iria transportar chegou, esventrando uma poça e molhando as calças de Valério. Ele entrou em simultâneo com nova notificação.
"Não estou com vontade de sair. Importas-te que jantemos cá em casa?"
Encostado ao varão central para não cair, ele dedilhou a resposta:
"Não, claro que não. Queres que leve o jantar?"
"Eu trato do jantar"
"A que horas queres que chegue?"
"Podes vir por volta das oito"
"Ok. Combinado. Beijinhos"
Ela não retribuiu.
Apesar da tarde execrável, Valério passou as horas seguintes muito alegre. Regressou ao escritório como se tivesse tomado banho vestido. Estava desconfortável e alguns elementos do escritório faziam piadas por o verem assim... Mas, ele ia jantar com Kayla e tudo o resto era irrelevante.
Não se atrasou um minuto que fosse para sair daquele antro de advogados. Antes que alguém se lembrasse de lhe pedir alguma coisa, mal bateu a hora de saída, Valério disparou para a rua. Chovia menos, mas chovia. Entrou na estação do Metropolitano perdendo a conta às molhas que já apanhara naquele dia. Passou o torniquete e desceu até à plataforma onde entrou numa carruagem. A viagem foi tranquila. Queria chegar a casa com tempo, tomar um banho e arranjar-se. Foi o que fez. Meia hora antes do combinado, estava a conduzir em direcção a oriente de Lisboa.
O trânsito estava horrível. Circular em Lisboa nunca é fácil, mas em dias de chuva... Valério percebeu que não iria chegar a horas. Enquanto estava parado num semáforo, pegou no telemóvel e escreveu uma mensagem a avisar que estava atrasado. Chegou vinte minutos para lá do previsto.
Estacionou num lugar perto do prédio dela. Felizmente, não era muito complicado encontrar lugar naquela rua. Isso não atenuou a sua irritação por ter perdido vinte minutos em que poderia estar com a amiga. Deu uma corrida até às escadas e alcançou a porta grande de vidro, tocando na campainha correspondente ao apartamento dela.
Ouviu o clique que destrancou o acesso. Entrou, recriminando-se por não ter trazido alguma coisa para o jantar, uma sobremesa, uma garrafa de vinho. Subiu no elevador e acalmou-se para não parecer um miúdo ansioso que chega atrasado. Ao sair, virou para o lado do apartamento dela, onde a porta já se encontrava entreaberta. Permitiu-se divertir com a ideia fantasiosa de que ela estaria à espera em lingerie. Riu sozinho e entrou.
— Olá, Valério! — cumprimentou ela num tom seco.
Ele ficou surpreso por a ver toda produzida. Vestia um casaco, estilo blazer, sobre uma camisola justa e uma saia curta que lhe revelava de forma excitante as coxas. Calçava botas de cano alto, moldadas às pernas, até aos joelhos. Recebeu-o com a atenção no espelho, dando um último retoque no cabelo. Mal ele fechou a porta, ela encarou-o com uma expressão séria, revelando o rosto bem pintado.
— Surgiu um imprevisto. — relatou de forma fria, esquecendo-se sequer de lhe dar um beijo. Ele também se esqueceu, surpreso por a ver assim e não percebendo porque o receberia tão sensual e atraente. — Telefonou-me um cliente. Vou ter com ele ao hotel. Vamos ter de cancelar o nosso jantar. — Forçou um sorriso. — Lamento não te ter podido avisar, mas quando ele me ligou tu já estavas no trânsito. Não valia a pena estar a...
— Tudo bem. — concordou, decepcionado. Parecia que a decepção se começava a tornar um hábito entre eles. — Fica para a próxima.
Kayla abriu a porta, permanecendo com a mão na maçaneta, indicando que esperava que ele saísse primeiro. Ele assim fez. Entraram ambos no elevador.
— Estás de carro, não estás?
— Estou.
— Achas que me podias dar boleia até ao hotel? É aqui perto, junto à Estação Oriente.
Ele anuiu sem esconder o desapontamento. Ela percebeu.
— Prometo que te compenso, Valério. — A resposta foi um encolher de ombros. — Se não me quiseres dar boleia...
— Não me custa nada. E fica em caminho.
Kayla não conseguiu segurar um sorriso.
— A caminho?
— É para aqueles lados. — retorquiu, desanuviando o ambiente ao retribuir o sorriso.
— Desculpa, Valério!
— Não há nada a desculpar, Kayla. Percebo que ele seja mais importante que eu.
— Não sejas tolo, Valério. É um cliente, só isso. Tu és especial, és meu amigo.
Pois...
O elevador chegou ao rés-do-chão. As portas abriram. Eles saíram lado a lado. Valério retirou as chaves do bolso e deu passos mais rápidos para lhe abrir a porta. Apesar de ela o preterir, ele não deixava de ser cavalheiro. Kayla sorriu-lhe pelo gesto e acariciou-lhe o braço. Desceram a escadaria exterior e caminharam pelo passeio até ao carro dele. Entraram em silêncio. Ele ligou a ignição sem conseguir evitar observar as pernas dela. Ela percebeu, mas fez de conta que não reparou.
— Já voltaste ao bar, desde que lá estivemos? — questionou, quando ele iniciou a marcha pelo asfalto.
— Não.
— Porque não vais até lá? — Kayla fez uma expressão cúmplice. — Talvez não saísses do bar sozinho.
— Não estou interessado. — respondeu com frieza, virando no cruzamento seguinte. — Prefiro ir para casa.
Kayla não tinha dúvidas de que ele estava aborrecido, aborrecido consigo, chateado por ela ter estragado o serão que ela própria sugerira. Mas, não podia fazer de outra forma, era um cliente, um bom cliente, daqueles a quem não se nega um serviço. E voltaria com um bom maço de notas na mão. Não podia desperdiçar isso. Queria construir uma amizade forte com Valério, mas sem colocar em causa a sua vida profissional.
Valério parou onde ela indicou, em frente a um dos hotéis virados para o Centro Comercial Vasco da Gama. Sem esconder a decepção, forçou um sorriso e despediu-se.
— Depois mando-te mensagem, mais logo. Pode ser?
Ele anuiu.
Kayla fez um movimento para lhe dar um beijo, mas arrependeu‑se e apressou-se a sair do carro. Desfilou sob o olhar apaixonado dele sem olhar para trás e a sua imagem perdeu-se no interior.
Horas mais tarde, Valério continuava sentado no sofá da sua sala a olhar para a televisão sem prestar atenção. Não tinha sono. E o pior era a manhã seguinte ser de trabalho. Não conseguia deixar de pensar em Kayla, de se abstrair da evidencia de que, enquanto ele estava ali sozinho a ver nada, ela estava a fazer sexo com um cliente. Nada de novo, nada que ele não soubesse, mas era a primeira vez que tinha noção de quando estava a acontecer.
Finalmente, já madrugada, ganhou coragem e saiu do sofá para ir dormir. Ia para desligar o candeeiro, quando o seu telemóvel apitou uma notificação.
"Já estou em casa. Mais uma vez, desculpa o que aconteceu"
Foi a vez dele de a deixar sem resposta. Enfiou-se na cama e tentou esquecê-la, pelo menos, por algumas horas. Nova mensagem.
"Prometo que te compenso"
Ele podia ter somente pré-visualizado a mensagem no WhatsApp, mas quis que ela visse que ele estava acordado e que a lera. E que a iria deixar novamente sem resposta.
No dia seguinte, aguentou-se bem para quem não dormira quase nada. Teve a infelicidade de ver o patrão e reprimiu a vontade de lhe dar dois socos, alvitrando que tivesse sido ele o cliente que lhe estragara o jantar. Pegou várias vezes no telemóvel com o pensamento em Kayla e rechaçou sempre a vontade de lhe mandar uma mensagem. Ao fim do dia, iria disputar-se um jogo importante, daqueles que o faziam ir ao bar do costume assistir pelo canal de desporto com uma cerveja na mão. E, daquela vez, seria a oportunidade de saber se as teorias de Kayla estariam certas. Só que, na verdade, não tinha vontade de estar com outra mulher e nem sequer o interesse no jogo era suficiente para o fazer ir até lá. Assim, deu por si a dormir no sofá nesse serão.
Quando acordou, segurou o telemóvel e decidiu escrever uma mensagem. Já era tarde, mas alguém com a vida de Kayla não deveria estar a dormir àquela hora. Escreveu só um cumprimento e perguntou se ela estava bem. Não só não houve resposta, como a mensagem não apareceu lida. E continuou sem ser lida na manhã do outro dia.
Só à tarde, após o almoço, Kayla lhe respondeu. Explicou que estava fora do país a acompanhar um cliente numa viagem de negócios. Estaria de regresso daí a três dias. Ele leu-a como tendo sido escrita de forma seca e fria. Retribuiu com um "Ok. Beijinhos".
Ia em direcção ao escritório, quando nova notificação o chamou.
"Quando regressar, pensei que pudéssemos jantar em minha casa na sexta. Prometo que não te irei desapontar. Podemos ver um filme depois de comer. E, se quiseres, podes passar lá a noite, se não te importares de dormir no sofá. Talvez desse para passear junto ao rio no sábado de manhã... Que dizes?"
Seria maravilhoso. Ficou encantado com a sugestão. Um sorriso parvo despontou-lhe no rosto. Escreveu que concordava e ela comprometeu-se a indicar-lhe a hora do jantar quando regressasse a Portugal.
8.4
Sentiu-se a rever um filme repetido, uma daquelas cenas cansativas que já sabia como ia terminar. Estava a conduzir no trânsito lisboeta, avançando pela CRIL para contornar mais de metade da capital até ao lado oriental. Kayla não faltara ao combinado e enviara-lhe uma mensagem pela manhã a combinar a hora do jantar. Desta vez, Valério não quis arriscar um atraso e sugeriu chegar à mesma hora a que conseguira daquela vez desapontante.
Mesmo assim, conduzia com uma voz interior persistente que o preparava para nova decepção. Não se esquecera de levar uma garrafa de vinho para o jantar e guardara-a num pequeno saco desportivo onde trazia alguns pertences, caso se confirmasse que ficaria pelo sofá dela nessa noite.
Agora que vinha com tempo, acabara por chegar cedo, à hora a que deveria ter chegado na última vez. Entrou na rua iluminada pelos candeeiros equipados com leds e estacionou perto do prédio dela. Saiu do carro e viu luz no seu apartamento. Pegou no telemóvel.
"Já cheguei. Desta vez, antecipei-me à hora combinada. Se preferires, espero aqui."
A resposta veio de imediato. Antes de a ler, imaginou algo a dizer que acontecera um imprevisto, não valia a pena ele subir e ela iria descer para que ele lhe desse boleia até um qualquer hotel.
"Não sejas tolo! Sobe"
Havia esperança...
Atravessou a rua com o saco na mão. Deu uma corrida e escalou a escadaria exterior. Tocou à campainha e a porta abriu. Seguiu para o elevador, repetindo todo o caminho que outrora desembocara em desilusão.
Ao sair do elevador, Kayla esperava junto à porta do apartamento com um sorriso simpático. Vestia leggings desportivas elásticas, um casaco confortável a condizer e estava descalça com os pés protegidos por meias grossas. O cabelo estava solto e o rosto limpo. Ao vê-la, suspirou. Ela não iria a lado nenhum.
— Olá, Kayla!
— Olá, Valério! — Kayla abraçou-o e deu-lhe um beijo na face, dando-lhe a sentir o seu perfume natural. — Entra!
Ele avançou, segurando o saco que deixou à porta. Retirou a garrafa de vinho, enquanto Kayla foi para a cozinha. Não havia sinais de que estivesse estado a cozinhar e confirmou isso mesmo ao ver comida encomendada de fora.
— Estás muito elegante. Comparada contigo, estou um trapo.
— Estás óptima. — elogiou, colocando a garrafa de vinho sobre o balcão.
Ao contrário dela, Valério preocupara-se com a aparência, quis estar bonito para ela, apesar de saber que isso lhe seria indiferente. Reparou na mesa da sala, preparada com dois lugares em cada lado, de forma a ficarem de frente um para o outro. Kayla entregou-lhe uma das embalagens em alumínio com o jantar para que ele a colocasse na mesa.
— A seguir, podes abrir o vinho.
Valério depositou o jantar no centro da mesa. Despiu o casaco e pendurou-o no cabide junto à entrada. Regressou à cozinha, Kayla estava de costa, e ele não evitou olhar para os contornos apertados pelo tecido elástico.
— Tens um saca-rolhas?
— Segunda gaveta.
Seguindo a indicação, abriu a gaveta e encontrou-o. Ela passou por trás de si, levando uma salada para a mesa. O saca-rolhas não colaborou e Valério teve alguma dificuldade em retirar a rolha. Quase que ia entornando a garrafa.
Kayla ocupou um lugar na mesa.
— Como correu a viagem? — questionou ele, deixando a garrafa entre eles e ocupando o outro lugar.
— Bem. Mas, não quero falar de trabalho. — recusou, destapando o tabuleiro que continha diversas peças de sushi. — Espero que gostes. Eu adoro sushi.
— Na verdade, nunca comi. — confidenciou, percebendo porque não havia talheres junto aos pratos.
Com os pauzinhos na mão, preparando-se para lhe entregar um par, Kayla fez uma expressão contraída e recriminou-se pela escolha.
— Rica forma de começar a compensar-te.
— Não tens de me compensar de nada, Kayla.
— Queres um garfo e uma faca?
— A menos que isso sirva para espetar nestas rodelas, é capaz de ser melhor.
Ela deu uma gargalhada divertida e saiu da mesa para ir buscar talheres para ele. Apagou a luz daquele espaço, deixando que só a luz sobre a mesa e um candeeiro de pé perto dos sofás permanecessem ligados.
— É bom. — disse ele, provando o primeiro pedaço. — Mas, olhando para a tua destreza com pauzinhos, sinto-me um pouco tacanho.
Kayla desvalorizou, servindo o vinho.
Saborearam a refeição durante alguns minutos em silêncio ou com alguma explicação dela do que continha cada rolinho. Ele não encontrou nenhum que não gostasse.
— Desculpa a outra noite. — pediu ela, subitamente, do nada. — Mas, não podia recusar...
— Esquece isso Kayla.
— Para que saibas, desliguei o telemóvel. Não quero que nada perturbe este nosso serão de amigos.
Ele sorriu. Até lhe custava a acreditar que estava ali com ela. E quem sabe como poderia terminar aquela noite?
Tem calma, Valério, é só um jantar de amigos.
— Posso fazer-te uma pergunta?
— Claro.
— No outro dia, disseste que não tinhas amigos e que os poucos foram desaparecendo. O que aconteceu?
Kayla encolheu os ombros, revendo as poucas pessoas que tinham ocupado esse patamar na sua vida. De facto, talvez fossem ainda menos que aquilo que pensava. Poderia ter dado uma resposta vaga, uma daquelas justificações naturais de "cada um seguiu o seu caminho". Porém, ele mostrava-se preocupado. Ela era interessante, não lhe faltavam clientes e possuía uma figura que lhe permitiria cativar qualquer homem. Contudo, era uma solitária. Quantas vezes não sentiu a falta de alguém para conversar, um ombro para chorar, sentir que a ouviam por interesse sem o fazerem como uma oportunidade de a "comerem". Sim, Valério não escondera o seu interesse nela, mas ele era diferente. Por isso, não foi vaga na resposta.
— Tive uma grande amiga, há uns anos. Talvez tivesse sido a minha melhor amiga. Chamava-se Fátima. Crescemos no mesmo orf... — Talvez estivesse a falar demais. Hesitou. Analisou a expressão dele. Houve surpresa nele ao adivinhar o resto da palavra, mas teve a cortesia de não o dizer. — Ela era mais velha que eu. Também era acompanhante. Foi ela que me trouxe para esta vida. — Sorriu triste com a lembrança. — Não penses que caí na prostituição por necessidade. Vi na vida dela uma oportunidade para mim. A Fátima não se aproveitou e chegou a sacrificar-se em meu nome. — Ele ouvia-a atento sem revelar estar a fazer qualquer juízo de valores. — Ensinou-me tudo o que eu precisava de saber. Nunca fomos putas de rua. Ela já era uma profissional de luxo, quando a reencontrei e tornou-me uma igual.
— E o que aconteceu?
Kayla ficou com o olhar perdido, como se visualizasse uma memória dolorosa.
— Há cinco anos, a Fátima faleceu num acidente de carro. Ia com um cliente. Iam ambos passar um fim-de-semana fora. Era algo usual nela. Não imaginas os milhares que rende um serviço desses. — Sorriu trocista. — Sim, ganhei bem nesta viagem que fiz, se é isso que estás a pensar.
— Não pensei nada Kayla.
Ela tornou a ficar séria.
— Morreram os dois num despiste fatal. Não faço ideia do que possa ter acontecido, não houve outros envolvidos. O carro despistou-se, embateu numas árvores e... Dizem que tiveram morte imediata.
— Isso é horrível.
— Foi terrível perdê-la. Foi como perder parte de mim.
— E desde aí, não houve mais ninguém? — Ela abanou a cabeça. — Lamento!
— Apareceste tu, agora. — retorquiu com carinho e esperança que ele não a desapontasse.
— Espero estar à altura.
— O tempo o dirá, Valério.
Retomaram a refeição. Gerou-se um silêncio confortável. Kayla dissipava as memórias, enquanto Valério absorvia a história.
— E tu, Valério? Tens amigos?
— Para além de ti? Só conhecidos.
— Alguma razão para isso?
— Quando vens para uma grande cidade, vens com as expectativas que as pessoas sejam genuínas. Donde eu venho, dizem-te na cara o que pensam, não são hipócritas... Bom, talvez haja para lá alguns. Mas, na maioria é boa gente. Na cidade, parece que convivem contigo sempre com uma carta na manga, sempre a pensar tirar proveito de ti. Quando vim estudar para cá, tive dificuldade em conseguir alguém para partilhar um apartamento. Não me iludi. Quem veio, fê-lo porque não tinha outra solução. Convivíamos como se fossemos todos grandes amigos, mas no fim cada um foi para seu lado e ninguém quis saber se o Valério ficava bem.
— Percebo o que queres dizer. És donde?
— Sou de uma terra perto de Miranda do Douro. Sou transmontano.
— Eu nasci em Lisboa.
Deitou o resto do vinho em doses iguais pelos copos.
Terminaram a refeição e Valério ajudou Kayla a arrumar a mesa. Ela prescindiu da sua ajuda na cozinha e pediu-lhe que se sentasse no sofá e ligasse a televisão. Ele escolheu a zona central do lado maior do L, segurando o comando e carregando no "on". Kayla juntou-se a ele, esticando-se na junção dos sofás para ficar com as pernas esticadas sobre o lado menor.
Viram um filme alugado no videoclube do serviço de televisão por cabo. A escolha recaíra num dos últimos sucessos do cinema. Valério gostaria que ela tivesse ficado mais próxima, mas contentou-se com o que a noite lhe ia dando. Infelizmente, não viu o filme todo e acabou por adormecer. Só deu por isso, quando ela o chamou com uma expressão divertida.
— Acho que és o primeiro homem que adormece ao pé de mim, sem que antes tenhamos feito sexo.
— Desculpa... Foi um dia desgastante.
Ela saltou do sofá e afastou-se para o quarto.
— Não tem importância.
Regressou com os lençóis e um cobertor para lhe preparar a cama no sofá. Em equipa, arrumaram um espaço bem confortável para ele dormir. Por fim, Kayla deu-lhe um beijo fraternal no rosto e desejou-lhe uma boa noite de sono.
Valério ficou a vê-la retornar ao quarto e ouviu-a fechar a porta. Tentou afastar a criatividade da sua imaginação, pensando no que estaria ela a fazer no quarto. Calculou que se despia... Dormiria nua? Ou vestiria uma sensual camisa de dormir? Para que vestiria ela algo sensual para dormir sozinha? Sem perder mais tempo em disparates, despiu a roupa, apagou o candeeiro e enfiou-se na cama improvisada.
Teve dificuldade em adormecer. Evitava sem sucesso que as suas fantasias o levassem a manter a esperança que, tal como nos filmes, ela apareceria a meio da noite, seminua, a convidá-lo para dormir com ela ou a fazer amor com ele logo ali no sofá. Isso não aconteceu e ele acabou por adormecer duas horas mais tarde.
Dormiu profundamente e não se recordou da composição dos seus sonhos. Acordou com o som da água a correr no WC, adivinhando que Kayla estaria a tomar um duche. A sala mantinha um ambiente de penumbra. Ele levantou-se e foi à janela permitir que a claridade exterior entrasse. A manhã estava bonita e radiosa.
Kayla saiu do WC com uma toalha enorme enrolada à volta do corpo e outra mais pequena a envolver-lhe os cabelos. Viu a cabeça dele para lá do sofá a virar-se para ela.
— Bom dia!
— Bom dia, Kayla!
— Se quiseres aproveitar?! — sugeriu, apontando para o duche.
Ele aceitou a sugestão, abandonando o sofá, logo que ela fechou a porta do quarto.
Uma hora mais tarde, estavam sentados numa esplanada a tomar um café. Observavam-se em silêncio, algo que deixara de ser incómodo entre eles com naturalidade.
— Que foi?
— Gosto das tuas calças. — disse ele, olhando para a ganga esburacada. — Caíste?
Kayla percebeu o tom brincalhão dele.
— É moda.
A brisa soprava ténue e o Sol brilhava com intensidade. Era uma daquelas manhãs em que apetecia passear. Foi o que eles fizeram, decidindo ir caminhar para o passeio ribeirinho do Parque das Nações.
As pessoas iam aumentando com o passar dos minutos. Desde as zonas de jardim onde os pais levavam os filhos a brincar, a correr ou a jogar à bola, até aos bancos de pedra virados para o rio com espectadores silenciosos da corrente fluvial.
Kayla e Valério caminharam lado a lado, vagarosamente, conversando.
— Alguma vez te aconteceu ires na rua e cruzares-te com um cliente?
— Sim. — confirmou com o olhar escondido atrás das lentes escuras. — Não é nada extraordinário. E acaba por ser irrelevante. Das poucas vezes que isso aconteceu, fui ignorada. Sabes que adoram ter-me na intimidade, mas em público sou a última pessoa que querem encontrar. — Sorriu irónica. — Lembro-me que uma vez encontrei um cliente num cinema e ele estava acompanhado pela mulher. Ela não deu por nada, mas eu percebi como ele ficou branco ao ver-me. Claro que eu nunca o iria denunciar, cumprimentando-o. Mas, ele sofreu um bocado até ter a certeza de que eu não o faria.
Prosseguiram a caminhada para sul. Perto do antigo Pavilhão Atlântico, o aglomerado de pessoas aumentou bastante. Sentia-se já o cheiro proveniente dos restaurantes ali perto.
— Já reparaste como cada vez se vê menos estrangeiros, Valério? Dantes, passeávamos por aqui e víamos gente dos quatro cantos do Mundo. Agora, só se forem turistas.
— É o governo que temos. A vida para os forasteiros que querem tentar trabalhar e ter uma vida melhor em Portugal está cada vez mais complicada.
— É lamentável, Valério. Tenho vergonha daquilo em que o nosso país se está a tornar.
— Eu também.
Ela calou-se subitamente. Deu-lhe um toque no braço e apontou disfarçadamente com o rosto para um sector junto às centenas de bandeiras que esvoaçavam ao sabor da brisa, onde dois homens observavam a população.
— Agentes do SIALE. — sussurrou. — É melhor mudarmos de assunto.
Valério teve um dos melhores fins-de-semana da sua vida. Foram dois dias extraordinários na companhia de Kayla. Ela fora fiel àquilo que sempre dissera que queria partilhar com ele, uma amizade. Aos poucos, ia abrindo um pouco mais do seu ser, mantendo sempre activas as barreiras invisíveis que o rechaçariam se ele, por algum momento, interpretasse mal o que ela lhe pretendia dar. Não chegava sequer a dar‑lhe abertura para que a tocasse levemente no braço, não fosse ele ver nisso um acesso. E só trocara um ou outro beijo na face com ele, num cumprimento ou numa despedida. Ele gostaria de ter sido mais que um amigo, que uma daquelas noites tivesse sido carnal, sexual... Contudo, teve o discernimento de perceber que ela o deixava entrar num lugar sagrado, lhe permitia que entrasse aos poucos na mulher que ela era, a alma escondida atrás da profissional de sexo. Sem saber, Valério não estava a conviver com Kayla, mas sim com Conceição.
9.1
O apartamento de Amaro ficava situado na zona da Boavista, num prédio predominantemente de habitantes de classe alta. Vivia num dos últimos andares, aqueles que tinham mais divisões, apesar de morar sozinho. Estava sentado no escritório com o robe vestido e o olhar vago na janela por onde observava uma manhã enevoada. As virilhas incomodavam-no como se tivesse estado a correr uma maratona.
Já não era muito cedo, mas Amaro não tinha nenhum compromisso para essa manhã. No entanto, estava preocupado e decidiu resguardar-se no escritório do apartamento para fazer um telefonema. Marcou o número e aguardou.
— Olá, Amaro! — cumprimentou a voz no outro lado.
— Olá, Manuel! Tudo bem?
— Dentro dos possíveis.
— Vai ser hoje, não é?
Ambos tinham consciência de que os telefonemas eram escutados pelo SIALE, principalmente os deles, pois eram vigiados sem descanso. Falavam sempre com reservas, compreendendo-se por meias palavras.
Manuel Teixeira suspirou.
— Sim, vai ser hoje. Vamos ver como corre.
— Não me pareces muito optimista.
— Sabes como o assunto é delicado. Não sei como vai reagir.
— Terá de fazer alguma coisa.
A chamada ficou em silêncio. Amaro ouvia a respiração do amigo na linha. Quando estivera em Lisboa, em local seguro sem escutas, o líder do MPP relatara-lhe tudo o que lhe fora comunicado pelo seu informador cuja identidade ele não revelava a ninguém. A situação era grave e exigia medidas preventivas de antecipação à possibilidade de um golpe contra o presidente de Portugal. Porém, ambos também sabiam como Flávio de Melo era relutante em agir por impulso, tudo tinha de ser bem ponderado e cada acção muito bem pensada. Manuel Teixeira não duvidava que o seu mentor acreditasse nele, mas as medidas que iria tomar ou a ausência delas é que o preocupavam.
Amaro desligou com evidente preocupação. Flávio de Melo ainda parecia ser o travão à propagação da influência do PNL pelo país. Pinto Henriques tinha pouco ou nenhum respeito pelo homem que ocupava o cargo mais elevado da nação e dialogava com ele num clima de hipocrisia. Costumavam dizer que o primeiro-ministro, se pudesse, mataria o presidente, mas de uma forma figurativa, até Manuel Teixeira ter conhecimento do planeamento de um golpe que só poderia significar algo contra Flávio de Melo.
Os dias para os partidários do MPP tornavam-se mais complicados a cada hora que passava. E não era só ali, era em qualquer canto do país, mesmo que fosse em regiões onde o PNL não era a força política mais forte, mas onde cresciam os grupos violentos que se identificavam com aquela doutrina nacionalista lusitana, já para não falar na JNL que mais se parecia com um braço armado do partido. E num qualquer sítio, poderia aparecer um louco com uma arma na mão para matar um deles, um dos rostos mais activos do MPP.
Tentou não pensar muito nisso. Esforçou-se para não pensar que nunca estivera tão inseguro na cidade onde nascera e que amava incondicionalmente. É triste que o Porto se tivesse transformado numa espécie de reino do PNL, tal era o protagonismo que Pinto Henriques lá tinha. Temia por si, pelos seus correligionários e, agora, por mais outra pessoa que dormia tranquilamente no seu quarto.
Amaro levantou-se da cadeira atrás da secretária onde tantas vezes analisara e decidira assuntos importantes. Saiu do escritório e caminhou pelo corredor até à porta do seu quarto. Entrou em silêncio, escutando a respiração tranquila da mulher deitada na sua cama.
Ela dormia com o cabelo ruivo escarlate a tapar-lhe o rosto. O lençol fora atirado para trás, revelando-lhe o tronco nu, os seios redondos e firmes e a pequena tatuagem de uma aranha na barriga lisa, perto do umbigo. Uma das pernas esguias também se via, dobrada sobre o edredão.
Sorriu feliz com a lembrança de uma noite combinada para um jantar que terminara ali, no seu quarto, na sua cama. Sentiu a excitação tornar a acicatá-lo, ao mesmo tempo que os testículos doridos lhe lembravam que já não tinha vinte anos. Fora uma saborosa loucura. Ele ficara interessado nela, desde o primeiro momento em que a vira, longe de pensar que logo no primeiro jantar iriam dormir juntos.
Erika acordou estremunhada ao perceber que ele estava a observá-la.
— Que fazes aí?
— Estou a contemplar-te.
Ela sorriu, divertida.
— Deste cabo de mim, esta noite, Amaro.
Ele sentiu-se ligeiramente envergonhado, pensando em toda a loucura sexual que haviam partilhado. Nunca lhe passara pela cabeça que aquela elegante mulher que conhecera numa noite de música clássica no Coliseu do Porto pudesse ser um vulcão tão eruptivo na cama. Fizeram tudo, ela fez-lhe tudo e deixou que ele lhe fizesse tudo a ela. Fora descomunal.
— Tu é que ias dando cabo deste velhote.
Puxando o lençol para cima, Erika mostrou-se reservada, cobrindo os seios. Sentou-se na cama com as pernas encolhidas e os braços cruzados sobre os joelhos.
— Espero não ter sido demasiado atrevida?!
— Não. — negou ele, sentando-se a seu lado na cama, de frente para ela. — Foste magnífica.
Erika observava-o com curiosidade, sentindo que algo o retraía.
— Que se passa? Pareces preocupado.
Amaro denotou que ela acertara, ele estava mesmo preocupado com um sem número de coisas. Porém, uma preocupação sobressaía das outras.
— Tenho receio que isto possa ser prejudicial para ti.
Erika sorriu, pensando adivinhar ao que ele se referia.
— Por causa da idade? São uns... vinte anos de diferença? Esta noite não se notou.
Ele retribuiu o sorriso, oferecendo-lhe uma expressão grata pelo elogio. Tinham quase vinte e quatro anos a separá-los, os quais ele não notara durante a maratona sexual dessa noite, somente ao amanhecer, quando o corpo reclamou do esforço.
— Não, não é isso. É outra coisa.
— Estás a deixar-me apreensiva.
— Sabes que sou persona non grata para este governo?
— Tu e todos os que são opositores ao governo. — lembrou ela, apoiando o queixo nos braços. — Mas, que tem isso a ver connosco?
— Tenho receio que te possam fazer mal para me atingir a mim.
Houve uma expressão terna no rosto dela, ao mesmo tempo que o olhava com afecto. Abriu um sorriso envergonhado.
— Isso significaria que eu era alguém especial para ti, ao ponto de alguém achar que te magoaria, magoando-me.
— E tens dúvidas disso?
Ela levantou a cabeça e abriu os braços, deixando que o lençol lhe caísse para a cintura. Colocou uma mão dentro do roube, entre as pernas dele.
— Sou apenas uma simples tradutora de português, inglês e japonês, Amaro. Não me parece sequer que reparem em mim.
— És muito mais que isso, Erika. — argumentou ele, sentindo os seus dedos em busca de algo. — Pelo menos para mim.
A seriedade não abandonou o rosto dela, revelando que levava a ameaça a sério. Poderia estar, de facto, em perigo por ter um caso com o líder do MPP do Porto?
— Que sugeres que façamos? Que não nos voltemos a encontrar? Isso não é opção para mim. É para ti?
— Claro que não. Mas, temos de ter cautela. Não me importo de contratar um segurança...
— Tem calma, Amaro. Estamos só a supor. — interrompeu Erika, procurando parecer calma. — O governo está firme e para durar. E... Lamento lembrar isso, mas não me parece que o MPP os consiga vencer nas próximas Legislativas. — Amaro não se pronunciou, apesar de ter conhecimento de pormenores que não podia partilhar com ela. — Por isso, acho que estou em segurança. Não vão sequer perder tempo comigo.
Deliciado a observar o seu rosto de traços asiáticos emoldurado naquele tom ruivo despenteado, Amaro tentou convencer-se de que não tinha com que se preocupar.
Em resposta, ela puxou-lhe o cinto do roupão, abrindo-o.
— Tenho de ir para casa, Amaro. Mas, não estou com pressa...
Ele detectou-lhe a languidez no olhar. Receou não estar à altura, a manhã já lhe sinalizara mazelas no corpo, recordando-o que na sua idade tinha de ter alguma calma.
— Estou um pouco dorido. Receio ficar aquém das expectativas.
Erika sorriu e puxou-o para a cama pelas abas do robe. Amaro quase se surpreendeu com a sua força. Deitou-o de costas no colchão e saltou completamente nua para a sua cintura.
— Não te preocupes, querido. Deixa tudo nas minhas mãos e desfruta!
9.2
Como era usual, Manuel Teixeira envergava um dos seus elegantes fatos, acentuando a sua imagem formal de deputado e político consagrado. Preparava-se para sair de casa, do seu apartamento em Almada. Pegou na mala de trabalho e entrou na sala, onde outro homem lia com atenção as notícias num iPad.
— Alguma novidade, Romeu? — indagou, aproximando-se.
Romeu tinha trinta e nove anos, um corpo bem tratado e um rosto que parecia polido. Notava-se que era um indivíduo preocupado em cuidar da sua imagem, usando um corte de cabelo bem aprumado, não tendo um pêlo que fosse no rosto e toda a pele denotava um bronzeado natural. Vestia uma camisola de lã justa e calças de ganga elástica que lhe acentuavam os contornos musculares. Ao ver o mais velho, desviou a atenção do ecrã e abanou a cabeça.
— As mesmas porcarias de sempre.
Cumprimentaram-se com um beijo nos lábios.
Manuel Teixeira nunca escondera a sua homossexualidade, nem nunca fizera publicidade dela. Para ele, era um assunto do foro privado que só dizia respeito a si e ao seu companheiro com quem partilhava o apartamento. Deitou um olhar ao ecrã e viu a notícia de mais um ataque de supostos membros da JNL a um bairro de africanos.
— Não sei onde isto irá parar. Estamos a tornar-nos um país extremamente racista, Manuel.
— E a culpa é nossa. — retorquiu o líder do MPP.
— Nossa?
— Sim, nossa. Nossa dos que fomos poder. — Romeu revelou-se confuso. — Sempre tivemos questões de conflitos raciais, coisas mínimas. Comparados com outros países, falar-se de racismo em Portugal era absurdo. É claro que havia racismo, mas não como agora.
— E porque dizes que a culpa é vossa?
— Porque nas alturas devidas, deveríamos ter agido com a mesma frontalidade. Quando tínhamos um caso real de racismo, vínhamos condenar com veemência, dizer que situações daquelas não tinham lugar na nossa sociedade. Porém, quando aconteciam casos de marginais, de gente que desrespeitava as leis e, por coincidência, eram de outras raças ou etnias, não agíamos com o mesmo vigor. Ao invés de condenar, limitávamo-nos a abrir inquéritos. Quantos casos não existiram em que houve aproveitamento de quem tem interesse em que exista racismo para ter uma razão para aparecer? Casos de força policial justificada que pintavam como racismo? E que fizemos nós? Abrimos inquéritos. Nesses momentos, deveríamos ter vindo à frente com o mesmo vigor condenatório dizer que a Polícia agiu em conformidade e que os actos foram cometidos, não por pretos, ciganos, brancos ou amarelos, mas sim por simples marginais.
— Continuo a não perceber em que é que isso levou a isto.
— Criámos um espaço para alimentar o PNL. As pessoas começaram a sentir-se desapoiadas em detrimento de minorias que eram associadas à criminalidade. Abrimos a porta a tipos, como o Pinto Henriques, que se aproveitaram disso para fazer demagogia, enfiando tudo no mesmo saco. Por outro lado, como o poder instituído não demonstrava publicamente apoio às forças policiais, estas viraram-se para quem, com menores recursos, parecia apoiá-los incondicionalmente. Fomos nós que, ao tentar agradar a todos, alimentámos o eleitorado do PNL.
— Percebo.
— Em democracia, os extremismo só obtêm popularidade pela inércia com que lidamos com os problemas, preocupados se isso é politicamente correcto ou não. Se quando uma força policial invade um bairro, porque vai lá buscar um grupo de criminosos, nós tivéssemos apoiado ao invés de abrir inquéritos e deixar no ar a hipótese de ter havido brutalidade e má actuação dos polícias. Se disséssemos abertamente que não somos racistas, mas não devemos nada às minorias por termos sido em tempos um povo colonizador. Se apontássemos sem medo o dedo aos criminosos que se apregoam sempre como vítimas do sistema e justificam a sua conduta com o meio onde vivem. Se o tivéssemos feito, não só valorizávamos milhares de pessoas honestas inseridas nesses meios, como não deixávamos espaço de aproveitamento a demagogias e a extremismos como o do PNL.
Romeu ouviu-o encantado.
— Tu ainda vais ser um grande primeiro-ministro.
— Não sei se algum dia terei oportunidade de o ser. — retorquiu o outro com desalento. — Nem sei se o povo estaria preparado para alguém como eu.
— Alguém como tu?
— Sim. Não sou um homem de esquerdas nem de direitas. Acho que um político existe para defender os interesses de quem o elegeu, não para servir os seus ou os dos amigos.
— Mas, isso é o que qualquer eleitor quer de um líder de governo.
— As pessoas pensam sempre naquilo que o país pode fazer por elas, esquecendo-se de ponderar também aquilo que poderão fazer pelo país. Sim, devemos ser solidários, mas solidários para quem realmente precisa e não exercer uma solidariedade cega como normalmente pretendem os partidos de esquerda. Por outro lado, não podemos privatizar tudo e gerir o Estado como se fosse uma grande empresa, como é mais consensual entre os partidos de direita. Temos de ser conservadores sem ser retrógrados e ser liberais sem ser libertinos. Compreendes? — Romeu anuiu. — Por isso, não sei até que ponto o povo está preparado para uma política que não se insere em esquerdas ou em direitas. E neste momento, isso até nem é o mais importante, estando nós com um governo de extrema-direita.
— Não vão durar muito tempo. O povo não é parvo. Não vão voltar a dar-lhes o poder.
Manuel Teixeira suspirou. Concordava com essa ideia. Porém, o seu grande receio era que o eleitorado não voltasse a ter oportunidade de se manifestar. Olhou para o relógio.
— Tenho de ir.
— Vais falar com o presidente?
— Sim.
Romeu aproximou-se dele e ajeitou-lhe a gravata.
— Boa sorte, meu amor!
9.3
Sentia-se uma tranquilidade no horizonte, enquanto Manuel Teixeira conduzia o seu carro pela ponte 25 de Abril rumo a norte. Como presidente do partido, tinha direito a viatura de serviço e motorista particular, mas acabava por preferir ser ele a conduzir e a usar o seu automóvel. A travessia do rio Tejo era algo tão habitual para si que o fazia numa condução automática, prestando atenção ao trânsito, mas sem registar nada na sua memória.
O trânsito na zona de Belém era sempre complicado, entre transportes públicos, transportes de turistas e os comuns cidadãos a circular na sua azáfama diária. Antes da hora prevista, o seu carro circulou defronte da fachada do Palácio de Belém, residência oficial do Presidente da República.
Não era a primeira vez que Manuel Teixeira ali ia. Como líder do MPP, visitara algumas vezes o presidente do país em eventos formais. Porém, era a primeira vez que o fazia de forma informal, sem que isso fosse um acontecimento público ou fizesse parte de uma qualquer acção política. Nem sequer a comunicação social sabia daquela visita, apesar de ele não ter dúvidas de que teriam conhecimento dela logo que passasse os portões do palácio.
Um dos agentes que guardavam o acesso do portão aproximou‑se do carro, quando Manuel Teixeira parou a escassos centímetros da cancela. Deveria já estar previamente informado da visita, daí que, ao reconhecê-lo, deu logo indicação para que a cancela fosse levantada.
O automóvel avançou pela rampa que o levou a um largo onde se imobilizou. Manuel Teixeira saiu do veículo e sentiu a brisa fresca e o cheiro do rio lá em baixo. Vestiu o casaco do fato e pegou na sua pasta diplomática, ao mesmo tempo que um homem fardado descia as escadas ao seu encontro.
Trocaram um cumprimento protocolar e Manuel Teixeira seguiu‑o para o interior do palácio. Logo que entraram, subiram uma escadaria em mármore, a qual deu acesso a um amplo átrio despido de mobiliário e que lhe provocou uma sensação de frio. Sempre atrás do agente fardado, Manuel Teixeira atravessou aquele espaço até uma porta localizada perto de um dos cantos. O homem abriu as portas e anunciou a chegada do líder do MPP.
Flávio de Melo aguardava na sala onde tradicionalmente recebia as visitas oficiais. Aquela não era uma visita oficial, mas receber o líder da oposição em sua casa poderia parecer uma espécie de conluio contra o governo. O professor não vivia no Palácio de Belém, algo que se tornara uma tradição em Portugal, que a pessoa eleita para o mais alto cargo da nação usasse a residência oficial somente para ocasiões resultantes do cargo que ocupava. Viver no Palácio de Belém era um passado conotado com os últimos barões socialistas que o antecederam no cargo.
Flávio de Melo era um homem de setenta anos, alto, de postura segura que começava a denotar uma certa corcunda derivada ao avançar da idade. Natural de Coimbra, formara-se em Economia e fora fundador do MPP. Fora igualmente mentor de Manuel Teixeira com quem mantinha uma amizade que esfriara um pouco com a eleição do primeiro para a Presidência, uma vez que o professor receava que isso pudesse ser visto como favorecimento ao MPP, em cada decisão contra o PNL que tivesse de tomar. Por isso, mais valia manter algum distanciamento com todas as pessoas ligadas ao partido que ajudara a criar. De sorriso fácil, recebeu-o com simpatia, estendendo-lhe a mão.
— Bom dia, doutor Teixeira!
— Bom dia, senhor presidente! — retribuiu, apertando-lhe a mão.
A sala era um local faustoso, decorada com quadros e mobiliário de luxo. As paredes forradas a papel eram abertas por janelas altas e luminosas emolduradas em cortinados grossos de veludo. Um sofá comprido encostava-se a uma das paredes, tendo duas cadeiras num dos lados e uma poltrona no outro, ficando uma mesa baixa de apoio entre ambos. O chão em madeira estava coberto por um tapete que abafava os passos deles.
O professor Flávio de Melo apontou-lhe o sofá e sentou-se na poltrona. Manuel Teixeira acatou a indicação e sentou-se.
— Então, doutor Teixeira, como estão as coisas no parlamento?
— O costume, senhor presidente. Temos um governo desgovernado.
O presidente levantou a mão num gesto de travagem.
— Não vamos discutir o governo. Não me ficaria bem fazê-lo com o líder da oposição sem que o primeiro-ministro esteja presente.
— Esta não é uma reunião oficial, professor.
— Eu sei.
— E o que me traz cá, é exactamente a minha preocupação com aquilo que o PNL poderá vir a fazer no futuro.
— Eu estou atento, Teixeira.
— Já ouviu falar na nova lei que o governo pretende aprovar?
Flávio de Melo revelou na sua face todo o desconhecimento.
— Que lei?
— Querem aprovar novas leis de cidadania. Alterações de direitos dos estrangeiros em Portugal.
— Não se preocupe, Teixeira. Vetarei qualquer lei que viole a Constituição.
Manuel Teixeira abanou a cabeça.
— E eles voltam a submetê-la aos deputados e, uma vez aprovada de novo, o senhor não a pode voltar a vetar.
— Mas, pode ser enviada para o Tribunal Constitucional. E lá não passa.
O líder do MPP sentiu-se a tentar dar uma aula de constitucionalidade ao seu professor. Flávio de Melo tinha razão, uma lei daquelas não passava no Tribunal Constitucional. Só que o problema era terem um governo que não olhava a meios para atingir os fins.
— Não foi para falar de eventuais leis que aqui vim, professor. A finalidade desta minha visita está relacionada com informações que me chegaram. Informações deveras preocupantes. — O presidente ouvia-o com atenção e um esgar de preocupação. — Recebi informações de que o governo, com a cumplicidade dos militares, se prepara para fazer um golpe contra si. — A revelação acertou com violência no presidente, mas este manteve-se impávido. — Pelo que sei, o Pinto Henriques e os seus nacionalistas, coadjuvados pelo marechal Costa Almeida na liderança dos militares, preparam um golpe para o retirar da Presidência.
Houve um silêncio na sala. Flávio de Melo absorvia a informação lentamente, ponderando-a com cautela. Acabou por questionar:
— Através de quem é que soube essa informação?
Manuel Teixeira olhou em volta, revelando que não se sentia a salvo de escutas.
— Prefiro não dizer, professor. Infelizmente, hoje em dia, não podemos ter a certeza de não haver ouvidos do SIALE em qualquer parede, até mesmo nas do Palácio de Belém. Mas, posso assegurar-lhe que a fonte é fidedigna.
— É uma acusação grave, Teixeira.
— Mais grave, é o perigo em que está o senhor presidente, caso não sejam tomadas medidas preventivas.
— E o que sugere que eu faça, Teixeira?
— Que afaste o marechal Costa Almeida da liderança das Forças Armadas e nomeie para o seu lugar alguém da sua confiança. Por exemplo, o general Maia.
O professor abanou a cabeça.
— O Costa Almeida é amado por quase toda a estrutura militar deste país. É visto como um herói por todas as patentes. Se eu fizesse isso, arriscava-me a virar as Forças Armadas contra mim. — Sorriu para demonstrar tranquilidade. — Sou chefe supremo das Forças Armadas. Todos os militares me devem obediência. Intrometer-me nas escolhas das chefias iria certamente virá-los contra mim.
— Receio que elas já estejam contra si, professor. A partir do momento em que o marechal...
— Teixeira! — interrompeu o presidente. — Custa-me a acreditar que o governo pretenda fazer algo contra mim. Sei que me odeiam, mas não têm razão para me querer afastar. Sou um incómodo para eles, mas ao ponto de executarem um golpe?
— O professor quer dissolver o parlamento.
— Estou a ponderar. Ainda não decidi. Mas eles não sabem disso.
— Tem a certeza, professor? — questionou Manuel Teixeira, obtendo uma expressão de dúvida no outro. — É que a informação que tenho é que eles já sabem dessa sua intenção.
— Não me parece, Teixeira. Claro que ficarão a saber quando eu reunir o Conselho de Estado, uma vez que o Pinto Henriques estará presente. — Flávio de Melo sorriu. — Portugal não é um país da América do Sul, Teixeira. Militares a fazer um golpe de estado? Esses tempos já lá vão há muito, na Europa. A União Europeia caía-lhes em cima, se eles fizessem algo semelhante a isso.
— Lamento, professor, mas não partilho da sua segurança.
Flávio de Melo encolheu os ombros e adoptou uma postura de professor que tenta explicar a realidade ao aluno rebelde.
— O Teixeira já imaginou que pode estar a ser manipulado pelo seu informador?
— Como assim?
— Quem me garante que o seu informador não está ao serviço do general Maia para que eu afaste o marechal em seu favor?
— O Maia é um homem da nossa confiança, professor. Posso garantir-lhe que...
— Teixeira! Vivemos tempos complicados, em Portugal. Como presidente, todas as minhas acções têm de ser bem ponderadas e pensadas para não serem executadas como um trunfo para o PNL. Aquilo que me sugere iria catapultar os nacionalistas na opinião pública.
— Pelo menos, dissolva o parlamento o quanto antes, reúna o Conselho de Estado... Receio que cada dia que passa, possa ser mais um dia de fortalecimento dos planos do PNL.
— Esqueça os planos, Teixeira. Parecem-me ser teorias da conspiração sem fundamento. Recomendo-lhe que não faça uma confiança tão cega nas suas fontes, mesmo não sabendo quem são.
— Se forem verdade, professor, já imaginou as implicações caso sejam bem-sucedidos?
— Mas não serão, Teixeira. Fique descansado.
Manuel Teixeira não ficou, longe disso.
— E porque não dissolve já o parlamento?
— Primeiro tenho de convocar o Conselho de Estado.
— Pode fazê-lo a qualquer momento...
— Se fosse feito agora, isso seria mau para a Economia do país. — explicou Flávio de Melo. — Será menos problemático, se o anúncio for feito lá para Maio.
— E... Perdoe-me a pergunta, mas... Em que se baseia para essa consideração?
— Segundo a opinião que obtive junto dos mais importantes empresários deste país. Claro que não lhes revelei as minhas intenções, apenas quis a sua opinião perante um cenário hipotético.
— Empresários importantes... — suspirou Manuel Teixeira, agastado. — Sabe que muitos deles têm interesses comuns ao PNL?
— Por favor, Teixeira...
— Desculpe-me a honestidade, professor, mas quem é que está a ser manipulado?
A pergunta ofendeu o presidente que, em resposta, se levantou da poltrona. Num tom sério e carregado de formalidade, disse:
— Bom, doutor Teixeira. Penso que não há mais nada a conversar. Agradeço-lhe a sua visita e a sua preocupação com o meu bem-estar. Garanto-lhe que não há motivos para preocupações. Talvez houvesse, se isto fosse a Venezuela. Mas, não é, caro doutor Teixeira.
Vencido, o líder do MPP levantou-se do sofá e apertou a mão do professor num gesto de despedida, desejando:
— Acredite que, do fundo do meu coração, espero sinceramente que o senhor esteja correcto, professor.
Flávio de Melo anuiu, quase de forma prepotente. Não dava para perceber se ele não levava a ameaça a sério por medo ou por uma cegueira de quem se achava sempre certo. Fosse como fosse, Manuel Teixeira não iria desvalorizar a ameaça e tentaria fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para defender a democracia em Portugal.
10.1
Pinto Henriques aguardava resposta à pergunta que fizera a Raimundo Antunes.
— Não te preocupes, Henriques. Sei de fonte segura que o idiota do Flávio de Melo não se deixou convencer pelo Manuel Teixeira e pela sua suspeita de que iríamos fazer um golpe de estado.
— É mesmo idiota, esse velho. — concordou o primeiro-ministro. — Mas, temos de descobrir quem anda a dar essas informações ao cabrão do Teixeira.
— Estou a tratar disso.
— E lá para cima? O Carneiro...
— Está sob controlo. Tenho-o vigiado bem de perto, não te preocupes.
O gabinete do primeiro-ministro no Palácio de São Bento estava bem iluminado por uma manhã radiosa cuja claridade invadia o espaço. Lá fora, o céu azul não adivinhava a proximidade da névoa cinzenta de loucura nacionalista lusitana que cobriria a capital em breve.
— Temos de começar a pensar na forma como vamos provocar o atentado ao marechal, quando ele tomar posse, conforme falámos no outro dia, Raimundo.
— Já estou a tratar disso. — revelou o MAI. — Mas, a tua ideia levou-me a pensar em algo mais abrangente e que nos pode favorecer. Principalmente no nosso objectivo de virar as opiniões contra Lisboa.
— Sou todo ouvidos.
— Queres um tipo que supostamente faz parte de um grupo terrorista que supostamente está contra nós. — Pinto Henriques anuiu. — Então, em vez de arranjar esse indivíduo, que tal criar mesmo esse grupo? Criar um grupo que podemos usar para eliminar gente incómoda do nosso lado.
— Gajos do nosso partido que não têm a mesma visão que nós?!
— Por exemplo.
— Conta mais! — exigiu o líder do governo com um sorriso interessado a despontar no rosto.
— Criamos um grupo terrorista com elementos da minha confiança no SIALE. Até já sei quem será a pessoa certa para os liderar. Damos-lhe um nome ligado a Lisboa e largamo-los a fazer atentados na cidade, conforme nos der jeito. Começaremos com pequenas coisas, o suficiente para lhes dar notoriedade de forma que sejam conhecidos e conectados com as pessoas da capital.
— Podes também arranjar maneira de os conotar com o MPP. — sugeriu Pinto Henriques.
— Também já tinha pensado nisso. — concordou Raimundo. — Faremos as coisas de forma faseada, de maneira a que tenham bastante projecção e ganhem alguma simpatia da opinião pública por estarem a desafiar-nos.
— Cuidado para não lhes darmos demasiada força.
— Serão agentes da minha confiança, Henriques.
— Mas, não quero que cresça a ideia de que somos vulneráveis. — advertiu o primeiro-ministro. — As pessoas que actualmente nos temem, podem começar a ficar com ideias.
— Não te preocupes. Confia em mim.
Raimundo Antunes explicou mais alguns pormenores de como pretendia fazer as coisas, obtendo sempre a concordância do líder, o qual já não escondia um sorriso aberto com laivos maquiavélicos.
— C'um carago, Raimundo! Tu és um génio. Eu dou uma ideia e tu elaboras uma Constituição, caraças.
O líder do SIALE conteve o orgulho que sentia e fez uma expressão de quem não via grande dificuldade em criar aquele plano.
— Por falar em Constituição, hoje vamos ter a apresentação da nova proposta de lei de cidadania.
— Sim. — confirmou Pinto Henriques, olhando para o relógio. — É melhor irmos andando para a Assembleia.
10.2
O hemiciclo estava a compor-se, as bancadas do anfiteatro iam enchendo-se de deputados e as galerias tiveram uma afluência grande de pessoas curiosas com o que se iria discutir na assembleia naquele dia. A zona reservada aos jornalistas não tinha um lugar vazio, uma vez que a proposta de lei que iria subir ao plenário atraía muito interesse da comunidade.
O assunto "nova lei de cidadania" tinha vindo a ser promovido ao longo dos últimos dias por diversos órgãos de comunicação social, claro está, com o devido lápis azul da censura do SIALE. Aquilo que se pretendia aprovar era, segundo o PNL, uma lei mais justa que beneficiava os patriotas e colocava de lado aqueles que sugavam o Estado sem contribuírem em nada para ele.
Bruna Drake tivera o cuidado de ler cada letra do projecto que os nacionalistas haviam distribuído aos partidos com presença parlamentar. Era perceptível ver no seu rosto como estava possessa com isso. Ocupou o seu lugar na primeira linha da bancada, ao lado de Manuel Teixeira, que lhe leu a raiva no olhar.
— Estás bem?
— Já leu o projecto?
— Sim.
— Nunca pensei ver uma proposta de lei tão xenófoba quanto esta ser votada no parlamento.
Habitualmente, era Bruna Drake quem falava em nome do MPP na Assembleia, na qualidade de líder da sua bancada. Porém, Manuel Teixeira ponderou se isso seria boa ideia.
— Queres que seja eu a falar?
— Não! — recusou com demasiada fúria. Percebeu que estava a dirigir a raiva na direcção errada. — Desculpe! Não, não é preciso. Quero ser eu a falar.
Não se encontrava uma cadeira vazia nos lugares dos deputados. Isso era significativo da importância daquele debate. O PNL tinha a maioria absoluta e o projecto de lei seria aprovado. Mesmo assim, era necessário transmitir toda a sua força com a presença de todos os seus membros sem excepção. Por outro lado, a oposição também se fez representar em peso, conscientes que perderiam, mas empenhados em demonstrar que fariam tudo ao seu alcance para impedir a aprovação.
— Tem calma! — pediu Manuel Teixeira. — O professor Flávio de Melo nunca permitirá que a lei passe e irá certamente exercer o seu direito de veto.
— E a proposta volta à Assembleia e é novamente aprovada. — completou Bruna. — E você sabe que, a partir daí, o presidente já não pode voltar a vetar.
— Mas nós podemos pedir a análise do Tribunal Constitucional, Bruna. Esta lei é completamente inversa a tudo o que a nossa Constituição defende.
Nesse instante, a porta atrás da tribuna da presidência da assembleia abriu-se e, por ela, começaram a entrar os ministros do governo nacionalista lusitano. Pinto Henriques ocupou o seu lugar no ponto central do anel inferior, ficando com Raimundo Antunes à sua direita e o marechal Costa Almeida à sua esquerda. Os últimos a ocupar os seus lugares foram os elementos da presidência do parlamento.
Os trabalhos foram iniciados.
O deputado do PNL escolhido para a apresentação da proposta foi Viriato Loureiro. No seu jeito austero e postura hirta, ao ser chamado, levantou-se da sua cadeira e caminhou pela sua fila, desceu as escadas, atravessou a área entre os ministros e os deputados e subiu ao palanque onde se discursava.
Na ampla sala, o silêncio era cortante. Viriato colocou as folhas que trazia na mão no suporte frontal. Ajeitou o microfone e absorveu as galerias com o olhar, vendo-as cheias de muitos espectadores, inclusive pessoas preocupadas com as consequências da aprovação da lei.
De facto, muitos grupos representativos de comunidades estrangeiras, organizações antirracistas, ONGs de solidariedade social e luta contra as desigualdades vieram assistir com apreensão ao debate e com a esperança mortificada de que o milagre da rejeição acontecesse.
Só a figura de Viriato Loureiro já era digna de receio pela assistência. O seu porte autoritário, o rosto fechado, o defeito assustador no olho esquerdo que lhe atribuía um traço demoníaco...
— Senhor presidente da Assembleia, distinto senhor primeiro‑ministro, digníssimos senhores membros do governo, caros colegas deputados do PNL e restantes deputados. — iniciou ele a apresentação, potenciando a sua voz grave e quase cavernosa. — Portugal atravessa um tempo de crise de identidade, distanciamento dos seus valores e esquecimento da sua História de quase novecentos anos, trocando-os por novos ideais modernistas que fogem à moral e aos bons costumes. Somos uma nação honrada que por vezes parece ter vergonha de si própria, renegando as grandezas do passado, em que ser português era ser superior à maior parte dos povos no Mundo. Fomos conquistadores e colonizadores. Demos novos mundos ao Mundo! — Fez uma pausa, levantando o olhar para a galeria. Tornou a concentrar-se nas folhas. — Hoje, em Portugal, enaltecer os feitos do passado é ser fascista. Saberão esses apregoadores, esses críticos que nada produzem, o que é o fascismo? Ao longo dos últimos cinquenta anos, criámos o sentimento de nos envergonharmos daquilo que fomos para dar lugar a uma coisa chamada Liberdade, que todos gritam obliterando essa mesma liberdade a outros. Tivemos governos que agitaram essa bandeira, abrindo o país a tudo e a todos, indiferentes à certificação dos interesses desses mesmos indivíduos que nos invadiam e consumiam aquilo que era por direito dos portugueses. Temos hoje imensas comunidades estrangeiras que pouco ou nada deram a Portugal, mas que consomem os seus recursos, os seus serviços, a sua riqueza. Não é possível continuar a pensar num Portugal português, quando por cada filho de um português nascem três ou quatro de africanos, asiáticos, europeus de leste, ciganos, entre outros. Isto tem de acabar! — Fez uma pausa e ouviram-se os aplausos da sua bancada. Bruna escutava sem querer acreditar no que estava a ouvir. — No PNL, queremos aumentar os apoios aos portugueses, queremos dar condições para que as famílias verdadeiramente portuguesas possam multiplicar-se, que casais tenham dois, três, quatro ou mais filhos sem o temor da falta de dinheiro, do desemprego ou da fome. Sim, senhores deputados, isso é possível. O Estado tem condições para assegurar abonos melhores, isenções, creches para todos, escolaridade gratuita e até um ensino superior sem propinas. Mas, para isso, temos de expurgar da nação, os que vivem ao Sol, encostados nas esquinas, a viver à custa de subsídios da preguiça, rendimentos que mais parecem contrapartidas para que os gatunos não roubem. Isso vai acabar!
A última frase foi quase gritada e provocou uma salva de palmas em pé por parte de todos os deputados nacionalistas lusitanos.
— Tanta demagogia. — suspirou Bruna, obtendo a concordância do líder do seu partido.
Nas galerias, a maior parte da assistência dava sinais de desacordo com o que ouviam. Contudo, ninguém tinha coragem de se manifestar. Já lá ia o tempo em que se faziam manifestações nas galerias para se marcar posição e acabar expulso pela polícia, sendo-se escoltado para o exterior da Assembleia. Agora, ser expulso pela polícia poderia significar uma visita ao edifício do SIALE, onde nem sempre era garantido que se saísse com vida.
Os aplausos foram esmorecendo, permitindo que Viriato prosseguisse:
— Os estudos confirmam que a criminalidade está enraizada nas comunidades estrangeiras. Nove em cada dez delinquentes provém dos bairros degradados compostos por cidadãos provenientes das ex-colónias ou descendentes destes. Não podemos continuar a ter uma Segurança Social a dar apoios a escumalha. As comunidades ciganas consomem subsídios e abonos de forma pornográfica sem darem nada em troca, não trabalham, não pagam impostos, vivem de roubar e enganar. Será que qualquer português, digno de o ser, compreende e aceita isto? Não! E nós também não aceitamos! — Nova vaga de aplausos estridentes na bancada do PNL. Pinto Henriques sorria. — Nas últimas décadas, temos aberto a porta a estrangeiros de todos os cantos do Mundo. Sim, alguns produzem e contribuem para a riqueza do país, pagam os seus impostos, criam emprego e geram riqueza. Infelizmente, estamos a falar de uma fatia pequena. Na sua grande maioria, são gente miserável que só traz miséria, gente que quer que nós aceitemos a sua religião, mas combatem a nossa. Querem viver no nosso país, mas não aceitam a nossa cultura e querem que aceitemos a sua. Isto é inadmissível, ser solidário não é ser estúpido, não é abrir a porta da nossa casa e deixar que durmam na nossa cama, comam a nossa comida e... já agora, porque não? Que copulem com as nossas mulheres. — Houve alguns protestos da bancada do MPP, rapidamente abafados pelas palmas da bancada do governo. — Estou a dizer alguma mentira, senhores deputados? — A pergunta foi direccionada para o maior partido da oposição. Tornou a abarcar todo o hemiciclo com o olhar. — Estamos a deixar que nos apaguem dentro da nossa própria casa. Lisboa... — Fez uma pausa dramática. — Meu Deus, que dizer de Lisboa? Corrupção, prostituição... Há ruas em Lisboa em que não se encontra um português. Como é que isto é possível? Digam‑me, senhores deputados, como pode um país que já foi um império ter ruas que não tem um cidadão português? — Nova pausa para deixar a pergunta no ar. — Eu não estou disposto a deixar que isto continue, o PNL não está disposto a deixar que isto continue, o governo não permitirá que isto continue. Nenhum português digno desse estatuto poderá permitir que isto continue a acontecer. — Elevou o tom de voz. — Portugal não é o caixote do lixo do Mundo!
Nova salva de palmas, onde se misturaram os apupos dos deputados do MPP. No anel governativo, Pinto Henriques e Raimundo Antunes trocaram olhares cúmplices.
— Ser cidadão português é um direito que se adquire de duas formas. — prosseguiu Viriato Loureiro. — Por nascimento ou por naturalização. Porém, ser cidadão português não é um direito em saldo, é um direito caro. E nós, no PNL, queremos que seja um direito bem caro. Não chega passar por Portugal e nascer para se ser português. Iremos acabar com os filhos de estrangeiros a obter a nacionalidade só por que as mães os pariram em solo português. — Novos apupos e protestos da oposição. — Que foi, colegas deputados? Parir é uma palavra portuguesa.
— Por favor, senhor deputado. — interveio o presidente da assembleia. — Se puder moderar algumas expressões...
— Com certeza, senhor presidente. Peço desculpa por me esquecer que alguns deputados parecem ter orelhas virgens. — Um coro de gargalhadas brotou nos nacionalistas lusitanos, o que não impediu mais protestos do MPP.
— Senhores deputados! Senhores deputados! Silêncio! — exigiu o presidente da assembleia. — E, senhor deputado Viriato Loureiro, prossiga com algum decoro.
Viriato olhou para cima, e revelou o seu desagrado por estar a ser novamente chamado à atenção. Contudo, não se pronunciou sobre a reprimenda e optou pela continuidade do discurso.
— Para se nascer português é preciso ser filho de portugueses ou, pelo menos, um dos progenitores ser português. Continuaremos a permitir a naturalização de cidadãos estrangeiros, mas com várias condicionantes que passo a enumerar: Ser residente há dez anos em Portugal. Seguir os nossos costumes e cultura. Ter emprego estável e residência própria. Não ter cometido qualquer crime contra cidadãos ou entidades portugueses ou em solo português contra qualquer cidadão ou entidade. — Os aplausos na sua bancada deram-lhe tempo para beber um pouco de água. — Os cidadãos naturalizados perderão a cidadania se cometerem um crime. Os cidadãos naturalizados estão obrigados a manter os seus empregos, sob pena de perderem a nacionalidade em caso de desemprego. — Uma onda de protesto proveio dos deputados do MPP, obrigando a nova intervenção do presidente da assembleia. Viriato continuou. — Mesmo que tenham filhos, se forem menores, também eles perderão a nacionalidade se ambos os progenitores perderem a nacionalidade portuguesa. Se, ainda menores, cometerem um crime, serão expulsos deste país. Não se pagarão mais subsídios a quem quer que seja que não cumpra estes requisitos. A Segurança Social serve para segurar os portugueses e não para alimentar essa corja chula que nada produz. Não há lugar em Portugal para sanguessugas! Não há lugar neste país para gente que vem de fora para encher a nossa Segurança Social com bocas a quem nada devemos. O nosso foco é Portugal e os portugueses, os verdadeiros portugueses, gerações de famílias que representam a grandiosidade desta nossa grande nação. — Nova pausa, a última. — É uma honra ser português. É uma honra servir este maravilhoso país. Viva Portugal! Tenho dito.
Viriato Loureiro abandonou o palanque sob uma estrondosa ovação dos deputados do PNL. Alguns deputados do MPP gritaram insultos que se perderam na cacofonia de vozes. Os comunistas abanavam a cabeça e falavam entre si. Os restantes pareciam atónitos e sem reacção. Nas galerias, muitas pessoas abandonaram os seus lugares, consternadas com o que tinham ouvido e descrentes que algo pudesse evitar a aprovação daquela lei que iria trazer muitos dissabores a muita gente. Outros mantiveram-se imóveis a aguardar a intervenção de alguém que parecia ser das poucas pessoas a fazer frente a um regime cada vez mais ditatorial e castrador de direitos adquiridos.
A voz do presidente da assembleia tornou a ouvir-se:
— Tem a palavra a senhora deputada Bruna Drake.
Bruna levantou-se do seu lugar, passou a mão pelo cabelo negro longo e ajeitou o casaco do fato azul e o colarinho da camisa preta.
— Senhor presidente, senhores membros do governo, senhores deputados! — começou, cravando um olhar desafiante em Pinto Henriques. — Senhor primeiro-ministro... — Calou-se, como se ponderasse as palavras. — Depois do que ouvi, não sei se o trate por primeiro-ministro ou por Fuher.
Os nacionalistas lusitanos ecoaram o seu descontentamento. Porém, a reacção pareceu demasiado encenada, como se já estivessem a posto para barafustar com qualquer coisa que ela dissesse.
— Senhora deputada, por favor. — pediu o presidente da assembleia.
Manuel Teixeira, a seu lado, percebeu que, apesar da postura aparentemente calma, Bruna tremia de raiva. Antes que ela prosseguisse, sussurrou-lhe:
— Tem calma, Bruna.
Ela olhou para ele e anuiu ligeiramente.
— Lamento, mas perante este tipo de propostas de lei, começo a não ver diferenças entre o regime nacionalista lusitano e o nacional socialismo de Hitler. — Mais apupos. — Depois de ouvir o senhor deputado Viriato Loureiro, a questão que me vem à mente é saber o que pretendem fazer aos cidadãos naturalizados que deixarem de o ser? Sim, porque podem expulsá-los para os países de origem, mas o que vão fazer aos que, segundo vós, não são cidadãos portugueses, mas também não são cidadãos de mais lado nenhum? E estará o Estado disposto a assumir a despesa de repatriar todos eles para os seus países? — Deixou as perguntas no ar, fazendo uma breve pausa para lhes dar intensidade. — Senhor primeiro-ministro, não há dúvida que esta é das leis mais xenófobas que esta câmara já ouviu. — Mais protestos do PNL. Bruna ignorou-os. — Será que, tal como outros tristemente famosos na História, também o senhor e o seu devoto ministro da Administração Interna estão a ponderar uma... solução final para esses não cidadãos?
Todos os deputados nacionalistas lusitanos se levantaram num coro de assobios e insultos à deputada do MPP pela alusão a que o governo pretendia dar o mesmo destino a essas pessoas que os nazis haviam dado aos judeus. No sector do governo, alguns ministros juntaram-se aos protestos e reclamaram contra ela. O marechal Costa Almeida levantou-se do seu lugar e apontou o dedo em riste ao presidente da assembleia, exigindo que este cortasse a palavra à deputada e a repreendesse pelos insultos dirigidos aos ministros.
— Fiz apenas perguntas, senhores deputados. — esclareceu Bruna, antes sequer do presidente falar.
— Mas seja comedida, senhora deputada. — ouviu-o dizer.
Os ânimos acalmaram-se. O militar, antes de se voltar a sentar, apontou o dedo à deputada e disse algo que ela não percebeu. Pinto Henriques e Raimundo Antunes permaneciam calmos.
Bruna olhou para os seus colegas de partido e depois para a restante oposição.
— Hoje é um dia triste. É um dia em que o país ficará marcado pela infâmia da aprovação de uma lei que é um atentado à humanidade. — Foi a vez de Bruna apontar o dedo aos ministros. — Vocês falam de ser português, mas envergonham o país que dizem defender. Nós não somos isso que querem com essa lei abjecta. Sempre fomos um povo solidário, sempre recebemos bem quem quis fazer parte de nós. Não somos um povo mesquinho, racista, xenófobo, homofóbico... Não, senhores deputados, isso é ser nacionalista lusitano, não é ser português. A vossa lei é tão idiota que me pergunto: Sou filha de pai estrangeiro. Se perder emprego, perco a nacionalidade? — Olhou em redor com especial dramatismo para as galerias. — Percebem a estupidez que se pretende aprovar aqui? Alguém duvida de que eu seja portuguesa? — Abanou a cabeça, triste. — É lamentável o que pretendem aprovar. — Tornou a olhar para as galerias. Os espectadores não se podiam manifestar, mas ela falou para eles em sinal de que eles faziam parte daquele momento. — Não se iludam. A lei vai ser aprovada. Recordem este dia, quando voltarem a ter a caneta na mão, o boletim de voto na vossa frente e exercerem o direito cívico de votar. — Pareceu ir finalizar, desligando o microfone, mas hesitou. — Votarão, se entretanto estes senhores também não nos sonegarem esse direito. Obrigada. Tenho dito.
E sentou-se, sendo aplaudida em unanimidade pelos seus colegas deputados e, curiosamente, pela restante oposição.
10.3
Diogo Pereira assistia ao debate parlamentar em sua casa, sentado no sofá, a observar o ecrã da televisão com imagens da ARTV, o canal oficial da Assembleia da República que transmitia em directo as sessões do plenário. Aos cinquenta e cinco anos, ele era presidente do governo regional de Lisboa e Setúbal, um cargo que conquistara ao bater nas eleições regionais um correligionário do homem que acabara de ver a fazer um longo discurso de apresentação da lei mais execrável que algum dia viu ser votada naquela assembleia. Diogo Pereira era também um dos militantes mais antigos do MPP e amigo próximo de Manuel Teixeira e do presidente Flávio de Melo.
Quando o MPP alcançou a governação do país, pareciam a salvação, o grupo político que iria dar um novo rumo a Portugal, surgindo de focos cívicos afastados dos lugares comuns dos partidos dominantes da altura. Mesmo tendo sido fundado por ex-membros de outro partido parlamentar, a imagem que transmitiam era a de englobamento de pessoas de diversas áreas importantes, movimentos de cidadania e ausentes dos lobbys de interesses e corrupção que diariamente alimentavam as notícias e envergonhavam a política.
Contudo, a sua força perdeu-se nos poucos anos que governaram, fustigados pelo resgate económico, pelas dificuldades em gerir as contas de um país falido por mais de trinta anos de completa dilaceração das contas públicas. E se essa governação já não era fácil, o PNL soube capitalizar as consequências da crise a seu favor e ganhou o lugar do MPP no coração das pessoas, surgindo como a nova solução para tudo.
Ao perder as Legislativas para o PNL, o MPP não perdeu só o governo do país, perdeu também muita da imagem de força e competência que havia adquirido. E pior, os seus próprios membros revelavam-se derrotados e os deputados uma mancha partidária maculada, triste, fraca e vencida. Por isso, para ele, ver uma jovem deputada ser líder de bancada e falar naquele tom desafiante, sem medo, encarando um governo com laivos de ditadura e perseguição política, enchiam-no de orgulho por o seu partido ainda ser capaz de criar pessoas assim.
Diogo Pereira desligou a televisão após a votação que confirmou a aprovação da lei. Era um homem de aspecto bonacheirão, simpático com um rosto redondo afável, o cabelo a rarear e um bigode fora de moda. Levantou-se do sofá no exacto momento em que a filha entrou na sala.
Vera Pereira não tinha nenhuma parecença com o pai. Ninguém diria que eram pai e filha, vendo-os juntos. Ele costumava dizer na brincadeira que ela herdara toda a imagem da mãe, a mulher de quem se divorciara quando Vera ainda era uma miúda, enquanto dele levou a inteligência e a personalidade. Era uma mulher alta, magra e confiante. Tinha uma farta cabeleira encaracolada acobreada volumosa que emoldurava um rosto simpático de faces sardentas que lhe davam um ar sensualmente exótico. Vivia com o pai depois de alguns anos na Califórnia, onde estudara artes representativas, realização e umas quantas formações acessórias à 7ª Arte. Regressara no ano anterior e abraçara o projecto de ser directora de projectos audiovisuais de uma grande produtora nacional de conteúdos televisivos. Paralelamente, procurava uma ideia para escrever um argumento e realizar um filme ou uma série televisiva.
— Então, pai?
Diogo olhou para a filha e fez uma expressão desiludida.
— Lamentavelmente aprovada.
Vera partilhou do seu semblante triste.
— Para onde está a caminhar o nosso país?
— Para o abismo, Vera! — afirmou com uma crença tenebrosa. — Talvez devas começar a pensar em voltar a emigrar. Iremos ter tempos difíceis.
— Só se vieres comigo, pai. Tenho medo do que te possa acontecer. Esses tipos do PNL odeiam o MPP e parecem colocar-vos um alvo nas costas.
Diogo forçou um sorriso.
— Pareces o Manuel Teixeira, Vera. Não te preocupes, são cães que ladram, mas mordem pouco. E em breve, iremos tirá-los do poder.
Sem sentir a confiança do pai, Vera não o contradisse e viu-o pegar na pasta diplomática, disfarçando aquela sensação de receio, cada vez que ele ia trabalhar para o governo regional de Lisboa e Setúbal. Baixou-se ligeiramente para dar um beijo ao pai e ele desapareceu pela porta do apartamento.
Sozinha, Vera atirou os receios para longe e concentrou-se no trabalho. Conseguira que a sua produtora investisse num projecto seu de realização, só precisava de uma boa história para adaptar a um argumento televisivo. Chegara a pensar em escrever um original, mas isso iria levar-lhe demasiado tempo, coisa de que não dispunha com tantos processos produtivos em mãos. Não tinha um horário fixo, tanto trabalhava na produtora como em casa. Umas semanas antes, num acaso fortuito a navegar pela Internet, descobrira um curioso website de um escritor desconhecido, um tal de Luís Mário, que escrevia livros e os publicava integralmente nesse website para quem quisesse ler sem que ele cobrasse o que quer que fosse. Quando percebera que assim era, Vera calculou que o conteúdo devia ser tão mau que seria essa razão de os textos serem gratuitos. Contudo, a curiosidade levou-a a iniciar a leitura e, para sua surpresa, adorou a escrita dele. Estavam lá uns oito ou nove livros, cada um separado por capítulos de leitura cativante. Não conseguiu descolar-se do ecrã, sem ser por obrigatoriedade profissional ou para descansar. Leu tudo, todos os livros, todos os capítulos, todos os textos... Encontrara aquilo que procurava para criar um guião. Se por um lado, o website era riquíssimo em conteúdo literário, já no que concerne ao seu autor a informação era mínima, somente o nome e um endereço de email. Vera escreveu-lhe, apresentando-se, elogiando os seus livros virtuais e revelando o seu interesse em produzir uma adaptação para cinema ou televisão de uma das suas histórias. Ele respondeu-lhe, poucos minutos passados, a confirmar o interesse. Ela voltou a escrever-lhe, sugerindo que marcassem uma reunião na produtora, talvez no dia seguinte de manhã. Ele recusou, justificando que não lhe dava jeito fazer essa deslocação. Vera constatou que não sabia sequer onde ele vivia, poderia estar a sugerir algo que lhe ficava a centenas de quilómetros de distância. Foi essa a sua interrogação seguinte. Alcochete, foi a resposta, o escritor anónimo vivia ali do outro lado do rio Tejo. Por alguma razão, talvez financeira, não era conveniente ao tal Luís Mário vir a Lisboa. Não havia problema, Vera estava tão interessada em escrever um guião dos seus originais que se dispôs a atravessar o rio e a encontrar-se com ele num café ou num jardim. Para sua confusão, ele voltou a recusar a ideia e, desta vez, dando a entender na mensagem que talvez não fosse assim tão boa ideia fazer um filme dos seus originais. Estava a perdê-lo. Como iria segurá-lo, se não compreendia a relutância dele? De súbito, ponderou que talvez fosse casado e temesse que um encontro com outra mulher lhe causasse problemas conjugais. Bolas, homem, é um encontro profissional, pensou para si, quando começava a desesperar. Vera não desistia com facilidade e a sua jogada seguinte foi enviar uma mensagem com a sugestão de uma reunião através do Skype, uma videoconferência.
Bom... desta vez, ele aceitou.
Ficara combinado para aquela tarde. Vera preferia a privacidade e conforto do seu escritório caseiro, vulgo quarto, para aquela reunião online. Só quando tivesse mais garantias de que as coisas teriam pés para andar é que tornaria o assunto conhecido na produtora. Sentou-se no canto onde tinha o computador portátil e ligou-o. Ainda faltava algum tempo para a hora agendada. Abriu o email para ver as mensagens. Passado tantos meses, ainda não conseguia fazê-lo sem a secreta esperança de ter uma mensagem do ex-namorado, alguém que ficara do outro lado do Atlântico.
Não fora o seu regresso a Portugal que terminara a relação, esta acabara muito antes. Talvez tivesse sido o contrário, talvez tivesse sido a ruptura com ele que a levara a encarar a hipótese de voltar a Portugal quando se abriam boas oportunidades nos states. O dono desse pedaço do seu coração que ficara para trás era um homem apaixonante que fazia lembrar o Paul Walker no filme Velocidade Furiosa. Um tipo alto, bonito, forte que adorava carros e conduzia um Camaro de cor verde-garrafa.
Vera estava totalmente apaixonada por ele. E com o desenrolar da relação e o aproximar dos trinta anos, ponderou seriamente o passo seguinte, não o casamento pois a oficialização não era assim tão importante, mas a maternidade. Queria ser mãe! Descobriu da pior maneira que não partilhavam dos mesmos objectivos futuros. O "seu" Paul Walker não sofreu muito com isso. Não queres como eu quero, então também não te quero. E a relação acabou, perdera-se o entusiasmo de namorar uma rapariga europeia.
Foi duro, mas ela também não quereria continuar aquela relação naqueles moldes. Mesmo assim, não conseguia entrar no email, no Facebook ou no Instagram sem a esperança de que ele lhe tivesse enviado uma mensagem a dizer que fora estúpido em abrir mão dela. Sentia-se parva... aliás, duplamente parva, pois se essa mensagem tivesse vindo, teria sido notificada no telemóvel, o qual tinha aplicações com tudo aquilo configurado.
Faltavam dois minutos. Vera clicou duas vezes sobre o símbolo do Skype. Abriu o programa e afinou o seu enquadramento na imagem que o outro lado veria. Colocou-se disponível para receber chamadas e esperou. Os dois minutos passaram, bem como mais cinco. Ela não tinha o contacto dele, por isso restava-lhe aguardar. Passou mais um minuto, Vera abriu uma página do navegador Mozilla Firefox e navegou um pouco pela Internet, lendo as notícias. Subitamente, o pequeno computador fez ecoar o som característico de chamada do Skype. Vera atendeu.
No ecrã, em plano maior, apareceu a imagem de um homem com o cabelo cortado muito curto e o rosto barbeado. A expressão procurava ser simpática, mas revelava-se envergonhada. A primeira conclusão que chegou ao pensamento de Vera foi que, se o problema dele em se encontrarem fosse ter consequências conjugais bem poderia estar descansado, pois ele não fazia minimamente o género de homem que lhe despertasse qualquer faísca de atracção. Deitou uma olhadela ao quadrado mais pequeno, confirmando o bom posicionamento da sua própria imagem.
— Olá! — cumprimentou, esboçando um sorriso cordial. — Luís Mário?
— Olá! — retribuiu. — Sim, sou eu... Vera?
— Sim. Muito prazer, Luís! Finalmente, conhecemo-nos.
— Sim...
Vera percebeu que ele não parecia ser muito falador. Não havia problema, a reunião não tinha intenção de ser prolongada, somente o suficiente para conversarem e o autor ganhar um rosto na sua cabeça.
Não era perceptível perceber a idade dele, mas calculou que deveria estar na geração entre a dela e a do seu pai.
— Obrigada pela sua disponibilidade para conversarmos. — agradeceu Vera, consciente que ele deveria ter muito mais tempo disponível que ela. — Como lhe referi nos emails, gosto muito da sua escrita. Sou produtora e realizadora... — Fez um sorriso humilde. — ...e argumentista. Estou à procura de uma história para adaptar à televisão. Inicialmente, tinha pensado numa produção cinematográfica, mas a produtora dá preferência a conteúdos que possamos capitalizar em televisão.
Parou de falar, interrogando-se o que estaria a pensar aquele olhar estremunhado que a observava no ecrã. No lugar dele, estaria a dar pulos de satisfação por se abrir uma oportunidade de dar forma visual aos seus textos. Estranhou o escasso entusiasmo do escritor. Ficou curiosa.
— O Luís é escritor profissional?
— Não.
— Posso saber o que faz profissionalmente? — questionou, arriscando-se a parecer intrometida. Notou a relutância dele. — Peço desculpa, não quero estar a meter-me...
— Não tem importância. — retorquiu sério. — Fui agente da Guarda Nacional Republicana.
A resposta surpreendeu-a. Poderia esperar muitas profissões naquele homem, menos agente de autoridade.
— Foi? — interrogou ela, captando com estranheza o tempo verbal da frase dele.
— Sim. — confirmou, falando como se estivesse prestes a fazer uma confissão. — Houve um... algo... uma coisa... Já não sou há uns anos.
Vera percebeu que o assunto era melindroso e optou por alterar o rumo da conversa, antes que se pudessem erguer obstáculos. Ela não queria perdê-lo, uma vez que estava demasiado encantada com a ideia de realizar um filme com a sua colaboração criativa.
— Eu estive a estudar e a trabalhar nos Estados Unidos. — partilhou ao mesmo tempo que suspeitava o quão insignificante isso seria para ele. — Regressei o ano passado para trabalhar numa produtora em Queluz.
— Calculo que tenha sido uma adaptação complicada. — retorquiu Luís, o que a levou a crer que falar nela o deixaria mais à vontade. — Não que eu tenha esse tipo de experiência, na verdade, nunca saí de Portugal.
— São realidades muito diferentes, Luís. Confesso que foi mais complicado quando fui estudar para lá.
— Era muito nova?
— Tinha dezanove anos.
Luís fez um sorriso envergonhado.
— Isso foi há uns três anos, não?
Vera percebeu a tentativa de fazer um gracejo e não levou a mal.
— Obrigada pelo elogio, mas foi há bem mais que isso. — referiu sem revelar a sua idade.
O fundo atrás de Luís Mário era composto por estantes com dezenas de livros. À primeira vista, parecia o escritório de um advogado ou de um médico. Um GNR? Jamais lhe passaria pela cabeça.
— Onde é que esteve?
— Los Angeles.
O escritor aproveitara o rumo do diálogo para a entrevistar. Nada de anormal, afinal os escritores apreciam as experiências de terceiros para enriquecer as suas personagens. Vera era suficientemente autoconfiante para não ter qualquer problema em falar de si.
— Los Angeles lembra-me cinema, Hollywood... Esteve em Hollywood?
— Sim, cheguei a passear por lá. — Sorriu com a recordação. — Não era logo ali do lugar onde eu vivia... Não fui muitas vezes, umas duas ou três.
— Foi aos Óscares?
— Não. Não é fácil assistir ao espectáculo.
— Pois... Calculo que não seja.
— Talvez um dia tenha oportunidade de ir. — alvitrou Vera, procurando motivá-lo para o seu projecto. — Quem sabe, talvez uma adaptação de um livro seu possa ganhar um Óscar.
— Não creio. — respondeu, perdendo aquele ânimo que revelara ao questioná-la.
— Não podemos deixar de sonhar, Luís. Tem de acreditar que as suas criações podem chegar a esse nível.
Ele encolheu os ombros e acabou por aquiescer:
— Não ponho de lado que isso possa acontecer, agora eu ir lá...
Vera sorriu.
— Não me diga que é daqueles que tem medo de andar de avião. Não custa nada. E olhe que nenhum fica lá em cima.
Luís não deu sinal de partilhar do sentido de humor. Ao invés, questionou:
— Isso é um cartaz político?
Só nesse momento, Vera se deu conta que, no ângulo da sua imagem, aparecia a ponta de um cartaz do MPP com a foto do seu pai às eleições regionais.
— Sim... — confirmou, meio sem saber o que dizer. Não queria que pontos de vistas políticos divergentes pudessem ser um obstáculo àquela parceria. Decidiu arriscar. — É um cartaz do meu pai.
— Do seu pai?
Ela notou-lhe a expressão de espanto no olhar. Virou um pouco a câmara do computador para que se visse o cartaz completo e o pai.
— Diogo Pereira, o meu pai. — adicionou com orgulho.
Luís não se manifestou, dando quase a entender a irrelevância do facto. Vera não gostou.
— Hum... Vejo que não faz parte dos eleitores do MPP.
— Nem desses, nem de nenhuns. — retorquiu com desdém. — Recordo-me bem de como os políticos nos viravam as costas, quando a GNR e outros reivindicavam mais condições.
Vera não queria ir por aquele caminho, mas não suportava a ideia de ver o pai injustiçado.
— Por vezes, não se trata de não querer dar, é não ter como dar.
Luís encolheu os ombros com indiferença.
— Se acredita nisso...
— Estamos a falar do meu pai. — lembrou, um pouco irritada. — Acho que sei bem o que digo, no que respeita ao meu pai.
No ecrã, ela viu-o levantar os braços num sinal de rendição de quem não pretendia iniciar uma discussão acerca de algo que não lhe interessava.
— Peço desculpa, não quis ofender.
Foi a vez de ela fazer um gesto de que o assunto estava ultrapassado.
A conversa sofreu um impasse. Um silêncio momentâneo. Seria um pouco ridículo permanecerem online a olhar para o outro sem dizer nada. Vera duvidou da validade de estar a perder o seu tempo com aquele indivíduo. Que raio, se ele não queria trabalhar com ela, haveria de haver outros que queriam. Tomou a decisão de iniciar a despedida e riscá-lo das hipóteses para o seu projecto.
— Eu tenho um problema. — disse ele, do nada, como se tivesse estado todo aquele tempo à procura de uma oportunidade para se confessar. — Um problema que... Bom... Não sei como colocar... Nem sei se o compreenderá.
— Coloque-me à prova. — sugeriu ela de forma dura, sem querer, motivada pelo cansaço de uma conversa que parecia não chegar a lugar nenhum.
Luís anuiu, hesitante. Não conseguiu encarar a câmara.
— Quando era agente, eu e o meu colega sofremos uma... — O relato quebrou-se tão rápido como se iniciara. O olhar perdido de Luís pesquisava as melhores palavras. — Sofremos uma emboscada. Na altura, eu estava destacado no centro do país. Estávamos a fazer uma patrulha perto de um condomínio em construção, junto a uma mata perto da vila. — Nova pausa. Vera não lhe via os olhos, mas calculava que a mente dele revivia o momento. — Demos com um carro suspeito. Era comum haver assaltos às obras para roubar materiais. Fomos averiguar. — Mais uma pausa. Esta foi longa, mas Vera não se atreveu a pressioná‑lo. — Alguém disparou o primeiro tiro. Nem vi donde veio. O segundo acertou em cheio no meu colega. Era eu quem estava a conduzir e fiquei apavorado quando o vi a sangrar do peito. Tentei reagir...
Vera viu-o baixar a cabeça e esconder o rosto nas mãos.
— Luís... Não precisa de me contar...
Ele não estava a ouvi-la. A sua cabeça já não estava em Alcochete numa videoconferência com ela, estava novamente no lugar onde tudo acontecera.
— Do nada, apareceram vários tipos armados. Pensei em acelerar e levar tudo à frente, mas no meio do pânico, algo me disse que seria morte certa. Parei e rendi-me, estupidamente esperançado que eles só nos quisessem assustar e roubar as armas. — Parou outra vez. As imagens voltavam como um filme que revira centenas de vezes. — O meu colega foi arrancado do carro, meio moribundo a esvair-se em sangue. Eu queria auxiliá-lo, mas também fui puxado e arrastado pelo chão. Ouvi dois tiros do outro lado do carro...
O relato suspendeu-se e Luís virou-se de costas para a câmara. Vera não sabia o que haveria de dizer. Começou a sentir um enorme arrependimento por o ter contactado, não precisava de pessoas assim na sua vida, não tinha disponibilidade para ser ombro de ninguém e, naquele momento, sentia que ele a escolhera para desabafar.
— Luís, talvez seja melhor falarmos noutra altura. — sugeriu sem intenção de o voltar a contactar.
Ele não a estava a ouvir. Tornou a virar-se para o computador, continuando a não encarar a câmara.
— Fui agredido, esmurrado, pontapeado... Recusava-me a acreditar que poderia morrer naquela noite. Mesmo com a certeza de que o meu colega deveria ter sido executado no outro lado da nossa viatura. Defendia-me o melhor que conseguia, achando que eles iriam parar e abandonar-me ali. — Abanou a cabeça como se pensasse em algo ridículo. — Que otário que eu era... Um deles puxou-me pelos cabelos e apontou-se uma pistola à cabeça. Quis implorar pela minha vida, mas estava tão apavorado que não verbalizei nada. — Calou-se. Vera pensou em dizer algo sem saber o quê. Nas colunas do computador, o silêncio e a respiração alterada dele. — A partir daí, as recordações são uma névoa... Lembro-me que nem todos concordavam com a minha execução. Havia vozes a discutir. Senti que alguém se empurrava perto de mim... E o tiro.
Vera sentiu um peso no peito, como se a palavra a tivesse atingido como uma bala. Em segundos, a sua mente recordou-a de algumas passagens que lera nos textos deles e começou a perceber donde haviam vindo.
— Deram-lhe um tiro? — foi a única coisa que lhe saiu.
A pergunta parecia quase parva de se fazer depois daquele relato.
— Eles julgaram que me tinham morto. — prosseguiu Luís. — Sinceramente, não sei como sobrevivi. Fui encontrado com os sinais vitais muito fracos e submetido a uma cirurgia para extrair a bala que, por milagre... — Olhou para a câmara com uma intensidade assustadora. — Acredite, Vera, só consigo interpretá-lo como milagre. A bala não atingiu nenhum ponto vital, estava alojada no pescoço. Uns milímetros ao lado e eu tinha passado a ser um vegetal.
— Que horror... — suspirou ela, estarrecida.
— Estive hospitalizado um ano...
— Percebo porque saiu da GNR.
Luís fez um sorriso agastado e abanou a cabeça.
— Sim...
Vera deu por si incapaz de o abandonar, cortando a conversa com uma despedida simpática para não mais voltar a falar com ele. Ela não era assim.
— Luís... Peço desculpa por lhe perguntar isto, mas... — O olhar dele cravou-se no ecrã e assentiu, dando abertura às questões que ela pudesse ter. — Porque me está a contar tudo isso?
Novo sorriso triste e um semblante agastado.
— Para lhe explicar o porquê de me ter recusado a reunir com a Vera. — Encolheu os ombros, sentindo-se um caso perdido. — Não consigo sair de casa. Tenho crises de ansiedade, sofro de stress pós‑traumático. Nem dois passos dou fora da porta do meu apartamento. Felizmente, consegui arranjar maneira de me suster financeiramente, tenho a pensão de invalidez que o Estado me paga e ganho bom dinheiro com negócios na Internet. — Sorriu. — Compro coisas que depois vendo. Parece surreal, mas dá para ir ganhando algum dinheiro. — Adivinhou o que ia na mente dela. — Recebo as coisas em casa e consigo expedi-las com recolhas ao domicílio. — Entristeceu-se novamente. — Em tempos, pensei que pudesse ganhar dinheiro com os livros... Não, não... Isso não é para mim. E nem faço disso condição. Escrevo porque desde pequeno sempre gostei muito de ler e escrever. Faço-o por prazer. — Suspirou. — Acredite que adoraria colaborar consigo naquilo que me propõe, mas... Não consigo sair daqui.
— Há quanto tempo...?
— Quinze anos. Aconteceu há quinze anos. E não saio de casa desde que vim do hospital.
Vera ficou boquiaberta e, quando se apercebeu, já era tarde para ele não ter reparado no seu ar afectado.
— Quinze anos fechado em casa?
— Quase.
Ela estava completamente aparvalhada com a revelação.
Estranhamente, Luís revelou-se mais lúcido:
— Obrigado pela oportunidade, Vera. A sério que lhe agradeço. E se quiser usar as minhas histórias para as suas produções, esteja à vontade. Se quiser, mande-me por correio o contrato necessário para lhe ceder os direitos. E os valores... Se resultar, depois fazemos contas. Não se preocupe. Como lhe disse, nunca esperei que a escrita me desse dinheiro.
Vera permaneceu impávida a olhar para o ecrã. Tentava colocar as ideias em ordem. Não iria aproveitar-se dele.
— Gostava que participasse nisto, Luís.
Ele encolheu os ombros.
— Lamento.
— Se eu for visitá-lo... — equacionou sem ponderar bem a questão. — Não quero... Não sei... Não se sinta pressionado. Se for complicado para si receber visitas...
Luís abanou a cabeça e falou num tom suave:
— Não. Mas, não quero dar-lhe esse incómodo.
— Se eu passar por esses lados...
— Ligue-me, antes.
— Claro.
Gerou-se novo silêncio, nenhum dos dois soube o que dizer mais. Luís olhou para o relógio de forma a que ela visse.
— Bom, Vera. Não lhe tiro mais tempo.
— Nem eu a si, Luís. E obrigada pela... por... por confiar em mim.
— Gostei de a conhecer. — confidenciou com um sorriso franco. — Mesmo que tenha sido assim, à distância.
— Também gostei de falar consigo.
10.4
José Carlos comparecera no gabinete do reitor, tal como outros membros de direcções estudantis convocadas para o mesmo efeito. Foi‑lhes dito de forma clara que deveriam apresentar a demissão dos seus cargos e que a reitoria indigitaria os elementos a presidir essas mesmas associações. O reitor foi muito honesto com todos eles, referindo que não concordava com o ministério que tutelava o ensino superior, o qual publicara aquela norma ditatorial de que deveriam ser filiados da JNL a liderar as associações de estudantes. Houve quem questionasse se na eventualidade de se filiarem na "J" do PNL, isso lhes permitiria manter os cargos. A resposta foi um encolher de ombros.
Para José Carlos, isso não era opção. Filiar-se numa organização jovem racista? Nunca! E também não estava na disposição de abdicar do cargo para o qual os seus colegas universitários o haviam eleito. Se queriam que ele saísse, tinham de o tirar de lá. Claro que ele sabia os riscos que corria.
Em Portugal, as disputas políticas estavam no auge e os nacionalistas lusitanos não olhavam a meios para alcançar os seus fins. Conhecedores da História, Pinto Henriques e Raimundo Antunes tinham noção de que as contestações ao regime, por norma, partiam de movimentos estudantis. No tempo do Estado Novo, foram as associações académicas que mais se mostraram contestatárias. E quem é que as organizava? As suas direcções. Por isso, se o PNL controlasse essas direcções, não teria de se preocupar com isso.
Já seria difícil enfrentar uma situação destas. Contudo, para José Carlos, o caso era muito mais grave, uma vez que o seu opositor, e preponente ao seu lugar, era o líder da Juventude Nacionalista Lusitana, Filipe Macieira.
Filipe Macieira tinha vinte e cinco anos, estudante de Direito, um indivíduo estranho e aparentemente reservado fora do seio da "sua" Juventude. Isso não o impedia de tornar claras as suas divergências com José Carlos e fazer dele mais que um adversário, um inimigo. Provinha de uma família rica do Estoril e era um aluno mediano. Sempre revelara com orgulho os seus pontos de vista xenófobos e homofóbicos. Defendia muita da ideologia que encontrou no PNL e filiou-se na "J" deles, onde ganhou protagonismo. Tinha capacidade de líder e sabia mobilizar os cegos pelo ódio que, tal como ele, reduziam todos os males à cor da pele e ao credo de cada ser humano. Possuía um porte forte, mas tinha uma estatura abaixo da média. A sua expressão facial parecia ter um sorriso crónico, uma curvatura mesquinha de quem está sempre a preparar algo, um cinismo calculista. O olhar era frio e inquisidor. Usava um corte de cabelo quase rapado nas têmporas e muito curto no resto. A sua indumentária predilecta eram os casacos de cabedal e as calças em matriz camuflada ao qual juntava calçado militar. Para seu aborrecimento, não podia comparecer dessa forma nas aulas da faculdade, mantendo o casaco e trocando as calças por tecido de ganga escura e as botas militares por um modelo de caminhada.
Contudo, como quase sempre acontece, os fanáticos acabam por encontrar interesse naquilo que supostamente abominam. No caso de Filipe Macieira, a sua paixão era uma estudante iraniana chamada Shirin, também frequentadora da Faculdade de Direito. Shirin tinha a mesma idade de Filipe e encarnava algumas vertentes que os nacionalistas lusitanos combatiam: era muçulmana, crente islâmica e o seu tom de pele fugia àquela tonalidade albina que eles definiam como a raça líder. Shirin não lhe dava a mínima abertura e evitava sequer trocar qualquer sílaba com ele. Ela falava preferencialmente em inglês, mas percebia bem e falava algum português.
Filipe era cobarde o suficiente para, sozinho ou com outro energúmeno, arrastar Shirin para um canto escuro e obter aquilo que queria, não fosse o facto de a jovem ser filha do embaixador do Irão em Portugal. E Filipe não arriscaria causar problemas diplomáticos aos seus líderes, a menos que não se importasse que Raimundo Antunes mandasse que lhe separassem a cabeça do resto do corpo.
Shirin tinha o gosto pelas leis, apesar de justiça ser uma coisa algo duvidosa no seu país. Era muito religiosa na crença islâmica e surgia sempre envolta em túnicas largas escuras e com a cabeça coberta pelo tradicional Hyjab. Tinha um rosto muito expressivo e bonito de olhar esverdeado em tez cor de mel. Não era só de Filipe que Shirin não gostava, também não tinha simpatia por Carla Maia, se bem que por razões diferentes. Shirin idolatrava o líder da associação estudantil da sua faculdade e invejava a namorada deste. E quando soube que José Carlos estava por detrás da organização de uma manifestação contra a nova lei de cidadania aprovada no parlamento, o seu coração entregou-se incondicionalmente.
José Carlos encarou a pretensão governativa de o afastar do seu lugar como uma declaração de guerra. E, quando soube da nova lei de cidadania aprovada na Assembleia da República, "matou dois coelhos com uma cajadada". Os Corvos uniram esforços e organizaram-se para um protesto. Não foi complicado obter aderentes à manifestação, uma vez que só os execráveis elementos da JNL inscritos nas faculdades da Universidade de Lisboa e outros que não se queriam meter em confusões é que declinaram interesse.
A reitoria não aprovou o pedido de manifestação. Porém, não fizeram nada para a impedir até terem de ser obrigados a comunicá-la às autoridades. Os organizadores nem perderem tempo a tentar uma autorização legal para a fazer, seria perda de tempo e um convite a que os boicotassem. Se bem que o mais certo seria o MAI autorizar para, dessa forma, engrossar a sua lista de contestatários do regime.
Assim, numa tarde de Inverno, dezenas ou talvez centenas de estudantes juntaram-se na escadaria do edifício da Reitoria da Universidade de Lisboa, voltados para a Alameda da Universidade. Verdade seja dita, perante o clima de perseguição a que se insurgia contra o governo do país, cada uma daquelas almas era um símbolo de coragem, principalmente todos aqueles que se inseriam étnica ou religiosamente nos grupos a que o PNL associava todos os problemas do país.
A linha da frente segurava uma tarja enorme com a mensagem "Abaixo o racismo! Abaixo a xenofobia! Abaixo a nova lei de cidadania!". Era possível ver nessa primeira linha alunos representativos de várias raças e religiões. No centro, José Carlos segurava o pano em lugar de destaque com Carla a seu lado e Shirin no outro, a qual se oferecera como forma de ser mais uma a representar os muçulmanos. Também Manuel segurava o pano, assim como quase todos os restantes Corvos que estudavam naquela Universidade.
A tarde era solarenga sob um céu azul que enquadrava um quadro bonito no contraste do verde da relva no jardim rodeado pelos edifícios universitários. Alguns órgãos de comunicação social apareceram para noticiar o acontecimento, conscientes que estariam sob o escrutínio do SIALE, quando quisessem transmitir as imagens. Os estudantes não se iludiam e sabiam que só seria relatado aquilo que o PNL quisesse que se soubesse, por isso, preocuparam-se em filmar com os seus telemóveis e fazer directos nas redes sociais. O SIALE ainda não conseguia limitar a liberdade de expressão a esse ponto.
Gritavam-se palavras de ordem. Insultos à lei, expressões de união entre etnias. José Carlos protestava com olhar atento, aguardando que a qualquer momento aparecesse a polícia para os dispersar. Quando isso acontecesse, os Corvos haviam combinado dispersar, uma vez que deveriam evitar uma detenção que os levaria certamente aos calabouços do SIALE. E o senso comum já tinha uma ideia das consequências que isso teria. E no caso de José Carlos, se fosse apanhado, significaria entregar a presidência da associação de mão beijada a Filipe Macieira.
A polícia não apareceu. Alguns manifestantes exultavam com o facto, acreditando que a manifestação atingira uma tal proporção que o governo não queria fazer alarido daquilo ou dar trunfos aos estudantes carregando sobre eles. José Carlos desde miúdo que deixara de acreditar no Pai Natal. E alguns minutos mais tarde, percebeu o que se preparava para acontecer.
Vindos do lado do Campo Grande, dezenas de jovens apareceram para se agrupar no relvado. Eram rapazes e raparigas, alguns também estudantes ali, envergando os típicos casacos de cabedal preto e as calças camufladas e com as botas militares a esmagar a relva abaixo das suas solas. A maioria tinha a cabeça rapada, inclusive algumas raparigas, outros tinham cabelo muito curto ou ligeiramente mais comprido, mas com corte esquisito. Eram liderados por Filipe Macieira. Perfilaram defronte da manifestação estudantil e desenrolaram uma tarja preta com letras brancas com a mensagem "Portugal é dos Portugueses! Fora com as sanguessugas! Fora com a corja estrangeira! Viva o PNL!"
José Carlos olhou para Afonso e para Fernando, os mais activos na organização, dando-lhes indicação para que mantivessem o grupo calmo e não respondessem a provocações. Porém, como podem dois ou três com a ajuda de mais meia dúzia controlar centenas? Gritaram-se insultos de ambos os lados. Fizeram-se ameaças. A mancha de elementos da JNL estava sedenta de entrar em conflito, queriam transformar o relvado numa batalha campal.
Por fim, apareceu a polícia. Chegaram em carrinhas cheias de elementos do corpo de intervenção. Eram umas vinte viaturas com agentes suficientes para controlar ambas as manifestações e ainda ficarem alguns de reserva. A atenção de José Carlos centrou-se em alguns indivíduos estranhos, trajados à civil, que permaneciam nas imediações da Alameda a tirar fotos e a tomar apontamentos. Pareciam, mas não eram jornalistas.
Um agente graduado acercou-se da escadaria. Trazia um megafone na mão e começou a ordenar a desmobilização da manifestação na escadaria. Contudo, ignorou o grupo da JNL, como se esses estivessem só ali a fazer um piquenique.
— Pessoal! — chamou José Carlos. — Já marcámos a nossa posição. Vamos embora.
Afonso e Fernando passaram a mensagem e os estudantes, alguns contrariados, deram sinal de começar a dispersar. Só que isso não interessava ao outro lado.
Entre os jovens da JNL, alguém começou a atirar pedras para os estudantes, cubos arrancados de alguma calçada e transportados para ali já com o intuito premeditado de serem usadas como arma de arremesso. Algumas foram atiradas propositadamente contra os agentes. Por sua vez, os polícias fardados com capacetes e armados com escudos e bastões, fizeram de conta que não perceberam donde tinham vindo as pedras e investiram contra a massa jovem que descia a escadaria para se ir embora.
Foi o caos.
As primeiras pedras atingiram dois alunos que ficaram a sangrar nos degraus. Isso não os impediu de sentirem o peso dos bastões. Indefesos, foram agredidos e detidos. O grupo da JNL manteve-se afastado, mas acabou por perseguir os que conseguiram furar o cordão policial para fugir dali, sendo também brutalmente agredidos e entregues a agentes do SIALE que observavam mais atrás.
José Carlos agarrou a mão de Carla e puxou-a, furando na confusão para fugir. Ponderou refugiar-se no interior do edifício. Nem nos tempos do "fascismo" a polícia se atrevera a entrar em instalações universitárias, mas com o PNL a mandar... Não arriscou. E, vendo uma abertura, escapuliu-se com a namorada para a entrada da estação do metropolitano, lugar para onde já alguns estudantes tinham fugido.
Shirin ficou perdida no caos. Julgou que a sua posição de filha do embaixador a protegeria da carga policial, só que os polícias vinham cegos, sedentos de massacrar os manifestantes. Foi empurrada por colegas desesperados e caiu nos degraus, torcendo um pé e perdendo o tecido que lhe cobria a cabeça, o que a apavorou mais que o perigo de ser agredida. Afonso viu-a com o esgar de dor na face e o desespero para voltar a colocar o Hyjab na cabeça. Um agente aproximava-se perigosamente de bastão em riste para a atingir sem dó. Afonso correu indiferente ao risco e empurrou o agente, provocando a sua queda na escadaria. Shirin revelava o pânico estampado na face, mas Afonso só conseguiu ver que ela tinha um cabelo escuro lindo. Sem pensar, puxou-a pelo braço e conseguiu arrastá-la consigo para o interior da reitoria. O agente interceptado tentou alcançá-los, mas a confusão de gente a correr sem rumo serviu de escudo aos estudantes.
Na aparente segurança do enorme átrio da reitoria, Afonso entregou o lenço a Shirin e voltou-se de costas em sinal de respeito para com ela. Ela envolveu-se com o Hyjab e disse:
— Thank you! Obrigado. Poderes olhar.
Afonso voltou-se e sentiu o coração quente com o sorriso que ela lhe ofereceu. Porém, a sensação foi efémera, ao reparar no cerco policial lá fora. Pelo menos, algumas coisas ainda não haviam sido transgredidas, a Polícia respeitara o interior do edifício.
Fernando surgiu a seu lado.
— Estás bem, Afonso? — O amigo anuiu. Ele olhou para a rapariga. — E tu? — Ela também assentiu, perdendo o sorriso. — Não vão entrar. Mas, acho que também não nos vão deixar sair.
— E os outros?
— O Pedro está ali. — apontou. E chamou. — Pedro!
Pedro veio ao encontro deles.
— Viram a Inês? — Os outros abanaram a cabeça. — Foda-se! Ela estava comigo, mas na confusão...
— Pode ter fugido para o metro. — equacionou Manuel que se juntou a eles. — Vi alguns fugirem na direcção da estação.
Os amigos olharam em redor, procurando os rostos familiares dos restantes Corvos entre as dezenas de jovens refugiados no átrio. Viram Sancho agarrado ao braço.
— Estás bem? — questionou Fernando.
— Um bófia acertou-me com o bastão, mas foi de raspão. Por pouco, apanhava-me.
— Viste a Inês? — indagou Pedro num tom a roçar o desespero.
— Lamento, amigo.
João e Miguel não tinham vindo à manifestação por causa de um exame. Sebastião estava em aulas na Faculdade de Medicina.
Fernando parecia o mais lúcido do grupo:
— Já tentaste ligar-lhe?
O outro assentiu com um semblante pesaroso.
— Não atende.
— Também não vejo a Maria em lado nenhum. — constatou Afonso, sentindo que Shirin se mantinha perto dele. — Nem o Zé Carlos.
— Eu ver Zé Carlos correr estação. — partilhou Shirin. — Ia com... How you say? Girlfriend?
— Ia com a Carla. — respondeu Fernando.
— Sim. — confirmou a iraniana com um toque de desapontamento.
Nesse instante, o telemóvel de Afonso tocou e ele viu o nome de José Carlos no visor. Sem conseguir tirar o olhar do exterior, ouviu-o dizer que estava a salvo com Carla e com Inês que também fugira para o metropolitano. Ao comunicar isso a Pedro, foi como se lhe tirassem um peso de cima.
— Só não sabemos da Maria. — comunicou Afonso.
— Está ali! — apontou Sancho com a voz a tremer. — Está lá fora.
O grupo olhou através dos vidros da reitoria, onde uma linha policial mantinha o cerco ao edifício. Para lá deles, foram agrupados diversos estudantes detidos. Entre eles, algemada como uma criminosa, Maria.
— A Maria foi apanhada! — informou Afonso para o telemóvel.
— Eu vou para aí! — retorquiu José Carlos.
— Não sejas parvo, pá! Deixa-te estar onde estás. Se vens para cá, és preso.
— És capaz de ter razão.
— Eu mantenho-te informado, Zé. Mas, fica longe daqui!
O reitor apareceu no cimo da escadaria, a qual desceu com uma postura de autoridade. Os estudantes olharam para ele, curiosos. O homem atravessou a aglomeração de jovens e abriu a porta, saindo da reitoria e dirigindo-se ao oficial graduado que parecia liderar a força de intervenção. Para espanto geral, por entre a linha de cerco, apareceu Filipe Macieira que se juntou ao diálogo entre o reitor e o polícia.
Não conseguiam ouvir o que era discutido. Nenhum daqueles três defenderia os estudantes refugiados no interior. Filipe era o que falava com maior expressividade, era óbvio que usava a sua influência como líder da JNL e proximidade com o regime. Apontou para o interior e o reitor fez uma expressão preocupada. O oficial verbalizou algo e os outros anuíram. O reitor regressou ao átrio da reitoria.
— Menina Shirin! — chamou, aproximando-se dela que parecia escoltada por Afonso e Fernando. — Nem reparei que aqui estava. Não a julguei capaz de participar em desacatos.
— Desacatos? — questionou Fernando, indiferente a estar a falar com a figura máxima da Universidade. O director lançou-lhe um olhar gélido. — Os desacatos foram provocados pelos animais daquele indivíduo com quem o senhor professor esteve ali a conversar.
— Cale-se! Não estou a falar consigo.
Fernando não era de se deixar ficar, mas Afonso segurou-lhe um braço para que ele ficasse em silêncio.
O reitor voltou a dirigir a palavra à iraniana:
— A polícia vai escoltar a menina até à embaixada.
Shirin abanou a cabeça.
— No, no, no! Eu não deixar colegas. Estar com eles.
— Pois... Mas, como não quero que a sua presença aqui possa causar um incidente diplomático, peço-lhe que me acompanhe.
Shirin ia a recusar novamente, mas Afonso antecipou-se e disse‑lhe:
— É melhor ires. Sabemos que estás connosco. Mas, isto pode complicar-se e não há necessidade de envolver a diplomacia dos dois países.
Ela ficou parada alguns segundos, a olhar para ele. Depois, anuiu e virou-lhe as costas, acedendo a acompanhar o reitor.
Os estudantes atemorizados não sabiam como iriam sair dali. Muitos gostariam de estar na posição da iraniana que, devido ao seu estatuto diplomático, sairia sem problemas da Cidade Universitária. Lá fora, Filipe Macieira sorriu-lhe e pareceu querer aproximar-se para a acompanhar. Porém, ela fez um gesto de desprezo e recusou o que ele sugerira.
Os três continuaram a conversar. Era notório que se discutiam condições. O oficial dava ar de quem se contentava com as detenções que já fizera, enquanto Filipe mostrava o seu descontentamento e apontava para o edifício, não deixando dúvidas de que queria consequências para os restantes. Curioso como o tipo com menos estatuto do trio parecia ser o que comandava a situação. Por seu lado, o reitor revelava ser o que, contrariado, ainda ia defendendo os estudantes. Afinal, eles eram a razão da existência da Universidade.
Filipe falava de dedo em riste. Muitos jovens que formaram a contramanifestação já se tinham ido embora e somente uns quantos mais próximos do chefe da JNL permaneciam como uma espécie de guarda pretoriana de Macieira. O reitor ouvia, qual menino a ser repreendido, e assentia perante o olhar paciente do oficial da polícia. Por fim, também o reitor anuiu e concordou com algo que veio transmitir aos cercados.
Mantendo o seu ar altivo, o reitor entrou na reitoria e parou diante dos estudantes, demonstrando que ia falar. E aquilo que disse foi...
10.5
José Carlos, Carla e Inês estavam na estação de metropolitano do Campo Grande a aguardar notícias. Aguardavam ansiosos por novidades de Afonso que se comprometera a mantê-los a par do que sucedesse na reitoria.
Lá fora, a noite começava a cair. Eles estavam os três sentados num dos bancos do apeadeiro, em doloroso silêncio. Viram composições a chegar e a partir, pessoas a entrar e pessoas a sair. Receavam que algum agente do SIALE os tivesse seguido, mas não conseguiam afastar-se mais, sabendo o perigo que os amigos corriam naquele cerco policial.
— O que achas que lhe vão fazer? — questionou Carla.
— Não sei. — respondeu José Carlos, pensando na sua vice‑presidente.
— Achas que o SIALE...
— Não vamos pensar nisso.
Inês levantou-se do banco.
— Ainda bem que o Pedro está lá com eles. Quando nos perdemos, pensei que o tivessem apanhado.
Nesse momento, o telemóvel de José Carlos voltou a tocar.
— Então Afonso?
No outro lado da linha, a voz do amigo relatava os acontecimentos desde que haviam falado, culminando com as declarações do reitor ao regressar ao átrio.
— Não há outra hipótese, Afonso. — afirmou conciso. — A Maria e os nossos colegas estão nas mãos deles. E vocês estão aí cercados. Essa situação não pode permanecer assim indefinidamente. — Ouviu mais qualquer coisa que elas não conseguiram perceber. — Ok. Até já!
— Então? — questionaram ambas, assim que ele desligou.
José Carlos encarou-as com uma expressão sombria.
— O reitor informou que a polícia está receptiva a levantar o cerco e a não fazer detenções, se todos os líderes das associações estudantis apresentarem a demissão.
— Não... — suspirou Inês.
— E tu? — questionou Carla.
— Não tenho outra solução. Não posso sacrificá-los para manter a presidência.
— O reitor vai colocar gajos da JNL no vosso lugar. — lembrou Carla, como se ele não o soubesse.
— Sim... — concordou, agastado e até mesmo arrependido de ter organizado aquela manifestação. — Pelo menos não estão a exigir a nossa detenção.
— Vais voltar para lá? — Ele anuiu. — Vou contigo!
— Não, Carla. É perigoso. Vai para casa com a Inês. Eu ligo-te quando as coisas estiverem resolvidas.
Carla tentou insistir, mas ele não aceitou recusas e pediu-lhe que fosse para casa. Ela e Inês despediram-se dele e entraram na composição seguinte que seguiu a direcção da linha verde.
Sozinho, José Carlos sentiu-se derrotado. Tomara a iniciativa de entrar numa guerra e perdeu logo a primeira batalha. Apanhou o primeiro transporte na direcção contrária à delas. Era só uma estação. Os passageiros que com ele avançavam pelo túnel estavam longe de ter consciência do que lhe ia em mente e nem saberiam que ele era um dos responsáveis pela crise estudantil que as notícias espalhavam através dos seus espaços online e que certamente abririam os telejornais da hora de jantar.
Quando subiu as escadas para sair da estação do metropolitano da Cidade Universitária, a noite caíra por completo. Ponderou telefonar a Afonso para saber se era seguro aproximar-se sem garantias de que não seria detido, mas optou por não o fazer e encarar o destino de frente.
Havia mais luz que o habitual junto ao edifício da reitoria. Analisou a linha policial que cercava a estrutura comparando-a com um cerco a um banco assaltado, onde os bandidos haviam feito reféns. Não se aproximou em demasia até ficar perante a fachada frontal da reitoria, só aí encurtou o espaço que o separava da força policial.
Viu os colegas... Viu Maria... Estavam sentados na relva, algemados como comuns delinquentes e vigiados por polícias armados com armas automáticas. Era surreal... Tentou aproximar-se, mas um dos agentes apontou-lhe a arma e abanou a cabeça.
Retomando a aproximação ao cerco, José Carlos viu Filipe Macieira a conversar com os cúmplices da JNL a poucos metros dos polícias. Ele deve ter sentido o seu olhar, pois voltou-se e encarou-o com uma expressão de desafio sorridente. O primeiro polícia que o viu acercar-se da linha mandou-o parar com a mão esquerda levantada e segurando o coldre da pistola com a direita.
— Podem deixar passar! — ordenou Filipe. — Veio render-se!
José Carlos teve de engolir o sorriso triunfal do outro. Um pouco mais afastado, percebeu que um grupo de jornalistas filmava a cena. Na altura não o sabia, mas não fora o único a sofrer aquela humilhação. Todos os dirigentes estudantis, que não estivessem já na reitoria, percorreram aquele caminho.
O cordão policial abriu passagem e José Carlos subiu a escadaria. Quando entrou na reitoria, o reitor dirigiu-se a ele para o recriminar pela situação, só que os estudantes saudaram-no com aplausos, tal como haviam feito com todos os que o antecederam.
Todas as direcções se demitiram naquele início de noite. Nos noticiários televisivos, divulgou-se a notícia de que as associações estudantis haviam sido imaturas e irresponsáveis, causando o caos na Cidade Universitária e, em consequência disso, apresentaram a sua demissão como forma de assumirem a culpa. Nas redes sociais, a verdade proliferou clandestinamente.
Filipe Macieira assumiu a presidência da Associação de Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Outros comparsas da JNL ascenderam da mesma forma às respectivas associações. A JNL conquistava as associações académicas e as associações académicas perdiam os seus membros, pois a comunidade estudantil demarcou-se delas.
11.1
Um charuto cubano e um copo de whisky Jameson. O som da chuva miudinha a cair na noite escura a chegar aos ouvidos como uma melodia calmante. A luz interior reflectida na janela revelava os pontinhos húmidos que iam polvilhando os vidros. Raimundo Antunes repousava descontraidamente na poltrona do seu escritório, bebendo e fumando como se o tempo tivesse parado. Aquele era o seu lugar predilecto, o escritório de paredes forradas a estantes com centenas de livros. Eram essencialmente livros de História, biografias e outros volumes documentais. Raimundo era um apaixonado por literatura verídica, relatos históricos... Para si, era fundamental saber onde os outros falharam, porque perderam os derrotados, qual o momento em que a decisão errada levara ao declínio. Costumava dizer que se Hitler tivesse estudado Napoleão, não teria cometido o erro crasso de tentar conquistar a União Soviética quando ainda não tinha garantido a frente ocidental. Se o tivesse feito, segundo Raimundo, talvez o Mundo fosse agora um lugar melhor. Seria com essa perspectiva que também tinha muitos livros biográficos, conhecer as experiências de vida de pessoas, onde o seu volume de eleição era o relato da vida de Heinrich Himmler, um homem com quem se identificava, quase chegando a acreditar que era a sua reencarnação. Porém, tinha também outros que lhe aguçavam o engenho, tal como a biografia de Beria, o sanguinário chefe do KGB de Stalin, do qual também tinha um livro. Muitos livros da II Guerra Mundial, muitos ligados à vida e obra de nazis. Claro que tinha uma edição do Mein Kampf de Adolf Hitler. Admirava a inteligência da propaganda política de Goebbels, a forma como eles criaram a ideologia nacional-socialista e mobilizaram o povo alemão para a sua luta. Talvez tivessem sido as semelhanças com a doutrina criada por Pinto Henriques que o levaram a abraçar o projecto político do PNL. Outro dos seus ídolos era Eichmann, o "pai" do Holocausto, o responsável pelos campos de concentração e pela aniquilação de judeus.
Naquelas paredes poderia encontrar-se muita informação histórica e eram uma boa caracterização da personalidade e motivações do homem que vivia naquele lugar. Raimundo Antunes habitava uma moradia nos arredores da capital, fora da cidade, numa localidade pequena entre Lisboa e Sintra. A propriedade era suficientemente larga para que os escassos vizinhos ficassem longe da vista. Fora um lugar expropriado pelo seu poder ministerial, aquando da sua chegada ao governo. Vivia sozinho, mas o território era assegurado em todo o perímetro por elementos do SIALE que zelavam pela sua segurança.
Confortavelmente sentado na cadeira, observava as estantes com a luz do candeeiro a incidir no centro da sala, deixando-o na penumbra. Ouviu um automóvel a chegar, o som dos pneus a golpear a gravilha do caminho entre a entrada e a casa. Não desviou os olhos do livro que lia, relatos de experiências executadas por um médico nazi louco em Auschwitz. Conhecia cada som da sua casa, identificou o portão da garagem a abrir. Olhou para o relógio, pontual como sempre. Sabia quem era. O ruído do motor foi abafado pelo interior do edifício, tornando-se quase inaudível quando o portão se fechou. Depois... silêncio absoluto.
Despreocupado, Raimundo retomou a leitura. Quase ninguém tinha acesso à sua casa daquela forma. Os seguranças patrulhavam o terreno, mas não entravam no edifício. Se precisassem de falar com ele, telefonavam. Se houvesse mesmo necessidade de entrarem, tocavam à campainha e aguardavam que ele os ouvisse. A entrar daquela forma, apenas uma pessoa tinha esse estatuto, a pessoa em quem ele mais confiava.
Devem ter decorridos uns dez minutos silenciosos. Raimundo não os controlou, sabia que no devido momento ela apareceria no seu escritório. Nem um silvo mínimo denunciou a sua chegada, somente o bater leve na porta da divisão, solicitando a autorização.
— Entre! — concedeu sem tirar os olhos das folhas.
A porta abriu e por ela entrou uma mulher vestida de negro, camisola de gola alta negra, calças negras, botas negras e luvas negras. Tal negrume contrastava com o branco do seu cabelo lateralmente rapado e com uma poupa pontiaguda espetada para a direita. A tez era tão alva que se tornava difícil perceber onde terminava o branco do cabelo e começava o branco da pele. O rosto inexpressivo tinha olhos pequenos cinzentos, atentos, concentrados como os de um predador. A boca quase não tinha lábios. Era magra como uma tábua, mas longe de ser frágil. O seu nome era Vylka, mais conhecida por Tarântula, a agente mais mortífera do SIALE, uma assassina nata e besta de caça de Raimundo Antunes. Não disse uma palavra e permaneceu em sentido junto da porta.
— Trouxeste a mercadoria?
— Sim, senhor.
Raimundo marcou a página do livro e fechou-o, colocando-o de lado. Sentado na sua confortável poltrona encoberta na penumbra, disse:
— Tenho uma missão secreta para ti. — Ela olhou para ele. Tinha olhos de lince e parecia conseguir ver no escuro. — Senta-te!
Vylka deu um passo para a cadeira vazia e sentou-se. A pistola presa no cós das calças embateu nas costas da cadeira.
— Quero que arranjes meia dúzia de agentes de absoluta confiança. Não pode haver falhas. Têm de ser tipos dispostos a tudo e ninguém fora do grupo pode saber da vossa missão, nem mesmo dentro do SIALE. — Vylka assentiu inexpressivamente. — Vão ser um grupo terrorista sob o meu comando. Irão fazer ataques contra pessoas e interesses do PNL.
Apesar de toda a sua frieza, Vylka revelou uma expressão confusa.
— Contra o PNL? — questionou. Tinha uma voz feminina cavernosa.
— Sim. Supostamente serão um grupo de Lisboa que pretende enfrentar o regime através do terror e do medo. Tipos antinacionalismo lusitano, fieis a Lisboa e que nos querem castigar pela nossa política de descentralização e de retirada de poder à capital.
— E os alvos?
— A seu tempo, dar-te-ei instruções nesse sentido. Só respondes a mim, só acatas as minhas ordens. Logo que formes o grupo, tu e eles ficaram ausentes do SIALE, ficarão clandestinos durante as missões.
— E esse grupo tem nome?
Raimundo sorriu, os dentes a destacar-se no escuro, o tom foi medonho:
— MAL, Movimento Armado de Lisboa. — decidiu como uma ordem. — Queremos conotar a capital e os seus naturais aos actos terroristas que irás executar. Quanto mais horríveis forem, melhor. Quero que a opinião pública nos olhe com respeito, conscientes que temos vulnerabilidades, mas sem nos perderem o temor. E a seu tempo, irás "apagar" algumas vozes incómodas dentro do próprio PNL.
— Mais alguém saberá da nossa existência, doutor Antunes?
— Para além de mim, somente o primeiro-ministro. — informou. — Mas, a vossa identidade, só eu saberei. Escusado será dizer que, se algum de vocês for apanhado...
— ...o senhor desconhecerá a nossa existência. — completou ela.
Raimundo assentiu.
— Quanto tempo precisas para organizar as coisas?
— Uma semana.
O prazo pareceu enquadrar-se perfeitamente no planeamento de Raimundo Antunes. Tinha absoluta confiança nela e nas suas capacidades para executar um plano daqueles. Vylka era uma agente altamente qualificada e leal a si. Desejava honestamente que ela nunca fosse apanhada, pois lamentaria profundamente ter de a renegar.
Não quis pensar nessa eventualidade, optando por pensamentos mais agradáveis. Levantou-se da poltrona, sendo imediatamente imitado pela agente.
— A mercadoria?
— No lugar do costume.
Ele anuiu.
— Anda! — ordenou, abrindo a porta do escritório.
Vylka seguiu-o no seu característico marchar mecanizado. Caminharam pelo corredor silencioso, tendo Raimundo reparado que só ouvia os seus passos, a Tarântula não produzia mais que um leve silvo a deslocar-se.
Todo o ambiente era de penumbra, pequenos focos de luz iluminavam fracos o trajecto deles pela casa. Raimundo sentia sempre uma ansiedade saborosa a anteceder aqueles momentos, curiosidade em ver a mercadoria que Vylka trazia e preparava para belo prazer do seu chefe.
Ao fundo do corredor existia uma porta. Era uma porta em madeira com aspecto maciço e uma fechadura composta por um visor e botões com números. Raimundo inseriu o código de forma despreocupada, pois a única pessoa que conhecia os seis dígitos, para além dele, estava atrás de si. Abriu a porta que dava acesso a uma escadaria que descia. Lá em baixo, a claridade da luz branca que iluminava a cave.
— Deixaste a luz acesa. — admoestou ele.
A Tarântula ignorou o comentário e desceu na sua frente.
A cave era um espaço largo de paredes robustas e sem uma janela ou qualquer ponto por onde entrasse luz natural. Àquela hora não faria diferença, lá fora era noite e a chuva intensificara a escuridão.
Vylka parou após o último degrau e apontou para a mercadoria.
A mercadoria era uma mulher magra, quase esquelética, de cabelos negros compridos e rosto cadavérico. Não deveria ter mais de vinte anos, mas parecia ter trinta. A magreza acentuava o volume do peito. Vestia uma camisola justa de malha encarnada e calças igualmente justas de ganga azul. Estava descalça e os pés bem assentes no chão. Os braços estavam virados para cima, os pulsos ligados por algemas penduradas numa corrente no tecto. A Tarântula pendurara-a na medida exacta para que ficasse a tocar o chão. Os olhos assustados observavam‑nos, a boca proferia grunhidos que a tira de fita cola cinzenta absorvia e a impedia de verbalizar.
— Onde a arranjaste?
— Por aí...
— Puta?
— Não sei... Talvez. É toxicodependente. Andava a vaguear numa zona de drogados. — relatou Vylka. — São as presas mais fáceis e ninguém dá pela sua falta.
Raimundo sorriu.
— Aproveita para descansar um pouco, Vylka. Podes ficar no meu escritório. Bebe um whisky ou o que te apetecer. Quando terminar, vou lá ter contigo.
A Tarântula anuiu e subiu as escadas, indiferente ao que pudesse acontecer ali nos minutos seguintes.
11.3
Uma semana.
Conforme se havia comprometido, Vylka reuniu a sua equipa numa semana, cinco agentes confiáveis, para dar vida a um suposto grupo terrorista que pretendia combater a ideologia do PNL.
Raimundo Antunes ficou satisfeito com a eficiência da sua agente, nada que o surpreendesse, não fosse ela o seu melhor activo. Ligou a Filipe Macieira e ordenou-lhe que combinasse um encontro numa esplanada da Avenida da Liberdade com cinco elementos dispensáveis da JNL ao qual não deveria comparecer.
— Dispensáveis?
— Sim! Dispensáveis. — confirmou o MAI, um pouco agastado com a manifesta falta de inteligência que, por vezes, o outro revelava.
— Dispensáveis, como?
Raimundo ter-lhe-ia dado com o telemóvel, se o outro estivesse perto dele. Num tom rude, respondeu.
— Dispensáveis do género de se dispensarem que continuem a respirar.
Filipe percebeu.
A Primavera chegara, um dia bonito e ameno, como era costume em finais de Março, aquela sensação de calor a aproximar que nos fazia esquecer que teríamos de suportar muita chuva até ao Verão.
A tarde era de Sol, em Lisboa as pessoas circulavam pelas zonas mais promovidas pelas agências de viagens, turistas um pouco por todos os cantos da cidade. Na Avenida da Liberdade, as esplanadas enchiam-se de gente sedenta de desfrutar do Sol e de uma bebida fresca à sombra. Nos passeios largos, entre as faixas de alcatrão central e as laterais, conjuntos de mesas e cadeiras recebiam homens e mulheres, rapazes e raparigas, crianças... Numa dessas esplanadas, perto da Praça dos Restauradores, os cinco elementos da JNL convocados por Filipe Macieira bebiam cervejas e conversavam animadamente sem complexos em se meterem com estranhos e insultarem quem eles queriam. Infelizmente, não eram as únicas pessoas naquela esplanada.
Num recanto dos prédios da avenida, no passeio, encostada à parede de um edifício de escritórios, a Tarântula observava-os com atenção. Vestia de preto, como era habitual, e usava um boné negro para esconder o seu cabelo branco que causava sempre alguma curiosidade a quem via o seu rosto jovem. Os olhos pequenos e frios controlavam cada movimento. Sabia as ordens que tinha, mas, lá no fundo, remanescia um senso de humanidade que a fazia protelar a ordem, desejando que os anónimos à volta do alvo seguissem a sua vida. Isso não aconteceu. Não se podia dar ao luxo de continuar a esperar e deu a ordem.
Ninguém prestara atenção até se ouvirem os pneus de um Audi A6 chiarem na via mais estreita da avenida, resultado da travagem abrupta diante da esplanada. O condutor não se mexeu do seu lugar. O elemento a seu lado e os dois no banco traseiro abriram as respectivas portas e saíram. Usavam todos gorros que lhes cobriam a cabeça na totalidade à excepção das aberturas para os olhos, nariz e boca. Seguravam armas automáticas e apontaram-nas aos elementos da JNL que, completamente surpreendidos e apavorados, não tiveram qualquer reacção.
Os disparos provocaram o pânico geral. As pessoas começaram a fugir sem rumo certo, desesperadas em salvar-se. Os elementos a mando de Vylka alvejaram os alvos sem problemas em fazer danos colaterais, daí que, para além dos cinco "J" do PNL, mais dez pessoas ficaram feridas, três das quais com gravidade. Os atacantes certificaram-se que os alvos não sobreviviam ao ataque. Logo que tiveram essa certeza, voltaram a entrar no carro e este arrancou a toda a velocidade, avenida acima.
O acontecimento foi noticiado nas televisões que mostravam, em anexo à notícia, filmagens amadoras de testemunhas que documentaram com os seus telemóveis algo que nunca se vira em Portugal, um acto terrorista. Formularam-se inúmeras teorias, desde a probabilidade de o país ter entrado na lista de alvos de terroristas islâmicos à eventualidade de ter sido um ajuste de contas. A verdade chegou ao fim da tarde, um vídeo divulgado nas redes sociais e projectado nos telejornais à hora do jantar.
A imagem que foi amplamente repetida ao longo dos dias seguintes, mostrava três pessoas encapuçadas. Em fundo, um pano negro com três letras pintadas a vermelho de forma artesanal, um "M", um "A" e um "L".
— MAL, Movimento Armado de Lisboa. — foi assim que a voz do meio se apresentou. Era uma voz masculina. A Tarântula dispensava esse tipo de protagonismo e optou por ficar atrás da câmara. — Somos um grupo disposto a fazer frente pelas armas ao vergonhoso regime do PNL. — O discurso fora lido e aprovado por Raimundo Antunes. — Não estamos dispostos a continuar parados a assistir à forma vil como os nacionalistas lusitanos governam o nosso país. Vimos reivindicar o ataque desta tarde. Foi a nossa forma de castigar a JNL pela maneira como afastaram os nosso camaradas universitários da liderança das suas direcções estudantis. — Era o objectivo de conotar os estudantes do Ensino Superior com os terroristas, dando a entender que haviam optado por outras formas de luta mais agressivas que simples manifestações. — A partir de hoje, o PNL e os seus cães da JNL sabem que estamos de olho neles. E não hesitaremos em repetir o que executámos esta tarde. Viva a Liberdade! Viva Lisboa! Viva Portugal!
E o vídeo terminava com um ecrã negro e as letras "MAL - Movimento Armado de Lisboa" gravadas a vermelho.
O atentado matou os cinco elementos da JNL e mais duas pessoas que nada tinham a ver com o assunto. Alcançara o objectivo pretendido pelo PNL, conotar os terroristas com elementos sediados em Lisboa e com os estudantes universitários da capital. O MAL ganhou simpatia entre muitos populares que viam neles um foco de resistência ao regime cada vez mais fechado que o PNL pretendia instituir, sem saberem que estavam a cair numa armadilha. Até junto dos estudantes na Cidade Universitária, o MAL era visto com bons olhos e foram muitos os que se deixaram enganar.
Por outro lado, os Corvos estavam apreensivos, uma vez que as conotações com o grupo que se manifestara contra a nova lei da cidadania, semanas antes na escadaria da reitoria, colocava em perigo os antigos líderes das associações académicas. No caso, temiam que José Carlos pudesse ser detido pelo SIALE para averiguações e sugeriram-lhe que se escondesse por uns tempos. Só que José Carlos não suportava a ideia de se esconder de tipos reles como os gajos do SIALE ou recear Filipe Macieira e a escumalha da JNL. A sua única precaução foi limitar o seu contacto com Carla Maia à Faculdade de Direito, uma vez que se o detivessem aí não fariam mal à sua namorada... em princípio.
A forma como o governo encarou o ataque foi atípica. Pelo que se conhecia da forma de actuar do PNL, a população esperava uma invasão do SIALE às Universidades, uma caça às bruxas, a detenção de uns quantos suspeitos, mesmo que nada apontasse a eles. O PNL habituara o povo a reacções musculadas contra quem os enfrentava.
Porém, ao invés, Raimundo Antunes, como ministro tutelar da administração interna do país, apareceu nas televisões à noite a condenar o ataque, a lamentar os feridos e a transmitir as condolências às famílias dos mortos. Informou que destacara as autoridades para uma investigação profunda e rápida para que em breve os responsáveis fossem capturados e levados à Justiça. É óbvio que não fizeram nada disso e conduziram os inspectores da Polícia Judiciária a logros sucessivos numa investigação que não chegaria a lado nenhum. Por outro lado, colocavam informadores perto da comunicação social, fugas de informação que transmitiam a ideia que o PNL queria passar à população através dos jornalistas, ficando mesmo muito indignados quando chegava ao conhecimento geral factos da investigação que eles não queriam, quando tinham sido eles a torná-lo possível. Não deixava de ser curioso que as pessoas não se interrogassem como eram possíveis essas fugas numa realidade controlada pela censura do SIALE.
Houve diversas reacções ao atentado. O presidente Flávio de Melo apresentara-se diante dos jornalistas, no Palácio de Belém, para condenar de viva-voz o ataque e exigir o empenho das autoridades na perseguição e captura dos responsáveis, não deixando de alertar para os perigos destas situações advirem de políticas populistas e contrárias à tradição nacional.
Pinto Henriques também fez uma declaração, em complemento à anterior do seu MAI, condenando o ataque, lembrando as vidas jovens que se perderam, apontando o dedo a quem insistia em diabolizar o seu governo criando a passadeira para a entrada em cena destes grupos terroristas. Criticou a oposição por simplesmente existirem e atirou a farpa ao presidente do país, referindo que na perseguição de criminosos, o PNL não recebia lições de ninguém.
Os líderes parlamentares também não perderam tempo a reagir. Nos Passos Perdidos, à vez, cada líder de bancada veio ao encontro dos jornalistas para fazer uma declaração condenatória. Coube a Bruna Drake esse papel em representação do MPP. Ela não sabia quem eram, mas a sua motivação granjeava algum afecto no seu coração. Condenou o atentado e exigiu que as autoridades os capturassem, principalmente o SIALE que poderia finalmente demonstrar uma razão para existir.
— Por mais vil que seja um regime, por mais injusto, autoritário e ditatorial que seja um governo, nada justifica a morte de inocentes. — afirmou ela peremptória. — Nem de inocentes, nem de culpados. Só à Justiça cabe o julgamento. E na política, cabe aos eleitores fazerem juízos dos seus governantes pela arma do voto. O MPP condena de forma veemente este atentado, bem como a existência do autoproclamado Movimento Armado de Lisboa. E apelamos à sua dissolução, bem como a que os seus intervenientes se entreguem perante a Justiça para serem julgados pelos seus crimes.
Entretanto, as "fugas de informação" eram divulgadas pela comunicação social, dando conta de provas que associavam o MAL a ex‑dirigentes académicos e que o grupo era composto por jovens de Lisboa. Nas redes sociais circulavam muitas informações, a maior parte falsa, que manipulavam a opinião pública. Circulava a história de que os jovens da JNL assassinados no ataque eram naturais do Porto. Era verdade, Filipe Macieira escolhera-os com esse efeito. Isso acentuou a indignação do país contra a capital.
Mais histórias apareceram. Os cinco tipos que não passavam de marginais, alguns até já com cadastro, foram "pintados" como anjos, jovens que se preocupavam com a sua comunidade, praticavam o bem e tinham ambições de servir o seu país. Fossem lá contar essa história a Manuel que se recordava bem de um deles fazer parte do grupo que o expulsara da composição ferroviária por ser preto.
Começou-se a gerar uma tal crispação contra Lisboa, a qual já parecia estar a dar cobertura aos terroristas, tal era o chorrilho de mentiras propagadas pela mão invisível do PNL, que Diogo Pereira teve de vir a público indignar-se contra a conotação cega que se estava a fazer entre a capital e os terroristas.
E foi a partir daqui que começou a ganhar protagonismo Gomes Pinto, o presidente do governo regional de Entre Douro e Minho.
Gomes Pinto tinha quarenta e oito anos, era militante do PNL desde a sua criação e natural do Porto, onde conhecera o líder máximo do seu partido. Tinha um ar rude e modos boçais, não media as palavras e insultava sem pudor. A sua imagem era a de um homem com excesso de peso, enfiado em fatos formais que tinham dificuldade em o conter. Usava o cabelo penteado para trás e brilhante, gesticulava com os dedos engalanados com anéis de ouro e era comum vê-lo a fumar charuto. Após a declaração de Diogo Pereira, ele deu uma conferência de imprensa na sede do governo regional em que disse:
— Movimento Armado de Lisboa. Movimento Armado de Lisboa. Movimento Armado de Lisboa. — Sim, ele repetiu-o três vezes. — Será que ouviram? Ó Diogo! Diogo Pereira. Conotações cegas com Lisboa? C'um carago, homem. Você não sabe ler? O grupo é que se conota com Lisboa. — Fez uma expressão dorida. — Mataram cinco jovens. Assassinaram cinco almas de famílias do Norte, gente boa, gente que os educara para serem alguém, que os mandara para Lisboa na expectativa de terem os melhores estudos. Sim, porque apesar das nossas Universidades aqui, as oportunidades parecem ir todas para quem estuda na capital. — Abanou a cabeça com dramatismo. — E depois... Isto! — O seu rosto adoptou um semblante colérico. Deu um soco na mesa. — Há séculos, lutámos contra os mouros e vencemos. Se tivermos de lutar contra eles outra vez, cá estamos. E venceremos novamente.
Foram declarações muito fortes. Infelizmente, suficientemente apelativas a obter o apoio de muita gente que, enganada, julgava estar do lado dos justos. Por outro lado, a sul, também havia interessados em criar fissuras regionais. Instigado por Viriato Loureiro, o qual queria atirar achas para a fogueira do conflito regional, Octávio Simões veio condenar as palavras de Gomes Pinto, respondendo à letra para dizer:
— Não temos medo! Se um dia essa gente do Norte nos atacar, Lisboa defender-se-á.
Manuel Teixeira quis despedaçá-lo, quando ouviu aquilo. Aquela besta, aquele energúmeno, estava a prestar-se ao papel que o PNL queria. Claro que o líder do MPP desconhecia o acordo secreto que existia entre o seu deputado e os nacionalistas lusitanos. Por sua vontade, tinha-o demitido, mas isso iria dar um sinal de fraqueza e desentendimento no seu partido, já para não falar que poderia ser visto pelo seu eleitorado com subserviência ao Governo. Mesmo assim, Manuel Teixeira veio pôr "água na fervura", recordando que mais que ser lisboeta ou portuense, éramos todos portugueses.
Por fim, a guerrilha de palavras pareceu atenuar-se com as declarações de Flávio de Melo a apelar ao entendimento e a deixar que a Justiça fizesse o seu trabalho sem andar a procurar culpados indiscriminadamente. E finalizou com:
— Os portugueses não são pessoas com pensamentos redutores de encontrar males apenas com base na sua posição geográfica, tal como também não o fazemos resumindo todos os males a raças ou credos.
12.1
Ivo ia a caminho de mais um dia de trabalho. Era início de semana e o fim de semana não correra muito bem entre ele e Sónia. Deu por si a pensar em Anabela, a secretária cuja contratação autorizara para o lugar da saudosa Clotilde. A jovem começara a trabalhar no dia seguinte à entrevista, sob supervisão e formação de Clotilde, a qual se empenhou em a treinar para que estivesse ao nível daquilo que a futura pensionista fora.
Contudo, Ivo sentiu-se algo desiludido com a contratação. A Anabela da entrevista, a jovem de ar sedutor a dar ares de flirt tornara-se uma simples funcionária discreta sob a alçada da mais velha. Até a indumentária desiludira Ivo, já não a via de saia ou decote interessante, estava sempre de calças e camisa abotoada até ao colarinho. Concluiu que tudo não passara de uma jogada para conseguir o emprego e ele caíra que nem um patinho.
Clotilde, a sua assistente dos últimos anos, tivera uma festa de despedida no final da semana anterior, uma singela homenagem que os colegas organizaram. A meio da tarde, estava ele no seu gabinete, começou a ouvir muitas pessoas a falar, o que não era comum. Levantou‑se e veio espreitar fora do gabinete. Todas as pessoas que trabalhavam naquele piso tinham vindo ao gabinete de vidro dela com um bolo e tinham-na rodeado para uma justa homenagem. Clotilde agradeceu, mas ao ver o patrão fez um ar contrito e pediu:
— Desculpe, doutor Maia! Estamos a fazer muito barulho, não é?
— Nada disso. — respondeu ele, juntando-se ao grupo.
O bolo redondo tinha no topo a frase "Obrigado, Clotilde!". Ivo lamentou não ter tido aquela ideia, ela merecia-lhe essa atenção. Ficou irritado consigo por não ter pensado em nada, nem num simples ramo de flores em sinal de gratidão. Sim, ela sabia o quanto ele lhe era grato, mas mesmo assim, sentiu que falhara para com ela.
O bolo foi cortado às fatias por uma das secretárias de outro director, enquanto um jovem responsável pela distribuição de documentos da empresa abria uma garrafa de vinho espumante. Anabela ajudava com as taças de vidro, segurando-as junto ao gargalo da garrafa e entregado uma a cada um. Sorriu a Ivo, ao entregar-lhe a sua.
Foram ditas muitas palavras elogiosas, ao ponto de Clotilde não conseguir conter uma lágrima emotiva. Anabela deixou-se ficar ao lado de Ivo, quase como se quisesse habituar os presentes de que agora era ela a secretária dele. Ivo fez questão de adicionar o seu testemunho, também ele emotivo, uma vez que se estava a despedir do seu braço direito de muitos anos. Finalizou com um brinde partilhado por todos.
As buzinas no trânsito resgataram-no das lembranças. Aquilo fora na última sexta e, quando chegasse ao escritório, teria de enfrentar a realidade de que já não era Clotilde quem exercia funções no gabinete de vidro que antecedia o seu próprio gabinete.
Após estacionar o automóvel, saiu e percorreu o caminho de todos os dias, do estacionamento ao elevador, do piso -1 ao 4. Encarou o corredor ladeado de gabinetes envidraçados. Caminhou acenando como habitualmente, sentindo uma saudade intensa e quase desejando que, ao fundo do corredor, Clotilde continuasse no seu lugar de trabalho.
Claro que isso não aconteceu. Sentada no lugar ocupado por Clotilde estava Anabela. Ao vê-lo entrar, sorriu-lhe.
— Bom dia, Anabela! — cumprimentou, reparando na camisa formal abotoada na totalidade e com um laço simples no colarinho.
— Bom dia, doutor Maia!
Ivo entrou no seu gabinete privado a interrogar-se se teria feito a melhor escolha para substituta da sua saudosa Clotilde. Executou a rotina diária, deixou a pasta sobre o sofá, despiu o casaco que pendurou no cabide e sentou-se atrás da sua mesa de trabalho, permitindo-se virar‑lhe as costas e ficar a observar o rio Tejo da sua parede exterior envidraçada.
Tinha várias coisas a preocupá-lo. O desentendimento com Sónia na noite de Sábado, quando ele quis e ela voltou a recusar. Ficaram frios um com o outro, desde então. Depois, a preocupação com a filha mais velha, Carla que namorava um tipo que não lhe transmitia confiança. Ivo já o conhecera pessoalmente, desagradou-lhe a diferença de idades. Agora, soubera que estivera metido em confusões na Universidade de Lisboa a organizar manifestações e quase levara a filha a ser detida. Porém, tinha noção da sua impotência para impedir aquela relação. Se fizesse algum ultimato à filha, ela era bem capaz de sair de casa para viver com aquele gajo. Por fim, a mais nova, sempre com ar triste, alheada, pouco faladora. Não tinha namorado, o que era estranho, segundo ele. Bolas, com a idade dela já ele e a mãe faziam amor às escondidas dos pais de ambos. Pois... Fazer amor com Sónia era algo que agora parecia não passar de recordações.
Ouviu bater à porta.
Anabela entrou sorridente, revelando uma alegria genuína. Ivo deu por si menos deprimido ao reparar que ela voltara a usar saias de bainha acima dos joelhos. Aproximou-se da mesa dele e entregou-lhe uma pasta.
— É o contrato para a instalação de redes de comunicação da empresa de Oeiras. Tem uma reunião às dez. — Falava num tom sério profissional. — Pelas quinze marcou com o director financeiro.
— Obrigado, Anabela. — agradeceu, segurando a pasta.
Ela ficou parada a olhar para ele e acabou por dizer:
— Agora somos só nós os dois.
Ivo surpreendeu-se com aquelas palavras. Pensou tratar-se de um qualquer comentário brincalhão ou uma iniciativa de ser sedutora. Contudo, reparou no rosto sério, como se algo a incomodasse, uma certa insegurança no seu olhar.
— Espero estar à altura de tudo aquilo que espera de mim.
— Tenho a certeza que sim, Anabela.
Ela voltou a sorrir.
— Se precisar de mais alguma coisa, é só chamar, doutor Maia.
Ivo ficou a vê-la atravessar o gabinete sem se dar conta que lhe olhava directamente para o rabo. Recriminou-se ao tomar consciência disso. Apesar dos receios, simpatizava com ela. Sim, ela atraía-o, mas isso era algo que estava fora de cogitações. Ivo nunca seria infiel a Sónia. Anabela denotava ser uma boa rapariga e ele desejava sinceramente que ela se adaptasse bem e não tivesse necessidade de lhe procurar substituta.
O primeiro dia correu normalmente e fora tão atarefado que Ivo não teve tempo de fazer tudo aquilo que tinha em mãos. Quando deu pelas horas, passava quase uma para além do horário de expediente. Desde meio da tarde que não ouvira Anabela. Teria ela ido embora? Estava no seu direito. A curiosidade fê-lo levantar-se e ir espreitar à porta.
Anabela permanecia no seu lugar, o antigo posto de Clotilde. Sentiu a porta abrir e olhou para trás.
— Ainda cá está, Anabela?
— Sim. — confirmou com uma expressão de quem diz "estou aqui não estou?"
Ivo olhou para os outros gabinetes. Estavam vazios.
— Não precisa de ficar. Pode ir para casa, Anabela.
— Mas, o doutor ainda vai ficar. Pode precisar de alguma coisa.
Ele sorriu, recordando a conversa na entrevista. Dissera que quem fosse contratado teria de estar sempre disponível a qualquer hora, chegar cedo e sair tarde. Exagerara e ela levara-o a sério.
— Não preciso, Anabela. Obrigado pela sua disponibilidade, mas para primeiro dia sozinha, já está bom. — Sorriu-lhe. — Vá descansar.
Ela não o contrariou, pegou nas suas coisas, atirou-lhe um "até amanhã" e foi embora.
Para contentamento de Ivo, Anabela revelou-se uma excelente secretária. Organizada, trabalhadora, mantinha a sua agenda actualizada e começava a entrar nos métodos de trabalho a que ele estava habituado. Clotilde fizera uma excelente formação.
A primeira semana foi quase perfeita. O trabalho diário correu sobre rodas, concluíram-se processos, entraram encomendas, a reunião de análise de contas do trimestre tinha uma seta de subida acentuada. A segunda não fora tão boa e trouxe tantos problemas que Ivo teve vontade de atirar tudo pela janela.
Nada fora culpa de Anabela. Com ela, as coisas prosseguiam bem. Ivo deu por si nos momentos mais complicados a descontrair com o pensamento de que Anabela estava para lá da porta do seu gabinete e que a poderia chamar só para se satisfazer com o seu sorriso... e não só. Ela continuava a usar as saias curtas e largara a moda dos colarinhos com laço, trazendo agora as camisas com os primeiros botões desapertados.
A meio da semana, alguém fizera porcaria. O departamento comercial trocara duas propostas. Uma era de um excelente cliente que representava muitos milhares de euros de facturação, a outra era de um novo cliente que traria mais uns quantos milhares. O erro poderia custar à E.T.I.Mac os dois.
Ivo foi confrontado com o problema ao chegar pela manhã. Mal teve tempo de dar os "bons dias" a Anabela, já o director comercial aguardava por ele à porta do gabinete presidencial. Ivo evitou descarregar toda a raiva sobre ele, mas como director era a ele que cabia responder pelo incompetente que fizera "merda". Em situações de crise, Ivo não delegava, punha mãos à obra. Falou com os intervenientes, estudou hipóteses de resolução. Não foi almoçar, mas Anabela entrou no seu gabinete após o almoço com as sandes preferidas dele. Clotilde ensinara-a muito bem. Ao longo da tarde, precisou de a chamar uma dúzia de vezes, precisou que ela fosse levar papeis e ir buscar papeis, não só a outros directores como a outros pisos. Nunca o desiludiu, nem falhou. A cada minuto, Ivo tinha mais certeza que tomara a decisão correcta. Conseguiu marcar reunião com o cliente antigo, o qual aceitou conversar sobre o problema no gabinete do presidente da E.T.I.Mac ao fim da tarde.
A reunião foi complicada. Mesmo assim, Ivo teve noção da chegada da hora de fim de expediente. Pediu a um empresário cheio de formalidades que aguardasse um pouco. A reunião podia não dar em nada, mas não tinha de atrapalhar a vida da sua competente secretária.
— Anabela! — chamou num tom baixo para não se ouvir lá dentro. — Pode ir para casa.
Ela olhou para a porta, expectante, com a interrogação no olhar.
— Está a correr bem, não se preocupe. — respondeu ele, forçando um sorriso. — Pode ir para casa. Fez um excelente trabalho. Vá descansar.
— Eu prefiro ficar, doutor.
— Não é necessár...
— Somos uma equipa, doutor. Vou quando a situação estiver resolvida ou quando o senhor também for descansar.
Ele anuiu, disfarçando a satisfação pela atitude dela.
Quando ia para retomar a reunião, o seu telemóvel tocou. Era a filha mais nova a perguntar, certamente a pedido da mãe, se ele demorava muito. Ivo explicou que estava a trabalhar e que não sabia a que horas iria chegar. Não era comum ele ter aquelas "noitadas", mas já acontecera outras vezes.
Custara três horas, mas Ivo chegara a acordo com o cliente. Selaram as condições com um aperto de mão que seria oficializado por escrito no dia seguinte através dos departamentos legais respectivos.
Ivo acompanhou o empresário à porta. Este, ao ver a secretária ainda a trabalhar, atirou um sorriso cúmplice a Ivo.
Não, não é minha amante, é só uma excelente funcionária.
Foi o que tivera vontade de lhe dizer.
Atravessou com ele o corredor até ao elevador, onde se despediu com novo agradecimento por as negociações terem chegado a bom porto. Regressou confirmando que todos os gabinetes estavam vazios.
— Só cá estamos nós?
— Acho que sim, doutor. — respondeu ela, olhando para as divisões de vidro como se procurasse alguém.
Ivo entrou novamente na sua sala. Estava cansado, desejoso de voltar a casa e estender-se no sofá ou ir directamente para a cama.
Anabela veio atrás de si.
— Precisa de mais alguma coisa, doutor?
Ivo ia dizer que não, quando o telefone tocou. Ela pediu permissão para atender no telefone do patrão, ao invés de ir a correr à sua mesa. Ele permitiu. Ela atendeu e informou-o que era uma chamada do homem que acabara de sair. Ele atendeu.
Enquanto falava, Anabela ficou parada na sua frente, como se ainda esperasse a resposta à pergunta que antecedera o telefonema. Ivo fez-lhe sinal para que se sentasse no sofá. Ela assim fez, encostando-se e cruzando as magnificas pernas. Também estava cansada e deixou cair a cabeça para trás e fechou os olhos para relaxar.
Com o telefone encostada à orelha, Ivo cravou o olhar nela, percorrendo o seu corpo à distância, as pernas, o tronco com a camisa entreaberta sobre o peito...
— O que acha? — ouviu de súbito.
Ivo percebeu que não estava a dar atenção ao homem.
— Peço desculpa, tive um corte e não percebi.
— Perguntava o que acha de jogarmos uma partida de golfe no fim de semana.
Nunca jogara golfe na vida, nem tinha interesse em começar.
— Agradeço o convite, mas terá de ficar para outra oportunidade.
O outro lamentou e despediu-se, tornando a confirmar a formalização do contrato para o dia seguinte. Ivo desligou.
Ao perceber o fim da conversa, Anabela abriu os olhos e colocou‑se em pé, resgatando a postura profissional e aguardado nova ordem ou dispensa.
— Com tudo isto, nem jantámos. — lembrou ele, levantando-se da sua cadeira. Sorriu-lhe. — Sinto que hoje abusei de si.
— Não diga isso, doutor. Foi uma opção minha da qual não me arrependo. — O tom era muito profissional. — Se não precisar mais de mim...
— Oh... sim, claro. Quer dizer, não. Pode ir, Anabela. E mais uma vez obrigado.
Ela anuiu e afastou-se para a porta.
Ivo vestiu o casaco e pegou na pasta com uma sensação de que algo estava a falhar. Ele estava a falhar. Avançou pelo gabinete ainda a tempo de sair e ver Anabela com a mala ao ombro a afastar-se.
— Anabela!
Ela voltou-se com aquela expressão a que o habituara de confiança e disponibilidade. O rosto simpático com a franja muito direita sobre as sobrancelhas sorria.
— Sim, doutor?
— Se quiser posso dar-lhe boleia até casa. Já é tarde...
— Não vale a pena incomodar-se, doutor. — declinou. — Ainda vou passar ali no café e comer qualquer coisa.
Num impulso, talvez precipitado, Ivo sugeriu:
— Quer jantar comigo? É o mínimo que posso fazer...
— Doutor Maia, não precisa de se sentir nessa obrigação.
— Não é obrigação. Já estava a pensar ir comer a um restaurante, antes de ir para casa. Não me apetece chegar a casa e andar à pesca no frigorífico. — O mais certo era ter o resto do jantar à espera em casa. — Não me quer fazer companhia?
12.2
A hora tardia resultava num ambiente calmo no restaurante quase vazio. O ambiente era tranquilo e notava-se nos funcionários a descompressão após mais uma refeição movimentada. Ivo e Anabela estavam sentados numa mesa ao canto do espaço, só mais três mesas entre umas trinta tinham clientes.
Anabela aceitara o convite com agrado e surpresa, uma vez que notava no patrão a preocupação em manter alguma distância, deixar sempre bem expresso que eram duas pessoas com uma relação estritamente profissional. Acompanhara-o no elevador sentindo que ele se mostrava descomprimido, diferente do patrão do dia-a-dia, talvez em resultado de um dia tão extenuante. Convidou-a a entrar no seu carro, apontando-lhe a porta do pendura. Não, não tivera uma interpretação cavalheiresca de lhe abrir a porta. Ela entrou, sentindo a saia subir em demasia, mas não se preocupou em a ajustar. Sabia que ele gostava de olhar para as pernas dela e não se importava com isso.
Ivo tinha receio de dar uma impressão errada, por isso, apesar de a tratar com gentileza e simpatia acima do habitual, preocupava-se em manter alguma distância. Gostava dela, gostava como se gosta de uma pessoa simpática com quem a relação profissional flui de forma afinada. Estava deveras satisfeito por a ter contratado. Mesmo assim, não queria dar qualquer sinal errado. E se estivesse mais alguém na empresa, para além do segurança que guardava o edifício durante a noite, não teria feito aquele convite. Odiava mexericos. Ao entrar no carro, o seu olhar foi absorvido pelas pernas dela, cruzadas com as coxas mais expostas que o habitual. Disfarçou e evitou olhar para ela.
O trajecto foi curto, o restaurante era perto, quase que poderiam ir a pé, ficava ao início da Avenida D. João II no Parque das Nações. Contudo, não valeria a pena retornar ao escritório só para ir buscar o automóvel.
Escolheram algo leve, só para aconchegar o estômago. O empregado levou o pedido e deixou-os a olhar um para o outro sem saberem muito bem o que dizer. A Ivo parecia inapropriado falar de trabalho, tinham os dias inteiros para isso. Anabela sorria e aguardava que ele tomasse a iniciativa do assunto.
— Dia complicado, o de hoje. — acabou ele por dizer.
— Pois foi, doutor Maia. — concordou ela sem nada melhor para responder.
Ivo sorriu, deixando-se levar pelo ambiente apaziguador e descontracção do momento.
— Fora do escritório, pode tratar-me por Ivo, Anabela.
Ela anuiu.
— Foi um dia complicado que felizmente se resolveu bem. A Anabela esteve muito bem. Estou muito satisfeito por a ter escolhido.
— Obrigada, doutor... — interrompeu-se, fazendo uma expressão envergonhada. — Obrigada, Ivo.
— A Clotilde ensinou-a bem.
— A Clotilde foi uma professora excelente. — concordou ela. Sorriu com a lembrança dos tempos de formação. — Posso contar-lhe uma coisa? — A pergunta não pretendia resposta. Mesmo assim, Ivo anuiu. — A primeira coisa que a Clotilde me disse, quando comecei, foi para não usar saias tão curtas. — Encolheu os ombros. — Segundo ela, são curtas. Disse-me que o doutor... que o Ivo não gostaria que a sua secretária se vestisse assim, por isso, teria de trazer saias mais compridas ou calças.
— Não me faz diferença, Anabela. — mentiu.
— Não achei que o incomodasse, por isso, depois de a Clotilde se reformar, voltei a vestir-me como me sinto bem. — confessou com segurança. — De certeza que, se estivesse errada, o Ivo me chamaria a atenção. — Fez um ar sério. — Por favor, Ivo, se houver algo que ache que não estou a fazer bem... Prefiro que me diga, a sério. Não quero que haja nada que nos faça sentir desconfortáveis. Gosto muito de trabalhar consigo.
O empregado trouxe o jantar. Ivo pediu um vinho para acompanhar, mas Anabela declinou a sugestão e preferiu água. Invariavelmente acabaram a conversar sobre trabalho ao longo da refeição. Ainda não haviam descoberto nenhum assunto em comum para além da actividade profissional diária.
Ivo pagou a conta após a tímida tentativa de Anabela em que a partilhassem.
— Posso levá-la a casa... — sugeriu, vestindo o casaco.
— Não quero dar-lhe esse incómodo, dout... Ivo. — recusou com um sorriso. — Pode deixar-me na Estação Oriente, eu apanho um autocarro.
— Vive longe?
— Perto da Avenida do Brasil.
— Fica-me em caminho. Eu levo-a a casa.
Saíram do restaurante para uma avenida deserta de gente. Caminharam em silêncio até ao carro. Anabela voltou a sentar-se sem preocupação com a bainha da saia. Desta vez, Ivo já estava preparado e entrou sem olhar para ela.
Anabela vivia num prédio ao início de uma rua de sentido único ao cimo da Avenida do Brasil, a caminho da Rotunda do Relógio e com vista para o Parque José Gomes Ferreira. Àquela hora da noite, a meio da semana, o trânsito era mínimo e na rua dela não se via vivalma. Ivo parou defronte do prédio que ela lhe indicou.
— Obrigada pela boleia, Ivo.
— Obrigado pelo dia de hoje, Anabela.
— Bom, vou andando. — disse ela, colocando a mão no puxador da porta. — Não quero atrasá-lo mais. Com certeza, quererá aproveitar o resto da noite para estar com a sua esposa.
Foi mais forte que ele. Ou talvez se sentisse tão confortável que se permitiu àquele sorriso triste, aquela expressão denunciante de que nem tudo iria bem no casamento. Ela percebeu. E ele percebeu que ela percebera.
— Quer subir? — convidou sem hesitação. — Podemos conversar mais um pouco, se não quiser ir já para casa.
— É melhor não. — recusou com uma expressão terna e grata pela oferta.
Anabela não se moveu. A mão continuava no puxador, mas os olhos cravavam-se nos dele. Ivo não soube interpretar o que lhe ia em mente, nem como reagir. Estaria criado um impasse?
— Recorda-se da entrevista que me fez? — questionou ela num tom seguro, decidido. Ele assentiu, evitando falar para não denunciar o desconforto sentido que não deixava de ser agradável. — Disse-lhe que estaria totalmente disponível para si.
— Sim... recordo-me. — confirmou, engolindo em seco sem saber muito bem como queria que aquilo terminasse.
Ela colocou uma mão no seu braço.
— Quando lhe disse isso, não estava a mentir ou a tentar enganá‑lo. Não imagina a situação em que estava, quando fui àquela entrevista. — Olhou para o exterior para o prédio. — Uma situação financeira muito complicada. — Tornou a olhar para ele. — Sei que me pus à sua mercê, mas estava desesperada. Talvez até lhe tenha dado uma ideia errada de mim... como mulher. — Ele abanou a cabeça, evitando pensar nas considerações que tirara para si. — O senhor... O Ivo poderia ter tirado proveito disso. Não o fez. E agradeço-lhe por isso. — Sorriu sincera. — Mas, não o enganei nem menti. — repetiu, largando o puxador e passando a mão distraidamente no peito. — Estou totalmente disponível para tudo o que precisar. — Olhou-o de tal forma que Ivo se sentiu trespassado. — Tudo mesmo! Tudo aquilo que quiser de mim.
Ivo tornou a engolir em seco e não foi capaz de continuar a encará-la.
— Sou um homem casado, Anabela. — acabou por dizer, como se ela não o soubesse.
— Não pretendo meter-me no meio de nenhum casamento, Ivo. — retorquiu com seriedade. — Não quero intrometer-me entre si e a sua esposa. — Sorriu sedutora, apesar de ele evitar olhá-la e permanecer com o rosto virado para a frente. — Estou a dizer-lhe que estou disponível para lhe dar algo que possa estar a sentir falta neste momento.
Não sabia porque lhe haveria de faltar coragem, por isso, respirou fundo e tornou a encarar-lhe os olhos expressivos carinhosos.
— Temos uma relação profissional. Não me parece que fosse correcto... — Esboçou um sorriso meio envergonhado. — Percebo o que me propõe e... Acredite! Agradeço-lhe sinceramente. — Não conseguiu evitar observar as pernas dela, sentindo-se estúpido por não aproveitar. — Sou seu chefe. Não considerando o errado de estar a trair a minha mulher, isso poderia prejudicar a nossa relação na empresa.
Anabela abanou a cabeça, discordando.
— Sei ser discreta, Ivo.
— É melhor não ter de se preocupar em o ser. — contrapôs. — Vemo-nos amanhã na empresa, Anabela.
Ela percebeu o tom de despedida e tornou a segurar o puxador, abrindo a porta e dizendo:
— Até amanhã, Ivo!
12.3
Sónia chegara a casa cansada como era normal, mas com um peso arrasador na alma. Não costumava chegar tão tarde e contava encontrar o marido na sala. Ele também ainda não tinha chegado, talvez fosse melhor assim, receava que ele lhe lesse no rosto aquilo que ela queria esconder. Ouviu movimento em casa, percebendo que as filhas estavam cada uma no seu quarto. Atirou um "Olá! Cheguei!", mas não teve resposta. Caminhou até à porta do quarto de Carla e bateu. Encontrou a filha em pijama, concentrada no computador, falava com o namorado. Acenou-lhe a confirmar que a vira. Sónia não interrompeu, pois estava a par do inconformismo dela pelo afastamento do namorado que não a queria colocar em risco e limitara os seus encontros à Faculdade. Por um lado, lamentava a situação, mas por outro sentia-se grata por a filha não ter voltado a dormir em casa dele. Prosseguiu para o outro quarto, bateu na porta aberta. Viu Paula deitada na cama a ouvir música e a ler. Também a filha mais nova parecia triste, mais triste que o habitual. Desconfiou que poderia estar apaixonada. Benedita saberia responder à sua interrogação, mas jamais lhe perguntaria. Se queria mesmo uma resposta, colocaria a pergunta directamente à filha. Porém, não seria naquele momento, tinha coisas mais complicadas a perturbar-lhe a mente.
— Vou tomar um banho. Podes ligar ao teu pai para saber se ele ainda demora?
Paula acatou o pedido.
Sónia desviou-se para o seu próprio quarto e fechou a porta. Pensou em Ivo e sentiu um golpe profundo no peito. Errara. Errara muito. Como fora capaz? Despiu a roupa até só restarem as cuecas. Tinha vontade de queimar todas as peças. Caminhou para a casa de banho, tirou as cuecas e sentou-se na sanita. Olhou para o tecido rendado e pareceu sentir-lhe um cheiro que não era seu. Deitou-as no lixo. Fora tão errado... Como pudera fazê-lo? Aliviou-se como se estivesse a expulsar resíduos que nunca existiram, também não era assim tão estúpida. Limpou-se. Carregou no botão do autoclismo e entrou no duche. Abriu o chuveiro, temperou a água e colocou-se por baixo do fluxo morno, fechando os olhos e desejando que a água lhe lavasse os pecados.
Já teria sido muito mau se fosse só um beijo, mas ultrapassável. Mesmo que lhe tivesse tocado ou ela tocado nele... Talvez se pudesse perdoar. Só que não foi só isso. Ela permitira que o seu aluno, o candidato a médico que o colega lhe pedira para acompanhar, a beijasse, a tocasse, a despisse e... Não havia como contornar o que acontecera, ele fodera-a, ela fodera-o, tinham fodido loucamente, escondidos num sector pouco utilizado do departamento de Neurologia. E pior, ela gostara.
Só que agora vinha o arrependimento, a sensação de traição, a noção de que agira mal. Saciado o desejo pelo jovem bonito e atraente, o prazer esfumara-se e a dolorosa constatação da realidade mostrava-lhe o erro horrível que cometera. Pelo menos, tivera o discernimento de encontrar uma caixa de preservativos na estante de um armário. Talvez tivesse sido melhor que ali não estivesse, talvez isso a tivesse travado ou talvez, e muito provavelmente, agora estivesse a juntar às preocupações a possibilidade de ter algo dele dentro dela. Bom, pelo menos essa preocupação não tinha.
Deixou a água correr, ensaboou-se duas vezes com o gel de banho, encardida de pecado, emporcalhada de traição. Não conseguia deixar de pensar em Sebastião, o rapaz com idade para ser seu filho que tinha tudo o que ela gostava num homem e com o atractivo da juventude. Senti-lo vir-se dentro de si deu-lhe uma sensação de jovialidade, não tinha um orgasmo daqueles há anos. Seria por competência dele? Não, fora apenas pela sensação de perigo, pela noção de pecado.
Saiu do duche e enrolou-se numa toalha. Pareceu-lhe ouvir um barulho. Seria Ivo que acabara de chegar? Não, o quarto estava vazio. Deveria ter ponderado melhor os prós e os contras. Fez tudo errado. Não se atrevia sequer a pensar em tudo o que colocara em causa por um momento de prazer.
Vestiu um pijama, gostava de andar à vontade em casa. Pensou nos tempos em que Carla nem um ano tinha e Paula nem estava a ser ponderada. Naquela altura, durante o Verão, gostava de andar pela casa em cuecas e t-shirt para provocar o marido. À conta disso, não havia uma divisão da casa onde não se tivessem amado. Agora, esse amor parecia ter esfriado. E ela, ao invés de procurar reavivar a chama, comportara-se como se a quisesse apagar de vez. Mas, não queria...
Sónia amava Ivo, continuava a amá-lo como na primeira vez. Só sentia que o sexo não era tão gratificante como antes, mas... Bolas, isso não é razão para se amar menos alguém. Deveriam ter falado, terem-se confrontado com a situação, enfrentando-a com o mesmo amor com que construíram tudo ao logo da vida comum.
Bateram na porta. Paula entrou.
— Liguei ao pai. Diz que está numa reunião complicada e não sabe a que horas chega. Disse para irmos jantando sem ele.
Sónia anuiu e a filha desapareceu com a mesma velocidade com que entrara. Sentou-se na cama. Deveria contar-lhe? De que serviria? Acabar de vez com tudo? Sim, seria certamente a consequência natural de assumir que fora uma adúltera. Será que ele alguma vez fora? Agora, lamentava que não tivesse sido, só para que pudesse ter um trunfo para se manterem unidos. Não, não acreditava que Ivo fosse capaz de a atraiçoar. Ele era um homem com H grande e ela... Não queria pensar nisso.
Não, não iria contar-lhe e desejava profundamente que ele não lhe lesse no olhar o seu pecado. Tentaria compensá-lo. A primeira coisa a fazer seria pôr um ponto final naquela espécie de filme de má qualidade que começara a realizar no hospital com o candidato a médico. Estava decidida, na manhã seguinte, a falar com ele e a dizer-lhe que aquilo não se voltaria a repetir. E se ele não concordasse, teria de encontrar outra mentora.
Ninguém pareceu ter apetite durante o jantar. Quase não se falou e as filhas abandonaram-na na sala, preferindo enterrar-se no seu mundo dentro dos respectivos quartos. Para se distrair, arrumou a cozinha sem exigir a ajuda de Carla ou Paula. Queria ter a mente ocupada.
Ivo nunca mais chegava. Que raio de dia ele escolhera para chegar tarde. Cada minuto passado era um minuto em que ela via o seu receio crescer. Estava convencida de que ele lhe leria a traição na face. Imaginava-o a entrar em casa, olhar para ela e dizer "como foste capaz?"
Não, essa era a pergunta que ela fazia a si própria.
Gostava que ele tivesse vindo à hora normal. Procuraria despachar a refeição e as tarefas rapidamente para que fossem para o quarto cedo. Iria fazer amor com ele como forma de apagar a presença de outro homem no seu corpo. Assustou-se. Será que se notaria? Seria possível que o marido notasse que outro homem estivera dentro dela? Estava a ser idiota, mas o receio não a abandonou.
Ivo chegou muito tarde e extremamente cansado. Ela já estava na cama. Ele entrou no quarto e sorriu-lhe com carinho. Não, ele não parecia ter detectado nada. Deu-lhe um beijo e foi trocar a roupa do dia pelo pijama. Sónia estava nervosa. Deveria tentar... Teve medo. Será que o seu corpo cheirava a outro homem? Talvez fosse melhor deixar passar alguns dias.
Ele não fazia a mínima ideia do turbilhão de pensamentos que iam na cabeça da esposa. Estava cansado e sentia-se estúpido pela "nega" que dera a Anabela. No entanto, também se sentia orgulhoso de se ter mantido fiel à mulher que amava. Deitou-se na cama, beijou-lhe os lábios num voto de boas noites e virou-se para o lado para adormecer quase de imediato.
Sónia dormiu muito mal nessa noite. Peso na consciência ou simples ansiedade por resolver as coisas, o que quer que fosse não lhe permitiu descansar decentemente. Na manhã seguinte, estava com uma imagem agastada que deixou Ivo preocupado.
— Não sei porquê, custou-me a adormecer. — justificou. — Acho que tanto cansaço me deixou incapaz de descansar decentemente. — Fez uma expressão resoluta. — O fim de semana está a chegar, aproveitarei para pôr o sono em dia.
Não seria fácil encarar o jovem assistente, o aluno de Medicina que o seu irritante colega lhe delegara. Se ele soubesse... Não deixaria de ter alguma piada, um puto com pouco mais de um terço da idade dele conseguira em poucos dias dela aquilo que o outro em anos nunca tivera um vislumbre. Contudo, isso não interessava, o importante era colocar um ponto final, incondicional e sem retorno ao que acontecera na tarde anterior.
Chegou ao Hospital de Santa Maria à hora do costume. Percorreu todas as etapas que se repetiam diariamente na sua vida profissional. Entrou no gabinete confiante, madura, decidida.
É um miúdo, Sónia, quando nasceu já eras médica.
Quando chegasse, dar-lhe-ia um sermão, explicaria como tudo fora errado, falaria como se ele tivesse seis ou sete anos e ela fosse a sua professora primária.
Não se voltará a repetir! E se não consegues viver com isso, encontrarei alguém para me substituir.
Sebastião chegou ao seu gabinete. Trazia uma expressão preocupada e entrou com urgência.
— Bom dia, doutora Sónia! — cumprimentou com a formalidade de quem parecia não se lembrar que na tarde anterior a "doutora Sónia" se viera com ele dentro de si. Aquela postura pareceu aborrecê-la. — Por favor, pode vir comigo? É um assunto urgente.
Preocupada com a ansiedade dele, Sónia seguiu-o pelo corredor. Ele caminhava um passo à frente, sério, atravessando os espaços com decisão. Que raio? Que teria acontecido? Viu-o desviar para um sector mais calmo. Porque estavam a regressar ao antro de pecado da tarde anterior? Ia fazer a pergunta, quando ele abriu a porta do armazém com estantes e armários, a puxou e a encostou à parede. Beijou-a nos lábios. Ela não protestou. O toque parecia ter apagado tudo o que ela planeara dizer e fazer quando o visse. Sentiu as mãos dele no seu peito. Não devia fazer aquilo! Merda! Era tão bom... Se já fizera uma vez, podia fazer outra e depois estava tudo terminado. Ele baixou as calças e ela esticou o braço para a estante das borrachas que evitavam males maiores. Enfiou-lho atabalhoadamente, vendo-o por entre as mãos que lhe afagavam os seios. Ele virou-a para a parede, baixou-lhe as calças... E Sónia voltou a ter um orgasmo extraordinário.
12.4
Ivo chegou ao escritório pela manhã, questionando-se se a noite anterior alteraria a relação profissional que tinha vindo a construir com a sua secretária. Apesar de querer que tudo se mantivesse como antes, com as devidas distâncias, Ivo sentia um certo calor por a encontrar.
— Bom dia, Anabela! — cumprimentou da mesma forma que sempre fizera.
— Bom dia, doutor Maia! — retribuiu com a postura profissional de todos os dias.
Ivo entrou no seu gabinete. Mala no sofá, casaco no cabide. Anabela seguiu-o para o gabinete e fechou a porta. Por momentos, ele esperou que ela se comportasse de maneira diferente, depois do jantar e da conversa que haviam tido na noite anterior. Porém, isso não aconteceu. Anabela falou num tom assertivo e informou-o da agenda para aquele dia. De facto, ela sabia ser discreta. Mas, também não acontecera nada para além de um jantar e uma conversa informal dentro do seu carro à porta da casa dela.
Não voltaram a acontecer tardes a prolongarem-se para a noite até ao final da semana. E Anabela saiu do emprego à hora normal. Nem por um instante, se falou do que quer que fosse para além de trabalho. Isso descansava-o e sentia-se grato por ela perceber e actuar em conformidade com as suas expectativas. Na sexta, desejou-lhe um bom fim de semana e recomendou-lhe que descansasse e aproveitasse o tempo com a família.
Ivo decidiu seguir o seu conselho.
Contudo, as coisas em casa não iam muito bem.
Na noite em que chegara muito tarde, sem perceber muito bem porquê, notara Sónia estranha e quase julgou pelo seu olhar que, quando ele se deitou, ela talvez quisesse fazer amor com ele. Mas, estava tão cansado... Ela também não insistiu. Aliás, ela não teve nenhuma iniciativa, tudo não passou de uma suspeita dele. O que o deixou mais confuso foi o facto de ela se revelar mais distante nos dias seguintes, morna com ele em família e fria no quarto.
Começou a pensar se teria feito algo errado. Será que Sónia vira a sua secretária? Já lhe contara que contratara uma rapariga para o lugar de Clotilde, mas evitou pormenores acerca da figura da jovem. Também não lhe contara que chegara mais tarde que aquilo que a reunião exigira porque fora jantar com a sua secretária. Teria ela sabido disso? Como? Não era possível. Teria suspeitado de que pudesse haver algo? Inúmeras questões se levantaram na sua mente sem que nenhuma o levasse a qualquer conclusão. Longe de suspeitar que o problema não era ele, mas ela, a qual desistira de afastar o aluno de Medicina e continuava a repetir as sessões na sala pouco frequentada onde se guardava equipamento médico no piso dedicado à Neurologia e onde Sónia Maia era directora.
No sábado à noite, quando ambos foram para a cama, Ivo procurou-a entre os lençóis. Tinha tantas saudades de a amar que se sentia a rebentar. Abraçou-a com carinho, aninhando-se nas suas costas. Ela não o afastou. Contudo, ao sentir algo crescer lá em baixo e uma mão procurar o interior do seu pijama, Sónia repeliu-o sem contemplações.
— Não me apetece, amor. Estou cansada.
Cansada? Estivera o sábado inteiro completamente desocupada. Cansada com o quê? Voltou a insistir, acariciando-lhe as costas e pressionando-se contra ela. Sónia tornou a rejeitá-lo e num tom firme, disse:
— Já te disse que não apetece!
Ivo não insistiu e virou-se para o outro lado, aborrecido. Teve dificuldade em adormecer, mais pela irritação resultante da postura da esposa do que pela excitação que não pudera saciar.
Na manhã seguinte, acordou cedo de uma noite de sono intermitente. Sónia dormia profundamente. Levantou-se com a mesma irritação com que adormecera. Foi tomar um duche. Vestiu umas calças de ganga e um pulôver de malha. Saiu do quarto e foi à cozinha preparar algo para o pequeno-almoço. O resto da família dormia. A seguir, deixou-se ficar na sala com o tablet na mão a ler as notícias.
Sónia apareceu na sala meia hora depois. Vinha em pijama com o cabelo desgrenhado e o rosto estremunhado.
— Bom dia, amor! — cumprimentou.
— Bom dia. — retribuiu ele.
Trocaram um beijo distante.
— Levantaste-te cedo. — referiu ela com um sorriso. — Esqueceste-te que era Domingo?
— Não.
Sónia percebeu a forma fria como ele lhe falava. Sabia que era consequência da sua recusa. Aquilo passava-lhe.
— Vou tomar um banho. Queres ir almoçar fora? — sugeriu, olhando pela janela. Estava Sol e o céu azul convidava a um passeio. — Está um belo dia. Podíamos ir...
— Não posso. — atalhou ele sem tirar os olhos do ecrã. — Tenho um encontro com um cliente. Convidou-me para jogar golfe.
Sónia fez uma expressão de confusão.
— Desde quando jogas golfe?
— Não jogo. E disse-lhe isso. Mas ele insistiu. É um bom cliente e uma oportunidade para novos negócios.
— Bom... Está bem. Vou ver se as miúdas querem ir.
Ivo não estava com a mínima vontade de ficar em casa. Não deixara de amar a mulher, mas queria retaliar as constantes recusas dela. Bolas, quando fora a última vez?
Saiu de casa com as chaves do carro na mão. Desceu no elevador até ao piso das garagens. Não sabia muito bem como aquilo iria correr. Só sabia que queria afastar-se dali. Entrou no carro, ligou a ignição e saiu com cautela, atravessando o passeio para entrar na avenida.
Ao contrário do que acontecia nos dias úteis, ao fim de semana era fácil entrar no trânsito escasso. Conduziu pela avenida ainda com dúvidas se deveria fazê-lo, se deveria pegar no telemóvel para lhe ligar ou acabar mesmo por ligar antes para o tal cliente e saber se este ainda mantinha o convite para o golfe. Ponderou.
Que se foda o golfe!
Ao volante do Audi, circulou até à Praça de Londres e virou para a Avenida Guerra Junqueiro. Para sua surpresa, havia um lugar vago. Estacionou. Subiu o passeio largo numa passada calma e sentou-se na esplanada da Pastelaria Mexicana. Pediu um café. Por fim, decidiu-se. Pegou no telemóvel e marcou o número. Ouviu tocar uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes. Estava certo de que iria para o voicemail, quando uma voz ensonada atendeu:
— Estou?
— Bom dia, Anabela!
Notou a surpresa no outro lado e a alteração da voz, buscando aquele tom profissional diário.
— Bom dia, doutor Maia! — retribuiu, mais desperta.
— Não estou no escritório. — informou bem-humorado. — E também não me parece que a Anabela esteja.
Ouviu-a sorrir.
— Não, Ivo, não estou.
— Acordei-a?
— É Domingo de manhã.
— Peço desculpa, não a queria incomodar.
— Não incomoda, dou... Ivo. O que quero dizer é que, ao Domingo, não costumo sair da cama antes do meio-dia.
— Então, mais uma vez, peço desculpa.
— Não peça! — insistiu já com um tom mais vivo. — Aconteceu alguma coisa? Precisa que vá ao escritório?
— Não, não. Nada disso.
Ficaram em silêncio.
Ivo imaginou a estranheza que deveria pairar no outro lado da linha.
— Quer ir dar um passeio?
— Um passeio? — repetiu ela, surpresa.
— Sim. — confirmou, esperando uma de duas respostas: "não" ou "porque não aproveita para passear com a sua esposa?"
Porém, Anabela ofereceu-lhe uma terceira:
— Sim, claro. Porque não? Quer que vá ter consigo a algum lugar?
— Não, eu vou buscá-la. Daqui a quanto tempo?
Ouviu mais um sorriso.
— Ainda estou na cama. Vou tomar um duche e vestir-me. Pode ser daqui a meia hora?
Ivo olhou para o relógio e concordou:
— Sim, Anabela. Estarei aí às onze.
Aproveitando a manhã amena e a temperatura agradável, Ivo permaneceu na esplanada a tomar o seu café e a ver as pessoas por trás das suas lentes escuras. Estaria a agir bem? Era só um passeio. Gostava da companhia de Anabela, tanto quanto sentia empatia em conversar com ela.
Deixou umas moedas na mesa e saiu da esplanada com alguma ansiedade. Recriminou-se por isso. Porque haveria de se sentir assim? Via Anabela todos os dias e nunca sentiu aquele… formigueiro. Desceu a avenida até ao carro.
O Sol brilhava naquele Domingo primaveril. Ivo circulou pela Avenida de Roma, consciente de que iria passar defronte de sua casa. Seria uma enorme falta de sorte se Sónia estivesse à janela e o visse. Porém, que poderia ela pensar? Ele fora tomar um café e ia a caminho do golfe. Parou no semáforo que antecedia a Avenida do Brasil, mesmo em frente ao complexo do Hospital Júlio de Matos. Raramente ficava naquele semáforo, por isso, não deixava de ser curioso que aquela lâmpada vermelha o tivesse travado num Domingo sem trânsito. O verde acendeu e ele continuou, subindo a avenida seguinte.
Em menos de dez minutos percorrera o trajecto entre a Pastelaria Mexicana e a rua onde Anabela vivia. Fora pontual, como gostava de ser, e ali estava ele às onze horas em ponto. Pensou em telefonar novamente para avisar que já chegara. Contudo, mudou de ideias. Se não descesse em dois ou três minutos, ligava-lhe.
Anabela apareceu na porta do edifício, acenando-lhe para indicar que o vira. Vestia um casaco de cabedal encarnado com o fecho corrido até ao pescoço e calções brancos que terminavam acima dos joelhos. Calçava sapatilhas brancas e trazia uma pequena mala pendurada no ombro. O cabelo estava preso num rabo-de-cavalo, mas mantinha a franja a tapar a testa. Aproximou-se do carro, abriu a porta contrária à dele e sentou-se a seu lado.
— Olá, Ivo! — disse sem intenção que o cumprimento fosse para além das palavras.
— Olá, Anabela. — Ivo sorriu. Não queria que determinadas barreiras fossem ultrapassadas, mas também não queria que o passeio fosse uma coisa formal. — Obrigado por ter aceitado o convite.
— Confesso que me surpreendeu. Mas, tenho muito gosto que me tenha convidado. — Fez uma expressão séria. — Está tudo bem?
— Sim. Tudo. — mentiu. — Onde quer ir?
— Não sei, doutor... Desculpe! Ivo. — Encolheu os ombros. — Se for só um passeio antes de ir almoçar, podemos ir ali ao parque.
— Tem algum compromisso?
Anabela fez um semblante de espanto.
— Eu? Hoje? Não, não. — Sorriu divertida. — Tinha um compromisso com o aspirador. Sabe como é, mulher solteira a viver sozinha. Alguém tem de limpar a casa. — Abanou a cabeça. — Estou a brincar. Não tenho nenhum compromisso.
— Pensei que pudéssemos ir almoçar a um lugar agradável.
— Claro, parece-me uma excelente ideia.
Ivo teve a preocupação de evitar qualquer lugar em que o pudessem reconhecer. Não precisava que, mais tarde, Sónia viesse a saber que ele não fora jogar golfe e estivera a almoçar com a secretária jeitosa. Por isso, distanciou-se da capital em direcção a sul e foram comer um belo peixe fresco a um restaurante em Setúbal com vista para o rio Sado. Não falaram muito durante a viagem pela A12. Na cidade, trocaram algumas palavras sobre nada de especial. Durante o almoço, conversaram animados sem largar assuntos de trabalho. Era como se não soubessem falar de mais nada. Mesmo assim, gostavam de estar um com o outro.
A temperatura permanecia agradável. Anabela não tirou o casaco nem para almoçar e limitou-se apenas a abrir um pouco o fecho. Desta vez, ela insistiu em pagar metade do almoço, mas Ivo não deixou. Ele convidara, ele pagava.
Ao saírem do restaurante, Anabela olhou para o céu azul e disse:
— Que belo dia. Tenho saudades da praia.
— Se quiser, podemos ir até à praia, caminhar no areal. O que não faltam é praias aqui perto.
A ideia agradou-lhe.
Como ainda não era Verão, a estrada que percorria as praias junto à Serra da Arrábida ainda não estava caótica de gente. Foi fácil chegar aos acessos balneares.
Ivo estacionou no parque da Praia da Figueirinha que não tinha mais que meia dúzia de carros. Saíram do automóvel e caminharam lado a lado pelo areal. Ele tinha quase o dobro da idade dela, mas não se notava uma diferença tão grande, Ivo não estava assim tão marcado pela idade.
Não havia chapéus-de-sol, nem barraquinhas, nem cadeiras. Não era época disso, a Primavera começara há pouco. Duas pessoas andavam no areal, perto da água sem molhar os pés. Ivo e Anabela caminharam silenciosos sob um Sol intenso que não era quente devido ao vento. Sentaram-se na areia a olhar para o mar.
— Posso fazer-lhe uma pergunta, Ivo? — questionou ela sem aviso.
— Claro.
— A que se deveu este convite?
— Como assim?
Anabela olhou para ele. O vento agitava-lhe a franja escura.
— Porque quis sair comigo, hoje?
Ivo poderia ter inventado múltiplos motivos, mas optou por ser sincero:
— Não estava com vontade de ficar em casa.
— Podia ter ido passear com a sua mulher.
— Também não me apetecia estar com ela. — confessou, mantendo o olhar no rosto dela. Fez um sorriso cansado. — Não quero que me interprete mal. Hoje precisava de uma amiga. Só me lembrei de si.
Anabela correspondeu ao sorriso.
— E que tipo de amiga quer encontrar em mim?
— Não sei... — Não teve forças para perder a sinceridade. — Mas, estou satisfeito com o que temos.
Ela anuiu e tornou a olhar para o mar.
Ficaram mais algum tempo em silêncio. Estava bem para ambos. Sentiam o perfume um do outro e agradava-lhes. Não sentiam necessidade de falar se não quisessem mesmo fazê-lo.
Do nada, Ivo confidenciou:
— Eu e a minha mulher estamos a passar um momento complicado. Nem sei bem explicar. — E não sabia. Interrogava-se com o que se passava com Sónia sem encontrar resposta. — Com isto não estou a dizer que procuro ser infiel. Precisava só de estar com alguém afastado da minha família e com quem gostasse de estar. Como lhe disse há pouco, só me lembrei de si.
— Fico lisonjeada, Ivo.
— Não quero ser um incómodo. Uma mulher como a Anabela poderá ter coisas melhores para fazer que aturar o patrão.
O tom era afável, informal, amistoso.
— Hoje não tinha. — retorquiu, sorrindo-lhe.
Voltaram a ficar em silêncio alguns minutos, hipnotizados pela ondulação fraca.
— Está a ser muito sincero comigo, Ivo. Gostava de retribuir. Há alguma coisa que gostasse de me perguntar?
Ele não se lembrou de nada, a não ser a conversa no carro.
— Disse que estava com problemas financeiros. Alguma coisa grave?
— Estava desempregada. Tinha a renda em atraso para pagar e corria o risco de ir para a rua. Já passou.
Novo silêncio.
As ondas embalavam na areia, o vento soprava umas vezes mais forte que outras, sem deixar de ser agradável.
— Não quer saber mais nada?
— Não sou curioso. — retorquiu sem tirar os olhos das nuvens brancas perdidas na imensidão azul clara.
Anabela não insistiu. Em vez disso, puxou o fecho do casaco até o abrir completamente. Apoiou os cotovelos na areia e recostou-se, fechando os olhos e inclinando a cabeça para trás. Ivo olhou para ela e sentiu um arrepio de excitação, ao ver que ela só tinha o sutiã por baixo do casaco. Desviou o olhar de novo para o mar.
Novamente sem qualquer aviso, e sem abrir os olhos, Anabela arriscou-se frontalmente:
— Porque é que não queria estar com a sua mulher, hoje?
Ivo não lhe queria mentir, mas também não queria partilhar abertamente a razão do seu desagrado com Sónia. Demorou tanto a responder que Anabela pensou que ele já não o fosse fazer.
— As coisas não andam bem.
— Já me disse isso, Ivo.
— É a verdade.
Ela tornou a endireitar-se, abriu os olhos e encarou-o.
— Noto nos seus olhos que algo aconteceu. — Anabela era mais perspicaz que aquilo que ele julgara. — Que aconteceu?
Ele não respondeu. Ela não insistiu. Ao invés, deu um pulo na areia e colocou-se em pé. Segurou nas pontas do casaco e tornou a apertar o fecho até ao pescoço. Olhou em volta, enquanto Ivo também se levantava. Não se avistava uma pessoa e metade dos poucos carros no parque tinham desaparecido.
— Está a ficar fresco, Ivo. Importa-se que continuemos a conversar no carro?
— Quer ir embora?
— Não, não. Quero continuar a aproveitar a tarde a ver o mar na sua companhia. Só prefiro fazê-lo protegida do vento.
— Claro.
Percorreram o areal numa passada lenta até ao estacionamento. Ivo contornou o carro e ia a abrir a porta do condutor, quando ela sugeriu:
— Podemos sentar-nos no banco de trás?
Ivo estranhou, mas concordou.
Um de cada lado, abriram as respectivas portas de trás e entraram, sentando-se no amplo banco traseiro.
— Via-se melhor o mar nos lugares da frente. — referiu ele.
Ela não se pronunciou e tornou a abrir o fecho do casaco até ao fim.
Sentindo um nervoso miudinho a crescer dentro de si, Ivo tentou abstrair-se da excitação que o acicatava pela visão das pernas dela e um tronco seminu.
Anabela permaneceu em silêncio, vendo as ondas pela janela do seu lado, consciente que o patrão as via pela mesma janela, mas deveria ter a atenção cravada nela. Não provocou, não insistiu, deixou-o à‑vontade para tomar o caminho que entendesse. O silêncio era agradável, tal como a presença dele ali a seu lado.
Ivo não se mexeu. Receou que qualquer movimento pudesse trair aquilo que sentia naquele instante. Gostava de a ter ali a seu lado e o silêncio era agradável.
Decorridos alguns minutos de inactividade, Anabela voltou-se para ele. Mais uma vez, agira por impulso. Sabia perfeitamente o que ele queria, tal como descodificava no seu rosto a falta de coragem para se permitir a isso.
— Não se vê ninguém por aqui.
Ivo produziu um som de concordância.
Ela olhou-o nos olhos. Pela terceira vez, agiu por impulso, arriscou-se e jogou mais uma cartada. Seria decisiva. Se não houvesse resultados depois do que ia dizer, enfim... talvez o melhor fosse regressarem a casa.
— Há algum tempo que não tenho relações sexuais.
Ivo engasgou-se, tossiu e o seu rosto ficou rosado, envergonhado.
Ela fez de conta que nada tinha acontecido e falou como se fosse o assunto mais normal do mundo.
— Desde que acabei com o meu namorado. — Riu como se tivesse contado uma piada. — Não o matei. Só terminámos a relação. — Tornou a ficar séria, ligeiramente triste. — Magoou-me muito. Não esperava. Pensei que desta vez é que era o "tal".
Calou-se.
Ivo achou que deveria dizer qualquer coisa. Não sabia o quê? A única coisa que se lembrou foi:
— Viviam juntos?
Ela abanou a cabeça.
— Graças a Deus que não! Teria sido ainda mais complicado.
Ivo anuiu desconfortável.
— Começo a cansar-me de relações. — confessou ela, mantendo o discurso de confissão, como se quisesse contar-lhe tudo da sua vida. — Já tive vários... — Calou-se e desviou o olhar para as próprias pernas. — Meu Deus! Que estou para aqui a dizer? O doutor... O Ivo ainda fica a pensar que sou uma...
— Não, não. Não penso nada. — descansou-a. — Mas, talvez me esteja a contar coisas demasiado privadas.
Anabela tornou a encará-lo.
— Sinto que posso confiar em si. — Ele assentiu num gesto que parecia o de um padre a anuir a uma paroquiana pecadora. — A sua esposa foi a única mulher da sua vida?
A questão apanhou-o de surpresa. Não se sentia à‑vontade em falar nisso, mas agora parecia rude não partilhar o mesmo nível de intimidades.
— Sim. Conhecemo-nos quando ainda estávamos a estudar. Estamos casados há quase vinte e cinco anos.
O rosto de Anabela iluminou-se, alegre.
— Bodas de prata, não é?
— Sim. No próximo ano.
— Como é que se mantém a chama num casamento de vinte e cinco anos? — questionou Anabela. Parecia uma jornalista a perguntar ao ministro das finanças qual o segredo para baixar a dívida pública.
Infelizmente, ou não, para Ivo, ele não conseguia disfarçar aquilo que o atormentava. E ela percebeu-o e agarrou-se a isso como quem atira o anzol a um peixe e o sente morder. Se queria comer, não podia perder a linha do anzol.
— Um dia encontrará alguém com quem estará casada assim tanto tempo e perceberá como acontece.
Pouco convincente.
Ivo teve noção disso e a certeza de que se enterrara ao usar a palavra "tanto". Quem está feliz num casamento não usa temporalmente a expressão "tanto". Na verdade, Ivo já partilhara que as coisas não iam bem, só não pormenorizara.
— Combinámos ser sinceros um com o outro, Ivo. — lembrou ela. — Já não há chama, pois não? — Ele não a contradisse. Ela pressionou a ferida. — Nem sexo, pois não?
Ivo abriu a boca para protestar por aquela intromissão. O olhar dela aqueceu-lhe a alma, já para não falar em todas as emoções que lhe despertavam as pernas cruzadas e a visão dos seios apertados no sutiã.
— Não. — acabou por responder. — Há já algum tempo.
Anabela não se pronunciou. Agiu como se tivesse acertado na ferida, mas não tinha intenção de o fazer sofrer com a dor de a remexer. Na realidade, estava impressionada com a fidelidade dele. Aproximou‑se. Ele retraiu-se e esmagou-se contra a porta por onde entrara.
— Confie em mim!
O pedido foi a coisa mais surpreendente que ele poderia esperar ouvir.
— Talvez seja melhor...
Ela colocou-lhe um dedo sobre os lábios.
— Já lhe disse no outro dia, não pretendo intrometer-me entre marido e mulher. — A mão que o calara desceu para o pulôver. — Confie em mim. Não prejudicará a nossa relação na empresa... doutor Maia. — Atirou-lhe um sorriso sedutor, libidinoso. — Sei ser discreta. — A mão continuou a descer. — Ninguém precisa de saber. Ninguém saberá. — A mão parou nas calças dele, entre as suas pernas. Ela percebeu que não estava enganada. — Confie em mim, Ivo!
Nem o Ivo nem o doutor Maia a travaram. O silêncio e a passividade foram a rendição dele. Ela virou-se mais para ele, alegre por ter vencido a barreira que parecia intransponível. Abriu-lhe o fecho das calças, olhando para o exterior sem esconder que receava que alguém pudesse surpreendê-los.
Ele também olhava. Subitamente, teve receio que desconhecidos pudessem aparecer de todo o lado.
— Não me sinto à‑vontade. — sussurrou. Ela ficou surpresa com as mãos enfiadas no interior das calças dele. — Talvez pudéssemos ir para outro lugar...
— Podemos ir para minha casa.
Ivo sentia-se a explodir. Naquele instante, Lisboa parecia ficar na Nova Zelândia. Contudo, não era seguro permanecer ali, ainda mais para...
Tentou acalmar-se e disse:
— É melhor.
Anabela puxou as abas do casaco e tornou a fechá-lo até ao pescoço. Saiu do carro primeiro que ele e passou para o banco da frente. Ivo precisou de mais alguns segundos para se compor e também saiu do banco de trás para ocupar o lugar do condutor.
Continuava a não se ver uma pessoa que fosse, apesar de estarem dois carros estacionados no parque. Ele ligou a ignição e partiram dali.
Ivo estava tenso. Conduzia em piloto automático a questionar-se se estaria a fazer o correcto. Ainda ia a tempo de não atravessar aquela linha. Anabela manteve-se calada, jogara todas as cartadas. Se ele voltasse atrás, teria de se dar por vencida.
O Sol baixava no horizonte, mas ainda alto. Ivo acelerava pela A12. Seria excitação para chegar, nervos por sentir que era errado, ansiedade... Olhou pelo canto do olho para as pernas dela. Desejava-a, desejava-a mesmo muito. Segurou-se à recordação da noite anterior, a forma como fora repelido por Sónia.
Tivera sorte em não ser multado por excesso de velocidade. Exagerara o peso do pé no acelerador.
Não trocaram uma palavra em todo o percurso. Algo no seu íntimo dizia a Anabela que ele se ia acobardar no momento decisivo e se limitaria a deixá-la em casa.
A tarde permanecia radiosa. Ivo entrou com o carro na rua dela e parou no mesmo lugar da outra noite. Receosa, escondeu o medo e questionou-o frontalmente:
— Então, Ivo. Como vai ser?
Ele olhou em volta e respondeu:
— Há ali um lugar para estacionar.
12.5
Havia uma mancha no tecto, uma mancha escura. Seria sujidade ou algum buraco? Aqueles prédios antigos tinham problemas de infiltrações e humidade. A claridade da tarde ainda era suficiente para iluminar o quarto. A cama era de solteiro, mas albergava bem dois adultos. Aquelas manchas... A mobília era antiga, propriedade do senhorio, não da inquilina. E as paredes eram forradas a papel, um papel de matriz antiquada. Não condizia nada com quem ali dormia. Pensou na mulher. Que estaria Sónia a fazer?
Ivo estava deitado naquela cama, nu. Uma voz a seu lado cortou‑lhe os pensamentos:
— Foi bom?
Fora mais que bom, fora fenomenal.
Anabela estava deitada na outra metade estreita da cama. Também olhava para o tecto, tão nua quanto ele. Tinha os braços sobre a barriga e os dedos entrelaçados a tapar distraidamente o lugar onde ele estivera momentos antes. Respirava tranquila, o peito firme a subir e a descer, dois seios redondos com os mamilos a apontar para o tecto.
— Foi soberbo. — acabou por responder.
Ele entrara no apartamento a medo, sentindo-se um miúdo virgem que se deixara seduzir por uma mulher mais velha, experiente. Os papeis surgiam invertidos. Ela fora paciente, consciente que ele queria aquilo tanto quanto sentia as grilhetas da culpa por atraiçoar o casamento.
— Só faremos aquilo que quiseres. — descansou-o, enquanto tirava o casaco, tratando-o com mais informalidade.
Conduziu-o até ao quarto. Sentaram-se na cama. Aguardou que ele se sentisse à‑vontade. Sabia como ele gostava das suas pernas e convidou-o a tocar-lhes. Sentia-lhe os nervos, uma mistura de excitação e culpa. Fez um movimento convidativo a um beijo, mas ele retraiu-se. Tudo bem, havia tempo. Tirou o sutiã. Não disse nada. Ele observava-a com dificuldade em reagir.
— Confia em mim, Ivo! — repetia-lhe com uma voz sussurrada.
Aos poucos, ele deixou-se levar. Anabela queria-o dentro dela, mas no estado em que ele estava, aquilo não duraria muito. Relaxou-o aos poucos, libertou-o da roupa e aliviou-o de todo aquele tempo acumulado no corpo. Leu-lhe no rosto o prazer provocado, a sensação de libertação espalhada nas suas mãos femininas. Anabela retribuiu o sorriso. Desta vez, beijou-o na boca e ele retribuiu. Agora sim, estava pronto para entrar dentro de si.
Uma hora mais tarde... Talvez um pouco mais que isso, ali estavam os dois a olhar para o tecto.
— Arrependido?
— Não sei.
Não era a resposta que ela esperava.
— Ivo! Quero que saibas que, se quiseres que isto nunca tenha acontecido, podemos seguir esse caminho.
— Acho que não. — retorquiu ele, continuando a olhar o tecto e ponderando se aquilo era um buraco no estuque ou bolor provocado pela humidade. — Acho que não estou arrependido.
Anabela rodou na cama, apoiou-se no cotovelo, virando-se para ele.
— Serei discreta, Ivo. Podes confiar em mim.
— Eu sei. — respondeu, olhando para o seu rosto e sorrindo.
— A partir de hoje, todo este corpo é teu, enquanto tu quiseres que seja. — adicionou ela, tocando no mamilo. — Não pretendo substituir ninguém, Ivo. Não tens de alterar nada na tua vida familiar. — Levantou uma perna, dobrando o joelho e colocando a mão entre as virilhas. — Ser-te-ei fiel na empresa como tua secretária, tal como te serei fiel na cama, como tua amante.
Ivo envolveu-a num abraço e beijou-lhe a boca.
— Tenho de ir.
Devia ter tomado um banho, foi a primeira ideia que lhe surgiu no pensamento, após estacionar na garagem do seu prédio. O dia caminhava para o fim e a mulher e as filhas já deveriam estar a jantar. Receou trazer o cheiro de outra mulher, o cheiro de Anabela. Pensou nela, naquele corpo, naquilo que ela lhe fez na cama... Meu Deus, só de recordar, ficava com uma erecção.
Subiu no elevador a tentar perceber se o seu hálito estava estranho, se o poderia denunciar. Quando saiu do elevador, cruzou-se com a filha mais nova que lhe atirou um “olá” e tocou à campainha da casa da amiga Benedita. Meteu a chave à porta, ouvindo outra voz jovem dizer "Olá senhor Ivo!". Voltou-se e acenou simpático à neta da vizinha Genoveva.
Entrou no seu apartamento. Deu de caras com Sónia que transportava os pratos sujos do jantar para a cozinha.
— Que grande jogo de golfe. — afirmou com um laivo crítico na voz. — Nós já jantámos.
Não fez qualquer gesto com o intuito de trocar um beijo com ele. Ivo não se importou, queria lavar-se primeiro.
— Vou tomar um banho. Depois como qualquer coisa. A Carla?
— Foi tomar café com o namorado. E a Paula...
— Eu vi-a. Foi para casa da Benedita.
Fez-se silêncio. Sónia permaneceu a olhar para ele da porta da cozinha.
— E o golfe?
— Confirmou-se que não tenho o mínimo jeito. Mas, valeu a pena para conhecer potenciais clientes. — inventou. — Nestes encontros nunca é pelo jogo, é mais pela troca de contactos, conhecer gente importante.
— Sim... — concordou ela sem interesse.
— O tipo que me convidou é um grande cliente da E.T.I.Mac. Representa uma fatia importante da facturação. E com ele poderão vir mais.
Sónia voltou-se para o balcão e começou a colocar a louça na máquina de lavar, dizendo:
— Espero que tenhas acertado pelo menos num buraco.
Sim, pensou, acertara no melhor buraco que poderia ter desejado naquela tarde.
13.1
Tal como era esperado, a nova lei de cidadania foi vetada por Flávio de Melo. Em horário nobre num directo emitido por todos os telejornais, o Presidente da República explicou aos portugueses as razões do veto. Algumas figuras nacionalistas lusitanas apressaram-se a reagir, contestando as razões do homem que ocupava o cargo mais alto da nação. No entanto, Pinto Henriques não se manifestou e, do governo, apenas Raimundo Antunes se referiu ao assunto para lamentar que Portugal continuasse a ter um presidente que parecia ainda não ter percebido que não era chefe de governo e que insistia numa presidência governativa.
Também como era esperado, a lei regressou ao parlamento. O PNL mudou-lhe duas virgulas, se tanto, e tornou a levá-la a votos na Assembleia da República. O resultado? O mesmo, aprovada. E desta vez, segundo a Constituição, Flávio de Melo não poderia voltar a vetá-la. Contudo, decidiu enviá-la para o Tribunal Constitucional, algo a que o MPP se associou, adicionando as suas próprias dúvidas à validade da lei.
Aquilo que se esperava era que a avaliação e validação ou não da proposta da nova lei de cidadania aprovada no parlamento se prolongasse algum tempo, talvez ficando retida até ao momento previsto em que Flávio de Melo convocaria o Conselho de Estado para dissolver a Assembleia da República.
Normalmente seria assim. Porém, com o SIALE, o que parecia certo tornava-se incerto. Os vistos como todo-poderosos juízes do Tribunal Constitucional demoraram dois dias a produzir um veredicto. E pasmem-se os portugueses, aprovaram uma lei que até para um leigo em leis se revelava inconstitucional. Porque é que isso aconteceu? É simples, o poder do SIALE.
O SIALE tinha agentes, infiltrados e informadores um pouco por todo o lado. Aquelas figuras de togas negras que por vezes pareciam ter um poder superior ao do Presidente da República, afinal tinham telhados de vidro e pés de barro. E o SIALE sabia onde tocar em todos, apesar de só precisar de manipular metade do colectivo de juízes, mais um. Assim, secretamente, mostraram as pedras que lhes atingiriam os vidros se a lei não passasse. E a lei passou.
Amaro Carneiro viajava sentado no banco traseiro do seu automóvel, conduzido pelo motorista e acompanhado do segurança no banco à sua frente. Seguiam rumo a sul, rumo a Lisboa, onde o político portuense marcara uma reunião na sede do governo regional para conversar com Diogo Pereira e Manuel Teixeira acerca da animosidade das últimas semanas dos portuenses contra a capital. Felizmente, as coisas pareciam ter acalmado. Só que Amaro tinha a inteligência de tentar ver para lá dos acontecimentos e considerou que seria bom analisar o assunto com cautela junto dos seus pares a sul.
Enquanto o automóvel circulava pela A1, Amaro não conseguia deixar de pensar no facto de que não havia qualquer sinal, nos últimos dias, de que agentes do SIALE o seguissem, como era costume. Teria perdido importância no conflito político? Será que o PNL já não o via como um adversário incómodo? Por várias vezes questionara ambos os acompanhantes se nenhum veículo suspeito os seguia. A resposta era sempre negativa. Chegou a espreitar o céu pela janela, pensando que o SIALE pudesse ter mudado de táctica e o vigiasse com um drone. Se já não o vigiavam, a conclusão lógica seria que ele já não representava perigo para o seu poder a norte, o que indicaria também que as populações das regiões autónomas a norte estariam maioritariamente em concordância com o nacionalismo lusitano. E isso era mau, muito mau.
O seu telemóvel tocou. Pegou no aparelho e viu o nome de Erika no ecrã. Antes de atender, encontrou a possível razão para o SIALE não o seguir noutro carro, podiam fazê-lo através do sinal do seu telemóvel e saber onde estava.
— Olá!
— Olá, querido! — disse a voz terna no outro lado da linha.
— Está tudo bem?
— Sim... Saíste cedo.
Quando Amaro saíra de casa, Erika ainda dormia na sua cama. Começara a tornar-se regular que ela passasse a noite com ele.
— Tenho uma reunião cedo, estou a caminho de Lisboa.
Ele sabia que a chamada estava a ser escutada, mas pouco lhe importava, se seguissem o sinal do seu aparelho, o SIALE saberia o que ele acabara de dizer.
— Estou preocupada com o que me disseste ontem...
— Não vamos falar disso aqui, Erika. Já te expliquei...
— Sim, eu sei. Não ia... Tu sabes.
Percebeu as hesitações na voz dela.
— Estás com medo?
— Um pouco...
Já a conhecia o suficiente para entender no seu tom que estava com mais medo que aquele que aparentava.
Na noite anterior, Amaro levara Erika a jantar num famoso restaurante do Porto. A relação deles estava a intensificar-se e ele sentia que tinha de a colocar ao corrente da realidade e dos perigos que o rodeavam. Erika sabia que ele era um adversário dos poderes nacionais e locais, uma pessoa incómoda para o PNL. No entanto, desconhecia até onde poderiam ir os meios do SIALE para atingir alguns fins. Assim, quando vieram para casa dele, ele tomou as devidas previdências para que não se conseguisse escutar a conversa deles e colocou-a ao corrente do plano de fuga que tinha arquitectado com Sá Costa para fugirem do país.
Erika não compreendeu. Parecia surreal que no Portugal do século XXI, existissem perseguições políticas e pessoas tivessem de fugir do país sob pena de serem assassinadas. Achou que ele estava a exagerar, mas o seu medo cresceu, aumentando exponencialmente após a noite de sono.
Amaro não lhe contou que existia um plano de golpe de estado do PNL. Não lhe contou porque não traria nada mais do que receios adicionais. Protegeu-a disso.
— Não te preocupes, Erika. E já te disse, se quiseres, contrato um segurança para ti.
— Não, não. Não é necessário. Desculpa... ser assim.
Ele sorriu.
— Ainda bem que és assim.
— Tenho medo de te perder. — confessou. — Tenho medo que te façam mal.
— Tenta não pensar nisso.
A chamada terminou com Amaro a sentir o coração quente. Estava apaixonado e sentia que ela partilhava desse sentimento.
13.2
Diogo Pereira recebeu Amaro Carneiro com um forte abraço. Manuel Teixeira já lá estava e também o abraçou. Mais que colegas partidários, eram amigos de longa data.
— Como estão as coisas lá para cima? — questionou Manuel Teixeira, sentando-se numa poltrona da sala de trabalho do presidente do governo regional de Lisboa e Setúbal.
Amaro sentou-se noutra e respondeu:
— Agora mais calmo. Mas, não sei por quanto tempo, tendo em conta que o Gomes Pinto é um pirómano político.
— Sim, isso é verdade. — concordou Diogo Pereira, ocupando o seu lugar atrás da mesa de presidente, voltada para eles.
— E que raio passou pela cabeça do Octávio para fazer aquelas declarações?
O rosto de Manuel Teixeira revelou a Amaro Carneiro como ele ficara irritado com isso.
— Está proibido de se pronunciar sobre o que quer que seja.
Diogo sorriu e calculou:
— Imagino que não tenha aceitado isso muito bem.
— Pouco me importa, Diogo. Temos um pirómano no Porto, não preciso de outro cá em baixo, ainda para mais nas fileiras do nosso partido.
— Fazem alguma ideia de quem possam ser esses tipos do Movimento Armado de Lisboa?
Diogo Pereira abanou a cabeça e Manuel Teixeira partilhou:
— Falei com pessoal da MJP. — O Movimento Juventude Portuguesa era para o MPP o equivalente da JNL para o PNL. — Pensei que alguns daqueles mais extremistas e rebeldes pudessem estar por detrás disto, mas garantiram-me que não.
— E... — equacionou o portuense.
— Não, não, Amaro. Confio naquela malta. Se me dizem que não têm nada a ver com isso, acredito.
— Não se pode dizer que veja com maus olhos o que eles fizeram. — confessou Diogo Pereira.
O líder do MPP abanou a cabeça.
— Mataram miúdos da JNL, Diogo. São marginais, mas não podemos andar por aí a dar-lhes tiros.
— Não é assim que resolvemos as coisas. — concordou Amaro.
— Está bem, concordo com vocês, mas também é preciso dar-lhes a conhecer o próprio veneno.
— Temos de saber quem são esses gajos do MAL. — insistiu Manuel Teixeira. — Podem defender o mesmo que nós, mas não precisamos de grupos que aumentem as fissuras entre Norte e Sul.
— Isto mudou mentalidades no Norte. — alertou o portuense. — As pessoas ouviam as demagogias do PNL, concordavam, mas não olhavam cá para baixo com ódio. E depois do atentado, ouço muita gente nos cafés a deitar cá para fora a verborreia que só ouvíamos aos fanáticos do PNL.
— Tem de ser malta universitária, Manuel. Talvez até sejam alguns daqueles miúdos que fizeram a manifestação na reitoria da Universidade de Lisboa.
— Tem de ser mais que isso, Diogo. Segundo as testemunhas, os atacantes tinham armas automáticas.
— Podem ser militares.
— Os militares estão ao lado do PNL, Amaro.
— Alguma facção contestatária ao Estado Maior das Forças Armadas.
— A tua fonte não sabe nada acerca disso, Manuel?
— Não, Diogo.
Bateram à porta e um assessor entrou com cafés para todos.
O ambiente agradável era iluminado pela forte luz solar exterior. Lá fora, ouvia-se o trânsito e as pessoas. Os dias primaveris pareciam ter vindo para ficar.
— E como está o ambiente para os nossos no Porto?
A pergunta de Manuel Teixeira era dirigida a Amaro Carneiro.
— Por estranho que pareça, as pessoas mudaram a agulha contra nós. Dantes, éramos os tipos do governo que sugou o povo. Agora, fomos substituídos no seu ódio pelos lisboetas. A coisa está complicada, Teixeira. Temo que ainda aconteça alguma desgraça lá em cima com algum pobre lisboeta que passe pela Invicta.
— Está assim tão mal?
— Ficaria melhor, se apanhassem esse "MAL". E de preferência que se descobrisse que afinal nem eram de Lisboa.
— E o Gomes Pinto capitaliza tudo em favor desse ódio. — apontou Diogo Pereira.
— Todos sabemos como ele e o Pinto Henriques são bairristas no pior sentido da palavra.
Gerou-se um silêncio breve. Cada um bebeu o seu café.
— E o Presidente, Manuel? — questionou Amaro. — Não acreditou nas tuas informações acerca da possibilidade de um golpe de estado, pois não?
— Chamou-lhe boatos. Diz que se fizesse alguma coisa, poderia desencadear uma revolta militar. — Manuel Teixeira abanou a cabeça, descrente. — Não percebe que a revolta já está em marcha.
— Que podemos nós fazer contra isso?
— Nada, Diogo.
— Não temos ninguém a nosso favor nos militares?
Manuel Teixeira olhou para Diogo Pereira, fez um gesto afirmativo com a cabeça e respondeu:
— Não. Infelizmente, o MPP não tem qualquer influência nas Forças Armadas.
Diogo Pereira ficou confuso. Amaro Carneiro percebeu e fez-lhe sinal, apontando para o seu próprio ouvido. Diogo entendeu o sinal: "escutas".
— É uma pena, Teixeira. — adicionou Amaro.
Ficaram os três a entreolhar-se. O líder do MPP levantou-se da poltrona e aproximou-se da mesa do presidente do governo regional.
— Ó Diogo, tinha um assunto para te perguntar.
— Diz. — acedeu o outro, vendo o primeiro fazer sinal ao portuense para se aproximar também.
— A tua filha é produtora e realizadora. Achas que ela estaria interessada em realizar alguns segmentos para o tempo de antena do MPP?
Enquanto colocava a questão, Manuel Teixeira segurou o bloco sobre a mesa de Diogo Pereira e escreveu com a caneta: "General Maia".
— Penso que sim. — concordou Diogo, segurando na caneta.
"Ele está connosco?"
Manuel Teixeira encolheu os ombros, dizendo:
— Talvez... Talvez seja boa ideia, não acham?
Amaro Carneiro também escreveu no papel, não deixando de se pronunciar:
— A Vera é muito talentosa, é sem dúvida uma mais-valia.
O líder do MPP leu "como vais conseguir falar com ele, se o SIALE está a vigiar-nos?". E escreveu "tenho alguém em mente."
— Estou a pensar em falar com ela em breve. — disse, apontando para o papel.
Amaro Carneiro retornou ao seu lugar, sentando-se na poltrona.
— Achas que "ela" pode mudar o rumo da campanha?
Os outros dois entenderam a pergunta, ele questionava se o general Maia teria poder suficiente para impedir o golpe de estado.
— Não é a especialidade dela. — lembrou Diogo Pereira. Sim, evitar golpes de estado não era a função de uma alta patente militar. — Mas, com o equipamento certo...
— O povo está do nosso lado.
— Sim, o nosso eleitorado tem vindo a regressar. — concordou Amaro Carneiro, apontando para cima com o dedo indicador direito e fazendo uma expressão de dúvida.
Pois, Manuel Teixeira tinha noção que a norte o apoio era relativo em comparação com a força popular que os nacionalistas lusitanos lá tinham.
Amaro acentuou a sua preocupação:
— Bom, sabemos que é a filha aqui do nosso amigo Diogo, mas... E se ela não aceitar? Pode não se querer envolver em política.
Pois... O rosto de Diogo Pereira revelava a mesma dúvida. E se o general não quisesse envolver-se nisso? É certo que era uma espécie de erva daninha entre os militares predominantemente afectos ao PNL, mas daí a querer envolver-se numa disputa...
Manuel Teixeira encolheu os ombros.
Diogo Pereira forçou uma gargalhada e profetizou:
— Vá lá, não acredito que a "Vera" nos recuse isso.
13.3
Ivo seguia a sua rotina diária, era um homem de padrões, os seus dias seguiam parâmetros que lhe evitavam esquecimentos. Sempre fora assim, gostava de tudo organizado e arrumado. Saiu do elevador da empresa e caminhou pelo corredor que atravessava os gabinetes envidraçados. Entrava na caixa de vidro da sua secretária com as mesmas palavras de sempre:
— Bom dia, Anabela!
— Bom dia, doutor Maia!
E estacionava no seu gabinete.
Sim, Anabela era agora sua amante, mas na empresa a relação era igual ao que era antes daquele serão de trabalho que resultara num jantar e do Domingo primaveril na praia. Sempre que se cruzavam, ela era a sua profissional e eficiente secretária. Não existia um laivo que fosse que levasse a criar alguma suspeita acerca da relação secreta deles.
A rotina continuava. Ivo largava a pasta no sofá e pendurava o casaco no cabide. E dava início ao dia de trabalho, sentando-se atrás da sua mesa. Um ou dois minutos depois, Anabela entrava no gabinete.
Ele sugerira que se deixasse a porta aberta sempre que ela lá ia. Anabela lembrou-lhe que nunca o haviam feito e essa tentativa de evitar rumores poderia ter um efeito contrário. Ivo concordou, grato pela astúcia dela.
Anabela entrava para um briefing do dia. Costumava fazê-lo em pé, defronte da mesa dele, quase encadeada pela luz natural que invadia o espaço através dos vidros atrás dele. Contudo, naquela primeira vez em que fizeram amor, ele confessara-lhe como o excitavam as pernas dela. Por isso, ela agora entrava e sentava-se no sofá, cruzava as pernas e puxava a saia ligeiramente para cima, revelando-lhe ainda mais as coxas tonificadas. Não sorria, não lhe lançava nenhum olhar ou expressão de flirt, e começava a debitar o programa de trabalho para aquele dia.
Ivo ouvia-a atento, sentindo-se excitado como um adolescente, mas a sua expressão facial envolta num penteado grisalho não denunciava nada.
De súbito, o telefone de Anabela tocou.
Sempre que isso acontecia quando estava no gabinete de Ivo, ela atendia puxando a chamada através do telefone dele. Atendeu com o profissionalismo que lhe era habitual, segurando o auscultador em pé ao lado dele. Ivo teve vontade de lhe acariciar as coxas, mas não o fez. Ambos tinham concordado com inúmeras regras acordadas após a aceitação de que queriam ser amantes.
— Só um momento. Vou ver se o doutor Maia pode atender.
Anabela tapou o bocal do telefone, olhou para Ivo e disse:
— Doutor Maia! É uma chamada da sede do Movimento Povo Português, o doutor Manuel Teixeira.
Ivo nunca falara com o líder do MPP. Conhecia-o de nome e de o ver na televisão. Para ser franco, nunca ligara a política nem a políticos e só se relacionava com a espécie em encontros empresariais e acontecimentos importantes de trabalho favoráveis à E.T.I.Mac que obrigassem à interacção com eles. Recebeu o auscultador e ficou a ver o rabo de Anabela afastar-se e sair pela porta do gabinete.
— Doutor Ivo Maia? — questionou a voz no outro lado.
— Sim.
— Bom dia, fala Manuel Teixeira do MPP. — O tom era afável. — Penso que me conhece.
— Sim, claro.
— Espero não estar a incomodá-lo. — Ivo não teve tempo de dizer sim ou não. — Estamos a planear fazer uma reformulação tecnológica na sede do partido e gostaria de falar consigo acerca disso.
Era aquele tipo de trabalho que não trazia grande lucro, mas dava status à empresa, trabalhar com uma entidade de influência na esfera política.
— Posso dizer à minha secretária para entrar em contacto com a sua para encontrarmos uma hora para nos reunirmos. — sugeriu Ivo. — Tenho todo o gosto em o receber aqui na empresa.
— Preferia que nos reuníssemos aqui na sede do MPP. — contrapôs Manuel Teixeira. — Gostava de lhe mostrar o espaço, aquilo que pretendo.
Que raio? Estes políticos... Ele era o presidente da empresa. Que esperava o outro? Que ele fosse tirar medidas para fazer um orçamento?
— Terei de ver a minha disponibilidade, doutor Teixeira. — retorquiu sem vontade de lá ir.
— Era óptimo que pudéssemos conversar esta tarde.
— Não sei...
— Ficar-lhe-ia muito grato, doutor Maia.
Ivo suspirou para o telefone.
— Dê-me um minuto.
— Claro.
Carregando noutro botão, Ivo trocou a linha para a da sua secretária.
— Anabela, há algum compromisso importante esta tarde? Qual? Não, isso pode esperar. Desmarque tudo o que estava planeado para depois de almoço. Vou ter de me ausentar e não sei o tempo que demoro.
Tornou a recuperar a chamada do líder do MPP.
— Pode ser por volta das quinze?
— Sim. Está óptimo.
13.4
A sede do MPP ficava num edifício pombalino, perto da Rua do Ouro. A Baixa de Lisboa era dos piores sítios para levar o carro a meio de um dia de semana. Ivo não estava na disposição de andar a procurar um buraco para estacionar ou caminhar pelas ruas movimentadas de turistas, se largasse o veículo num dos parques subterrâneos ali perto. A solução que encontrou foi encarregar um dos motoristas da empresa que o transportasse até lá num dos automóveis de serviço.
O prédio era imponente, uma antiga sede bancária convertida em estrutura partidária, adquirido pelo partido quando o MPP ganhou força no contexto político português. Ivo entrou e deu de caras com dois seguranças armados. Não eram seguranças de empresas do ramo que normalmente se vêem em centros comerciais ou espectáculos, eram dois "armários" de fato completo, auriculares e com as pistolas à vista para desencorajar qualquer ideia. Entregou a sua identificação, a sua pasta atravessou um sistema de revista de conteúdo e ele teve de passar pelo pórtico detector de metais. Tudo em ordem, deram-lhe um passe de visitante e apontaram-lhe a escadaria em frente. Ao cimo, um outro "armário" aguardava-o. Sem qualquer expressão facial, disse:
— Doutor Ivo Maia queira por favor acompanhar-me!
Ivo seguiu atrás do elemento da segurança, atravessando um corredor com várias portas. Pararam a meio e o homem indicou-lhe que continuasse até à porta aberta. Ele assim fez. A escassos metros de a alcançar, uma senhora mais velha surgiu por essa porta, sorrindo-lhe e informando que o líder do MPP o aguardava. Foi conduzido para a porta defronte daquela, onde Manuel Teixeira o esperava.
— Olá, doutor Maia! — exclamou, levantando-se do seu lugar. Estendeu-lhe a mão com simpatia. — É um gosto conhecê-lo.
Ivo apertou a mão do outro e retribuiu o cumprimento.
Manuel Teixeira prosseguiu:
— Obrigado por ter vindo. — Ivo fez tenção de se sentar, mas foi travado. — Espere, não vale a pena sentarmo-nos, quero mostrar-lhe o espaço que tínhamos falado. — Ivo anuiu. — Posso só pedir-lhe que deixe o seu telemóvel aqui?
Ivo estranhou o pedido. Em sinal de que não haveria problema, o líder do MPP mostrou o seu telemóvel e pousou-o sobre a secretária. Ivo abriu a pasta, retirou o aparelho do bolso do casaco e guardou-o no interior, deixando-a na cadeira onde não se pudera sentar.
Manuel Teixeira encaminhou-o para outra porta do seu gabinete. Dava acesso a uma divisão sem janelas e iluminada por uma luz acolhedora. As paredes vazias pareciam esponjosas e no espaço não havia qualquer peça de mobiliário. Ivo sentiu-se a entrar numa cela de um manicómio, apesar de nunca ter estado em nenhuma.
A porta foi fechada.
— Peço desculpa por isto, mas hoje em dia... — lamentou o político, alterando o tom para um nível preocupado. — É a nossa sala de reuniões. É uma espécie de zona de crise. Com as vigilâncias de que somos alvo pelo SIALE...
— Que interesse poderão ter os serviços secretos do país na instalação de redes informáticas no seu escritório?
— Chame-lhe antes polícia política. — corrigiu. — É isso que eles são. — Encarou-o com uma seriedade pesada. — Não o chamei aqui para conversarmos sobre uma obra. Sim, sim, oficialmente será isso que cá veio fazer.
— Então, o que...
— Espere, espere. Eu explico. Preciso de um favor seu.
— Favor?
Que raio! Não chegava atrapalhar-lhe a agenda com esta suposta proposta de encomenda, algo que um simples funcionário poderia conceber, e afinal não queria nada, só um favor.
— O doutor Maia é sobrinho do general Maia, correcto?
— Sim...
— Costuma estar em contacto com ele?
Que tinha o tipo a ver com isso?
— Falamos de tempos a tempos.
— Preciso que lhe faça chegar uma mensagem.
Teve vontade de lhe responder que não era moço de recados.
— Porque não lha entrega você?
Manuel Teixeira percebeu o descontentamento do outro.
— Lamento estar a pedir-lhe isto, mas estamos a falar de um assunto muito grave e importante para o país. Não lhe posso dizer mais.
— Não percebo em que é que isso o impede de o fazer.
— O SIALE vigia-nos a todos. Preciso de alguém próximo do general que não esteja conotado connosco.
— Ou seja, quer arranjar-me problemas com o SIALE?
— Não terá problemas. Só preciso que vá visitar o seu tio e lhe entregue um envelope.
Ivo revelou-se reticente.
— Desculpe, doutor Teixeira! Nunca me meti em política. Tenho noção do que representa o SIALE neste país. Não quero arriscar-me a cair na teia deles por algo que nem sei o que é.
Manuel Teixeira pareceu compreender.
— Pode não se querer envolver agora, mas mais tarde terá de o fazer, acredite. Aquilo que está em causa, neste momento, é a liberdade de cada um de nós. Já viu a lei que o governo acabou de aprovar? É só o primeiro passo para um futuro muito negro.
— Talvez esteja a exagerar, doutor Teixeira. Os partidos de oposição acham sempre que o país está nas trevas.
— O PNL está a preparar-se para implementar uma ditadura em Portugal.
— E acha que é o meu tio quem vai impedir isso?
— Não sei. Só lhe posso dizer que é a nossa única hipótese.
Ivo não estava muito convencido do dramatismo expresso nas palavras do líder MPP. Também sabia que o tio não era pessoa que se identificasse com a ideologia nacionalista lusitana, daí que, entre as duas facções, ele estaria certamente mais inclinado para o MPP. Não lhe agradava entrar naquele tipo de situação, envolver-se em querelas políticas que o poderiam arrastar para problemas com o SIALE. E nestes tempos solarengos de névoas limitativas de liberdades, todos sabiam que a última entidade com quem se queria problemas era com a polícia política do Estado. Contudo, custava-lhe não fazer nada perante algo que poderia igualmente virar-se contra o tio. O doutor Manuel Teixeira poderia estar a tentar transmitir-lhe informações que poderiam ser importantes para o tio. E Ivo não se perdoaria se a sua inércia resultasse em complicações para o general Maia.
Foi com este pensamento que, na tarde seguinte, Ivo Maia conduzia o seu automóvel rumo a Monte Real.
O general Maia era tio de Ivo Maia, irmão do falecido pai. Ambos os pais de Ivo já haviam falecido e ele não tinha muito laços familiares do lado dos Maia, à excepção daquele tio. Também não tinham um contacto muito periódico, Ivo habituara-se ao longo da vida a ter aquele tio militar, um homem dedicado à vida nas Forças Armadas, mais precisamente na Força Aérea Portuguesa. Fora piloto e estivera em diversas missões no estrangeiro. Costumavam ver-se por alturas do Natal, mas isso fora noutros tempos. Actualmente trocavam telefonemas de circunstância.
Apesar de tudo, quando Ivo lhe telefonou de manhã, o tio atendeu-o como se tivesse acabado de falar com ele minutos antes. Combinaram encontrar-se na Base Aérea Nº 5 em Monte Real.
O general Maia era um homem com quase dois metros de altura, tinha uns sessenta anos que não combinavam nada com a sua imagem robusta e atlética. Deveria ter o cabelo branco, mas como rapava completamente a cabeça, não se notava. O rosto era austero, mas conseguia sorrir. Ivo sempre o vira sorrir e aquele tio era uma espécie de irmão mais velho que nunca tivera. Recebeu-o perto da messe dos oficiais. Era o militar mais graduado da base, mas a sua presença ali não era fixa, só ali estava por se encontrar envolvido em assuntos relativos ao esquadrão de caça com aeronaves F-16. Ele próprio chegara a pilotar um, em tempos.
Ivo encontrou o tio no seu magnífico uniforme azul-escuro com as divisas douradas nos ombros. Por seu turno, o sobrinho comparecera no seu estilo formal de fato e gravata. Talvez fosse a única coisa que o tio não lhe perdoava, ter-se furtado a fazer pelo menos o serviço militar mínimo. Ivo evitara-o o mais que pôde e safou-se com uma passagem à reserva sem um dia que fosse incorporado.
— Gosto de te ver, rapaz! — disse o general, continuando a tratá‑lo como quando o mais novo era adolescente. — Mas, confesso que estou surpreso por te ver viajar até aqui num dia de trabalho com uma aparente urgência em falar comigo pessoalmente.
Ivo olhou em redor. Sem dar por isso, começava a comportar-se com aquele sistemático sentimento de perseguição comum aos opositores do governo.
— Podemos falar num sítio mais privado?
O general não imaginava em que é que o sobrinho poderia estar envolvido para aparentar aquela expressão de receio. Porém, quando lhe segredou que fora o doutor Manuel Teixeira quem lhe pedira para vir, o outro compreendeu.
Num lugar sem espaços que oferecessem uma completa segurança contra escutas de terceiros, o general Maia levou Ivo para perto do sector onde os F-16 estavam estacionados. Havia dois com os motores ligados, rodeados de mecânicos, que produziam um ruído horrível, ideal para bloquear intrusão de qualquer microfone.
Com a dificuldade lógica resultante do barulho, Ivo relatou ao tio o encontro com o líder do MPP. Referiu que tinha um envelope para lhe entregar. O general olhou em redor. A base era rodeada de pinhal e as árvores poderiam dar alguma segurança a um espião com uma máquina fotográfica. Ivo conhecia bem o tio ao ponto de lhe reconhecer no olhar a magnitude do problema que o político lhe deveria querer transmitir.
Tio e sobrinho afastaram-se dos aviões. O general Maia levou o sobrinho para uma sala no edifício principal, recebendo continências a cada cruzamento com outros militares presentes na base. Àqueles com quem se relacionava com menor afastamento, apresentava Ivo como seu sobrinho, um tipo porreiro que aproveitara uma viagem a Aveiro para vir cumprimentar o tio a meio caminho. Todos podiam ser espiões, todos tinham de ver uma história credível.
Na segurança da sala, a qual poderia não ser isenta de microfones, ambos evitaram comentar o que quer que fosse sobre a razão de estarem ali. Ivo retirou o envelope do casaco e entregou-o ao tio. Este abriu-o, retirou as folhas e leu o conteúdo.
A carta continha o relato do conjunto de informações que Manuel Teixeira recolhera dando conta do plano do PNL, em conluio com as Forças Armadas, comandadas pelo marechal Costa Almeida, para executar um golpe de estado que afastaria o professor Flávio de Melo da presidência do país. A cada linha, a expressão soturna do general aumentava. Quando terminou, olhou para o sobrinho e disse:
— Podes levar-lhe a resposta?
Ivo anuiu.
O general Maia puxou de um bloco de folhas e começou a escrever com uma caligrafia de fazer inveja. O manuscrito tinha somente uma página que Ivo não leu, nem conheceu o conteúdo, limitando-se a vê-lo dobrar a folha e a colocá-la dentro do mesmo envelope.
— Obrigado por fazeres isto. — agradeceu o general, entregando‑lhe o sobrescrito. — Mas, peço-te que depois de entregares o envelope, te afastes.
— Afastar...?
— Sim! — afirmou com autoridade. — Deles!
Ivo comprometeu-se a fazê-lo.
Alguns minutos mais tarde, já conduzia de regresso a Lisboa.
Ao volante do Audi A8, olhou para as horas. Já passava do horário de expediente da empresa, Anabela deveria estar a caminho de casa. Através dos comandos de voz, solicitou ao sistema informático do carro que fizesse a chamada para o telemóvel dela.
— Boa tarde, doutor Maia! — ouviu a voz doce ecoar nos altifalantes do carro.
— Olá, Anabela! Ainda está na empresa?
— Não, estou a chegar a casa, doutor Maia.
Ele sorriu para o pára-brisas.
— Estou sozinho, querida. Podes falar à vontade.
Ouviu-a sorrir do outro lado.
— A reunião correu bem?
— Sim.
— Pelo ruído, estás a conduzir. Já estás de regresso?
— Estou.
— Precisas de alguma coisa de mim?
— Estava a pensar passar por tua casa. Pode ser?
— Claro. Queres que faça jantar para os dois?
— Sim, mas...
— Desembucha. — ordenou-lhe com ternura.
— Achas que posso dormir aí esta noite?
— E a tua mulher?
— Não te preocupes com isso.
— Se não te importares com a largura da cama.
— Sabes bem que não.
Desligou com o compromisso que estaria lá daí a uma hora. Deixou passar cerca de meia hora, o Sol já adquirira uma tonalidade alaranjada de fim de tarde. Telefonou para casa. Tinha esperança que fosse uma das filhas a atender, não estava com vontade de falar com a esposa. Não teve essa sorte.
— Olá, amor!
— Olá, querido!
— Olha, tive uma reunião hoje em Leiria. — começou Ivo, procurando ser credível na mentira. — Aproveitei e fui visitar o tio Maia.
— Oh! — exclamou ela. Também gostava muito daquele tio. — Como é que ele está?
— Está em Monte Real. Está bem. Tu sabes, o militarão do costume. Manda beijinhos.
— Ele é um querido. Tenho saudades dele.
— Olha! — retomou a mentira. — Ficámos à conversa e isto prolongou-se. Saí agora de lá. Estou cansado, não me apetece conduzir até Lisboa e decidi ficar num hotel em Leiria. Não te importas, pois não?
— Claro que não, querido. Não quero que tenhas um acidente por cansaço. Fazes bem.
Olhou para a placa na autoestrada, tinha a indicação de Lisboa a dez quilómetros.
— Estou agora a entrar em Leiria. Falámos amanhã. Amo-te!
— Eu também te amo.
Terminou a chamada e o sistema de voz do automóvel deu lugar ao rádio com o noticiário. A notícia mais relevante eram os primeiros sinais consequentes à nova lei. Diversos refugiados exilados em Portugal estavam a ser notificados para abandonarem o país.
A noite chegava, o céu estava com uma claridade ténue e as estrelas começavam a aparecer. Ivo conduzia com o cansaço atenuado pela excitação e ansiedade por chegar a casa de Anabela. Viam-se todos os dias, mas não tinham tido oportunidade de voltar a estar intimamente juntos.
Na rua dela, alguns lugares para escolher onde estacionar o carro. Escolheu o mais perto. Saiu do automóvel e caminhou até à porta do prédio. Tocou à campainha. Um clique abriu a porta exterior. Entrou e subia as escadas de um edifício sem elevador.
Anabela aguardava-o à porta. Vestia um negligé preto transparente que lhe chegava às coxas. Estava descalça e ele conseguia ver-lhe os mamilos entre as rendas. Abraçou-a e beijou-a com paixão. O apartamento cheirava a comida acabada de fazer.
— Olha se não fosse eu que tivesse tocado. — ponderou, analisando o corpo dela.
— Eu sabia que eras tu.
— Cheira bem.
Anabela sorriu.
— O jantar está pronto. — informou, tirando-lhe a gravata e o casaco. Abraçou-o novamente e encostou a boca à sua orelha. — Mas, primeiro, quero que me comas a mim.
13.5
— É melhor não chegarmos juntos à empresa. — sugeriu Anabela.
Estavam ambos no vestíbulo do pequeno apartamento dela, vestidos e prontos a sair.
— Eu não vou já para a empresa, tenho de ir a um lugar primeiro. — informou Ivo, olhando-a com deleite. Adorara a noite que passara com ela. E ficara loucamente surpreendido com a forma como ela o despertou a horas pela manhã. — Mas, deixo-te perto da empresa.
— Alguém nos pode ver...
— Eu deixo-te suficientemente longe. Só o suficiente para não teres de ir de transportes.
E assim fez.
Logo que deixou Anabela no Parque das Nações a duas ruas do edifício da E.T.I.Mac, Ivo conduziu pelas ruas de Lisboa em direcção à Baixa. Desta vez, teve de se sujeitar a estacionar o automóvel no parque subterrâneo mais próximo e circular a pé até à Rua do Ouro. Ao chegar à sede do MPP, percorreu todos os procedimentos que tivera de ultrapassar na primeira visita, desde a entrada até ao gabinete do doutor Manuel Teixeira.
— E então? — questionou o político, quando ambos se encontravam na sala segura.
— Não faço ideia. — respondeu Ivo, retirando o envelope do casaco. — Pediu-me para lhe entregar isto.
Manuel Teixeira abriu o envelope e retirou a folha manuscrita. Leu-a com atenção. Ivo ficou a observar o rosto do outro, denotando um semblante que se enevoava a cada frase. Por fim, estendeu-lhe a mão e disse:
— Obrigado, doutor Maia! Obrigado pelo favor que me prestou. Estou em dívida para consigo.
— Não se preocupe, não me deve nada, doutor Teixeira. Só lhe peço que não me volte a meter nestas situações.
— Não se preocupe. — retorquiu com um sorriso falso. — Prometo que não o voltarei a incomodar.
Despediram-se e Ivo abandonou as instalações da sede do MPP.
No seu gabinete, Manuel Teixeira olhava para a carta com tristeza. O general Maia recusava-se a ir em socorro ao seu apelo.
14.1
A tarde de Sol em Lisboa convidava a um passeio. Nas zonas mais turísticas da capital, as pessoas aglomeravam-se entre endémicos e forasteiros. A maior cidade de Portugal era um lugar com uma afluência cada vez maior de pessoas. Um dos lugares mais procurados pelos turistas era o Castelo de São Jorge.
Manuel trabalhava para uma empresa de segurança encarregue do controlo de entradas no perímetro da zona do castelo e respectivas muralhas. Era um serviço de segurança simples, nada que o obrigasse a arriscar a vida e a andar armado. O seu posto ficava junto à entrada na Rua de Santa Cruz do Castelo e era um trabalho um pouco monótono.
Naquela tarde, Manuel encontrava-se alheado da função, executando os movimentos de forma automática. A sua cabeça pensava em Ana. Desde aquele serão em que foram tomar um copo, após o jantar de amigos, Manuel acreditou estar a criar-se algo entre eles. A noite terminou após esse mesmo copo, não aconteceu nada mais que uma agradável conversa num bar na zona ribeirinha de Lisboa. Contudo, Manuel ficou convencido de que existia uma certa empatia. Depois do encontro, não voltou a ter notícias dela até meio da semana, quando o contactou para literalmente se fazer convidada dos jantares de amizade dos Corvos. Se era a única forma de a poder ter consigo, Manuel entrava no jogo.
Os amigos não apreciavam a presença da irmã de Afonso. Muito pela sua postura de quem se achava superior aos restantes e pelas picardias esporádicas com o ex-namorado, José Carlos. Foi mesmo muito crítica para com ele, quando discutiram no jantar seguinte à manifestação junto à reitoria da Universidade de Lisboa, criticando-o por ter dado justificação para ser afastado da presidência da associação de estudantes. Os Corvos só a suportavam por solidariedade para com Manuel que percebiam estar completamente apaixonado por ela.
No entanto, decorridas algumas semanas, Manuel questionava-se acerca do interesse dela em conviver com ele. Recusava os seus convites para qualquer evento que não fossem aqueles jantares e, na noite anterior, recusara acompanhá-lo ao bar como era habitual após o jantar dos amigos.
A sua introspecção foi interrompida pelo surgimento de um grupo de militantes da JNL. Reconheciam-se à distância nos seus uniformes de casacos de cabedal negro, calças de padrão camuflado e botas militares. Não queria ter medo deles, mas sabia que era um ser vulnerável perante eles. Seria muito complicado se viessem para o castelo e se cruzassem com ele, uma vez que não deixariam de o provocar e ele não poderia responder, arriscando-se a perder o emprego, o que no seu caso e perante a nova lei, poderia significar a expulsão do país, mesmo sendo o lugar onde nascera, mas que uma lei estúpida dizia que a cor da sua pele indicava o contrário.
Os asquerosos jovens nacionalistas lusitanos viram-no e começaram a gozar no outro lado da rua. Manuel manteve-se dentro do perímetro do monumento, ignorando-os. Pensou naquele grupo novo que aparecera, o Movimento Armado de Lisboa, que "limpara" cinco nódoas daquela escumalha numa esplanada. As pessoas falavam do MAL com crítica e condenação, mas Manuel sabia que muita gente se revia neles como uma força paramilitar para fazer frente a um regime cada vez mais elitista e xenófobo. Ele próprio adoraria integrar as fileiras do MAL. Por alguma razão que Manuel não percebeu, os jovens dispersaram e desapareceram ao fundo da rua.
— Manuel?
A voz a chamar o seu nome trouxe-o de regresso à realidade. Virou-se e viu um jovem da sua idade a sorrir-lhe. O rosto não lhe era estranho, mas teve dificuldade em encontrar o nome que lhe correspondia. A seu lado, estava uma mulher lindíssima de cabelos negros, elegante e sedutora. Faziam um casal estranho, pois visualmente não tinham nada a ver um com o outro.
— Sim...
— Não me estás a conhecer, pois não?
— Desculpa.
— No outro dia, no comboio. Quando aquelas bestas te empurraram da carruagem...
Manuel recordou-se.
— Ah, sim... Já sei. Arménio?!
— Valério. — corrigiu.
— Oh... Desculpa, Valério. — Apertou-lhe a mão com os olhos na sua companheira. — Olá!
— Esta é a Kayla. — apresentou Valério.
Pelo nome, Manuel julgou que ela era estrangeira, mas Valério virou-se para ela e completou:
— Este é o Manuel.
— Olá, Manuel! — cumprimentou distante.
— Como estás? Não voltaste a ter encontros imediatos com a ralé?
— Ia tendo. — partilhou. — Há pouco passou um grupo por aqui. Vá lá, foi só isso.
Valério entregou-lhe as entradas e o casal passou pelo segurança.
— Gostei de te ver. Fica bem, Manuel!
— Tu também, Vicente!
— Valério. — corrigiu com uma gargalhada.
Manuel fez um aceno penitente.
Valério e Kayla avançaram em direcção à muralha no lado oposto à entrada, passando pela estátua de D. Afonso Henriques. Continuavam a disputar o seu campeonato de jogos amigáveis, sendo que nos últimos tempos isso não ia além de treinos pelo WhatsApp, trocando mensagens, uma vez que poucas oportunidades tinham para se encontrar. Para além disso, quanto mais se relacionavam, mais certezas tinha Valério que nunca seriam mais que amigos.
Valério caminhava ao lado dela com o orgulho de um homem que passeia com uma mulher capaz de fazer parar a respiração dos outros homens com quem se cruzavam. Valério idolatrava-a, sentia-se apaixonado por ela, mas evitava dar a entendê-lo, pois isso poderia ser prejudicial à relação de ambos. Claro que ele suspeitava que ela sabia disso, mas também tinha noção que fazia de conta que não sabia e nem nunca se tentara aproveitar desse facto. Era doloroso pensar na sua profissão, imaginar que ela estava na cama com outros homens. Apoiava‑se naquilo que ela um dia lhe dissera, "eles podem ter o meu corpo, mas só tu conheces a minha alma". Valério agradecera o privilégio, ciente que talvez preferisse o que os clientes dela tinham.
Pararam junto à muralha, virados para a cidade lá em baixo. Muitos turistas aglomeravam-se nos miradouros, armados de máquinas fotográficas e telemóveis com o objectivo de registar individualmente cada janela de cada prédio de cada rua, tal era o tempo e o número de disparos.
Kayla encostou-se à pedra com os braços cruzados sobre o peito. Valério olhou para a silhueta de ampulheta dela em contraluz. Sentia ciúmes dos olhares que paravam nela, esquecendo-se que era com ele que ela estava. Colocou-se a seu lado e ficaram a olhar para a cidade.
— Adoro Lisboa! — confessou Kayla com o olhar escondido atrás das lentes escuras. — Já estive em muitas cidades no estrangeiro, mas não há cidade mais linda do que a minha.
Valério observava-a pelo canto do olho, também protegido por lentes escuras que atenuavam o brilho do Sol intenso.
— Também gosto.
— Tens saudades da tua terra?
— Para te ser sincero... não.
— Não pensas voltar? Quero dizer... voltar em definitivo?
— Não.
A cidade iluminava-se bonita com os raios solares de uma tarde primaveril. O rio Tejo tinha uma tonalidade azul intensa com uma mancha de brilho na linha em que o Sol se elevava no céu, já em trajectória descendente. Valério e Kayla tinham combinado um encontro em Alfama para almoçarem e passear um pouco. Não se viam havia algum tempo e ela confessou-lhe que sentia saudades. Também lhe disse que se iria ausentar por uns tempos, mais uma daquelas viagens a acompanhar um rico empresário. E ela queria passar umas horas com ele. Desta vez, não daria para prolongar o convívio para o serão, jantando em casa dela, vendo um filme e terminando a noite com ele a dormir no sofá dela.
Observavam a paisagem, a extensão da cidade para poente e norte, a margem contrária do rio a sul. A ponte entre Alcântara e Almada parecia mais escura que a realidade e todo o trânsito nela produzia um ruído constante. Viram o comboio a atravessar o rio por baixo do tabuleiro rodoviário, seguindo para sul.
— Já te tinha dito que fui criada num orfanato? — perguntou ela, subitamente, com o olhar perdido no horizonte.
— Deixaste escapar algo sobre isso, no outro dia.
— A minha mã... A gaja que me pariu abandonou-me à porta de um orfanato. — Notava-se a mágoa misturada com raiva na voz. — Uma instituição de freiras. — Fez um sorriso escarninho. — Não sei quem são os meus pais.
— Ninguém que interesse, se foram capazes de te abandonar.
Valério arrependeu-se do que dissera, mal terminara. Afinal, fossem quem fossem, era os pais dela.
— Talvez tenhas razão. — concordou inexpressiva.
— Não deve ter sido uma vida fácil.
Nem tu imaginas quanto, principalmente depois de ter conhecido o actual arcebispo de Braga...
Prosseguiram o passeio ao longo da muralha, passando pelos canhões compridos. Será que alguma vez haviam sido disparados? Caminhavam para norte, observando o quadro citadino a perder de vista. Kayla segurou-lhe a mão como se fossem dois namorados a passear, gostava de transmitir a imagem a quem os visse de que lhe pertencia, apesar de Kayla não pertencer a ninguém, a não ser a si própria.
Contornaram o castelo numa toada calma, conversando descontraídos. Ele gostava de sentir a mão dela na sua, era a única oportunidade de a tocar além dos beijos protocolares de reencontro e despedida. Aqueles dedos entrelaçados nos seus eram suaves e a pele macia emanava um calor que lhe percorria as veias até ao coração. O perfume dela era como a brisa aromática suave que lhe dava vontade de literalmente a cheirar da cabeça aos pés. Estarem assim tão juntos também levava a que os longos cabelos negros dela esvoaçassem para o rosto dele, o que a fazia desculpar-se com um sorriso terno. Ele amava cada gesto dela, cada movimento, a mão a pentear os cabelos, o ajeitar da roupa, o pegar no telemóvel, a expressão curiosa e ausente, o dedo de unha pintada a deslizar pelo ecrã, o movimento da cabeça a atirar o cabelo para o lado, o ar sério a observar a paisagem. Na rua, produzida e bem arranjada, Kayla destacava-se como uma luz num túnel escuro. Porém, Valério adorava vê-la em casa, descontraída, sem preocupação em resplandecer, quando ambos se sentavam defronte da televisão a ver um qualquer filme.
Nessa noite, isso não aconteceria. Ela tinha já encontro marcado com o cliente e viagem marcada para algures. Kayla lamentou que isso não fosse acontecer, apesar de Valério ter muitas dúvidas que o lamentasse realmente. Também lhe disse quando regressaria e pediu-lhe que não a tentasse contactar durante o período em que estaria ausente.
— Eu ligo-te quando voltar. — disse-lhe sem entoação especial e a coberto das lentes, quando já estavam a descer a colina na direcção do rio.
— Queres que te leve a casa?
Kayla olhou para o relógio.
— Não.
— Não me custa nada.
— Eu sei. Mas, não quero.
Falava com algum distanciamento, aliás falava sempre com algum distanciamento sempre que se despediam. Valério quase que acreditava que ela tinha pena de se afastarem e que lamentava não estarem mais vezes juntos.
Sem saber bem porquê, ficaram em silêncio até alcançarem o Campo das Cebolas, onde Valério deixara o carro estacionado no parque subterrâneo.
— Posso deixar-te nalgum lado? — ofereceu ele, junto à escadaria de acesso. Ela abanou a cabeça. Trocaram dois beijos. — Diverte-te!
A expressão no seu rosto manteve-se séria. Era trabalho, não era diversão. Virou-lhe as costas e afastou-se sem olhar para trás.
14.2
A chuva caía com abundância sobre Lisboa, num dia de Abril que mais parecia de Dezembro. O debate semanal na Assembleia da República fora mais uma batalha de palavras entre o partido do governo e o MPP perante a inércia dos restantes partidos da oposição. Aquelas sessões já não traziam nada de novo para além da consciencialização das pessoas que os deputados se odiavam mais a cada dia. Desta vez, os diálogos azedaram de tal forma que o primeiro-ministro obrigou o presidente do hemiciclo a dar por encerrada a sessão ao meio-dia sem retorno à tarde.
Após o almoço, Raimundo Antunes deslocou-se ao Palácio de São Bento para conversar com o chefe do governo do qual fazia parte. Passou pelos elementos responsáveis pela segurança, geralmente agentes da Guarda Nacional Republicana, a menos que o MAI considerasse ser preferível trocá-los por agentes do SIALE. Para fazer segurança nos edifícios do Estado, aqueles tipos da GNR eram o suficiente e dispensava-lhe os especializados do SIALE para outra tarefas. Encontrou a sala que antecedia o gabinete do primeiro-ministro vazia. Onde estaria a assessora? Deveria estar lá dentro, por isso, iria esperar, calculando a cena para lá das portas.
Passados alguns minutos, Bárbara saiu do gabinete e surpreendeu-se com a presença dele.
— Boa tarde, doutor Raimundo Antunes. — cumprimentou-o. Virou sobre os sapatos de salto alto, olhando para o interior. — Engenheiro! O doutor Raimundo Antunes...
— Ele que entre! — ordenou o outro em voz alta.
A rapariga afastou-se para que o MAI passasse. Raimundo olhou-a, pensando que um dia talvez o seu líder a despedisse e ele encarregasse a Tarântula de a levar até à sua cave. Sorriu num ar de gozo e apontou para o canto da sua boca. Ela apressou-se a limpar, apesar de não ter lá nada, instigada pelo sentimento de culpa do que acabara de estar a fazer ao chefe.
— Sabias que o cabrão do Teixeira tentou convencer alguns militares a anteciparem-se ao nosso golpe? — informou Raimundo, sentando-se na cadeira em frente à secretária de Pinto Henriques. — Procurou apoio no general Maia.
— Não sei qual seria a ideia, Raimundo, não me parece que o gajo tenha assim tanta influência para se superiorizar ao marechal Costa Almeida.
— Pois... Não sei. Pelo que me chegou aos ouvidos, pela fonte que tenho junto do Flávio de Melo, o Manuel Teixeira usou esse argumento, colocar o general Maia no lugar do marechal, afastando-o da chefia das Forças Armadas. Aí sim, o general teria poder.
— Segundo a Constituição, o presidente é o chefe supremo das Forças Armadas.
— E ambos sabemos, Henriques, que actualmente esse poder vale zero. Os militares respondem ao marechal, não a um velho decrépito.
— Sim, Raimundo, eu sei. Só que quando executarmos o golpe, ele pode apelar ao apoio dos militares como seu chefe supremo.
— O nosso plano pressupõe que o capturamos antes de ele perceber sequer o que se passa. — recordou o MAI. — Mas, mesmo que isso venha a acontecer, duvido que alguém venha em seu auxílio. Não temos a unanimidade das chefias militares, mas os que não nos apoiam serão esmagados se tiverem o atrevimento de nos enfrentar. — Sorriu com orgulho. — E basta ver pela falta de inteligência do general, a capacidade táctica que poderiam ter contra nós. Eu soube deste pedido do Teixeira ao general porque o gajo comentou o assunto na messe dos oficiais sem se preocupar com quem o pudesse ouvir. E claro que os nossos "ouvidos" andavam por lá.
— E sabias que o Teixeira tinha ido falar com ele?
O rosto de Raimundo Antunes ensombrou-se.
— Isso é a única coisa que me preocupa. Eles não se encontraram pessoalmente e não falaram por telefone ou mensagem, temos tudo controlado no SIALE. Calculo que alguém tenho sido o elo de ligação, mas ainda não descobri quem.
— E o que disse ele na messe?
— Que o Teixeira lhe pedira auxílio para evitar um golpe de estado, disse que o outro devia ser maluco e que recusara o pedido.
— Então, não temos com que nos preocupar.
Raimundo sorriu divertido.
— Já viste a cara com que ele vai ficar, quando vir que o traste do Teixeira tinha razão?
— Pouco me interessa, Raimundo. — redarguiu o primeiro‑ministro levantando-se da sua cadeira. — E os resultados da implementação da lei? O Serviço de Estrangeiro e Fronteiras tem trabalhado bem?
— Já demos caça a uns quantos estrangeiros, temos umas dezenas já com guia de marcha daqui para fora. Havemos de deixar este país limpinho dessa corja de negros, putas e paneleiros.
Nesse momento, o telefone do gabinete tocou. Pinto Henriques não gostava de ser interrompido durante as reuniões com o seu braço direito. Levantou o auscultador irritado. No outro lado, a rapariga que o secretariava informou-o de um telefonema do arcebispo de Braga. O primeiro-ministro queria que ele ligasse mais tarde, mas ela avisou-o de que parecia importante e que o religioso parecia furioso. Pinto Henriques decidiu atendê-lo.
— Qual é a sua ideia, senhor primeiro-ministro? — foi a primeira coisa que lhe disse, sem qualquer cumprimento inicial. — Espera pressionar-me de alguma forma?
— Preciso que seja mais explicito, senhor arcebispo. — ripostou Pinto Henriques, ignorando a agressividade na voz do outro.
— Calculo que tenha feito chegar aquela... pastinha que trouxe ao meu gabinete a uma jornalista como forma de me pressionar.
— Não sei do que fala. — contrapôs, adoptando uma expressão confusa e apreensiva. — A pasta que lhe mostrei não saiu da minha mão, D. Narciso, não tenho nenhum interesse em pressioná-lo, temos um acordo.
— Pois não parece.
— Explique-se melhor, senhor arcebispo.
— Anda uma jornalista a fazer perguntas acerca... o senhor sabe, acerca do conteúdo da pasta.
— Isso não é possível. Só eu e as pessoas da minha confiança é que sabem dessa pasta.
— Então, alguém deixou escapar algo.
— Não creio, D. Narciso.
— Pois eu estou a borrifar-me para as suas crenças. Arranje maneira de calar essa jornalista ou o nosso acordo acaba.
A face de Pinto Henriques ganhou uma expressão de fúria. Porém, controlou-se.
— Isto não é a Rússia, D. Narciso. Não calamos os jornalistas.
No outro lado da linha, uma gargalhada irónica ecoou ao ouvido do político.
— Trate do assunto, senhor primeiro-ministro.
— Quem é a jornalista?
— Vanessa Leal.
Pinto Henriques deu um soco na mesa, surpreendendo Raimundo Antunes. Havia jornalistas fáceis de calar, mas apesar de todo o controlo e censura do SIALE sobre a comunicação social, também existiam outros que ainda se mantinham quase intocáveis. Era o caso de Vanessa Leal, nacionalmente conhecida pelas suas reportagens de jornalismo de investigação. A jornalista trabalhava para o maior grupo de notícias do país, o qual era conivente com o regime, composto por canais de televisão, rádios e jornais.
— Eu trato disso. — comprometeu-se num tom seco.
Logo que desligou, partilhou a questão com o líder do SIALE.
— Como é que isso chegou ao conhecimento dela?
— Nós nem sabemos o que é que ela sabe, Raimundo. O arcebispo só sabe que ela anda a fazer perguntas.
— Cá para mim está só a atirar o barro à parede.
— Talvez, mas temos de jogar pelo seguro.
— Se fosse outro jornalista... Mandava uns agentes dar-lhe um aperto, mas a Vanessa Leal… — Raimundo abanou a cabeça. — Não precisamos desse tipo de publicidade negativa, já para não falar que, ao metermo-nos no assunto dava a entender que tínhamos algo a ver com o caso, virávamos a investigação para nós e ela poderia começar a remexer em coisas que não nos interessa. E aí tínhamos mesmo de a calar, à moda da Rússia como referiste há pouco.
— Que sugeres?
Raimundo ponderou um pouco, pensando nas hipóteses. De súbito, teve uma ideia na sua habitual genialidade ao serviço do partido.
— Já sei. Vamos dar-lhe algo para ela investigar que a faça desviar-se do arcebispo.
— E como pretendes fazer isso?
— Já te disse, acho que está a atirar o barro à parede. Vamos arranjar-lhe alguém com uma denúncia concreta. Só que em vez de o visado ser o arcebispo, será o nosso "querido" Manuel Teixeira.
— Que vais fazer?
— Deixa comigo, Henriques. Não te preocupes que eu trato disso. — O ar entusiasmado do MAI deu lugar à apreensão de quem trazia algo de preocupante para partilhar. — Tenho algo para te contar. O SIALE descobriu quem é a fonte do Manuel Teixeira, quem é que lhe está a passar informações sobre o nosso golpe.
— A sério, Raimundo? — questionou Pinto Henriques com os olhos muito abertos. — Quem é o filho da puta?
— É o Coelho Ferreira, o nosso ministro dos negócios estrangeiros.
— O QUÊ???
Raimundo assentiu com dramatismo.
Pinto Henriques deixou-se cair na cadeira, estupefacto.
— Temos de fazer alguma coisa, Henriques, não podemos ter um traidor nas nossas fileiras, ainda para mais um membro do governo. E felizmente que ele não sabe o plano todo, senão... — O primeiro-ministro ouvia-o atentamente, mas a sua mente ponderava a atitude a tomar. — Acho que seria uma boa oportunidade para darmos mais uma missão ao MAL.
— Ao MAL?
— Sim. Um atentado para matar o gajo. É um dois em um, matamos o gajo e acentuamos as animosidades contra Lisboa.
— Não, não, Raimundo. Matá-lo dessa forma, não. Dá um sinal perigoso de vulnerabilidade da nossa parte. Iremos dar a entender que somos alvos fáceis.
— Então, que fazemos? Deixamo-lo sem castigo?
— Não. Concordo com o atentado. Mas, um atentado falhado. — modificou o primeiro-ministro. — O atentado ajuda à animosidade, como dizes. Se for um fracasso, a animosidade aumenta na mesma. Só que nós não ficaremos com uma imagem frágil, demonstraremos que somos difíceis de abater.
— Ok. Então como sugeres que nos livremos dele?
— Usa um assassino. Tens lá muitos no SIALE. Depois do atentado, arranja forma de o gajo morrer, mas... Faz com que pareça natural, como se fosse um efeito colateral do atentado.
— Percebo. E tenho a agente ideal para isso.
— E não te esqueças da jornalista. — lembrou, dando a entender que a reunião estava terminada.
Raimundo percebeu e levantou-se da cadeira.
— Não te preocupes, Henriques, eu trato de tudo. — Sorriu com uma expressão sádica. — Trato sempre.
14.3
A estrada molhada obrigava a atenção redobrada na condução. Parara de chover, mas as rajadas de vento sentiam-se na mota, fazendo-a estremecer e seria fácil despistar-se num qualquer movimento mal calculado. Contudo, Cristina não trocava o prazer de pilotar uma mota por conduzir um carro. Só havia uma coisa que lhe fazia o corpo vibrar mais que acelerar na sua Kawasaki Ninja H2R, era cortar as nuvens e furar o céu dentro do cockpit do seu F-16.
Cristina tinha vinte e sete anos, era piloto da Força Aérea Portuguesa e pertencia ao esquadrão de aeronaves de caça F-16 estacionadas na Base Aérea Nº 5 de Monte Real. Gostava de ser tratada pelo primeiro nome, uma vez que os apelidos a identificavam imediatamente com o pai, o primeiro-ministro Pinto Henriques. Cristina adorava o pai, mas não gostava que a opinião das pessoas acerca de si se resumisse ao apelido. Acostumara-se a que a tratassem com subserviência ou com distanciamento sem que em ambos os casos a chegassem a conhecer. Raramente era a Cristina, quase sempre era a filha do engenheiro. Contudo, na base era conhecida pela patente e apelido, ou seja, era a tenente Henriques.
Cristina era descrita como uma espécie de mistura entre a Lara Croft interpretada pela Angelina Jolie em Tomb Raider e o Maverick protagonizado por Tom Cruise em Top Gun. Era uma mulher imponente e confiante, envergava sempre uma indumentária estilo aventureira, quando não estava fardada com o uniforme militar ou o macacão de piloto. Gostava de calças de ganga roçadas com vários bolsos e botas militares. Da cintura para cima era arrebatadoramente feminina na escolha do vestuário. Usava o cabelo penteado para trás e preso num longo rabo de cavalo empinado na nuca que lhe chegava a meio das costas, longos cabelos que enrolava num carrapito em todas as vezes que estava de serviço.
Nascida e criada no Porto, Cristina adorava a sua cidade, era o local mais bonito do Mundo. E Cristina já tivera a felicidade de poder viajar muito, conhecer muitas cidades, mas o Porto... era o Porto. Adorava caminhar pela Ribeira, observar os barcos no rio Douro, passear pelos Aliados ou atravessar a ponte D. Luís I para observar a sua cidade em todo o seu esplendor. Ver o pôr-do-sol junto à Foz, ver o mar, caminhar pelo parque da cidade... Havia tanta coisa que adorava na sua Invicta.
Cristina estivera de licença uns dias no Porto para estar com a família e tratar de alguns assuntos. Desta vez, não aproveitara a ausência da base para ir até Lisboa, visitar o namorado. Para desgosto do seu pai, Cristina apaixonara-se por um lisboeta. Ela não partilhava daquela visão redutora do pai em responsabilizar Lisboa por todos os problemas do país, nem entendia que um homem tão inteligente como ele tivesse aquela mentalidade. O pai continuava desagradado com o namoro dela, mas dizia sempre que não duraria muito, pois não se podia confiar em compromissos com gente de Lisboa.
Sempre que saía do Porto, gostava de se despedir com uma passagem por um dos lugares mais emblemáticos da cidade. Aquele dia não seria excepção, por isso, apesar da chuva, Cristina circulou pelas ruas portuenses até descer a Rua Passos Manuel, passando em frente ao Coliseu do Porto, e virar para a Rua de Santa Catarina, entrando com a mota na zona pedonal. Não avançou muito, somente uns dez metros e estacionou-a perto da esquina. Não muito longe, um polícia viu-a e começou a aproximar-se para lhe dizer que não poderia deixar a mota ali. Só que, quando ela retirou o capacete, ele reconheceu-a e deu meia-volta. Não era bom criar problemas com ninguém da família Pinto Henriques.
Cristina era conhecida em toda a cidade do Porto. Tripeira de gema, era acarinhada pela maioria das pessoas, suportada por outras e mal-amada por quem não gostava do seu pai. Tinha muitos amigos e era extremamente sociável. Pendurou o capacete no cotovelo e caminhou tranquila pela rua até ao Majestic. Entrou e foi recebida com um sorriso pelos funcionários. Era um lugar muito concorrido e procurado pelos turistas. Estava quase cheio, mas haveria sempre uma mesa para a filha do chefe do governo do país. Cristina não se importava, se alguma vez tivesse de esperar por uma mesa, mas isso era impensável para os funcionários. Sentou-se numa mesa ao fundo da sala comprida e pediu um chá.
O ambiente era muito agradável, os clientes variavam desde os estrangeiros em visita à cidade até aos portuenses elegantes, já com alguma idade, que eram clientes habituais e que possivelmente já ali iriam diariamente desde o século passado. Alguns acenavam a Cristina, reconhecendo-a. Sempre adorara aquele local, era capaz de ficar horas na mesa a beber um chá e a observar as pessoas.
Nesse instante, entrou no local um jovem de mochila às costas. Deveria ser mais um turista. Indicaram-lhe um lugar a duas mesas dela. O rapaz tirou a mochila, colocando-a numa cadeira vaga, e sentou-se. Um empregado aproximou-se com simpatia para receber o pedido.
— Quero uma bica.
A expressão do homem alterou-se por completo. Cristina reconheceu o sotaque, já para não falar no termo "bica", identificando-o como sendo de Lisboa. Desde o atentado contra os jovens da JNL na Avenida da Liberdade que os lisboetas eram realmente odiados no Porto. Não por o atentado ter acontecido em Lisboa, mas por ter sido perpetrado por um grupo assumidamente lisboeta contra o Norte. O seu namorado nunca fora ao Porto para a ver, nem manifestou alguma vez ter intenção de o fazer, caso contrário, ela tê-lo-ia aconselhado a não o fazer.
— Aqui não temos “bicas”! — respondeu o funcionário, suficientemente alto para chamar a atenção das pessoas sentadas nas mesas próximas.
Cristina não gostou do comportamento do homem, os portuenses eram bairristas e hospitaleiros, não respondiam com quatro pedras na mão só por alguém ser de um determinado sítio, mesmo que esse sítio se tivesse tornado nos últimos tempos o foco de todos os ódios do Norte.
O jovem pareceu surpreendido com a resposta e ficou confuso com a súbita antipatia do funcionário.
— Mas tem café, não tem? — intrometeu-se ela.
O empregado levantou as sobrancelhas com espanto, encaixando a reprimenda associada ao tom dela.
— Sim, claro.
O rapaz olhou para ela, mas Cristina desviou o olhar como quem não pretendia ser interpelada.
Nesse preciso momento, entraram no salão três rapazes com os seus característicos trajes da JNL. Cristina começou a ver a vida a complicar-se para o jovem, se aqueles três tipos percebessem donde vinha.
O funcionário depositou a chávena com o café sobre a mesa, quase como se a atirasse. Por pouco, o líquido não se entornou. O cliente ia protestar, mas o outro atirou-lhe com a despesa, exigindo o imediato pagamento. Percebendo que seria melhor não empolar mais a situação, ele pagou sem dizer nada.
Talvez tudo tivesse ficado por ali, se o empregado não tivesse tido a iniciativa de informar os jovens da JNL do que acontecera. Cristina percebera-o ao vê-lo apontar para o rapaz distraído a ver o ecrã do telemóvel.
Cristina também consultou o seu telemóvel para ver se tinha alguma novidade, fosse no email ou nas redes sociais. Viu as horas. Tinha de seguir caminho, pois teria de se apresentar na base de Monte Real nesse fim de tarde. No entanto, aquele desconhecido preocupava-a, até porque se acentuavam os olhares dos jovens nacionalistas sobre ele. Deixou-se ficar.
Ao fim de dez ou quinze minutos, o jovem levantou-se do seu lugar para se ir embora. Logo de imediato, os três "J" abandonaram a sua mesa para o seguirem. Cristina pegou no capacete, deixou uma nota sobre a mesa e avançou entre as mesas para a saída. O exterior estava húmido e parecia ter voltado a chuviscar. Logo que saiu para a rua, ainda a passar entre as mesas da esplanada, viu um dos indivíduos da JNL a chamar o desconhecido. Este pareceu não reparar que era o visado.
— Ó lisboeta! Estou a falar contigo, caralho!
O rapaz voltou-se. Ela não lhe viu medo no rosto, apenas surpresa. Seria assim tão inconsciente que não percebia o perigo em que estava? Limitou-se a olhar para eles.
— Que vieste cá fazer, filho da puta? — questionou outro, enquanto se aproximavam. — Volta para a mouraria, cabrão!
Cristina sabia que, assim que ele estivesse ao alcance deles, as palavras dariam lugar às agressões. Não o poderia permitir, estava farta que a sua querida cidade estivesse conotada com aquela escumalha de jovens do partido do pai. Decidiu intervir:
— Hei! — Eles olharam para trás. Um deles ia a dizer qualquer coisa, mas foi travado pelo parceiro que lhe segredou algo. Ela descodificou na expressão deles que a haviam reconhecido. — Que é que vocês estão a fazer?
Não houve resposta para além de sílabas perdidas e desconexas. Ela passou por eles e colocou-se em frente ao jovem, virando-lhe as costas.
— Então? — exigiu aos três tipos.
— É de Lisboa. — respondeu um, apontando para o desconhecido como se fosse um criminoso.
— E? — A inquirição não obteve resposta. — Desde quando é que tratamos mal quem nos visita?
— O tipo é de Lisboa. — repetiu outro.
— E? — tornou a questionar ela. Não proferiram qualquer justificação. Cristina manteve-se como obstáculo entre ambos os lados. — Talvez seja melhor seguirem o vosso caminho.
Contrariados, os três jovens nacionalistas lusitanos afastaram-se a proferir insultos contra o outro.
— Obrigado. — agradeceu o jovem de mochila às costas.
Cristina não alterou o seu semblante duro.
— Não sei o que vieste cá fazer, mas talvez seja boa ideia seguires viagem.
— Não tenho medo de escumalha daquelas. — retorquiu quase arrogante.
— Mas devias ter. Se eu não me tivesse metido no assunto, agora estavas no chão a ser espancado.
Ele atirou-lhe uma gargalhada sarcástica.
— Tiveram medo de ti, foi?
— Tu não sabes quem eu sou, pois não? — questionou Cristina, percebendo que se desabituara a que não a reconhecessem no Porto. Mas, aquele tipo não era do Porto.
Ele sorriu-lhe, numa espécie de tentativa de parecer sedutor.
— Não. Ainda não me disseste o teu nome.
— Cristina! — exclamou, vendo-o a estender-lhe a mão. — Cristina Pinto Henriques. — Ele reconheceu o nome e ficou com a mão no ar. Ela não fez qualquer movimento para aceitar o aperto de mão.
— Sancho. — retribuiu ele. Antipatizou com ela. — Lamento que vos faça impressão que visitemos a vossa cidade. Só que a minha namorada vive cá, por isso... — Adoptou uma postura rígida, confrontando a dela. — Tenho pena que uma cidade tão bonita tenha gente reles como aqueles tipos.
— O meu namorado também é de Lisboa, mas tem a inteligência de não vir cá acima. Actualmente é bom evitar provocações.
— Provocações? Estás certamente a falar do teu pai, não?
Cristina não pretendia ficar ali a esgrimir argumentos com um desconhecido, ainda para mais com o tempo limitado e a chuva a dar sinais de regressar. Até poderia ter alguma razão em relação ao facto de o pai ser um incendiário político, mas jamais tomaria posição contra ele. Encolheu os ombros como se o outro fosse irrelevante, colocou o capacete na cabeça e tornou a avisar:
— Toma cuidado. Da próxima vez, não estarei por perto para te safar.
Virou-lhe as costas, caminhando para o sítio onde estacionara a mota. Montou-a com estilo, retirando as chaves do bolso do casaco ajustado na perfeição ao seu corpo. Ligou a ignição e o motor rugiu como um trovão. Acelerou devagar, consciente que uma aceleração forte seria capaz de quebrar os vidros das montras. Olhou para trás e já não viu o desconhecido. Desejou que nada de mal lhe acontecesse, não por ele, mas pela sua cidade que não precisava de mais máculas. Arrancou devagarinho pela Rua Passos Manuel iniciando a sua viagem de regresso à base aérea.
14.4
A chuva não a largara todo o caminho, desde a A1 até Aveiro, onde desviou para a A17. O vento também não se mostrou seu amigo, soprando com intensidade ao longo da autoestrada do litoral. A A17 deu lugar a uma estrada estreita de dois sentidos sem que a chuva ou vento abrandassem. Cristina sentia que iria chegar completamente encharcada. Os dias estavam mais compridos, a anoitecer para lá da hora do jantar, mas naquela tarde a nebulosidade era tão intensa que a noite parecia ter chegado mais cedo.
Perto da Base Aérea Nº 5, a chuva deu tréguas tornando-se num aguaceiro singelo. A iluminação dos candeeiros já não estava formatada para acender àquela hora, daí que circulasse numa linha de alcatrão mergulhada na penumbra. Chegou finalmente à entrada da base, vendo as cancelas a vedar a passagem e a emblemática carcaça do F-16 para lá destas. Abrandou a mota até se imobilizar diante do ponto de controlo de acessos, vendo um militar aproximar-se de si.
— Tenente Henriques! — anunciou com a voz abafada pelo interior do capacete e o ronronar do motor, mostrando-lhe a identificação.
O militar anuiu e fez sinal para que levantassem a cancela.
Cristina avançou lentamente pela base, circulando vagarosamente com o motor a roncar baixinho, dirigindo-se para o sector das camaratas. Não chovia, mas o vento tornara-se mais forte devido ao terreno árido onde ficava a pista. As árvores que cercavam a base estavam demasiado longe para servirem de barreira protectora às rajadas. Estacionou a Kawasaki no local que lhe era reservado e desligou o motor, sentindo a ausência do som que a acompanhara nas últimas duas horas. Ao longe, o rugir de um avião, possivelmente num hangar da manutenção de aeronaves. Afastou-se da mota numa passada lenta sem se importar com o ambiente húmido. Perto da entrada do edifício, retirou o capacete a coberto da placa de cimento acima da porta.
Ao entrar, os seus olhos encontraram o líder do seu esquadrão.
— Boa tarde, meu major! — cumprimentou, fazendo a continência respeitosa para com um superior hierárquico.
— Boa tarde, tenente! — retribuiu ele.
O major Souvares era mais conhecido por D. Luís Filipe, o filho do duque de Bragança e herdeiro do inexistente trono português. Na Força Aérea era o major Souvares, mas na imprensa cor-de-rosa era D. Luís Filipe, o playboy.
Luís Filipe tinha quarenta e cinco anos e ostentava o título de duque do Porto. Cristina considerava o título curioso, uma vez que o duque não tinha qualquer relação com a Invicta e já lhe confidenciara que raramente lá ia. Em bom português, era um mulherengo, já fora casado com uma princesa holandesa, mas as coisas não duraram, o que chegou a causar alguma crispação entre a nobreza dos Países Baixos e a Causa Real. Desse casamento efémero nascera D. Filipa, a segunda pessoa na linha de sucessão ao trono inexistente de Portugal. Luís Filipe tinha uma imagem de galã, aliás, parecia um actor de Hollywood dos tempos do cinema da primeira metade do século XX, muito parecido com Clark Gable, o cabelo penteado para o lado, muito bem aparado, um bigodinho simples, o olhar intenso, a boca expressiva e uma postura militar que lhe dava um ar altivo, próprio da realeza, mesmo que fosse uma realeza órfã de reino. Como é de calcular, o casamento com a princesa holandesa não resultara porque o duque não era homem de somente uma princesa... Na verdade, nem precisavam de ser princesas, podiam ser simples plebeias, desde que tivessem bom corpo e despertassem o seu desejo. A filha de ambos era uma jovem de vinte e um anos que crescera entre Setúbal e Amesterdão e agora vivia e estudava em Berlim.
Cristina e Luís Filipe desenvolveram uma boa amizade sem que os instintos sexuais dele o tivessem levado a tentar a sorte com ela. Luís Filipe tinha limites definidos e um deles era não se envolver com colegas de trabalho. Por seu lado, Cristina reconhecia-lhe o encanto masculino, mas ele tinha idade para ser seu pai e, para além disso, arruinaria a sua carreira militar a envolver-se com um superior.
— Pareces cansada.
— Conduzir uma mota com este tempo...
— Sabes que existem umas coisas chamadas... automóveis? Dão um jeitão em dias assim. — Ela lançou-lhe um sorriso escarninho. — Está tudo bem lá por cima?
— O normal.
— O Porto está mesmo sítio? — questionou ele com humor.
— O meu major não sabe? Não é duque do Porto? — retorquiu ela em provocação.
— É para isso que tenho os meus súbditos, para me manterem informado. — respondeu, representando uma figura exageradamente altiva. — A tenente como portuense deve manter o seu duque informado.
Ambos sorriram divertidos.
Luís Filipe fez um gesto de desinteresse e sugeriu:
— Vamos beber qualquer coisa. Pago eu.
— Sim, majestade. — concordou ela, piscando-lhe o olho.
Caminharam lado a lado pelo corredor, ele fardado com as vestes azuis-escuras da Força Aérea e ela com o seu traje civil, segurando o capacete na mão direita.
— Como está a Vanessa?
Luís Filipe encolheu os ombros.
— Está bem.
Vanessa era a actual namorada do duque, uma relação que parecia perigosamente aproximar-se de algo parecido com um compromisso. Curiosamente, era uma jornalista, mas nada tinha a ver com aqueles pasquins de notícias da vida privada das celebridades, onde por vezes ele fazia destaque. Vanessa era uma jornalista de investigação conceituada. Conheceram-se num evento social, conversaram e descobriram muitos pontos de interesse comum. Ela era um ano mais nova e a relação deles já durava há um bom meio ano, o que para o duque era algo incomum. Cristina duvidava que ele fosse fiel à jornalista, mas na verdade não tinha evidências do contrário, nem era assunto que lhe dissesse respeito.
— E o teu namorado? — questionou ele, como se ripostasse à pergunta dela.
— Está bem, obrigada. — respondeu sem querer alongar o assunto.
Luís Filipe era conhecido pelo seu bom humor, um tipo divertido e sociável que gosta de ser o centro das atenções em todos os lugares por onde passa. Contudo, em serviço, mantinha uma postura reservada, autoritário com os subalternos e respeitoso para com as patentes superiores, mesmo que alguns lhe reconhecessem algum relevo pelo título nobiliárquico. Claro que a grande maioria estava literalmente a borrifar-se para um duque numa República. Na base era comum encontrá-lo em serões no bar a jogar e a beber umas cervejas, sempre divertido, sempre sociável, uma presença cativante.
Com Cristina, partilhava uma amizade especial, como se ela fosse uma irmã mais nova, mesmo sendo pouco mais velha que a sua filha. Se estivesse de serviço, tratava-a como a todos os outros, mas fora dessa função, gostava de ser brincalhão com ela.
— O teu pai ainda não te deserdou?
— Ainda não.
— Foste logo arranjar um namorado natural do sítio que o teu pai mais odeia.
— Não foi de propósito. — respondeu, não evidenciando o mesmo tom humorado do major.
— Se não te conhecesse, diria que o fizeste para o provocar.
— Não sou assim.
— Eu sei, Cris.
Entraram no bar.
O ambiente era tranquilo, não havia muita gente por ali àquela hora. O maior grupo tinha cinco elementos e conversavam resguardados numa mesa de canto. Cristina não era a única mulher na base, havia mais duas pilotos e algumas oficiais. A tropa era cada vez menos exclusiva do sexo masculino. Sentaram-se ao balcão e pediram uma cerveja.
— E a tua filha? Tens falado com ela? — questionou Cristina, enquanto aguardavam as bebidas.
— Sim.
— Continua feliz em Berlim?
Luís Filipe anuiu, esboçando um sorriso.
— Já te disse como ela é reservada. Quando falamos, nunca conta muito da vida dela. Já desisti de insistir, sei que quanto mais a pressiono, menos ela fala. — O empregado deixou dois copos altos cheios de cerveja de pressão sobre o balcão defronte deles. — O meu pai quer que a convença a conhecer alguém da realeza europeia para se começar a pensar em casamento. Continuar a linhagem e...
— A rapariga ainda é nova. — interrompeu Cristina. — Deixem‑na viver a vida mais algum tempo. — Ele encarou-a com um semblante discordante. — Eu sei que é um assunto importante, Luís. Mas Portugal já não é uma Monarquia, não existe essa pressão para... — Sorriu. — ...parir reis.
— Dizes tu. A pressão existe.
— A miúda tem vinte e um anos. Tem muito tempo para isso.
— O problema é que possa andar namorar...
— Que possa sair ao pai. — atalhou ela.
Luís Filipe não contestou.
— Isso também. E que possa aparecer com um herdeiro já na barriga de um qualquer caramelo.
— Isso é que não. — retorquiu com ironia. — Não vamos sujar a linhagem Souvares com sangue plebeu.
— Deixa-te disso, Cris. Sabes que não sou assim tão fundamentalista.
— Tu não, eu sei. Já todos os outros monárquicos... — Deu uma gargalhada. — Ainda para mais, a Alemanha recebe tantos migrantes. E se a Filipa fica grávida de um refugiado da Somália?
— Nem a brincar. Não diga disparates, tenente.
— Vá lá, estou a brincar contigo, Luís.
O major sorriu e bebeu mais um pouco da sua cerveja.
Ficaram alguns momentos em silêncio.
— Que se passa? Pareces preocupada.
— Estava a pensar em toda esta agressividade que tem vindo a crescer entre Norte e Sul.
— É mais entre Porto e Lisboa.
Cristina concordou.
— Hoje, se não me tivesse metido, acho que tinham linchado um tipo de Lisboa no Porto.
— E tu foste meter-te no meio? Mulher de coragem.
— Tu sabes a dimensão da minha coragem. Claro que ser uma filha do Porto e do homem mais idolatrado da cidade tem os seus benefícios.
— Se o teu pai sabe que andas a defender "alfaces" na Invicta...
— Defendo a minha cidade. Não precisamos de cenas que nos deem mau nome. Já chega a existência da JNL.
— E do PNL. — adicionou o major. — Desculpa, eu sei que ele é teu pai, mas isto anda assim por causa dos ódios que ele semeou.
— Os ódios sempre existiram.
— Ele desenterrou-os.
Cristina não teve argumentos para o contrariar, mas preferiu o silêncio a tomar uma posição contra o pai.
14.5
A investigação jornalística era o seu mundo, a sua razão de viver, nada a fazia sentir mais realizada. Desde pequena que queria ser jornalista e com o amadurecimento da idade, percebeu especificamente a área que mais se identificava consigo. Vanessa Leal tinha quarenta e quatro anos e era uma espécie de justiceira dos desprotegidos, dos desfavorecidos, de todos quantos não conseguissem fazer-se ouvir. O seu rosto fechado e enrugado atribuía-lhe uma imagem mais velha que a real, a expressão era dura e o maxilar quadrado acentuavam uma boca de dentes grandes. Usava o cabelo muito curto, talvez para lhe dar um efeito ainda mais ríspido. A sua personalidade era forte e carismática. Não era influenciável e a procura incessante por justiça parecia ser insaciável. Apesar de imensas reportagens premiadas e vários furos jornalísticos que lhe valeram a fama de justiceira e intocável, Vanessa perseguia informações acerca de um caso nunca resolvido.
Cerca de cinco anos antes, recebera uma denúncia acerca de religiosos, desde padres a cardeais, bispos e por aí fora, que alegadamente abusavam de crianças em orfanatos com ligações à Igreja. A investigação fora complicada, uma vez que mexia com um meio muito protegido. Contudo, as fontes levaram-na a uma testemunha disposta a relatar concretamente esses abusos com nomes de vítimas e culpados. Infelizmente, ela falecera num acidente de automóvel, antes de lhe conseguir passar a informação. Tivesse sido acidente, ou não, todas as potenciais fontes se afastaram, receosas de sofrerem também um "acidente". Assim, nos últimos cinco anos, Vanessa andava literalmente a cavar sem perspectiva de encontrar o fundo. No entanto, inteligente como era, arriscou a solicitar uma entrevista ao cardeal-patriarca de Lisboa, o qual a recebeu com cortesia e a tentou esclarecer nas suas questões, revelando aquilo que lhe pareceu um genuíno constrangimento pela eventualidade de as suas suspeitas serem reais. A menos que fosse um grande actor, D. Santiago, cardeal-patriarca de Lisboa, não era homem para cometer aqueles crimes. Sendo assim, Vanessa Leal apontou baterias para outra alta figura da Igreja, o arcebispo de Braga, D. Narciso Rathesleon. E aí, as coisas tomaram um rumo estranho, uma vez que este se recusou a recebê-la e considerou execráveis as suas suspeitas. Acontecera algumas semanas antes e acicataram o instinto faminto dela.
Vanessa era natural da terra do presidente da república, Coimbra, e lá vivia quando não estava a trabalhar nos estúdios de Lisboa ou do Porto do seu canal televisivo. Preparava-se para nova investida à Arquidiocese de Braga, talvez junto de algum clérigo mais aberto a ser interpelado, quando recebeu um telefonema de alguém que não se quis identificar.
— Vanessa Leal?
— Sim.
— Tenho algo que talvez tenha interesse em investigar.
— E o senhor quem é?
— Podemos marcar um encontro?
Vanessa suspeitava sempre deste tipo de contacto. Ela era alguém incómodo para muita gente importante, tinha de ter precauções em relação a encontros com desconhecidos, não fossem custar-lhe a própria vida.
— Preciso de saber quem é e o que me pretende contar.
— Não lhe posso dizer por telefone. É demasiado perigoso.
— E quem me diz que você não é um maluco a querer fazer-me perder tempo?
— Terá de correr o risco.
— Não me parece.
— É sobre altas figuras da política.
Aquilo parecia interessante, apesar de Vanessa preferir evitar assuntos que a colocassem em rota de colisão com o PNL. No entanto, ela nunca temera nada nem ninguém, não começaria agora.
— Nacionalistas?
— Não lhe posso dizer por aqui.
— Onde quer encontrar-se?
— Pode vir a sul, a Setúbal?
O encontro aconteceu dois dias mais tarde. Vanessa tivera um compromisso profissional no Porto na véspera, pelo que teve de atravessar meio país para se encontrar com o anónimo. Para sua segurança, combinou que se encontrassem numa esplanada com vista para o rio Sado muito frequentada. Quis saber como o reconheceria, mas ele apenas lhe disse que a encontraria e iria ter com ela.
O dia estava abafado e sentia-se um cheiro a mar provocado pela subida da maré no estuário. Vanessa chegou antes da hora marcada, procurando com o seu instinto o potencial informador. Tal como era costume, vestia calças de ganga apertadas que lhe acentuavam as ancas largas e um casaco clássico em tons beges. Calçava botas com biqueira pontiaguda cujo cano escondia por baixo da ganga. Retirou a mala pendurada no ombro e sentou-se numa das cadeiras vazias da esplanada. Pediu um café, olhou em redor e esperou.
Ao fim de alguns minutos, viu aproximar-se um homem alto, magro com uma indumentária muito gasta, óculos escuros, sapatilhas rotas e um boné com uma grande nódoa na pala.
— Posso? — pediu, apontando para a cadeira vaga defronte da jornalista.
— E você é quem? — atirou ela, ríspida, calculando que seria o homem que lhe ligara.
— Combinámos encontrar-nos aqui?!
Vanessa apontou para o assento, autorizando que ele se sentasse.
— Que história é que tem para mim? — questionou directa, sem paciência para perder tempo.
— Importa-se que fume?
— Importo. — respondeu, apesar de também ela ser fumadora. Queria deixá-lo desconfortável até perceber o que dali vinha. — Ainda não me disse o seu nome.
— Pode chamar-me Zé.
— Que calculo não seja o seu verdadeiro nome.
— Não, não é.
— Se começa logo a enganar-me com o nome, como posso saber que você é confiável?
— O nome falso é só uma questão de protecção. — explicou, acenando ao empregado. — Um café, por favor.
Vanessa colocou o telemóvel sobre a mesa, usando-o como gravador. Não lhe pediu autorização. Ele olhou para o aparelho, mas não protestou.
— Então diga lá, Zé. Que denuncia é essa que tem para me fazer?
O tom de Vanessa era quase beligerante, habituada a paspalhos que a faziam perder tempo com histórias da treta.
Zé mostrava-se tenso. Curiosamente, Vanessa achou-o demasiado nervoso, como se tentasse mostrar-se assim sem que realmente estivesse.
— É sobre políticos do MPP. — começou, fazendo uma pausa para obter uma reacção. Vanessa permaneceu impávida. — Pedofilia. — adicionou com nova pausa e, mais uma vez, sem que a jornalista reagisse. — Alguns elementos importantes do partido estiveram envolvidos em abusos de menores.
— Estiveram ou estão?
— Não sei se ainda estão.
— E como é que você sabe disso?
Zé desviou o olhar para as mãos, começando a esfregar os dedos.
— Eu... Eu estive... Eu era... Eu também... Como dizer? — Vanessa não lhe facilitou a vida, permanecendo à escuta que ele verbalizasse. — Fui abusado.
— Por eles?
— Sim.
— E quem são "eles"?
O homem hesitou, olhou em volta como se temesse ser ouvido.
— Não quero ser envolvido nisto.
— Agora parece-me tarde, Zé.
— Não, não é. Estou a dar-lhe uma pista, agora a senhora investiga.
— Está a dar-me muito pouco. Quem são "eles"?
— Tipos do MPP.
— Quer que lhe recorde o número de militantes do partido? Lamento, mas terá de ser um pouco mais específico.
Após respirar fundo, Zé confessou:
— O líder é um deles. O tal Teixeira.
— O doutor Manuel Teixeira? — questionou ela, incrédula. Não o imaginava um pedófilo, mas já vira tanta coisa na vida... — Você foi abusado por ele? — O tipo anuiu. — Tem como o provar?
— Não.
— Ou seja, você faz-me vir aqui para me entregar uma mão cheia de nada.
— Estou a alertá-la para algo que aconteceu. É uma linha de investigação. A Vanessa faz investigação, não faz?
— Se fosse atrás de todas as pistas como a sua...
O homem, que não parecia ter mais que uns vinte e poucos anos, retirou os óculos e olhou-a com dureza.
— Procurei-a porque tem fama de lutar por justiça. Agora, se as suas justiças dependem da cor política dos visados...
Vanessa percebeu a ofensa e ripostou:
— Não tenho nenhuma cor política... Zé. Mas, preciso de mais que isso para investigar.
O homem levantou-se da cadeira, dando sinal de que se iria embora. Porém, já em pé, retirou um papel do bolso e entregou-o a Vanessa.
— O que é isto?
— Uma morada.
— Donde?
— Um lugar em Lisboa que talvez valha a pena investigar.
E com aquelas palavras, afastou-se deixando o café por pagar e um sem número de perguntas na mente da jornalista que começou a pensar que talvez valesse a pena perder algum tempo a analisar a morada que lhe ele lhe deixara.
O que Vanessa Leal desconhecia era que o "Zé" era um agente do SIALE enviado por Raimundo Antunes para a desviar da investigação ao arcebispo e atirar para seu alvo o líder do MPP numa denúncia completamente falsa. Contudo, Raimundo fora mais calculista ainda, ao mandar o agente entregar-lhe a morada do orfanato onde Rathesleon e tantos outros clérigos abusaram de crianças. Quando Vanessa lá chegasse, as freiras negariam tudo, o que só acicataria o faro da jornalista. E quem sabe, talvez pelo meio de tudo, ela ainda desse de caras com o verdadeiro culpado, o arcebispo, uma figura que Pinto Henriques só usaria enquanto lhe fosse necessário, pois homens como o religioso até para si eram abomináveis.
15.1
A manhã clareava devagar com o Sol a incidir sobre os terrenos verdejantes, anunciando mais um dia agradável. Rafael já não dispensava começar o dia com aquele quadro que se avistava da janela do seu quarto. Quando se mudara para a Herdade dos Jordões, não tinha prazo de estadia, mas calculara que não permaneceria por muitos dias, limitando-se a passar pela propriedade de tempos a tempos. Só que aquela primeira noite em que dois irmãos se amaram com uma paixão tão intensa e carnal mudara tudo. Por isso, ao longo das várias semanas passadas desde a sua mudança, Rafael só se ausentara meia dúzia de vezes e só em metade delas passara a noite no seu hotel no Porto. Conseguia gerir todos os seus negócios a partir daquela região vinícola perto de Miranda do Douro. Também a sua actividade de agente secreto do SIALE se mantinha activa, tendo ele dado conta a Raimundo Antunes dos acontecimentos e da sua nova base, estando sempre de prevenção a ser chamado pelo chefe a qualquer missão do interesse do PNL.
Naquela manhã, vestia um dos seus fatos Armani, algo raro nos últimos tempos, pois a vida no campo tornava a indumentária informal mais prática. Tomara o gosto pelas calças de ganga e pulôveres que começava a trocar por polos de manga comprida, uma vez que as temperaturas se tornavam menos agrestes. Porém, aquela manhã trazia um compromisso em que o Armani era mais indicado.
As pessoas também começavam a ganhar-lhe simpatia, talvez porque reconheciam o brilho no olhar de Clara pela presença daquele irmão, alguém que se dizia ter sido uma dádiva enviada por Deus para a ajudar a ultrapassar, dentro dos possíveis, a perda do pai. As irmãs governantas ganharam-lhe apreço e chegavam mesmos a dizer, sem que Rafael ouvisse, que ele revelava parecenças com o pai com o seu jeito respeitoso de tratar o seu semelhante. E nos campos, era visto como um patrão atento e competente, sem problema em questionar. Claro que todos sabiam que Clara era a dona maioritária da Herdade dos Jordões, mas se depositava tanta confiança no irmão, eles seguiam-no como a seguiam a ela.
Rafael olhou-se ao espelho uma última vez, ajeitando o nó da gravata no colarinho da camisa cara. Analisou-se ao milímetro e deu-se por satisfeito, segurando no casaco do fato e saindo do quarto. Caminhou pelo corredor silencioso até ao varandim da escadaria, descendo os degraus com os olhos no relógio e sorrindo por, tal como sempre acontecia, chegar ao pequeno-almoço antes da hora.
O salão de refeições estava deserto, mas a mesa já estava pronta para a primeira refeição do dia. Rafael caminhou até à janela, onde aquele quadro exterior lhe haveria de recordar para sempre o momento em que soubera que Clara era sua irmã. Observou a calma lá fora, onde as árvores abanavam ligeiramente com a brisa matinal. Foi resgatado à realidade pelo som de passos a aproximar. Clara entrou no salão, desfilando um vestido comprido escuro que lhe acentuava o cabelo louro. Sorriram um para o outro, cúmplices. Eram irmãos durante o dia, mas não havia uma noite em que ela não fosse ao quarto dele para fazerem amor.
— Bom dia, Rafael!
— Bom dia, Clara!
Trocaram um beijo fraternal no rosto e ocuparam os seus lugares habituais à mesa. Clara continuava a encabeçar o longo tampo de madeira coberto com uma toalha rendada. Nesse instante, Dolores entrou com café acabado de fazer.
Clara queria ir à missa nessa manhã e pediu a Rafael que a acompanhasse. Ele não era crente, nem reconhecia qualquer valor à religião. Contudo, jamais recusaria um pedido da sua amada irmã.
Logo que terminaram o pequeno-almoço, os irmãos saíram de casa. A temperatura exterior estava agradável, mas Clara não abdicou do seu longo sobretudo. O som das botas dela ecoou nas largas escadas frontais à fachada do palacete, quando desceram os degraus até ao Porsche estacionado na praceta onde desembocava o caminho entre o portão de entrada da propriedade e o edifício principal.
O caminho não era longo até à vila mais próxima, onde se localizava a paróquia local. O carro de Rafael chamava sempre a atenção e os locais já sabiam quem lá vinha, assim que ouviam o roncar do motor. As pessoas deslocavam-se tranquilamente para a igreja. Rafael deixou a irmã perto da entrada e foi procurar um lugar para estacionar, despreocupado com a eventualidade de se atrasar para o início da cerimónia.
Clara entrou na igreja, acenando alguns cumprimentos. As pessoas gostavam dela e não perdiam oportunidade para lhe dar uma palavra amável. Perto do altar, viu o padrinho e caminhou até ele.
Artur encontrava-se sentado na primeira fila, nos lugares reservados às figuras importantes da região. Nem deu pela aproximação dela.
— Olá, padrinho! — cumprimentou, oferecendo-lhe um beijo na face.
Ele não teve tempo de se levantar e sorriu-lhe com aquela ternura no olhar que dedicava a poucas pessoas.
— Não contava que viesses à missa. — disse ele, agradado por a ver.
— Vim expiar os meus pecados. — retorquiu com um sorriso.
— Tu és um anjo, minha querida. Que pecados terias tu a confessar?
Talvez o pecado de andar a fornicar com o meu irmão.
Artur chegou-se para o lado, oferecendo:
— Senta-te aqui. Podes assistir à missa comigo
— Obrigada, padrinho. Mas, vim com o meu irmão.
— Não me importo que o rapazola também se sente aqui.
— Deixe estar, padrinho. Não vale a pena ficarmos apertados.
Clara preparava-se para se afastar, mas Artur segurou-lhe a mão e informou:
— Ia mandar alguém lá a casa para te ir buscar, esta tarde. Podes vir a minha casa? Esta tarde, gostaria que estivesses presente numa reunião que vou ter.
— Claro, padrinho.
— Mas, só tu, Clara! — Ela anuiu. — Queres que mande o meu motorista ir buscar-te?
— Não, padrinho, não é preciso.
Nesse instante, ela viu Rafael entrar na igreja. Despediu-se de Artur e regressou às filas mais afastadas para encontrar um lugar para si e para o irmão. Sentaram-se na metade mais distante do altar, num banco sem mais ninguém. Tirando as primeiras filas dos católicos praticantes totalmente preenchidas, as restantes continham pequenos grupos de pessoas.
O padre entrou e as pessoas levantaram-se dos seus lugares. Era um homem muito idoso, rosto austero e com uma postura altiva, apesar de a velhice o obrigar a curvar-se para a frente, resultado da corcunda acentuada. Proferiu as primeiras palavras da praxe e os crentes benzeram-se.
Rafael era um mero espectador. Observou as pessoas, reconhecendo algumas delas como trabalhadores da Herdade dos Jordões. Já se havia cruzado com alguns na rua, os quais o haviam cumprimentado com deferência. Ele não era dado a posturas de superioridade, a menos que tivesse de o fazer quando o aborreciam, o que não era o caso com aquelas pessoas, daí que lhes sorrisse sempre que o interpelavam. Era curioso, pensava, que na "casa de Deus" todos deveriam ser iguais, mas notava-se os estatutos dos habitantes locais, a preferência dada aos homens ricos e poderosos da região na primeira fila, atirando o povo para trás destes. Clara também teria um lugar ali, como herdeira do património da família Jordão, mas ela preferia a companhia lá atrás do homem que tanto amava.
O sermão daquela manhã versava acerca do pecado da carne, das relações que ofendiam a Deus, dos antros inspirados pelo Diabo para afastar as almas inocentes, que se deixavam cair em tentação, no seu caminho da salvação. Rafael sentia-se profundamente entediado. Clara começava a pensar se aquilo não seria uma mensagem de Deus para si, alertando-a para o pecado que insistia em cometer todas as noites. Mas, era tão bom... Desvalorizou o pensamento. O Deus em que depositava a sua fé era um Deus que queria ver os seus filhos felizes. E ela estava feliz por amar Rafael, por muito contranatura que isso fosse aos olhos da fé e das pessoas.
— Cabe a nós, os crentes, aqueles que Nele acreditam, — prosseguia o padre. — não deixar que os valores se percam. Temos que defender a nossa terra, evitar que se transforme num antro de pecado, numa Sodoma e Gomorra, tal como acontece em Lisboa. Não vos deixeis enganar! Não vos deixeis cair nas tentações da terra dos demónios, da cidade do pecado que infelizmente é também a capital do nosso amado país.
Rafael e Clara ficaram surpresos com aquelas palavras. O que levava um padre a proferir um sermão tão condenatório contra Lisboa? Desde o surgimento do MAL que as pessoas se revoltavam contra as gentes da capital por supostamente abrigarem os terroristas, o que era falso e não passava de desinformação propagada pelo PNL. Porém, a Igreja não se envolvia nestes assuntos.
Após uma pausa dramática, o padre recomeçou num tom inflamado:
— O MAL não é só um grupo de terroristas, o MAL é a encarnação do demónio. Lisboa é o Inferno e as suas gentes almas perdidas no pecado. Tal como Sodoma e Gomorra, Lisboa é um antro de prostituição, de fornicadores, de homens que se deitam com homens e mulheres que se deitam com tudo, até com animais.
— O vosso padre é louco. — sussurrou Rafael no ouvido da irmã.
Clara estava boquiaberta. Conhecia-o desde pequena e nunca o vira num discurso tão crispado. Não percebia a que propósito vinha um sermão tão condenatório para com a capital, resumindo toda a maldade a uma região. Era absurdo.
A maior parte dos presentes tinham um nível cultural baixo e foram habituados a levar a palavra de um padre como a palavra do próprio Deus. Longe de Lisboa, a cidade que só conheciam das imagens da televisão tornou-se um quadro semelhante ao Inferno de Dante. Começava a dar frutos o acordo que Pinto Henriques fizera com Rathesleon para propagar aquela noção pelas paróquias a norte.
No final, Rafael suspirou quando se encontrou fora da igreja. Clara acompanhou-o com o mesmo desgaste do irmão perante aquele teatro inflamado. Não foram só as palavras, foi também o dramatismo com que o velho falara, qual profeta da desgraça, qual arauto da verdade suprema.
O vento soprava com maior intensidade à saída. Marcolino também estava na igreja e cruzou-se com os patrões, cumprimentando-os e comentando:
— Tenho de ter uma palavrinha com o meu irmão Valério. Acho que está na hora de ele pensar em voltar e abandonar aquele antro.
Clara sorriu-lhe e aconselhou:
— Vá lá, Marcolino. Não leve tão à letra as palavras do prior.
— Ele lá saberá do que fala. — insistiu. — Ele lá saberá.
A conversa foi interrompida pela saída de Artur. Marcolino fez‑lhe uma vénia com reverência e afastou-se.
Artur olhou para Rafael com um semblante carregado. Não gostava dele. Podia ser filho do seu grande amigo falecido, mas não suportava gente que lhe fizesse frente. Em atenção à afilhada, atirou:
— Bom dia, doutor Guerra.
Não revelou qualquer intenção de lhe estender a mão.
— Bom dia, D. Artur! — retribuiu Rafael com a mesma rudeza.
— Que discurso estranho, padrinho. Não achou?
Artur olhou para o interior da igreja, como se procurasse ver o padre.
— Um absurdo. — concordou. — E o pior é que, segundo me constou, este tipo de discursos contra Lisboa estão a tornar-se usuais nos sermões da região.
— Mas, a que propósito?
— Não faço ideia, Clara. Só sei que se podem tornar muito perigosos.
— Perigosos, padrinho?
— Temo que sim. As pessoas estão cada vez mais revoltadas com Lisboa. Não sei onde isto irá parar.
Rafael sabia onde iria parar, sabia o que os seus chefes estavam a preparar. No entanto, isso não dizia respeito àquele velho com a mania de que mandava em tudo e em todos.
15.2
A tarde ventosa trouxera consigo as nuvens e a ameaça de chuva. Clara pedira a um dos funcionários da herdade que fizesse o papel de seu motorista e a levasse até à propriedade do seu padrinho. Rafael oferecera-se para a levar, mas ela recusara, respeitando o pedido de Artur para que ele não a acompanhasse. E era mais simples encarregar um funcionário de a esperar o tempo que fosse preciso, ao invés de dar esse papel ao irmão.
A propriedade de Artur era semelhante à Herdade dos Jordões, mas em proporções um pouco maiores. Situava-se a poucos quilómetros de distância, uma viagem de cinco minutos de carro.
As vinhas estendiam-se em todas as direcções, quase parecendo que a casa senhorial caíra ali no meio por engano. Perto da fachada frontal, alguns automóveis chamaram a atenção de Clara pela quantidade, uma vez que não era muito habitual tantos veículos na propriedade. Teria o padrinho visitas? O mordomo surgiu na porta, logo que ela saiu do carro. Era um homem já com alguma idade e repleto de formalidades. Clara conhecia-o desde pequena e sorriu-lhe cândida. Ele cumprimentou-a com seriedade e indicou ao motorista que poderia entrar pela porta de serviço e aguardar pela patroa na cozinha, onde lhe serviriam uma bebida para atenuar a espera.
Clara seguiu o mordomo pelo corredor do palacete. Contava que este a conduzisse à sala onde o padrinho a aguardaria ou ao escritório, caso ele estivesse a trabalhar em algum assunto dos negócios. Ao invés, ele encaminhou-a para uma escadaria que descia para um piso inferior, apontando-lhe o acesso e dizendo:
— Pode descer, menina Clara. D. Artur espera a sua chegada lá em baixo.
A escada era escura, iluminada fracamente por um aplique na parede entre os dois lanços de escadas que davam acesso à cave. Clara desceu cuidadosa, sentindo o mordomo afastar-se na direcção contrária. Não se recordava de alguma vez ali ter acedido e avançou cada degrau com cuidado para não colocar o pé em falso. Ao fundo das escadas, um átrio igualmente escuro com a penumbra entrecortada pela luz proveniente de uma sala adjacente à esquerda. Ouviu vozes e concluiu que o padrinho a esperaria ali na companhia de mais alguém. Curiosa, atravessou o átrio em direcção à sala.
As vozes calaram-se quando ela apareceu na porta.
A sala parecia uma velha adega com as paredes de pedra em bruto, como se alguém se tivesse esquecido de terminar a obra. O tecto em madeira revelava as vigas que suportavam o chão do piso superior. Um candeeiro redondo com seis lâmpadas iluminava o espaço em tons amarelados que se juntavam ao alaranjado das chamas que crepitavam na lareira ao fundo, acesa para aquecer o ambiente frio da cave. Num dos lados, velhas pipas que Clara não saberia dizer se tinham vinho ou não. Na parede oposta, prateleiras com dezenas de garrafas escuras, engarrafadas com vinhos provenientes de colheitas de diversos anos. E no centro, uma larga mesa redonda em madeira maciça com várias pessoas sentadas em volta, à excepção do seu padrinho que estava de pé. Também reparou que uma das cadeiras estava vazia.
Ao ver a afilhada, Artur sorriu e caminhou até ela apoiado na sua bengala.
— Olá, Clara! Entra!
Os quatro pares de olhos que ela não conhecia cravaram-se em si com uma expressão neutra. Clara aproximou-se do padrinho e cumprimentou-o com um beijo, mantendo a atenção nos desconhecidos. Artur deu-lhe o braço e conduziu-a até à mesa com o intuito de proceder às apresentações.
A primeira figura sentada era de um homem da mesma geração de Artur. O seu rosto era austero e usava óculos de lentes redondas que mantinha apoiados na ponta do nariz, revelando que os usava como auxiliar de leitura. O cabelo era cor de prata e penteado com um corte muito acertado, quase como se tivesse saído de uma foto dos inícios do século XX. Vestia um fato elegante em tons azuis-escuros, cujo casaco depositara nas costas da cadeira, mantendo somente o colete a envolver a camisa cujo colarinho prendera com um laço clássico da cor do fato.
— Apresento-te D. Duarte, duque de Aveiro.
O homem ofereceu-lhe um sorriso cordial, levantando-se ligeiramente para lhe apertar gentilmente a mão.
Ao lado deste, uma senhora com idade para ser mãe de Clara levantou-se da sua cadeira. A expressão era afável e os cabelos claros produziam um penteado que parecia ter sido cuidadosamente montado num formato cónico. Vestia uma camisa bege e calças castanhas de tecido elegante. Clara reparou nas botas de montar, como se tivesse vindo no dorso de um cavalo. Nas costas da cadeira, um exemplar de pele quente em forma de casaco.
— D. Cesarina, duquesa de Trancoso.
— Olá, minha querida. — cumprimentou a senhora, oferecendo‑lhe um beijo suave no rosto que Clara nem teve tempo de retribuir.
Na cadeira seguinte, outra senhora mais velha elevou-se do seu lugar. Tinha um rosto menos simpático, mas Clara reconheceu-lhe uma rigidez de frontalidade, ao contrário de um laivo de cinismo que encontrara na anterior. Apesar de ser evidente que era mais velha que Cesarina, o seu cabelo era preto, penteado para trás e arrumado num carrapito simples. Envergava um conjunto castanho de saia e casaco que complementava com sapatos de sola grossa e desenho ríspido. Estendeu‑lhe a mão, quando Artur disse:
— D. Guilhermina, duquesa de Torres Novas.
Clara apertou-lhe os dedos com cuidado, sentindo o aperto forte da outra.
Por fim, o último elemento que ainda não fora apresentado. Era um homem baixo, careca e com uma barba espessa que lhe chegava quase ao peito. As sobrancelhas eram felpudas e quase não tinham separação entre si. O rosto era bochechudo e o nariz angular destacava-se entre os olhos claros. Visualmente era o menos formal, vestia um pulôver de malha grená, calças de bombazina pretas e calçava botas curtas de biqueira redonda.
— D. Aníbal, duque de Vila Real.
Aníbal apertou-lhe a mão com delicadeza.
Feitas as apresentações, Artur olhou para o grupo e anunciou:
— Caros amigos, apresento-vos D. Clara, duquesa da Guarda e filha do nosso querido e saudoso amigo D. Basílio. — Olhou para a afilhada e alterou o tom, elevando a formalidade do momento. — Clara! Bem-vinda à Irmandade Monárquica dos Ducados Extintos.
Então aquele era o grupo secreto de que o padrinho lhe falara.
Artur apontou-lhe a cadeira ao lado da sua, convidando-a a sentar-se. Ela aceitou, sentindo a curiosidade dos restantes, enquanto o seu padrinho se sentava no seu lugar com a dificuldade da idade a perturbar os movimentos.
Clara sentiu-se na corte do rei Artur rodeada pelos Cavaleiros da Távola Redonda. Não tinha dúvidas de que o conceito era semelhante, ao sentarem-se numa mesa circular como iguais, significava que nenhum dos membros era mais ou menos que o seu semelhante, tal como rezava a lenda do rei Artur. Não reconheceu nenhum dos rostos que lhe foram apresentados, o que a levava a concluir que não eram pessoas da região.
— Conversávamos sobre o sermão que ouvimos hoje na igreja, Clara. — partilhou Artur, encostando a bengala à mesa.
— Preocupante, sem dúvida, D. Artur. — adicionou Duarte. — Ainda para mais porque toda esta situação pode tornar-se fracturante no país.
— E não é só aqui, também já ouvimos sermões semelhantes na nossa zona. — disse Cesarina, obtendo a concordância dos restantes.
— Peço desculpa. — interrompeu Clara. — Posso saber quais são essas zonas?
— Claro, minha querida. — acedeu Cesarina. — Eu sou do Porto. E nas paróquias da cidade, estes sermões têm sido bastante comuns nos últimos tempos.
— Em Braga também. — interveio Aníbal. — E segundo consta, pelo que pude apurar, têm origem em indicações do próprio arcebispo.
— Não acredito, D. Aníbal. — refutou Guilhermina. — Conheço D. Narciso Rathesleon, é um homem íntegro. Por que razão haveria de instigar os padres a sermões contra Lisboa?
— Também é de Braga, D. Guilhermina? — questionou Clara.
— Mais ou menos. — respondeu com um gesto de desdém. — Nasci lá, mas vivo em Portalegre.
— E lá...
— Não, não há sermões destes. Pelo menos, que tenham chegado ao meu conhecimento. Não quer dizer que não existam na realidade. Pelo menos, tenho ido sempre à missa e não houve qualquer referência.
— Lá em baixo, seria impossível. D. Adosindo nunca o permitiria.
Clara reconheceu o nome do bispo de Setúbal.
— D. Duarte é de Setúbal?
— Sim, D. Clara. Nascido e criado nas margens do Sado.
Artur deu uma palmadinha no braço do amigo, explicando:
— D. Duarte é o mais graduado entre nós, é membro da Causa Monárquica.
— Sou um igual a vós. — corrigiu Duarte com humildade.
A Causa Monárquica era a entidade oficial composta pelas diversas reais associações que regem os assuntos monárquicos em Portugal e que reconhece como únicos e legítimos herdeiros do trono a família Souvares. Duarte era também integrante de um núcleo duro da associação que conhecia a história da suposta existência de um filho bastardo do último rei. No entanto, fruto das convulsões políticas do país na época e os problemas que os monárquicos atravessavam em Portugal nos anos após a queda da Monarquia, os seus antecessores acabaram por perder o rasto a essa descendência. Duarte era também um defensor acérrimo dos Souvares. Não era admissível para si que houvesse outra possibilidade de ascensão ao trono que não viesse da Casa de Souvares. E se esses infelizes surgissem, ele preocupava-se em manipular a realidade para os desacreditar. Obviamente, esta parte não era do conhecimento da Irmandade, ali ninguém sabia nada de herdeiros bastardos, nem das ligações obscuras de Duarte dentro da organização principal dos monárquicos.
Artur explicou a ligação de Duarte à Causa Monárquica, obtendo deste, ligeiros acenos de cabeça confirmativos de tudo o que relatava. E finalizou:
— Por isso, o nosso desejo é trazer novamente o regime monárquico a Portugal.
— E com ele, a subida ao trono de D. Jerónimo ou do seu filho. — adicionou Duarte.
— À falta de melhor... — desabafou Cesarina.
Astuta, Clara questionou:
— Não gosta dos Souvares, D. Cesarina?
— Não se trata de gostar, minha querida. É só uma questão de direito ao trono. E eu não me sinto confortável com o facto de serem eles os detentores desse direito.
— Por favor, D. Cesarina. — protestou Duarte. — Não vamos voltar a esse assunto.
— Desculpe interromper, D. Duarte. Mas, confesso que partilho das dúvidas de D. Cesarina.
Artur riu.
— Eu e a minha afilhada já tivemos esta conversa. — Olhou para Cesarina colocando uma mão sobre o braço de Clara. — Acho que tem aqui uma aliada nas suas interrogações, D. Cesarina. A Clara... D. Clara também não aprecia o facto de que o rei venha dos descendestes do absolutista.
— Por favor! — tornou a protestar Duarte. — D. Jerónimo é um homem íntegro, bem formado, afável, um excelente exemplar daquilo que deve ser um rei.
Clara não pôde deixar de considerar surreal que se debatesse com tanto vigor a ascensão a um trono inexistente.
— A Causa só os escolheu porque não havia mais pretendentes. — recordou Cesarina.
— E que culpa têm eles que o último rei não tivesse tido filhos? — contrapôs Duarte. — Tivemos de retroceder décadas para encontrar novo fio à meada da linhagem real.
— Resta saber como reagiria a Causa se houvesse algum filho desconhecido... — equacionou Guilhermina.
— Já tivemos disso. — atalhou Duarte com um gesto de enfado. — Histórias de adultério do pai do último rei... Enfim. Lamentavelmente, esse último rei morreu em Londres sem ter conseguido plantar um herdeiro no ventre da esposa. Valha-me Deus Nosso Senhor, aquela família parecia amaldiçoada.
Aníbal, que se mantinha em silêncio, falou pela primeira vez:
— D. Clara não gostaria de ver D. Jerónimo como rei de Portugal?
— Para ser sincera, D. Aníbal, nunca me debrucei muito sobre essa questão. Nasci e cresci num Portugal republicano. Nunca me passou pela cabeça que a Monarquia voltasse... Não me interprete mal, sinto que sou mais monárquica do que republicana, mais não seja por toda a glória da nossa nação estar invariavelmente ligada a reis e não a presidentes. — Houve um aceno concordante nos restantes. — Só que no cenário actual, acho muito difícil recuperar a Monarquia. — Sorriu com um ar ingénuo. — Mas, quem sou eu? Acabei de chegar, só há muito pouco tempo soube dos objectivos desta Irmandade.
— D. Jerónimo seria um bom rei. — insistiu Duarte.
Clara olhou-o com um semblante de falsa ingenuidade e questionou:
— Permita-me uma pergunta, D. Duarte. — Sorriu. — Aproveitando a sua posição e conhecimento na Causa Monárquica.
— Diga, D. Clara. Terei todo o gosto em esclarecê-la.
— Por que razão a Casa de Souvares ganhou a pretensão ao trono sobre a Casa de Bragança?
Os restantes contiveram os sorrisos, a questão parecia não ser nova por ali. Duarte pigarreou perante a expressão divertida de Artur.
— Quando a hereditariedade da Coroa é decepada, como tragicamente acontecera em Portugal devido ao regicídio e ao facto de D. Manuel II não ter tido filhos, surgiram diversos candidatos à sucessão do último rei de Portugal. Como calcula, um trono é sempre apetecível. Apesar dos diversos argumentos, a Causa Monárquica na época, não encontrou viabilidade para outro pretendente que não fosse descendente de D. Miguel, mais designadamente por via do seu filho D. Miguel Januário, seu único filho varão. Assim, há cerca de cem anos, a Causa Monárquica reconheceu um dos seus netos como pretendente legítimo à Coroa portuguesa, dando continuidade à dinastia de Bragança. Contudo, essa pretensão foi rebatida pela Casa de Souvares, mais precisamente pelo avô de D. Jerónimo que casara com uma filha de D. Miguel, filha essa que fora fruto de uma relação amorosa que o rei tivera quando ainda era rei de Portugal.
— Não sei se sabes, Clara. — interveio Artur. — Calculo que o saibas, uma vez que o teu conhecimento de História de Portugal é excelente. Todos os filhos de D. Miguel nasceram no exílio. É certo que foram fruto de um casamento legítimo, mas quando D. Miguel já não era rei.
— E foi esse o argumento que o velho Souvares apresentou à Causa Monárquica. — prosseguiu Duarte. — A relação que D. Miguel tivera com uma nobre em Santarém não fora adúltera, fora um enamoramento que… — Duarte pareceu constrangido perante as senhoras presentes. — Bom, digamos que eles colocaram o carro à frente dos bois. D. Miguel não chegou a casar com a senhora, mas reconheceu mais tarde a filha que nascera nesse período como sua legítima filha.
— É claro que o fizera como necessidade de afirmar os seus direitos dinásticos e assegurar descendência. — adicionou Artur.
Duarte anuiu e continuou:
— O avô de D. Jerónimo argumentou que a sua esposa era de linhagem real, não só por parte do pai como da mãe, a qual era uma nobre. Além disso, era realmente filha de um rei em funções, ao contrário dos Bragança que eram filhos de um rei exilado cujo reino era reinado por outro monarca.
— E isso foi suficiente para virar a agulha para os Souvares? — questionou Clara.
— Isso e manobras de bastidores. — atirou Artur.
— Por favor, D. Artur. — indignou-se Duarte, fiel defensor dos Souvares. — Isso são especulações sem qualquer fundamento.
— Como assim?
Artur olhou para a afilhada e explicou:
— Há quem diga que o velho Souvares circulou nas sombras para que a Causa apoiasse a sua pretensão ao trono.
Duarte insistiu:
— Com todo o respeito, D. Artur. Isso são patranhas de quem não aceitou que fora vencido na sua pretensão à Coroa portuguesa.
— E assim, a Casa de Souvares passou a ser a legítima sucessora do último rei de Portugal, D. Manuel II. — concluiu Clara. — Duarte assentiu. — E a Casa de Bragança? Não acredito que se tivessem dado por vencidos.
— O neto de D. Miguel protestou. E tanto ele como o filho, posteriormente, continuaram a reivindicar o título de duque de Bragança que lhes conferia o direito à sucessão ao trono. — Duarte encolheu os ombros. — Mas, foram caindo no mesmo saco de pretendentes que têm vindo à tona, várias correntes de parentesco que se afirmam legítimos sucessores.
— A meu ver, a decisão da Causa parece-me acertada. — Os olhares viraram-se para Guilhermina. — Discordo totalmente de que o sucessor tenha sempre de ser o filho varão.
— Ainda para mais quando a História do Mundo já nos deu tantas rainhas importantes. — adicionou Clara.
As duas trocaram um sorriso cúmplice. E a mais velha prosseguiu:
— Por isso, havendo uma filha mais velha, a primeira do rei, quando este ainda era o monarca do reino e, para além de tudo isso, nascida em Portugal, ao contrária da linhagem no exílio, parece-me totalmente justo que sejam os Souvares, os seus descendentes, a ocupar o futuro trono de Portugal. Mesmo que seja D. Jerónimo a sentar-se lá.
— Não gosta de D. Jerónimo, D. Guilhermina?
A outra fez uma expressão ponderativa, não deixando de observar de soslaio Duarte que se mostrava incomodado.
— Assumo que o considero um bom homem. Mas, parece-me um tanto ao quanto… frágil. Porém, não me importaria de o ver sentado no nosso trono.
— Se não gostasse de ver D. Jerónimo como rei não lhe levaria a mal. — disse Artur. — Eu próprio não o acho com colh... — Interrompeu‑se olhando para as senhoras. — Peço desculpa! Não o acho com fibra.
— Sim. — concordou Duarte. — D. Luís Filipe é que seria o rei ideal.
— O homem ainda nem chegou ao trono e já o querem depor. — lamentou Cesarina.
O grupo começou a debater os seus pontos de vista, perante o olhar silencioso de Clara, uns mais favoráveis que outros à subida de D. Jerónimo ao trono.
Subida ao trono? Mas que trono?
Clara sentia-se a perder tempo. Encarava a sua presença naquele grupo como um desperdício. Seria bem melhor estar em casa a tratar dos assuntos da empresa na companhia do irmão. Para si, aqueles velhos pareciam não ter noção da realidade, debater se o duque era ou não um bom rei num país que era uma República? Onde jamais se viu um laivo de oportunidade para trazer a Monarquia de volta? Por si, entregaria o lugar na Irmandade a quem o quisesse ou que o tornassem, como o seu suposto título, extinto. Convenceu-se a encarar aquilo em consideração à memória do pai, convicta que logo que saísse dali, aqueles assuntos não importunariam minimamente a sua mente.
15.3
A tarde aproximava-se do fim. Pela janela do seu quarto, Rafael via a luminosidade diminuir espalhando uma tonalidade alaranjada lá fora. Estivera muito tempo no escritório da casa a analisar assuntos relacionados com os vinhos, na ausência de Clara. Para se concentrar nos seus próprios negócios, preferia a privacidade do seu quarto.
Felizmente, no que respeitava aos negócios, não havia motivos para qualquer preocupação, tudo corria normalmente. Analisou distraidamente um relatório da fábrica de sapatos de uma das marcas da qual era proprietário sem lhe ligar grande importância, uma vez que a sua cabeça se perdia em interrogações acerca dos motivos da visita da irmã à casa do padrinho. Não que isso fosse estranho, uma afilhada visitar o padrinho, se bem que em todo o tempo que passara desde que se mudara para a Herdade dos Jordões, Rafael não se recordava de qualquer visita dela. Para além disso, achou-a muito reservada e algo misteriosa naquela sua intenção de visitar o Dom Artur sem que ele a acompanhasse. Que lhe estaria a esconder? Sorriu sozinho. Clara não tinha segredos para si.
Os seus pensamentos foram interrompidos pela chegada à sua caixa de email de uma mensagem codificada proveniente do seu chefe, Raimundo Antunes. Rafael iniciou o software de descodificação para que os caracteres ilegíveis se transformassem num texto com nexo.
Raimundo Antunes informava-o que o actual embaixador dos Estados Unidos em Portugal iria reformar-se e ser substituído por outro americano tão superficial quanto este. Rafael conhecia a posição de constante desconfiança do chefe para com os embaixadores, via-os sempre como inimigos dentro do seu país ao serviço de interesses e de cidadão estrangeiros. A mudança de figura na embaixada poderia causar algum tipo de problema aos planos do golpe, uma vez que era imperativo não ter oposição estrangeira, fosse por partilha de interesses comuns, fosse por chantagem com reféns, o verdadeiro objectivo de isolar Lisboa na altura do golpe. Fora para obter garantias que Rafael Guerra fizera aquela viagem por vários países no início do ano. E não lhe pareceu que a mudança de embaixador trouxesse qualquer contrariedade ao plano. Contudo, Raimundo vivia de informações, vivia de conhecer amigos e inimigos melhor do que estes o conheciam a ele. Por isso, encarregava Rafael de lhe obter o máximo de informações acerca do novo embaixador. Não seria uma tarefa difícil para ele, uma vez que tinha muitos contactos nos serviços secretos americanos.
O som de alguém a bater à porta fê-lo minimizar a janela aberta no ecrã do computador.
— Sim?
Dolores apareceu na abertura da porta.
— Peço desculpa por incomodar, doutor Guerra. A menina Clara já chegou.
Antes de subir, ele pedira-lhe que o avisasse quando isso acontecesse.
— Obrigado, Dolores.
Novamente sozinho, Rafael tornou a abrir a janela com a mensagem e digitou uma resposta rápida, informando que iria tratar daquele assunto.
Saiu do quarto para procurar a irmã. Ao sair do corredor da sua ala do palacete, viu Clara a subir as escadas.
— Então? Que tal a visita ao teu padrinho?
Clara parou junto dele e beijou-lhe o rosto.
— Nada de especial. Tem saudades minhas e gosta que o visite. Estivemos a beber um chá e a conversar. — Sorriu-lhe com uma ternura sincera no olhar. — Vou tomar um banho e depois podemos jantar.
— Posso ir tomar banho contigo? — sussurrou-lhe.
Clara fez uma expressão assustada, olhando em redor.
— Não digas essas coisas. — pediu baixinho. — Alguém pode ouvir e...
— Não te preocupes. — descansou-a no mesmo tom sussurrado. Alterou para um tom normal. — Vou descer. Espero-te na sala para depois jantarmos.
— Combinado.
Clara afastou-se para o corredor contrário donde ele viera. Rafael desceu as escadas com o olhar nela até a irmã desaparecer do seu campo de visão.
16.1
A noite amena convidava a um passeio pelas ruas da cidade, fosse pelas ruas de diversão nocturna, fosse numa qualquer rua de um bairro tranquilo. No entanto, Vylka não circulava em nenhum desses casos, o seu foco era outro, uma tarefa que lhe fora encarregue pelo chefe, o líder do SIALE, uma tarefa a que já se habituara e que cumpria com a naturalidade de quem vai tomar um café. Ao volante do seu carro, conduziu até um bairro degradado nos arredores de Lisboa, um lugar conhecido pelo tráfico de droga e pelo ajuntamento de drogados e drogadas em terrenos baldios. Eram as presas mais fáceis e úteis, pois faziam tudo em troca da droga e ninguém dava pela sua falta. Não era a primeira vez que andava por ali, mas tinha o cuidado de não ser reconhecida, não fosse dar-se o caso de algum dia alguém identificar uma mulher de cabelos brancos como a última pessoa que fora vista com determinada desaparecida. Não que fosse grande problema, pois assuntos com as autoridades eram facilmente resolvidos pelo dedo de Raimundo Antunes. Mesmo assim, a Tarântula usava um boné negro como o fato a esconder o branco.
Ninguém no seu perfeito juízo iria para ali. Vylka não receava, uma vez que, se alguém tentasse alguma coisa contra ela, teria um encontro imediato com a sua arma. E não seria a primeira vez. A Tarântula já matara por ali, tal como em outros lugares, apenas porque algum candidato a bandido teve a infeliz ideia de a tentar roubar. Não eram mortes que a realizassem, tinha muito mais prazer de matar em serviço, no cumprimento de uma ordem superior.
Naquela noite, procurava mais uma desgraçada para ir fazer companhia ao chefe na sua cave. Era em lugares como aquele que as encontrava, gajas que se arrastavam ao sabor da cocaína ou da heroína, quando não eram cenas ainda mais pesadas. As das drogas maradas, Vylka evitava. Não queria levar autênticos restos de gente para diversão do patrão, sabendo ela que o chefe gostava delas em condições mínimas. No entanto, aquele serão revelava-se fraco para a pesca da candidata. As que via eram demasiado escanzeladas e de figura completamente degradada. Se aparecesse com uma daquelas, o chefe era capaz de a insultar. Já uma vez se revelara pouco agradado com uma drogada malcheirosa que Vylka encontrara perto da estação ferroviária de Santa Apolónia. Deu para perceber, pelo estado em que a deixara, o quanto Raimundo Antunes ficara decepcionado com a escolha.
Vylka estava prestes a desistir e ir procurar noutro lugar, quando viu uma mulher sozinha, encostada a um candeeiro, quase a cair, com o cabelo desgrenhado a esconder o rosto. Vestia um blusão e calças, ambos em ganga gasta e suja com buracos. Decidiu parar perto dela.
— Hei! Tu! — chamou, após abrir o vidro do lado contrário. — Sim, tu! Estás a ver mais alguém aqui?
A mulher olhou em redor. Tinha um rosto interessante. Algures em tempos idos e antes de muitas doses de droga, talvez tivesse sido bonita. Confusa e assustada, permaneceu a segurar o candeeiro de rua com o ombro.
— Anda cá! — insistiu Vylka. — Não tenhas medo, não te faço mal.
A outra caminhou até à janela do carro, meio cambaleante. Debruçou-se com os braços apoiados na porta.
— Quem és tu? Conheço-te?
Vylka constatou que não cheirava mal, ou pelo menos não tinha um odor insuportável. Se tivesse, estava excluída.
— Queres ganhar umas massas? — Notou a mudança de olhar esgazeado para interessado. — Cem paus. Que dizes?
— Depende. — respondeu com a voz entaramelada. — Que tenho de fazer?
Não conseguiu evitar sorrir. Se calhar, até em troca de cinco euros, a tipa fazia tudo o que Vylka quisesse, mas adoptava uma postura de quem queria negociar.
— Usar o corpo. — respondeu a Tarântula de forma seca.
— Eh! — protestou a outra, levantando a mão. — Não sou fufa. Não o faço por cem mocas.
— Não é comigo. Quero oferecer-te a um amigo que quer passar um bom bocado
— Duzentas mocas.
Vylka tornou a sorrir e retirou duas notas de cem do bolso. Teria oportunidade de as recuperar.
— Se servires...
— Se servir? — interrogou a mulher, simulando estar ofendida.
— Cala-te e ouve! — ordenou a agente. — Abre o casaco! — A mulher fez um ar de enfado e abriu as abas do casaco, revelando uma t‑shirt sebosa velha com o símbolo dos Iron Maiden. — Levanta lá isso! Quero ver se tens mamas que valham o que pedes.
Viu-a afastar-se do carro e olhar para ambos os lados da rua, procurando confirmar se mais alguém andava por ali. Confirmando que apenas elas ali estavam, puxou a t-shirt para fora das calças e levantou-a, expondo um par de seios caídos, com certeza já muito amassados. Não eram maus de todo, mas Vylka não conseguiu evitar a recordação do estado em que ficaram os seios da última vítima que retirara na cave.
— Então?
— Entra! — convidou no seu tom frio e cavernoso de Tarântula.
— Primeiro quero o dinheiro. — exigiu.
— Entra! — repetiu Vylka, apontando-lhe as duas notas de cem euros.
A mulher entrou, possivelmente calculando a quantidade de droga onde iria gastar o dinheiro depois de satisfazer o amigo daquela tipa esquisita.
A viagem foi feita em silêncio. A mulher ainda fez menção de dizer alguma coisa, mas Vylka mandou-a calar. Não tinha paciência para conversas, era uma mulher de acção, uma agente do SIALE, uma assassina profissional. Aborrecia-a aquelas merdas, ter de angariar gajas como aquela para diversão do patrão. Não gostava da função, mas tinha consciência de que lhe eram atribuídas exactamente pela enorme confiança que Raimundo depositava em si.
Passou pelos portões da propriedade privada do MAI, sendo observada e reconhecida pelos agentes responsáveis pela segurança do perímetro. Nunca parava, não era necessário. Notou o ar de espanto da rapariga, interrogando-se sobre quem seria o amigo dela. O som suave dos pneus a deslizar no asfalto deu lugar ao restolhar na gravilha que cobria a linha entre os portões e a casa.
— Esta casa é de quem?
Vylka ignorou a pergunta e carregou no botão do comando que abriu o portão da garagem. Fez a manobra e entrou de traseira, pois era mais funcional para mais tarde colocar o cadáver na bagageira.
— Quem vive aqui? — insistiu.
— Anda! — ordenou-lhe, saindo do automóvel.
Cada uma do seu lado, percorreram a garagem até ao fundo. A mulher repetia os passos de Vylka, curiosa. Saíram daquele espaço para entrar num corredor de ambiente escurecido. A mulher não sabia quem ali vivia, mas pelo aspecto do interior, calculou que deveria ser alguém bem rico. Devia ter pedido mais dinheiro. Vylka encaminhou-a até uma porta diferente das restantes, um acesso que só abria com a marcação de um código. Quando a porta se abriu, a agente carregou no interruptor e as escadas iluminaram-se.
— Vem! — A Tarântula apontou para os degraus. — Desce!
A mulher obedeceu e começou a descer, sendo seguida pela mulher estranha vestida de preto com cabelos brancos e pele clara. Ao chegar à cave, reparou no interior, as ferramentas espalhadas por uma bancada, a corrente no tecto, as manchas no chão... Algo não batia certo.
— Que lugar é este?
Vylka ignorou a pergunta.
— Tira o casaco!
— Que lugar é este? — repetiu, visivelmente assustada.
— Faz o que te digo, antes que te magoes. — ameaçou a Tarântula.
Começando a sentir o pânico invadi-la, a mulher tentou fugir, contornando Vylka para voltar a subir as escadas. A Tarântula apanhou-a e segurou-a pelos braços. A mulher debateu-se. A agente perdeu a paciência e socou-a no rosto, fazendo-a cair desamparada.
O impacto da agressão e a queda no chão de cimento fizeram a mulher perder os sentidos. Por momentos, Vylka julgou ter exagerado na força empregue e que isso a pudesse ter matado. Baixou-se junto da vítima inanimada e colocou os dedos enluvados no seu pescoço. Estava viva. Revistou-lhe os bolsos das calças e recuperou os seus duzentos euros. A seguir, despiu-lhe o casaco. Virou-a de barriga para cima, juntou-lhe os pulsos e envolveu cada um com o aro metálico das algemas que trazia para o efeito. Por fim, tomou-lhe o peso, carregando-a nos ombros com facilidade, elevando-a o suficiente para prender as algemas no gancho da extremidade da corrente caída do tecto, deixando-a pendurada com os braços esticados para cima e os pés a tocarem o chão. Quando saiu da cave, a outra continuava inconsciente.
16.2
A única coisa decente que Cuba dava ao Mundo eram os charutos. Pelo menos, esta era a opinião de Raimundo Antunes. Tudo o resto naquela ilha poderia ser arrasado, principalmente o seu regime comunista merdoso. Razão tinha o Hitler em ter dado caça aos comunistas, tal como fizera Franco, Mussolini... Enfim, já não se faziam líderes assim. Houve outros que também os perseguiram, só que com brandura, como acontecera durante o Estado Novo em Portugal. Salazar fora brando com a oposição que se movia na clandestinidade. Não bastava vigiar, deter, torturar, exilar... Tinham de ser mortos. A oposição a um regime é uma doença que tem de ser curada, aniquilada e extinta do corpo político de um país. Salazar deveria ter tido alguém como ele, Raimundo Antunes, para simplesmente varrer os insatisfeitos para debaixo da terra.
Pegou no copo de Jameson e bebeu, enquanto observava o relatório que Rafael Guerra lhe enviara acerca do novo embaixador americano. O seu nome era Ronald Blackhorne e deveria ter sensivelmente a mesma idade do primeiro-ministro. Republicano como o presidente do seu país, era um conservador com uma visão muito próxima às ideias nacionalistas lusitanas, a defesa dos interesses de cada país ao invés da conjugação de medidas trabalhadas para o bem da comunidade de vários países. O actual presidente dos Estados Unidos dividia para conquistar, daí que fomentava as desavenças dentro da União Europeia para a enfraquecer e usava os seus embaixadores para acender os rastilhos europeus. Blackhorne era o emissário dessa estratégia para Portugal. Para Raimundo Antunes, para Pinto Henriques e para o PNL, um homem assim era um aliado.
Continuou a ler o relatório. Ronald era casado com Helen Blackhorne, curiosamente uma portuguesa que emigrara muito nova para os Estados Unidos. Talvez tivesse sido isso que levou à escolha dele para ser embaixador em Portugal, estar casado com alguém que conhecia o país e a língua. Não havia grandes informações acerca da esposa do embaixador, somente que nascera em Lisboa (Pinto Henriques ia adorá‑la, pensou com ironia), estudara Belas Artes no Porto, quisera ser actriz e perseguira esse sonho viajando para os Estados Unidos. Não teve qualquer sucesso na representação, mas conseguiu algum retorno financeiro na pintura. Acabou por conhecer Ronald pouco tempo depois e casaram. A vida de Helen, ou Helena na realidade, resumia-se a obras de solidariedade, direcção de galerias de arte e eventos sociais. Não era ninguém importante. Mesmo assim, Raimundo não gostaria de ser apanhado de surpresa. Só o facto de ter nacionalidade portuguesa poderia significar que ainda teria família em Portugal e seria importante saber se tinham simpatias ou ligações políticas. Decidiu que, desta vez, não iria dar essa missão a Rafael Guerra, preferindo colocar outro agente a investigar em fontes diferentes.
Ouviu bater na porta do seu escritório e concedeu a entrada à pessoa em quem depositava uma confiança cega.
— Está pronta. — informou Vylka.
Raimundo anuiu e apontou-lhe a cadeira para que se sentasse.
— Tenho uma nova missão para o MAL. — A Tarântula assentiu, ouvindo com toda a atenção. — Quero que o MAL faça um atentado contra o ministro dos negócios estrangeiros, o Coelho Ferreira. — Ela não escondeu a surpresa, mas não questionou. — Não é para o matar. É importante que sobreviva. Mas quero que o atentado faça estragos, muitos estragos e mortos.
— E o ministro sobrevive.
— Sim, mas não por muito tempo. — prosseguiu o líder do SIALE. — Essa será a tua missão. Quero que o mates pouco tempo depois. Terá de parecer natural, como uma consequência do atentado.
A Tarântula concordou em silêncio. Aquilo sim, eram missões decentes.
Raimundo Antunes levantou-se da sua poltrona, dando uma última baforada no charuto.
— Devias experimentar um destes. São maravilhosos.
— Não fumo, senhor.
— Há sempre uma primeira vez para tudo. — lembrou com um sorriso divertido. — Faz como quiseres. Tens aí, se quiseres experimentar.
Vylka viu-o sair do escritório. Olhou para as horas. Em média, a espera era de uma a duas horas, dependendo da criatividade do chefe nessa noite. Serviu-se do whisky de dezoito anos. Deixou-se ficar sentada na cadeira, sentido o líquido escorrer pela garganta. Adorava aquele sabor irish, apesar que não rejeitava os exemplares scotch, mais intensos. Pegou no telemóvel e marcou o número do responsável dos "cangalheiros", anunciando que precisaria de uma equipa para essa noite, agentes para recolherem o corpo que ela lhes levaria daí a algumas horas, um corpo de mulher que eles iriam fazer desaparecer.
17.1
A embaixada dos Estados Unidos da América estava localizada em Lisboa, na Avenida das Forças Armadas, entre a Avenida dos Combatentes e a Estrada das Laranjeiras. Era um dos locais mais vigiados e bem guardados da cidade, um pouco como acontecia em todas as cidades mundiais com uma embaixada daquele país. Não era um lugar demasiado movimentado, a maior parte do trânsito circulava no Eixo Norte-Sul que passava a poente da propriedade. No entanto, naquela noite, a movimentação de carros era muito maior devido ao evento agendado.
O novo embaixador americano mandara organizar uma recepção com direito a jantar para se apresentar ao país, às figuras mais importantes da nação e aos seus compatriotas a viver em Portugal. A lista de convidados ascendia a mais de duas centenas.
A noite de céu limpo brilhava com o luar intenso. Os veículos começaram a chegar aos portões da embaixada na Avenida das Forças Armadas, onde a segurança era composta por elementos da Polícia de Segurança Pública no exterior e por militares americanos no interior. Qualquer automóvel que tivesse como destino o evento, tinha de passar pelo primeiro controlo nos portões, onde se verificava a existência de algo estranho nas viaturas, e um segundo controlo alguns metros mais à frente para identificação dos passageiros. Após os controlos, os veículos viravam à direita e contornavam o enorme jardim relvado para se imobilizarem em frente à entrada do edifício principal, onde eram largados os convidados e o automóvel seguia rumo ao local indicado para estacionar.
Coelho Ferreira vinha acompanhado pela esposa e foi recebido pelo elemento da segurança junto à porta que encaminhava as pessoas para o interior, indicando o trajecto. O ministro dos negócios estrangeiros era um diplomata com muita classe, envergando um smoking elegante condizente com o código de vestuário requerido para o evento. A acompanhá-lo, a esposa, uma senhora esguia da sua idade num vestido azul-escuro.
A entrada dava para um átrio amplo. Alguns empregados recebiam os convidados com bandejas de taças em cristal com champanhe Moet & Chandon. A seguir, um salão ricamente decorado com mobiliário secular e quadros de pintores ilustres nas paredes forradas a papel. O chão era em mármore e o espaço iluminado por grandes candelabros pendurados no tecto. Em pontos dispersos podiam encontrar-se símbolos americanos e um quadro com a foto do actual presidente americano. Quando o casal Coelho Ferreira entrou no salão, já lá estavam muitos convidados. Entre eles, Manuel Teixeira, o qual trocou um olhar cúmplice muito subtil com o ministro nacionalista lusitano, o homem que era também secretamente o seu informador.
Manuel Teixeira comparecera acompanhado por Romeu. Com o avançar da relação, o líder do MPP incluía-o cada vez em mais eventos públicos. Faziam um par bonito, ambos de fatos formais muito elegantes.
Entre os convidados estavam mais elementos do MPP. Diogo Pereira fora convidado na qualidade de presidente do governo regional local. O smoking caía-lhe de forma desajustada devido à sua estatura baixa e à barriga proeminente. No entanto, os olhares desviavam-se para a filha. Vera acompanhava o pai, elegante num vestido brilhante em tons violeta sem mangas e que lhe deixava as costas nuas. Domesticara a farta cabeleira num penteado bonito, alisando os caracóis para o lado e presos num carrapito na nuca.
Nesse instante, chegou ao salão mais um elemento do partido, Amaro Carneiro que fora convidado pelo seu papel importante junto da Associação Empresarial de Portugal, sediada no Porto. Amaro fazia-se acompanhar pela mulher que nos últimos tempos aparecia sempre consigo em todas as situações públicas, Erika Tamahari, mais uma presença feminina de figura avassaladora. Cumprimentou Diogo Pereira com grande entusiasmo, uma vez que eram amigos de longa data. Ambos os casais faziam uma imagem engraçada, pois pareciam dois pais com as filhas, sendo que só no caso do lisboeta isso era verdade. Conversaram animados durante algum tempo, até Diogo e Vera se afastarem para cumprimentar outras pessoas. Amaro notou que Erika ficara tensa subitamente e reparou no seu olhar apreensivo.
— Estás bem?
— Aquele homem assusta-me. — sussurrou, indicando o alvo de forma imperceptível.
Amaro percebeu que se referia a Raimundo Antunes. O ministro da administração interna conversava com algumas pessoas que Amaro não conhecia.
— O Raimundo Antunes? — identificou. Ela anuiu. Erika conhecia-o, tal como a quase totalidade dos portugueses, pela televisão. — Não te preocupes, querida. — descansou-a, dando-lhe um toque carinhoso no braço.
Raimundo Antunes comparecera sozinho. Ninguém lhe conhecia companheira ou qualquer tipo de relação amorosa. Nos meandros obscuros dos boatos, existiam muitas teorias acerca da orientação sexual do líder do SIALE, mas ninguém tinha coragem de as verbalizar abertamente, a menos que quisesse ganhar uma estadia na sede do SIALE, a servir de saco de pancada para diversão dos agentes.
Pinto Henriques também estava presente. Não era muito habitual vê-lo na capital com a esposa, mas o evento obrigava a que aquela fosse uma das raras visitas a Lisboa da senhora Pinto Henriques. O chefe do governo gostava tanto da companhia dela que, logo que chegaram, a conseguiu despachar para outros convidados e afastar-se, ficando à conversa com o seu MAI.
Pinto Henriques e Raimundo Antunes viram a chegada de Coelho Ferreira com uma expressão dura. Desde que o líder do SIALE informara o primeiro-ministro de que o MNE era o informador de Manuel Teixeira que o engenheiro tinha de se controlar para não agarrar o outro pelo pescoço e estrangulá-lo. Desconhecendo este facto, Coelho Ferreira aproximou-se deles para os cumprimentar e foi recebido com sorrisos hipócritas sem ter a mínima noção que eles planeavam já a sua morte.
— Quando é que este novo embaixador aparece, Coelho? — questionou Pinto Henriques como se o outro fosse o organizador do evento.
— Deve estar à espera que cheguem todos os convidados. — sugeriu Coelho Ferreira. — Deve querer uma apresentação com toda a pompa e circunstância. É americano, gosta de tudo em grande.
— É bom que se despache. — protestou o primeiro-ministro. — Quero jantar.
— Calma, engenheiro. Falta chegar o presidente da república.
— Já está atraso. — disse Raimundo, olhando para o relógio. — Será que aconteceu alguma coisa?
— Deus te ouça, Raimundo. — desejou Pinto Henriques. — E de preferência, algo que o atire para a quinta das tabuletas.
Ambos soltaram uma gargalhada perante o olhar neutro de Coelho Ferreira.
Contudo, os desejos de Pinto Henriques foram arruinados no minuto seguinte, quando foi anunciada a chegada de Flávio de Melo e da primeira-dama.
Eram um casal cativante, muito elegante e amado pelas pessoas. Na qualidade de chefe de estado, foi o único a ser anunciado ao entrar no salão que recepcionava todas as individualidades convidadas para apresentação do novo embaixador. Flávio de Melo sempre fora um diplomata muito próximo das missões diplomáticas em Portugal e tinha muitos amigos ali presentes, principalmente entre os americanos. Só mesmo os partidários do PNL não partilhavam da simpatia pelo professor. Flávio de Melo e a esposa moveram-se pelo salão multiplicando-se em cumprimentos e sorrisos. Perdiam sempre um minuto que fosse a trocar uma palavra com quem se cruzavam. Quando o seu caminho encontrou Pinto Henriques e Raimundo Antunes, o cumprimento foi frio e distante de ambos os lados. Coelho Ferreira foi menos gélido, mas igualmente distante, não querendo ferir susceptibilidades do líder do seu governo.
Continuaram a servir taças de champanhe e acepipes aos convidados. A melodia de algumas pautas clássicas ecoava pelas colunas de som, sendo quase ignorada pela cacofonia de assuntos trocados pelos convidados.
Ao fim de mais alguns minutos, a melodia deu lugar à voz colocada de um elemento da embaixada que, em português e inglês, anunciou a chegada do embaixador e da sua esposa.
Ronald Blackhorne tinha sessenta e muitos anos. Era um homem alto, encorpado e enfiado num smoking que não conseguia disfarçar algum excesso de peso. O cabelo era claro e penteado para o lado numa poupa espigada e firme como cimento. O rosto pálido esboçava um sorriso duvidoso e o olhar azul dava laivos de cinismo. Abriu os braços como se pretendesse abraçar todos ao mesmo tempo e lançou algumas frases em inglês, arriscando-se depois a algumas palavras em português. A seu lado, uma mulher dez anos mais nova, bela no seu vestido de noite em tons cinza e carregado de brilhantes. O cabelo era exageradamente negro, visivelmente resultante de pintura recente. Era da altura do ombro do marido. O rosto expressivo denunciava a ascendência latina, as rugas acentuavam-lhe o charme da idade, o olhar era terno e afável.
No meio dos convidados, Pinto Henriques cravou o seu olhar nela. O rosto era-lhe tão familiar que ignorou completamente o embaixador. Ficou vidrado, rebuscando na memória, adaptando a imagem actual daquela face que procurava nos arquivos do seu cérebro. De súbito, percebeu donde a conhecia. Boquiaberto, suspirou:
— Helena...
17.2
As pessoas depositavam a sua atenção no casal, o embaixador e a embaixatriz. Pinto Henriques observava atento, ainda a recuperar do choque de reencontrar alguém que julgara que nunca mais veria na vida. Conseguiu disfarçar, apesar de o seu fiel ministro Raimundo Antunes ter reparado em algo estranho no engenheiro sem saber o que era. A primeira pessoa a dirigir-se ao embaixador foi Coelho Ferreira que, como ministro dos negócios estrangeiros, já partilhara algumas reuniões com o americano e adoptou uma postura semelhante a um mestre de cerimónias. Pinto Henriques viu-o apontar para Flávio de Melo, o qual se aproximou para as apresentações. A primazia cabia ao Presidente da República, mesmo assim, Coelho Ferreira não deixou de atirar um olhar penitente ao seu chefe de governo. Todos os convidados viram os dois casais a cumprimentarem-se. Pinto Henriques analisava a cena com a constatação de que naquele metro quadrado se reuniam várias pessoas que ele gostaria de ver mortas, o traidor do Coelho Ferreira, o inimigo Flávio de Melo e Helena, a puta lisboeta que o abandonara há mais de trinta anos e a razão de todo o seu enorme ódio a Lisboa.
Os dois casais permaneceram a conversar, perante o olhar de Coelho Ferreira que parecia ansioso por prosseguir. Deveria estar preocupado em levar o embaixador até ao primeiro-ministro para também o apresentar, calculou Pinto Henriques. Manteve o olhar cravado neles. Ainda não conhecia o embaixador e já o odiava profundamente por ocupar um lugar que deveria ter sido dele, o lugar de marido de Helena. Foi resgatado dos seus pensamentos pela voz saída do sistema sonoro, informando todos de que iriam passar ao salão de refeições para se iniciar o jantar. Finalmente! Estava farto da merda dos acepipes.
As pessoas começaram a deslocar-se para as portas largas de acesso às mesas. Pinto Henriques pediu a Raimundo Antunes que fosse buscar a sua esposa e a levasse para o respectivo lugar. Depois, avançou por entre os convidados, encurtando a distância para o embaixador. Não permitiria ficar esquecido nas apresentações ou deixado para uma segunda fase após o jantar. Ao vê-lo caminhar na sua direcção, Coelho Ferreira travou o embaixador e a esposa, informando que lhes queria apresentar o chefe de governo. Flávio de Melo olhou para trás e não se deteve no seu percurso para o outro salão.
Falando em inglês, Coelho Ferreiro anunciou o engenheiro Pinto Henriques, primeiro-ministro de Portugal. Em português, disse:
— O embaixador Ronald Blackhorne e a esposa Helen Blackhorne.
Pinto Henriques usou de todo o seu cinismo e hipocrisia, sorrindo simpático e olhando directamente para Ronald, quase ignorando Helena, como se não a tivesse reconhecido e ela não fosse mais que a esposa de um embaixador acabado de chegar ao seu país. Apertou‑lhe a mão, trocando um cumprimento em inglês. De seguida, num esforço imperceptível e concentrado, olhou para Helena como se nunca a tivesse visto antes. Estendeu-lhe a mão e falou-lhe em inglês.
— Prazer em conhecê-lo, senhor primeiro-ministro. — retribuiu ela, em português com um forte sotaque americano.
Pinto Henriques não conseguiu descodificar no seu olhar se ela o reconhecera. Seria possível que não fizesse ideia de que ele era o homem com quem dormira tantas vezes e quase casara, trinta e tal anos antes? Sem perder o ar afável, justificou-se mentalmente que ela não passava de uma puta e ele deveria ter sido um entre centenas de homens que teriam estado entre as pernas dela.
Nesse instante, a esposa do primeiro-ministro surgiu de braço dado com o líder do SIALE. Recusara a sugestão deste, de irem para o salão de jantar, e insistira em participar na apresentação do marido ao embaixador. Pinto Henriques viu uma espécie de pedido de desculpas no olhar do ministro e fez uma expressão ténue em resposta, revelando que não tinha importância.
O espaço para o jantar de gala era uma área ampla comprida, um salão em chão de madeira com paredes forradas a papel, tal como acontecia na divisão anterior. Pelas janelas podia observar-se o anoitecer e o jardim escuro com pequenos focos de iluminação junto à relva. Todo o espaço era iluminado por lustres dourados pendurados no tecto, cada um com várias lâmpadas que davam uma tonalidade quente e acolhedora ao ambiente. A disposição das mesas era semelhante a um copo‑de-água num casamento, uma grande rectangular ao fundo e várias redondas espalhadas pelo espaço para comportar todos os convidados. A mesa rectangular em posição de destaque destinava-se ao embaixador, ao presidente da república e respectivas esposas, uma espécie de mesa de noivos numa simbologia das boas relações entre os dois países. Pinto Henriques considerou aquilo um tanto ao quanto absurdo. Todos os lugares estavam marcados e nomeados para cada um dos convidados. Quem quer que tivesse sido responsável pelo mapeamento das mesas tivera o cuidado de separar nacionalistas lusitanos dos membros da oposição. A relação conflituosa entre os PNL e os MPP era sobejamente conhecida e colocar elementos de ambos na mesma mesa seria como juntar cães e gatos.
Cada mesa circular comportava dez pessoas. Pinto Henriques ocupou o seu lugar, tendo a esposa ao seu lado esquerdo e Raimundo Antunes à sua direita. O lugar a seguir ao MAI estava vazio, destinado à companhia deste, apesar de ele nunca ter tido intenção de comparecer acompanhado. Em oposição a eles ficara o casal Coelho Ferreira. Os restantes lugares eram ocupados por pessoas próximas do partido. Pinto Henriques cravou o olhar na mesa principal, onde Flávio de Melo se sentava ao lado de Ronald Blackhorne, ficando a senhora Melo e a senhora Blackhorne nas extremidades e os quatro virados para os convidados.
— Simpáticos, não? — questionou Coelho Ferreira, procurando fazer assunto.
Foi ignorado pelo primeiro-ministro, obtendo somente respostas dos elementos sentados entre eles. Ao invés de dar atenção ao MNE, Pinto Henriques olhou para a mesa de Manuel Teixeira.
— Quem é aquele tipo? — questionou ao seu MAI.
Raimundo sorriu com desdém e respondeu:
— É a esposa do Teixeira.
Na mesa do líder do MPP estavam com ele o namorado Romeu, Diogo Pereira com a filha Vera, Amaro Carneiro com Erika e quatro empresários, um homem e três mulheres, conhecidos por fazerem parte de grandes grupos económicos e serem das pessoas mais ricas do país. Eram também financiadores do partido de Manuel Teixeira.
— E aquela? — continuou a inquirir. — A chinoca.
— É a nova companheira do Carneiro.
— É estrangeira?
— Para nós é. Mas, nasceu em Portugal.
— Parece filha dele.
— Tem idade para isso. — retorquiu Raimundo num tom de jocozo.
O jantar começou a ser servido com os empregados a espalharem-se pelas mesas. Tudo era sumptuoso e horrivelmente esbanjado. Pinto Henriques nem se apercebera que estivera toda a refeição a olhar para a mulher do embaixador, ignorando totalmente a sua, a qual já estava habituada e encontrara na senhora sentada a seu lado uma excelente parceira de conversa fútil. A cacofonia de vozes ecoava no ambiente, onde em todas as mesas se conversavam os mais diversos assuntos. Após a sobremesa, a esposa de Pinto Henriques levantou-se do seu lugar com a companheira de conversa para irem ao WC. Também os restantes se levantaram, seguindo o exemplo de outras mesas em que os convidados se levantavam para entabular conversa com outras mesas. Ninguém se atreveu a aproximar-se da mesa dos cicerones para interromper a conversa entre os casais.
— Consegui saber mais informações acerca dela. — disse Raimundo em surdina, quando ficaram sós. — Nem vais acreditar, Henriques.
As palavras surpreenderam o primeiro-ministro. Que teria ele descoberto? Saberia do envolvimento deles? Duvidava que lhe pudesse relatar algo que ele não soubesse já.
— Que descobriste para além do que me contaste no outro dia?
— Tem um passado interessante. — respondeu Raimundo com uma expressão cínica.
— Não me digas que tem ligações ao MPP?! Já só me faltava isso.
A última frase causou-lhe arrependimento, uma vez que poderia deixar transparecer algo que ele não queria revelar ao líder do SIALE, que ele tinha um passado com a mulher do embaixador.
— Não, nada disso. Nem acredito que tenha qualquer simpatia política em Portugal. Só lhe interessa a política dos states, tal como ao marido.
— Então?
— Sabias que estudou no Porto?
Sim, sei, conheci-a nessa altura.
— Que tem isso de importante, Raimundo?
— Ela conheceu e teve uma relação séria com um portuense.
Isso também sabia, fora ele o portuense. Não evitou um arrepio na espinha, receando até onde teria chegado a investigação do MAI, conhecido por nada lhe escapar. Pinto Henriques enfrentou o "touro pelos cornos":
— Alguém importante?
— Um engenheiro civil como tu. Não conseguiram saber-me o nome.
Ainda bem.
Raimundo prosseguiu:
— Eles tinham alguns anos de diferença, ela estudava e ele já trabalhava. Não quiserem fazer grande alarido da relação e as pessoas próximas dela mal o conheciam.
— E que tem isso de importante para nós, Raimundo?
— Para te ser sincero, nada. Apenas nos diz um pouco sobre o tipo de pessoa que ela é?
— Como assim?
Pinto Henriques sabia o tipo de pessoa que ela era, uma reles rameira alfacinha que o enganara e lhe partira o coração. No entanto, não sabia onde o outro queria chegar.
— A senhora Blackhorne, na juventude, fugiu literalmente do Porto e abandonou o pobre coitado.
"Pobre coitado" é o alarve que te fez os cornos.
O líder do PNL controlou-se para não se denunciar. Ele sabia que ela abandonara a Invicta de forma súbita, deixando-o para trás com o pedido de casamento que não tivera tempo de fazer.
— E a que se deveu isso? — questionou meio enfadado, calculando que, se calhar, andara a dormir com outros homens, talvez até casados, e teve de fugir antes que lhe dessem uma tareia.
— Ficou grávida. — informou de forma natural. Pinto Henriques empalideceu. Raimundo não reparou. — Ninguém sabe ao certo se ela encarava a relação deles com futuro. Sabiam que uma gravidez ia contra todas as suas ambições, uma criança iria restringir-lhe os objectivos.
Procurando disfarçar, Pinto Henriques questionou:
— Engravidou de outro...
— Não, não. Nada disso. — apressou-se a negar Raimundo. — Era-lhe totalmente fiel. O filho era dele.
O engenheiro teve vontade de vomitar. Ao fim de mais de trinta anos descobria que tinha outro filho? Tentou controlar as emoções, a vontade de irromper pelo salão e questioná-la directamente acerca dessa criança.
Completamente a leste do turbilhão de sentimentos que fustigavam a cabeça do seu chefe de governo, Raimundo continuou:
— Regressou a Lisboa para que ele não soubesse da gravidez. Certamente que iria assumir a criança e casar com ela. Dizem que eram totalmente apaixonados um pelo outro. Só que, como te disse, ela não queria ter condicionantes na vida, coisas que a impedissem de alcançar os seus desejos.
— E o que aconteceu à criança? — inquiriu subitamente interessado no desfecho da história.
Esse repentino interesse não escapou ao líder do SIALE, mas preferiu fingir não reparar e relatou:
— Ao que parece, ela tentou o aborto ou pelo menos teve essa intenção. A família era conservadora e religiosa. O aborto... bom, como deves calcular era visto como um pecado mortal. Ela acabou por ter a criança.
Tinha mesmo um filho, constatou Pinto Henriques num esforço hercúleo para conter as emoções.
— Ninguém sabe muito mais sobre a vida dela, após o nascimento da criança. Pouco tempo depois, ela partiu para os Estados Unidos.
— Com a criança?
Raimundo abanou a cabeça.
— Por curiosidade, pedi a uns amigos americanos informações acerca da chegada dela ao país. Chegou sozinha.
— Deixou-a com a família?
A forma curiosa e expectante como Pinto Henriques colocava as perguntas deixavam Raimundo baralhado. Contudo, ele gostava de se mostrar competente.
— A história que corre é que a criança viajou com a mãe, adoeceu e acabou por falecer. Mas, o meu agente do SIALE deu-se ao trabalho de investigar mais a fundo, uma vez que sabíamos que era mentira. A criança foi abandonada num orfanato em Lisboa.
— E sabes o que é feito do rapaz?
Raimundo encolheu os ombros.
— Só sei que era uma menina.
A conversa foi interrompida pelo embaixador que chamou a atenção dos presentes para o discurso que se preparava para fazer. Os convidados apressaram-se a reocupar os seus lugares. Ronald levantou‑se da sua cadeira, ficando em pé a segurar as folhas onde teria escrito o discurso. Aguardou com um sorriso protocolar que todos se arrumassem nas mesas e iniciou o monólogo em inglês.
Pinto Henriques não registou nada do que ele disse, tendo a mente ocupada com aquela revelação que o seu ministro fizera sem noção da importância que aquilo tinha para ele. Nunca imaginara semelhante hipótese, nunca lhe passara pela cabeça que pudesse ter outra filha. Interrogou-se sobre o que teria acontecido à menina. Como pudera Helena fazer-lhe aquilo? Privá-lo da paternidade de uma criança que ela própria não quis. Que teria ele feito, se soubesse? Teria ele criado a menina? Nunca a abandonaria, isso tinha a certeza.
Os aplausos no salão despertaram-no do turbilhão de pensamentos, da confusão de perguntas para as quais não tinha resposta. Fulminou a esposa do embaixador com o olhar sem que ela desse por isso, odiava-a profundamente, agora mais que nunca. Cabra, puta, monte de merda, mulher execrável que abandona a própria filha. Viu o embaixador sentar-se, enquanto o presidente se levantava. Puxou o braço de Raimundo.
— Achas que ele sabe?
— Quem? O quê? — interrogou Raimundo que esquecera o assunto com o desenvolvimento do discurso do americano.
O primeiro-ministro insistiu:
— Achas que o embaixador sabe da criança?
O líder do SIALE fez uma expressão de dúvida.
— Não faço ideia. Mas, acho pouco provável. Ela chegou sozinha ao outro lado do oceano. Quando o conheceu, não tinha porque lhe contar algo que só a iria denegrir.
— Eles não têm filhos? — Raimundo abanou negativamente a cabeça. — Consegues saber mais informações sobre a criança?
O MAI não escondeu a surpresa pela pergunta. Antes que pudesse dizer algo, ouviu a justificação:
— Não sabemos com o que podemos contar com este embaixador. Essa criança poderá ser um trunfo para nós, caso precisemos de pressionar a senhora Blackhorne a interceder por nós junto dele.
Raimundo sorriu e concordou com a perspicácia do outro em salvaguardar armas para eventuais obstáculos futuros.
— Vou ver o que consigo saber.
Tornaram a ficar em silêncio, pois Flávio de Melo iniciou o seu discurso, também em inglês, de palavras elogiosas em resposta às amáveis proferidas por Ronald Blackhorne.
17.3
A noite não tinha luar, mas a luminosidade da cidade permitia algum vislumbre da realidade nos pontos mais escuros. No topo de um prédio, Vylka observava paciente as movimentações na embaixada dos Estados Unidos em Lisboa. Ao fim de algumas horas em que não se passava nada no exterior do edifício, as movimentações dos automóveis indicaram-lhe que os convidados começavam a sair do evento. O SIALE era responsável pela segurança de todos os membros do governo e também o seria da segurança do presidente da república, não fosse este recusar ter esses agentes à sua volta. Flávio de Melo não confiava em nada que estivesse sob a alçada do PNL e tinha razão para se manter desconfiado. A comitiva presidencial fora das primeiras a deixar a embaixada, uma caravana de três automóveis, o da frente e o detrás com quatro agentes da Guarda Nacional Republicana, o do meio com o casal presidencial, o motorista e mais um agente de segurança. Quase todas as viaturas seguiam o mesmo procedimento, dois veículos com segurança a fazer escolta ao do meio com a individualidade. Pinto Henriques seguia num carro blindado escoltado por outros dois com agentes do SIALE, tal como Raimundo Antunes. Já Coelho Ferreira vira a sua escolta dividida por uma viatura do SIALE e outra da GNR, o que tinha uma razão de ser que já saberemos mais tarde. No que respeita aos restantes convidados, ninguém tinha escoltas, nem mesmo o presidente do governo regional de Lisboa e Setúbal que levava somente um segurança no interior do seu automóvel, sentado ao lado do motorista, seguindo Diogo Pereira e a filha Vera no banco traseiro. Na verdade, tirando o presidente da república e os membros do PNL, todos os outros seriam alvos fáceis. Um dos que enfrentava mais riscos era Amaro Carneiro e, mesmo esse, só tinha o segurança habitual que acompanhava o homem que conduzia o seu carro. Manuel Teixeira, por norma, gostava de conduzir, mas nesta noite, ele e o companheiro também seguiram com o acompanhamento de dois seguranças, um deles a conduzir.
Como responsáveis pela segurança dos membros do governo, o SIALE tinha conhecimento dos percursos previstos por cada comitiva do PNL, logo, Vylka saberia o trajecto de Coelho Ferreira entre a embaixada e a sua casa. A Tarântula estava no topo do prédio, não como agente do SIALE, mas sim como líder do MAL, o suposto grupo terrorista que provocava atentados contra o regime nacionalista lusitano e que assassinara os jovens da JNL. Iria existir uma grande diferença entre a realidade e o que chegaria ao conhecimento da opinião pública em relação ao que iria acontecer nos minutos seguintes à saída de Coelho Ferreira da embaixada dos Estados Unidos.
A razão pela qual a escolta do ministro dos negócios estrangeiros era partilhada pelo SIALE e a GNR fora justificada com a falta de elementos disponíveis para todas as escoltas, uma vez que o SIALE tinha inúmeras tarefas para além da segurança de ministros. Contudo, a realidade era que, o que iria suceder a seguir, implicaria a perda de vidas e o SIALE não queria perder agentes estupidamente se pudesse colocar outros no seu lugar. Assim, o veículo que encabeçava a caravana de Coelho Ferreira era da GNR e levava quatro elementos armados. No carro do MNE ia este e a esposa com um motorista e um segurança do SIALE. E a fechar, outro automóvel com quatro agentes do SIALE, quatro elementos cúmplices de Vylka.
Pinto Henriques queria a morte de Coelho Ferreira pela traição de ser o informador de Manuel Teixeira. O Movimento Armado de Lisboa era a ferramenta ideal para executar o atentado, servindo para vitimizar o PNL perante a opinião dos portugueses. Contudo, permitir a ideia de que marginais tinham a capacidade de assassinar um membro do governo era perigoso, pois poderia motivar outros, verdadeiros opositores a tomarem medidas mais violentas contra o PNL. Por isso, Vylka organizou as coisas em conformidade com o que Raimundo Antunes lhe ordenara. E o MAI sabia que lhe poderia confiar uma missão daquelas, pois a Tarântula era a sua melhor agente... uma das duas melhores. Vylka não esquecia a outra aranha tão mortífera quanto ela, a sua amiga Viúva Negra.
Os três carros avançaram pela Avenida das Forças Armadas, passando sob a Avenida dos Combatentes e circulando na direcção dos semáforos do cruzamento com as Avenida Professor Gama Pinto e Avenida Álvaro Pais. Não havia necessidade de ignorar os sinais de trânsito, cortando pelo trânsito quase inexistente como se fosse alguma urgência.
Vylka mantinha-se em contacto via rádio com todos os agentes destacados para aquela missão, os que estavam atrás do carro do MNE e os que compunham os elementos do MAL que aguardavam mais à frente. Donde estava não lhe era possível ver o que aconteceria a seguir, mas ia acompanhando tudo pelas comunicações.
A noite ia longa, não se via ninguém nas ruas a circular a pé, mas alguns infelizes automobilistas tiveram a pouca sorte de estar por perto da comitiva que avançou após os semáforos, começando a descer a Avenida das Forças Armadas em direcção a Entrecampos. A meio da descida, o motorista do automóvel blindado de Coelho Ferreira abrandou para dar distância à escolta da GNR, alertado por Vylka, deixando para estes o papel de "carne para canhão".
A tranquilidade da madrugada citadina foi estrondosamente cortada pela explosão brutal de um carro estacionado na avenida, uma explosão detonada no exacto momento em que o veículo da GNR passava a seu lado, desfazendo-o e aniquilando os seus ocupantes. Se a explosão tivesse sido despoletada mais tarde, atingiria o carro de Coelho Ferreira e, mesmo sendo blindado, seria quase certo que o ministro não se safaria. Ao invés, o seu motorista deu a distância necessária para só serem atingidos pela onda de choque, o que daria a entender que os terroristas tinham detonado a bomba cedo, falhando o alvo. Essa mesma explosão atingiu outro veículo e partiu inúmeros vidros nos prédios das redondezas, despoletando igualmente diversos alarmes e mergulhando tudo numa cacofonia de sirenes estridentes.
No entanto, o atentado não se resumia a isto, seria demasiado simples para o objectivo da mensagem que se queria passar. Três elementos encapuçados surgiram alguns metros mais abaixo, saindo do esconderijo que os protegera da explosão. Seguravam armas automáticas e começaram a disparar na direcção do carro blindado. Não podemos esquecer que se vive uma época em que cada cidadão é um repórter com o seu telemóvel, filmando e publicando posteriormente na Internet, se não tivesse hipótese de fazer um directo imediato do que estava a acontecer. Por isso, para o PNL, era importante que tudo parecesse o mais real possível. Quem testemunhara, e não fora atingido, filmava. E as imagens que posteriormente foram difundidas na Internet e nos espaços noticiosos televisivos mostraram essas três figuras a disparar para o carro de Coelho Ferreira. As mesmas imagens mostraram os agentes do SIALE a saírem do automóvel que fechava o grupo, empunhando armas com que ripostaram os disparos dos terroristas. Houve trocas de tiros que atingiram alguns inocentes que estavam no lugar errado à hora errada, mas miraculosamente, nem os terroristas foram atingidos, nem os seguranças do SIALE. E poucas balas, ou nenhumas, encontraram o carro da escolta. O mesmo não aconteceu com o blindado, fustigado severamente pelas balas que levantaram inúmeras faíscas ao embater contra a estrutura automóvel preparada para as travar. Os "terroristas" sabiam que não conseguiriam acertar em ninguém no interior, mas o objectivo era dar destaque à chuva de faíscas para que não houvesse dúvida de que o MAL queria assassinar um ministro do Estado. Após alguns minutos de troca de tiros, os três agressores puseram-se em fuga num carro escuro que os aguardava cinquenta metros mais abaixo. Fizeram-no antes que houvesse tempo para que chegassem reforços policiais. Não foram perseguidos pelos agentes do SIALE que tinham como missão exclusivamente a protecção do ministro. Isto foi a ideia passada para a opinião pública, uma tentativa falhada de assassínio de um ministro nacionalista lusitano por terroristas que haviam sido rechaçados pelo SIALE, demonstrando que a capital não era um lugar seguro para as pessoas de bem e que só a rápida acção dos agentes da polícia do Estado havia evitado males maiores.
A realidade era diferente. O único objectivo da bomba fora fazer estragos, matar os agentes da GNR e os inocentes por perto porque era necessário que houvesse mortes para acentuar o dramatismo do acontecimento. O ataque com armas automáticas pretendia revelar que os terroristas estavam bem equipados, apesar da falta de capacidade para atingir o alvo, fosse com a bomba, fosse com as balas. Nem o motorista, nem o segurança dentro do carro do ministro tinham ordens para sair, mantendo-se sob a protecção da blindagem e deixando o exterior a cargo dos colegas do carro atrás. Tanto esses como os colegas no papel de terroristas deveriam disparar uns para os outros com o cuidado de não se atingirem mutuamente, sendo recomendado que os "terroristas" atingissem inocentes para lhes aumentar o papel de criminosos, mesmo perante o olhar dos opositores ao nacionalismo lusitano. O MAL deveria ser visto como um grupo terrorista que vivia nos recantos mais recônditos e sob protecção da capital. Do ministro, Vylka trataria mais tarde.
Após certificarem-se de que o exterior era seguro, os agentes do SIALE autorizaram a abertura das portas do automóvel blindado. O elemento ao lado do motorista era o responsável por aquele grupo.
— Senhor ministro, o senhor está bem? — questionou a um homem combalido e assustado, incapaz de reagir.
Coelho Ferreira limitou-se a anuir e preocupou-se com a esposa que o descansou ao informar que não estava ferida.
Ouviram-se as sirenes estridentes dos carros-patrulha da Polícia de Segurança Pública, de alguns veículos dos bombeiros para combater os fogos da explosão e ambulâncias do INEM para cuidar dos feridos.
Vylka seguia as comunicações, enquanto abandonava o terraço do edifício que lhe servira de posto de comando. Apesar de ser um prédio habitacional, ela conseguiu esgueirar-se da zona de manutenção no topo e descer no elevador sem se cruzar com ninguém, aproveitando o horário tardio. Todo o plano fora elaborado com cuidado e ainda estava longe de ser concluído. Pelo auricular preso na sua orelha, ela ouviu o agente do SIALE dizer ao ministro Coelho Ferreira que o iriam levar ao hospital para observações. Ele recusou, mas o agente não aceitou a recusa, contrapondo que era sua prioridade a segurança do ministro e o cuidado pela sua saúde. A Tarântula sabia que o agente o levaria nem que tivesse de o arrastar, pois isso fazia parte da missão e se não o fizesse provocaria o seu fracasso e dificilmente sobreviveria à ira da aranha. O MNE acabou por concordar que ele e a esposa fossem transportados ao Hospital de Santa Maria, que ficava ali perto, para observação.
Sem perder tempo, a Tarântula chamou pelo rádio um carro com um agente que aguardava a sua chamada. Disse-lhe onde deveria recolhê-la e, passados cinco minutos, a viatura suspeita apareceu para a ir buscar à Rua General Firmino Miguel.
Na zona do atentado, bombeiros apagavam as chamas do carro que explodira e do primeiro carro da escolta do ministro, entre outros pequenos focos de incêndio. As equipas médicas prestavam auxílio aos feridos. Ao todo haviam morrido nove pessoas, incluindo os quatro elementos da GNR da escolta. As outras cinco pessoas foram um condutor de um carro perto do atingido pela bomba e mais quatro noutros automóveis apanhados nos disparos dos terroristas. Feridos eram perto de vinte, alguns em estado grave. A Polícia guardava um perímetro de segurança, afastando curiosos e atentos a uma possível segunda investida do MAL. O SIALE limitou-se à escolta do ministro para o hospital.
Tudo chegava aos ouvidos de Vylka, enquanto via o seu condutor a conduzir até à Rua Azevedo Neves, indo desembocar à Avenida dos Combatentes e virando para norte, passando defronte da Universidade Católica. No cruzamento seguinte, virou para a Avenida Professor Egas Moniz, ficando com o hospital à sua direita. A cerca de vinte metros da entrada de acesso à Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, dentro do complexo hospitalar de Santa Maria, o automóvel parou para que Vylka saísse e prosseguisse a pé.
Os agentes do SIALE permitiram que elementos do INEM observassem o ministro e insistiram para que este fosse transportado para o hospital, antes que estes decidissem o contrário. Nenhum médico ou enfermeiro quereria ser responsabilizado por algo que corresse mal com a saúde do ministro, daí que concordassem com essa ideia e agradeceram a sugestão de serem esses mesmos elementos a levar Coelho Ferreira para lá.
Apesar de fustigado pelas balas, o automóvel ministerial blindado continuava em perfeitas condições para circular. Como a avenida estava bloqueada pelos carros atingidos pela explosão e pelos bombeiros, o motorista virou em contramão, sendo seguido pelo outro carro com os seguranças, e subiu a avenida, desviando para a Rua Francisco Lyon de Castro, a qual atravessaram até à Avenida Álvaro Pais. Não se revelavam com grande urgência, uma vez que havia que dar tempo à Tarântula para chegar ao hospital. Circularam calmamente, subindo até ao cruzamento onde tinham estado parados nos semáforos quase uma hora antes no sentido perpendicular àquele.
Nesse instante, Coelho Ferreira observou pela sua janela a confusão gerada na avenida lá em baixo devido ao atentado. Permanecia muito abalado com a percepção de que ele e a sua mulher haviam estado a escassos metros da morte. Procurou demonstrar alguma tranquilidade para acalmar o nervosismo dela.
Após o cruzamento, os dois carros avançaram pela Avenida Professor Gama Pinto até virarem para a avenida que cruzava a fachada principal do Hospital de Santa Maria, entrando posteriormente no acesso ao serviço hospitalar.
O luar inundava a madrugada fresca, iluminando a noite com mais intensidade que a desejável por Vylka. A Tarântula movia-se com a flexibilidade indetectável de uma aranha. Usara a entrada do acesso ao ESEL para fugir ao fraco controlo de segurança nos portões principais. Não que isso fosse problema, pois as suas credenciais de agente do SIALE davam-lhe livre acesso a quase todo o lado. Para além disso, o controlo de entradas e saídas estava ocupado com a constante chegada de ambulâncias provenientes do local do atentado, um turbilhão de movimentações que se alastrou às Urgências do hospital. Os parceiros no automóvel que escoltava o ministro iam transmitindo informações acerca das suas deslocações no interior para que a Tarântula soubesse onde se dirigir.
O casal Coelho Ferreira entrou no hospital rodeado por elementos do SIALE, furando pelos corredores e exigindo a assistência imediata ao membro do governo. Pela sua posição política, o MNE teve logo um director de serviços à sua espera, dois médicos e meia dúzia de enfermeiros.
O casal foi conduzido ao quinto piso daquele bloco hospitalar, afastando-os o mais possível dos comuns cidadãos. Coelho Ferreira foi encaminhado para uma sala de observações, enquanto a sua esposa seguiu para outra. Cada um iria ter um médico à sua disposição para se certificarem que estava tudo bem com eles e que o atentado não deixara qualquer marca.
No corredor de paredes claras em tons de azul e uma forte luz proveniente do tecto, o líder do grupo de seguranças destinou metade da equipa para guardar cada porta e apressou-se a restabelecer comunicação com Vylka, informando-a do local exacto onde se encontravam no edifício. Menos de dez minutos decorridos, a Tarântula entrou no corredor, uma mulher de cabelo branco e rosto fechado que envergava uma bata de médico que roubara pelo caminho para a disfarçar. O agente líder reconheceu-a e, pelo microfone, alertou-a que o médico continuava no interior com o ministro. Ela olhou-o e anuiu-lhe uma indicação com a cabeça e aguardou, disfarçando que se ocupara com algo.
O médico saiu do quarto onde estava Coelho Ferreira. Ia para tomar a direcção de Vylka, mas foi interpelado pelo líder dos agentes que queria saber o estado de saúde do ministro e levou o médico a caminhar na direcção contrária. E a Tarântula aproveitou para a etapa final da sua missão.
Qualquer agente do SIALE conhecia a Tarântula, a sua fama e carreira de agente precediam-na. Porém, poucos conheciam o seu rosto, como acontecia com aqueles que ali estavam que eram também seus cúmplices do MAL, os quais lhe devotavam um imenso respeito e receio. Ao aproximar-se dos dois que guardavam a porta, estes fingiram que não a viram e ela entrou.
O quarto era um espaço solitário e impessoal com as paredes nos mesmos tons que as exteriores e uma luminosidade menos intensa. Uma janela semiaberta revelava que a noite caminhava para o fim.
Coelho Ferreira estava sentado numa poltrona, junto a uma cama de hospital. Tirara o casaco e aguardava, talvez, o regresso do médico. Não iria certamente ficar muito mais tempo no hospital. Surpreendeu-se com aquela médica de aspecto estranho que entrou.
— Doutor Coelho Ferreira! — exclamou Vylka num cumprimento. — Sou a doutora Maria Silva.
O ministro anuiu, mantendo-se curioso.
— Como está a minha esposa?
— Lamento, mas não o sei informar. — respondeu, aproximando‑se. — Recebi indicação do meu colega para que lhe desse um sedativo para ficar mais tranquilo.
— Ele acabou de sair e não me referiu nada.
Vylka olhou para o ministro como se ficasse ofendida por ele estar a duvidar do que lhe dizia.
— Quer que o vá chamar?
— Não será necessário. — concedeu Coelho Ferreira. — Da mesma forma que não será necessário o sedativo.
O MNE ia a levantar-se, mas a Tarântula empurrou-o de volta à poltrona. Surpreendido e assustado, estranhou a atitude e tentou esboçar um grito de socorro para os agentes no exterior, desconhecendo que eram todos cúmplices. Ela não o permitiu e possuía uma força tão brutal que o imobilizou sem dificuldade. Coelho Ferreira viu-a segurar uma seringa que lhe espetou no pescoço, sussurrando-lhe:
— O doutor Raimundo Antunes e o engenheiro Pinto Henriques mandam cumprimentos. Pediram-me que lhe dissesse que não gostam de traidores que informam os nossos inimigos. — A Tarântula viu o olhar esbugalhado do ministro, percebendo que fora descoberto e da inevitabilidade da sua execução. Mesmo assim, explicou-lhe: — Acabei de lhe injectar um composto químico que lhe irá provocar um enfarte. Infelizmente, todo este atentado abalou muito o senhor ministro, o que acabou por ter consequências a nível da sua saúde, tendo o senhor um ataque cardíaco em virtude de todo o abalo provocado pela situação.
Viu a sua expressão alterar-se. A injecção começava a fazer efeito. Coelho Ferreira fez um esgar de sofrimento. Manteve-o imobilizado alguns momentos, enquanto o coração sucumbia, até ter a certeza que ele já não conseguiria reagir. Largou-o com desdém. Certificou-se que a vida se evaporara daquele corpo e abandonou o quarto sob a protecção dos agentes na porta, os quais lhe indicaram quando seria seguro sair.
Quando o médico retornou à divisão, Vylka já ia longe. Encontrou o ministro falecido na poltrona e deu o alarme para que lhe trouxessem equipamento de reanimação e dando início a todos os procedimentos para o socorrer. Os agentes do SIALE foram actores brilhantes, agindo com urgência e preocupação. O médico não teve sucesso no resgate da saúde do ministro e o óbito foi declarado minutos depois.
Estranhando o sucedido, uma vez que deixara o ministro em perfeita saúde quando saiu do quarto, o médico questionou se alguém ali tinha entrado, ao que os agentes responderam negativamente. O líder deles conversou com os médicos, relatando como o atentado fora violento e que toda a situação talvez tivesse sido demasiado para um coração idoso. O médico acabou por ser ludibriado pelos argumentos e deu por si a concordar com a hipótese.
O dia amanheceu com a notícia da morte do ministro dos negócios estrangeiros em consequência indirecta do atentado que enchera todos os noticiários ao longo da noite. Pela manhã, Pinto Henriques deu uma conferência de imprensa sem direito a perguntas para uma declaração de pesar pelo falecimento do amigo e colega de governo, mostrando-se agastado e sem destilar o ódio habitual. Esse papel ficou a cargo do ministro da administração interna, que falou a seguir, repetindo o pesar pela morte de Coelho Ferreira e garantido que os terroristas do Movimento Armado de Lisboa (e fez questão de nomear o grupo por extenso ao invés de usar a sigla, pois era conveniente referir "Lisboa" conotada aos criminosos) seriam perseguidos e capturados sem piedade. Apelou a quem tivesse informações sobre eles que as comunicassem ao SIALE e desejava que os mesmos marginais não fossem protegidos pela população da cidade pela qual se proclamavam braço armado.
17.4
Cansado seria um eufemismo para definir aquilo que Pinto Henriques sentia pela capital do país. O primeiro-ministro estava farto das deslocações à capital no exercício das suas funções governamentais. Seria muito mais simples ter casa em Lisboa ou arredores, mas ele abominava a região e não a trocaria pela sua Invicta, nem que para isso tivesse de andar semanalmente na A1 para sul e para norte. Não era ele que conduzia, o carro não era o seu, a despesa não era sua. As contas do Estado cobriam tudo isso.
Após a morte de Coelho Ferreira, Pinto Henriques nomeou o deputado Viriato Loureiro para o lugar de ministro dos negócios estrangeiros. Não se pode dizer que Coelho Ferreira fosse uma pessoa muito cativante ou que o povo morresse de amores pelo seu ministro. Porém, nas alturas de morte, todos parecem lamentar a perda de alguém que pouco ou nada representava para si. O próprio Manuel Teixeira endereçara uma carta a Pinto Henriques, seu arqui-inimigo, a lamentar o falecimento do ministro dos negócios estrangeiros, juntando-lhe um voto de pesar. Em público, Manuel Teixeira repetiu esse mesmo pesar e condenou de forma veemente a actuação do MAL, mesmo que isso o colocasse na linha de fogo deles. Quando os jornalistas questionaram o líder parlamentar do PNL acerca dessas declarações, o deputado encolheu os ombros, dando a entender que tal pesar não passava de encenação teatral. Também os restantes partidos manifestaram o seu lamento pela morte de Coelho Ferreira, bem como as presidências regionais independentemente da sua cor política. Muitas outras entidades tiveram essa iniciativa, incluído as muitas embaixadas estrangeiras em Portugal que enviaram mensagens de condolências ao chefe do governo. Todas, excepto uma.
A embaixada dos Estados Unidos da América, dirigida agora por Ronald Blackhorne, quis enviar uma delegação ao Palácio de São Bento para manifestar presencialmente o seu pesar junto do primeiro-ministro. Pinto Henriques considerou a iniciativa absurda, quando muito fossem antes aborrecer o novo ministro dos negócios estrangeiros com as condolências. Só que eram os americanos e o PNL tinha muitas dívidas para com os americanos, daí que o engenheiro teria de engolir alguns sapos e aturá-los. Não foi especificado se a embaixada enviaria um emissário ou se seria o próprio embaixador a deslocar-se a São Bento. Fosse como fosse, o encontro estava marcado para daí a alguns minutos.
A tarde estava solarenga e agradável, ainda sem sinais de uma temperatura que se assemelhasse ao Verão. Pinto Henriques esperava com o olhar perdido no exterior, dando por si a pensar nos seus tempos de juventude em que ia ver jogos de futebol e onde gostava de cantar a plenos pulmões "nós só queremos Lisboa a arder".
As suas recordações quebraram-se com o som das sirenes da comitiva da embaixada a chegar ao palácio.
— Americanos... — suspirou com desdém para ninguém.
Pela espectacularidade da comitiva, Pinto Henriques calculou que seria o próprio embaixador a deslocar-se à residência oficial do primeiro-ministro, mas da sua janela não era possível confirmá-lo. O protocolo dizia-lhe que o deveria receber à chegada. Pegou no casaco que vestiu e saiu do gabinete, passando por Bárbara sem lhe ligar importância. Alcançou a porta principal no exacto momento em que o automóvel de gama alta se imobilizou no pátio frontal à fachada da residência oficial do primeiro-ministro de Portugal. Para sua enorme e desagradável surpresa, o passageiro não era o embaixador, mas sim a esposa Helena Blackhorne.
O segurança que a acompanhava no interior do veículo, sentado ao lado do condutor, foi o primeiro a sair para lhe abrir a porta. Pinto Henriques fez o seu sorriso hipócrita e desceu as escadas. Helena saiu do carro envergando um fato elegante composto por saia e casaco em tons beges. O vento tentou arruinar-lhe o penteado escuro sem sucesso. O engenheiro continuou a fingir que não a reconhecia dos tempos de juventude e manteve o ar simpático, cumprimentando:
— Boa tarde, senhora Blackhorne. Bem-vinda ao Palácio de São Bento.
— Boa tarde, senhor primeiro-ministro. — retribuiu, apertando a mão que ele lhe estendera. — Muito obrigada por me receber.
Subiram as escadas com o segurança dela atrás. Logo que entraram no átrio, Helena ordenou ao jovem que permanecesse ali até ao seu regresso. Alguns funcionários cumprimentaram-na com ligeiros acenos de cabeça. A assessora do primeiro-ministro levantou-se do seu lugar ao vê-la, recebendo-a com um cumprimento em inglês que Helena retribuiu sem perder tempo a explicar que falava português. Pinto Henriques abriu a porta do seu gabinete, convidou-a a entrar e fechou a porta, apontando-lhe o sofá confortável.
— Posso pedir para lhe servirem alguma coisa? Um chá?
Helena sorriu, olhou-o nos olhos e questionou:
— Acho que podemos parar de fingir que não nos conhecemos, não achas Henriques?
Ele fulminou-a com o olhar, perdendo toda a cordialidade. Ela não se revelou incomodada com isso, seria muito ingénua se esperasse uma reacção diferente. Pinto Henriques virou-lhe as costas e regressou ao seu lugar, atrás da secretária. Houve um momento de silêncio, Helena sentou-se no sofá, movendo-se com a elegância de uma garça.
— Que vieste cá fazer? — perguntou ele por fim.
— Trazer o voto de condolências da embaixada pela morte do teu ministro.
— Balelas. Podias... Podiam tê-lo feito com um simples comunicado como outras fizeram. Tu quiseste vir aqui. Que queres?
— Para começar, que sejas menos agressivo. — exigiu numa postura altiva com as mãos sobre os joelhos.
— Que queres?
— Vim ver-te. Apesar de tudo és um velho conhecido.
— Sou bem mais que isso, Helena.
— Não, és apenas um velho conhecido. — repetiu, desvalorizando-o. — Não foi por termos... pelo que fizemos na juventude que somos mais que velhos conhecidos.
Pinto Henriques sorriu desdenhoso e irritado ao mesmo tempo. Não tinha porque a deixar levar a melhor. Ele amara-a verdadeiramente, mas agora a sua presença era totalmente dispensável. Não percebia o motivo daquela visita, o porquê de ela o querer visitar sozinha, escondendo-se na capa de quem vem entregar uma mensagem pessoal da embaixada. Sim, ele sabia que o embaixador se tornara próximo do seu falecido ministro, mas então... que tivesse vindo o próprio embaixador. Perante o ar petulante dela, agindo como se ainda tivesse controlo sobre as emoções do ex-amante, ele decidiu ripostar:
— O teu marido sabe que foste amante do actual primeiro‑ministro do país onde é embaixador?
Helena encarou a pergunta com desdém.
— Que interesse teria isso para ele? Achas que quer saber quem foram os homens com quem fui para a cama antes de o conhecer?
— Calculo que não. E não devem ter sido tão poucos quanto isso. — Ela franziu o rosto com a ofensa. — Aliás, para te deixar vir sozinha a um encontro com outro homem, não deve passar de um conas.
Helena fez uma expressão de nojo, o que recordou a Pinto Henriques que ela odiava o palavrão.
— Vim em missão da embaixada. O meu marido não é paranoico.
— Registo que não negaste que seja um conas. — insistiu, meio divertido.
— Ele não é um... não é fraco. — retorquiu em defesa do americano. — E esperemos que nunca tenhas de descobrir a que ponto não é fraco.
— Ui... Isso é uma ameaça?
— Não. Porque haveria eu de te estar a ameaçar?
Pinto Henriques não respondeu. Ao invés, ficou a observá-la demoradamente, questionando-se acerca dos seus objectivos. Que fazia ela ali? Helena não desviou o seu olhar do dele, aguardando que falasse.
— Talvez me queiras explicar porque partiste subitamente do Porto há mais de trinta anos?!
Helena encolheu os ombros.
— Estava na altura de regressar. — mentiu.
— Nem te despediste.
— Não gosto de despedidas.
— E pensar que um dia te amei...
A esposa do embaixador não revelou qualquer tipo de sentimentos pelas lembranças, quase como se não fizesse parte delas.
Sem a mínima noção do que ela poderia querer, Pinto Henriques não esqueceu que tinha a oportunidade de tentar saber mais algumas coisas em relação às revelações que Raimundo Antunes lhe transmitira.
— Disseste há pouco que ao teu marido não interessava saber quem tinha sido os homens com quem fodeste antes dele. — Ela fez uma expressão ofendida com o nível de linguagem. Ele ignorou. — Também não lhe interessa que ficaste grávida? E cuja criança que pariste foi abandonada por ti? — retorquiu de forma cortante.
A senhora Blackhorne empalideceu sem conseguir esconder a surpresa por ele conhecer o segredo.
— Como sabes disso? — questionou com a voz sumida, incapaz de o negar.
Pinto Henriques fez um ar incrédulo.
— Acreditas que até ao momento em que acabei de to dizer, tive esperança de que o negasses? — Ela desviou o olhar, incapaz de o encarar. — Não consigo perceber o porquê, Helena. Se eu te amava...
— Não era a vida que eu queria. — acabou por justificar. — Era muito nova para me prender a um casamento e a uma criança.
— E isso justifica tudo? Abandonares um homem que te amava profundamente sem uma palavra, uma despedida, uma... sei lá, uma merda que fosse. Largaste-me como se não passasse de um monte de bosta. Usaste-me...
— Tu também me usaste.
— Como? — questionou meio aparvalhado.
— Na cama.
Pinto Henriques olhou para o tecto e levantou os braços numa expressão pasmada. Tornou a olhar para ela sem saber muito bem o que dizer. Como lidar com alguém que, trinta e tal anos decorridos, recorda os momentos em que fizeram amor como tendo sido um objecto sexual? Não valia a pena...
No entanto, outra questão lhe atormentava o espírito, desde que Raimundo Antunes lhe relatara os acontecimentos após Helena partir do Porto. Interrogava-se constantemente sobre como conseguiria as respostas às perguntas realmente importantes. A vinda de Helena ali tornara-se na oportunidade ideal.
— Para te ser sincero, estou a lixar-me para ti. — rosnou-lhe, controlando a raiva que sentia. — Mas, uma vez que ficaste grávida de mim, gostava de saber o que aconteceu à criança.
— Andaste a investigar-me? — inquiriu, procurando alterar o rumo da conversa.
— O SIALE investiga todos os cidadãos, principalmente aqueles que podem representar uma ameaça.
— Eu sou uma ameaça?
— Não. Mas, nós gostamos de saber com quem lidamos. E um embaixador, principalmente dos states, é alguém que convém saber com aquilo que podemos contar. Tu, como mulher dele, também foste investigada.
— Foi assim que soubeste quem eu era?
— Não. Soube quem tu eras quando te vi na embaixada. — corrigiu sem que isso fosse importante. — O meu serviço de informações transmitiu-me o resto.
— Então sabes tudo. Não precisas que te conte mais nada.
Pinto Henriques debruçou-se sobre a mesa. Tentava controlar a fúria, pensava na filha da qual fora privado do contacto e da sua paternidade. Tinha vontade de estraçalhar a esposa do embaixador. Mordendo as palavras entre dentes, inquiriu:
— Que aconteceu à criança?
A senhora Blackhorne deu sinais de se preparar para ir embora e respondeu em jeito de conclusão:
— Morreu.
— Não sejas mentirosa, Helena! — irritou-se ele. — Eu sei que a abandonaste num orfanato.
Helena revelava-se surrealmente calma, demonstrando que livrar-se daquela criança indesejada fora uma decisão correcta. Com uma tranquilidade assustadora, respondeu:
— Se sabes tudo para que me fazes perguntas?
— Só sei até aí.
— Também não sei mais que isso, Henriques.
— Eu quero encontrar essa criança.
— Já deve ser crescidinha. — corrigiu com sarcasmo. Pinto Henriques deu um soco no tampo da mesa, o que a sobressaltou. Ele não faria nada contra si, mas mesmo assim ela optou por não o enervar mais. — Deixei-a recém-nascida num orfanato em Lisboa. Não sei se a conseguirás encontrar, não deixei nada que a identificasse. Nem tão pouco lhe cheguei a dar um nome. Ela era um peso na minha vida, só descansei quando me consegui livrar dela. E até tive o cuidado de arranjar um lugar onde a deixar. Poderia tê-la deitado no lixo.
A forma desprendida como Helena falava deixou Pinto Henriques estupefacto. Como era possível alguém ser tão insensível?
— Em que orfanato?
Ela contou-lhe como o fizera e onde era o local a quem entregara anonimamente a sua bebé. O relato era semelhante a quem partilha a história da entrega de uma encomenda. Rematou com:
— Imagino que não fosse a única a ser abandonada lá.
Seria uma missão quase impossível saber o destino daquela filha. Mesmo assim, o primeiro-ministro não estava disposto a desistir.
— Sabes ao menos quando a deixaste?
Helena assentiu com um semblante enfadado:
— Sim, recordo-me do dia. Era feriado e estava um frio horrível. — O que não te impediu de abandonar a bebé. — Foi em Dezembro, dia 8 de Dezembro.
— Ninguém te viu? — Ela negou com a cabeça. — Recordas-te de algum pormenor que a possa identificar junto da instituição?
Helena soltou uma gargalhada de escárnio.
— Não me digas que estás a pensar encontrar a pobre desgraçada?! Achas que se tornou em alguma coisa de jeito, a viver num orfanato? Se ainda estiver viva, deve ser mais uma desgraçada a viver na rua e encharcada em drogas. — Sorriu com superioridade, levantando-se do sofá. Adoptou um tom paternalista. — Queres um conselho? Esquece isso, antes que te traga problemas. Já pensaste o que seria para ti descobrir-se que eras pai de uma drogada desgraçada? Para além disso, podias dizer o que quisesses, as pessoas iriam sempre achar que a abandonaste.
— Tu é que a abandonaste.
— Eu não tenho ambições políticas. Pouco me interessam o que os portugueses pensam de mim.
— E o teu marido?
Helena encarou-o num misto de ódio e receio.
— Não te atreverias a partilhar isto com ele.
— Porque não?
— Que ganharias tu com isso?
Pinto Henriques fez uma expressão ponderativa.
— Não sei. Não me debrucei muito sobre o assunto.
— Não me queiras para inimiga, Henriques. — alertou em tom ameaçador. — Podes estragar o meu casamento, mas tenho influência suficiente na América para vos fazer passar um mau bocado.
Ele encarou-a sério.
— Acho que não temos mais nada a conversar, senhora Blackhorne.
— Concordo, senhor primeiro-ministro.
— Eu acompanho-a à saída.
Como dois excelentes hipócritas que eram, saíram do gabinete como duas pessoas que haviam finalizado uma reunião cordial. Caminharam em silêncio até ao átrio onde o segurança aguardava. Não se cumprimentaram para além da troca de sorrisos fingidos. Helena entrou no automóvel que a trouxera. E a comitiva abandonou o pátio frontal ao Palácio de São Bento.
18.1
O calor ao fim da manhã era agradável e deixava a adivinhar uma tarde bem quente, própria da época. A cidade mergulhada nos raios solares convidava a passeios pelas ruas, sendo que a grande maioria das pessoas que circulava pelos passeios ou nos veículos que cruzavam as estradas estivessem a trabalhar. Era um dia de semana como tantos outros.
Moniz estava de folga naquele dia, folga da sua função de militar da Guarda Nacional Republicana. Aos quarenta e poucos anos, Moniz era tenente-coronel e um dos responsáveis pela segurança do homem que ocupava o cargo mais alto da nação, o presidente da república. No entanto, aquele início de tarde seria para ficar longe dos assuntos profissionais.
Saiu do pequeno apartamento onde vivia sozinho em Campo de Ourique. Caminhou descontraído pelas calçadas do bairro. Era um homem alto facilmente identificável como militar pela postura hirta e encorpada, para além do penteado alourado curto e a barba rala. O rosto angular estava parcialmente coberto pelos óculos escuros que lhe escondiam os olhos castanhos. Vestia um polo de manga curta verde‑escuro e calças pretas. Quando não estava de serviço, trocava as botas militares por sapatilhas Adidas. Passou pelo mercado de Campo de Ourique, cumprimentando algumas pessoas que o conheciam desde que vivia ali. Não nascera no bairro, nascera na margem sul do rio Tejo, num bairro problemático com má fama. Sim, poderia ter sido um bandido, mas optou pelo lado honesto da vida e pelo papel de cumprir e fazer cumprir a lei, demonstrando que não é por se nascer num determinado sítio que se é bandido. E não foram tempos nada fáceis, rodeado de caminhos simples para o lucro em troca de comprometer toda a sua vida e o seu futuro. Tivera amigos que ainda cumpriam pena de prisão e outros que não sobreviveram à droga ou ao crime. Com a ajuda da família, lutou para ser alguém e encontrou na vida militar um rumo. Passou a ser visto por muitos como o inimigo, o tipo que se aliara à "bófia", o traidor do bairro. Temeu pelo pai, pela mãe, pelos tios, por aqueles que lhe eram próximos e que poderiam ser um alvo como represália pelas suas escolhas. Felizmente, isso nunca aconteceu, a sua família tinha uma história naquele bairro com maior peso que a sua decisão de ser militar e um braço armado da lei. Essa família era a mesma família que já partira e o deixara só. Os pais partiram cedo demais, vítimas da doença. Os tios seguiram-lhes o caminho da desgraça. Foi muito duro para Moniz ver-se amputado de familiares, de pessoas importantes na sua vida.
Começou a sua carreira de militar no Exército, mas sempre teve gosto pela função de ser agente de autoridade no meio da comunidade. Chegou a pensar candidatar-se à escola de agentes da Polícia de Segurança Pública, mas acabou ao serviço da Guarda Nacional Republicana. Sem família a prendê-lo, optou por trabalhar fora do país, era uma maneira de se afastar periodicamente dos cenários que lhe recordavam as pessoas importantes da sua vida. Integrara missões militares de defesa da paz no estrangeiro, no âmbito da Organização das Nações Unidas até se estabelecer em definitivo numa função que não o obrigasse a ausentar-se do país, uma decisão que tomara anos antes.
Essa decisão foi motivada por aquela que considerava como tendo sido o amor da sua vida. Numa das pausas entre missões, Moniz conheceu uma mulher que arrebatou o seu coração de forma abrupta. Não fora planeado e acontecera de forma surreal. Ele estava sozinho, aliás como era hábito, mas sentia a necessidade de uma companhia feminina. Não tinha paciência para ir a um bar engatar uma qualquer solitária ou esperar que o destino o fizesse cruzar com alguma candidata. Também não queria partilha de sentimentos, somente umas horas bem passadas e prazer sexual. O caminho mais simples foi contratar uma profissional do sexo. Também não queria uma puta de rua, queria alguém de alto nível, mesmo que isso lhe custasse muito dinheiro. Procurou na Internet e acabou por escolher uma rapariga ao acaso, cujas fotos o cativaram. Encontraram-se num hotel em Lisboa, num quarto que ele pagou para passar toda a noite com ela. Foi caro, muito caro, mas ele tinha mais dinheiro que sítios onde o gastar. Ela fora fenomenal, dera-lhe prazer nas mais diversas formas, ao longo das primeiras horas. Depois aconteceu a parte surreal da noite. Houve uma pausa no sexo e ficaram a conversar, a conhecerem-se. Ele pagara para a ter até de manhã, queria dormir abraçado a uma mulher, sentir um corpo feminino colado ao seu, o cabelo dela caído na sua almofada a embater no seu rosto. Só que não dormiram, nem voltaram a fazer sexo nessa noite. Conversaram longas horas, encontraram imensos pontos em comum e ficaram completamente cativados na essência um do outro. Ao amanhecer, fizeram amor. Começaram a encontrar-se regularmente, mas ela não lhe voltou a cobrar nenhum desses encontros. Também não assumiam qualquer compromisso, nenhum deles estava preparado para isso. Ela continuou a ser uma prostituta de luxo e ele aceitou-o com aparente naturalidade. Só que, com o passar do tempo, Moniz constatou que a queria só para si. Conversaram sobre isso, era algo sedutor para ela, largar aquela vida, apesar do rombo que isso significaria no seu rendimento mensal. Mas, tinha de começar a pensar no futuro, envelhecia todos os dias e chegaria a uma idade em que nenhum homem pagaria aquelas verbas para a ter na cama. E encontrar alguém que, conhecendo a sua vida, o seu passado, mantinha o desejo de casar com ela era uma espécie de dádiva que não poderia descartar.
De volta à realidade, o percurso levou-o até à Igreja do Santo Condestável. Entrou para se resguardar do calor e reservar alguns momentos para uma oração na casa do Senhor. Moniz era um homem religioso, crente na fé católica e tão praticante quanto possível. O ambiente na nave interior era calmo e silencioso. Era curioso como as igrejas conseguiam abafar o ruído intenso da cidade à sua volta. Não se via quase ninguém por ali, somente duas senhoras idosas sentadas nos bancos em oração. Caminhou entre as filas até ao altar e benzeu-se. Proferiu algumas palavras para si e afastou-se, sentando-se solitário na terceira fila e perdendo-se nas memórias.
Fora durante uma das últimas missões que prestou no estrangeiro. Antes de partir, Moniz pedira a sua amada em casamento e ela aceitara. Quis que ela abandonasse de imediato a vida de prostituição luxuosa e aproveitasse o tempo em que ele estaria fora para planear e organizar o casamento de ambos. Ela concordou, mas não cumpriu o acordo. Ele estava em missão na República Centro Africana quando tudo aconteceu, um desastre de automóvel que a vitimou a ela e ao condutor. Aceitara passar o fim de semana com um cliente em troca de uma pequenina fortuna, o valor que habitualmente cobrava por isso. Seria uma espécie de despedida da profissão. Foi também a despedida da própria vida. Moniz não voltara a apaixonar-se, desde que perdera aquela mulher de forma trágica. Pensou nela de olhos fechados, revendo os momentos de paixão partilhados, e rezou pela sua alma, desejando que estivesse em paz no Céu.
Ao fim de alguns minutos de consolo silencioso, abandonou o seu lugar no banco da igreja e refez o caminho até à saída, ouvindo os seus passos a cortar subtilmente o silêncio da nave. Uma vez cá fora, retomou a direcção que o levara ali, atravessando a praça frontal à igreja ao encontro da Rua Saraiva de Carvalho. Virou à direita. O Sol começava a incidir com força na cidade. Abstraindo-se do calor, Moniz caminhou pelo passeio até ao fundo da rua, alcançando a Praça São João Bosco, olhando para os portões abertos do Cemitério dos Prazeres. Algumas senhoras vendiam flores aos transeuntes que se dirigiam ao interior para visitar um ente querido. Moniz parou junto de uma delas e comprou um ramo de túlipas, a flor preferida da mulher que amara. Uma brisa soprou, como se algo invisível o cumprimentasse, indicando que o estava a ver. Moniz cruzou os portões, entrando no território das últimas moradas de tantos seres, inclusive da sua amada. Não conseguia evitar um sorriso trocista pela ironia do nome do local, Prazeres, em relação à profissão dela.
Numa passada calma, seguiu sempre em frente, passando ao lado da capela frontal aos portões. Viu várias pessoas junto dos túmulos, umas em introspecção, outras a cuidar da apresentação das campas. O Sol estava cada vez mais forte, mas a brisa ténue insistia em acompanhá‑lo, atenuando o calor sem grande sucesso. As linhas de jazigos sucediam-se, desde pequenos espaços que não iam além de montes de terra, passando por lápides em mármore até às construções que acomodavam famílias completas de várias gerações. Caminhos ladeados de vegetação e árvores, sombras reconfortantes, manchas verdes brilhantes e resplandecentes que se abanavam com o vento primaveril suave. Ele não ia ali muitas vezes, mas sabia o caminho de cor até à lápide que procurava. Também não era um trajecto complicado, bastava seguir sempre em frente até ao fim e virar à direita. O local que iria visitar localizava-se numa das extremidades do cemitério e tinha uma vista magnífica para Monsanto. Parou defronte da pedra imponente em granito. Olhou para as letras claras na pedra escura e leu o nome Fátima juntamente com o apelido. Acocorou-se junto da campa e depositou as flores sobre a pedra que cobria o túmulo. Permitiu-se a uns momentos de introspecção, recordando-a nos momentos mais felizes que haviam partilhado, rezando uma prece pela sua alma, pelo seu espírito.
Talvez fosse maluquice sua, talvez quisesse acreditar nisso, Moniz sentia a presença dela ali, como se estivesse a seu lado, invisível, a contemplar o próprio túmulo. Ele não era pessoa de falar sozinho, mas dedicava bastante tempo sempre que a visitava para lhe falar em pensamento. Relatava-lhe o dia a dia, repetia as saudades que tinha dela. Nunca a recriminava por não ter cumprido o acordo. Para quê? Isso não a traria de volta. Eram longos momentos sem prazo e de tempo indeterminado, minutos em que se alheava de toda a realidade envolvente e mergulhava num monologo mental com ela. Porém, naquele início de tarde, uma voz quebrou o seu recolhimento.
— Bom dia?!
O cumprimento veio em tom de inquirição. Moniz virou-se para encontrar a proveniência da voz feminina. Viu uma morena com o cabelo preto comprido a cair solto sobre os ombros, dançando ao sabor da brisa, embatendo-lhe no rosto fechado curioso numa expressão de falsa candura com o nariz singelo de ponta arrebitada, as maçãs das faces deliciosamente ponteadas por pequenas sardas, os lábios finos pintados num tom recatado, as sobrancelhas bem aparadas. Observou o corpo curvilíneo dentro de calças de ganga azul-clara e de uma camisola escura que lhe contornava o corpo de forma apelativa. Aguardava uma resposta numa postura segura bem assente nos sapatos de salto alto cravados na gravilha do terreno.
— Bom dia! — retribuiu com a mesma curiosidade. — Sim? Em que a posso ajudar?
Ela não se mostrou mais simpática pela disponibilidade dele, mantendo o ar sério. Olhou para a lápide, quase como se confirmasse se estava no lugar correcto e tornou a olhar para ele.
— Conhecia a Sc... a Fátima?
Moniz detectou a emenda, reconhecendo o nome que ela iria dizer.
— A Scarlett? Sim, conhecia muito bem a Scarlett.
A morena cravou o olhar desconfiado nele.
— Cliente?
— Ao início, sim.
— Ao início?
— Eu e a Scarlett tivemos uma história. — Levantou-se da sua posição junto à pedra e colocou-se em pé de frente para a desconhecida. Estendeu-lhe a mão, reconhecendo-lhe a beleza avassaladora. — Moniz.
O nome pareceu não lhe ser estranho, denotando no olhar alguma surpresa.
— O militar? — questionou, confirmando a suspeita dele. — O militar por quem a Scarlett estava apaixonada? — Estava tão surpresa que ignorou a mão estendida. Percebeu a deselegância e apertou-a hesitante. — Sou a Kayla.
— Sim, esse mesmo. — confirmou sem vontade de lhe largar a mão macia. — O teu nome não me é estranho.
Kayla soltou-se dos seus dedos, desconfortável pela informalidade dele. Manteve o ar sério.
— Era a melhor amiga dela.
Moniz fez uma expressão de quem revelava ter-se feito luz na sua memória. Nunca a conhecera pessoalmente, mas Scarlett falava muitas vezes naquela que era uma espécie de irmã mais nova para si, Kayla. Também se recordava que Kayla, tal como Scarlett, era prostituta.
— Prazer em conhecer-te.
— Que fazes aqui? Nunca te vi cá.
Ignorando o que lhe pareceu alguma agressividade na voz, Moniz respondeu:
— Venho algumas vezes. Vim trazer flores e "conversar" um pouco com ela. A tua amiga era muito especial para mim.
— Sim, eu sei. — confessou, abandonando um pouco da postura altiva. — Ela falava muito em ti e estava muito feliz.
— Foi uma tragédia, o que aconteceu. — disse ele, tornando a olhar para a campa. — Nunca mais encontrei ninguém como ela. Infelizmente, o destino privou-nos de continuar a ser felizes.
— Não foi o destino, foi a merda de um acidente de viação. — corrigiu Kayla, denotando a amargura na voz.
Moniz voltou a cravar o olhar nela, observando-a da cabeça aos pés sem problemas em revelar o interesse que ela despertava em si.
— Tu também...? Também... — Kayla encarava-o sem facilitar aquilo que ele queria saber. — Também eras colega dela? — Ela anuiu como se a sua profissão fosse a coisa mais natural do mundo. — Ainda...? Continuas...?
Cansada com as hesitações, Kayla completou:
— Se ainda sou prostituta? Sim, sou. — Viu o sorriso aflorar-se no seu rosto. Percebia tão bem os homens. — Porquê? Estás interessado?
— Talvez.
Ela fez um sorriso escarninho.
— Não sei se terás dinheiro para me pagar.
— Diz o teu preço. — desafiou ele, correspondendo ao jogo.
Kayla debitou todos os valores, sabia-os de cor, como uma funcionária de uma loja a falar dos preços de todos os produtos expostos. Para o deixar com água na boca, aflorou-lhe uma ideia de tudo o que poderia ter pela correspondente quantidade em euros. Notava-lhe no olhar a imaginação dele espicaçada pela figura dela. Terminou com a condição da qual não abria mão:
— Só faço em hotéis ou motéis. Não recebo no meu apartamento nem me desloco a casa dos clientes.
Moniz anuiu.
— São preços superiores aos da Scarlett.
— Passaram alguns anos. — retorquiu mordaz. — É a inflação. — Atirou-lhe um sorriso provocador. — Além disso, sei que ela não te cobrava. Não esperes isso de mim.
Ele tornou a anuir, concordando com as condições.
— Podes dar-me o teu número?
Kayla olhou para a lápide, como se procurasse encontrar a amiga no seu ângulo de visão. Recriminou-se por estar a ter aquela conversa ali, era como se tentasse angariar o namorado da amiga para cliente diante dos olhos dela. Moniz pareceu ter tido o mesmo pensamento e acabou por dizer:
— Talvez este não seja o melhor local para estarmos a falar sobre... Vou deixar-te sozinha para estares com ela. Encontramo-nos na saída?
Kayla concordou.
Moniz afastou-se do local, refazendo o percurso que o trouxera ali, no sentido oposto. Sentia-se fascinado pela beleza de Kayla e alegre por ser tão fácil para si desfrutar dela em troca da soma avultada de euros. Sorriu para ninguém, incomodado com o calor que o fustigava agora que já não estava sob a protecção da copa das árvores. Tornou a passar a capela e aguardou perto do portão. Decorreram longos minutos sem que Kayla aparecesse. Ele questionou-se se ela estaria a pedir permissão à amiga falecida para lhe prestar os serviços com os quais ganhava a vida. Também ponderou a hipótese de ela não ter tido coragem para lhos recusar e se tivesse escapulido sem que ele visse. Porém, não era possível sair do cemitério sem ser por aquele portão, a menos que ela saltasse o muro. Não lhe pareceu provável que ela o fosse fazer.
Todas as suas dúvidas se dissiparam quando a viu aparecer pelo mesmo caminho que ele fizera. Recolocara os óculos escuros e caminhava distraída como se já nem se lembrasse que ele a esperava. No entanto, aproximou-se dele com o semblante sério. Ele questionou mentalmente se ela seria assim tão séria na cama. Em breve saberia. Antes que ela dissesse alguma coisa, Moniz sugeriu:
— A minha casa não fica longe...
— Já te disse que não me desloco a casa dos clientes. — interrompeu intransigente. — Queres o meu número?
— Sim, claro. — concordou, pegando no seu telemóvel.
Kayla proferiu os nove dígitos do seu contacto.
— Quando quiseres, liga e marcamos.
— Combinado.
Ela não perdeu mais tempo e afastou-se sem olhar para trás.
18.2
A noite estava com laivos tropicais. No seu apartamento, Kayla retocava a maquilhagem defronte do espelho, preparando-se para mais um encontro com um cliente. Afastou-se do espelho, caminhando pelo quarto somente com as cuecas minúsculas de fio dental e o sutiã rendado que lhe apertava os seios. Vestiu uma saia curta que pouco mais cobria que metade das coxas e juntou-lhe uma camisola de malha elástica que se adaptava na perfeição a todas as curvas do seu tronco. Sentou-se na cama e calçou as sandálias de salto alto com tiras que subiam cruzadas pelas suas pernas até aos joelhos. Quando ficou pronta, o seu telemóvel tocou.
— Olá! É o Moniz.
— Moniz? — questionou, fingindo não se lembrar dele.
— Encontrámo-nos no outro dia, no cemitério...
— Ah, sim...
— Estou a ligar para saber se estás disponível.
— Hoje, nem por isso.
— Quando é que poderíamos marcar?
— Amanhã.
Combinaram a hora e o hotel onde se encontrariam. Kayla não se demorou muito mais com o telefonema.
Logo que se levantou do colchão, tornou a observar-se ao espelho, analisando a sua imagem, consciente que estava soberba. O cliente daquela noite não a demorava muito e pagava bem. Era um dos habituais, um daqueles que periodicamente a contactava para a prestação do serviço. Ao início, Kayla questionara-se como é que um tipo jovem e estudante universitário tinha dinheiro para a solicitar tantas vezes. Percebeu como era possível, quando soube quem ele era na realidade. O tipo não tinha boa fama, nem andava nas melhores companhias, mas sempre fora correcto com ela, até porque de outra forma não repetiria o serviço.
Saiu do quarto, atravessando a sala para ir buscar o sobretudo comprido que vestiria para a proteger da brisa nocturna e elevar ainda mais a sua elegância. O silêncio do apartamento foi cortado pelo som estridente da notificação gritada pelo seu telemóvel. Kayla pegou no aparelho e viu que era uma mensagem do WhatsApp. Não conseguiu evitar um sorriso ao ver o nome do remetente, ele conseguia sempre despertar-lhe um sorriso na face. Escreveu em resposta:
"Olá, Valério."
"Como estás?"
Kayla olhou para o relógio no canto superior direito do ecrã, não se queria atrasar, por isso respondeu:
"A sair de casa para me encontrar com um cliente"
Percebeu que ele leu a mensagem, vendo os dois vistos azuis, mas nos instantes seguintes não houve reacção. Sabia o que ela significava para ele, que era desejada por aquele rapaz simpático que se convertera no único amigo que tinha na vida. Deu-lhe algum tempo para responder, enquanto abria a aplicação da Uber para pedir transporte entre o seu prédio e o destino onde o cliente a esperava. Valério continuou silencioso. Não queria magoá-lo. Abriu a porta do apartamento, desligou as luzes, trancou tudo e chamou o elevador.
"Para já, estou livre no sábado. Queres combinar alguma coisa?", escreveu enquanto o elevador descia ao piso térreo.
"Sim. Tenho saudades tuas."
O Uber nunca demorava muito, o tempo de ela descer até à rua, havia sempre um por perto. Já na escadaria frontal ao prédio, voltou a dar atenção ao diálogo.
"Não sei se terei algum cliente à noite, mas podemos passear à tarde. Que dizes?"
Um Toyota preto apareceu na rua e parou perto dela, vendo a indicação de que era ela a sua passageira. Kayla entrou para o banco de trás, cumprimentando um motorista jovem que parecia ainda estar a refazer-se da visão dela. Indiferente a isso, Kayla concentrou-se no amigo, lendo "Depois do almoço?". Ela tornou a sorrir, gostava dele de uma forma carinhosa. Valério era o único ser humano que conseguia trazer ao de cima a Conceição, a mulher vulnerável solta daquela personagem de profissional do sexo.
"Não me queres levar a almoçar a um lugar bonito?"
Ele não respondeu logo e ela percebeu que Valério deveria estar perante o dilema de satisfazer o seu desejo e a capacidade financeira para tal. Apressou-se a escrever "Gostava de almoçar contigo num sítio bonito. Convido eu.", que é como quem diz que paga ela.
A viagem não era muito comprida e, quando Kayla voltou a observar o exterior, já se aproximavam do hotel onde o cliente a esperava. Isso fê-la recordar a noite em que aquele mesmo cliente a solicitara e fizera com que tivesse de cancelar o serão com Valério, acabando este ainda por a levar ali. Sentira-se terrivelmente mal por o ter feito passar por isso.
"Será um prazer, como todos os momentos que passo contigo", leu após o apito do aparelho. Kayla não evitou a constatação crua que, apesar de ser quem mais o pudesse merecer, ele nunca saberia verdadeiramente o que seria ter prazer com ela. Mesmo que tivesse dinheiro para isso, Valério nunca seria um cliente, pois ela não o permitiria, consciente que isso quebraria de imediato a relação especial que tinham. Se num futuro fantasioso, eles se envolvessem, seria Conceição quem faria amor com ele.
"Então está combinado."
Finalizou a conversa, quando o carro parou defronte do hotel.
Entrou no edifício no seu porte imponente e belo. Não duvidava que alguns funcionários a reconhecessem de outras idas ali, mas duvidava que alguém tivesse certezas acerca do que ia fazer. Deslocou-se pelo átrio, ignorando a recepção e atravessando directa aos ascensores. Viu dois homens de negócios saírem do elevador que ela iria tomar, os quais lhe lançaram olhares lânguidos que ignorou. Subiu sozinha até ao quinto piso.
Ao sair para o corredor, deparou-se com o habitual vazio silencioso. Avançou como se desfilasse num evento de moda, olhando para a numeração das portas e parando quando encarou o número que procurava. Bateu duas vezes com os nós dos dedos na madeira escura.
A porta abriu-se. Um jovem mais ou menos da idade de Valério com um porte forte e uma estatura abaixo da média surgiu para a receber. Sempre fora simpático com ela, mas a sua expressão facial parecia ter sempre um sorriso crónico, uma curvatura mesquinha de quem está sempre a preparar algo, um cinismo calculista. Ao olhar frio e inquisidor juntava-se o desejo incontido por ela, pelo corpo dela. Usava um corte de cabelo quase rapado nas têmporas e muito curto no resto.
— Boa noite, Filipe! — cumprimentou ela, entrando.
— Boa noite, Kayla! — retribuiu Filipe Macieira, o líder da JNL, ao fechar a porta.
Kayla entrou e libertou-se do sobretudo, atirando-o para cima de uma cadeira. Mesmo de costas para ele, sentia o seu desejo latente no ar. Voltou-se e encarou-o com a sua habitual expressão que Filipe já sabia interpretar, daí que este tivesse ido à carteira buscar as notas para pagar o serviço. Logo que recebeu o dinheiro, guardou-o na sua mala e iniciou a interpretação daquilo para que fora contratada.
Como era habitual com Filipe, nunca se demorava muito. Pouco mais de uma hora decorrida, Kayla estava a abandonar o quarto, deixando para trás o cliente satisfeito.
No entanto, as coisas foram diferentes no dia seguinte com Moniz, o militar da GNR.
Kayla evitava os mesmos hotéis por duas razões, ser reconhecida como prostituta pelos funcionários e ter clientes a cruzarem-se. Por isso, conhecia uma quantidade considerável de unidades hoteleiras para sugerir aos interessados, independentemente do preço, uma vez que eram eles quem pagava.
O encontro ficara marcado para a tarde, o que teve o efeito de alterar o estilo de vestuário escolhido por ela, uma vez que a indumentária usual da noite facilmente interpretada como alguém que vai sair com amigos poderia ter uma interpretação durante o dia semelhante àquilo que realmente ela era, uma prostituta. Vestiu algo simples e elegante, calças de ganga, camisa apelativa por baixo de um blusão e sapatos de salto alto.
O dia primaveril estava bonito, mas na zona ribeirinha soprava um vento desagradável. O Uber deixou-a na entrada de um hotel junto ao rio Tejo, em Belém. Por norma, os clientes evitavam ser vistos com ela, queriam sempre o máximo de sigilo e distanciamento fora do quarto. Daí que os encontros fossem sempre na segurança e intimidade de uma suite hoteleira ou num motel. Contudo, Moniz quis diferente, esperava-a no bar do hotel, sentado numa mesa junto aos vidros altos a contemplar a água fluvial a correr calma até à foz. Vestia um traje semelhante àquele com que o encontrara no cemitério.
Moniz recebeu-a com um sorriso sem ter intenção de se levantar do seu lugar. Sem saber explicar porquê, Kayla tinha tendência a tratá-lo com alguma superioridade. Se ele notou, não o revelou.
— Queres beber alguma coisa? — convidou Moniz, apontando‑lhe a cadeira no lado oposto da mesa.
— O tempo está a contar. — lembrou ela.
Ele sorriu, insistindo no convite e dizendo num tom baixo:
— Não te preocupes. Sei o teu preço à hora.
Kayla sentou-se na cadeira e pediu um gin.
Por instantes, ficaram a olhar-se mutuamente, Kayla curiosa e interrogando-se o que esperaria ele dela para além de um corpo para lhe dar prazer. Moniz observava-a divertido.
— Não queres subir? — questionou ela, começando a pensar se ele a contratara para ficar ali.
Antes que Moniz pudesse responder, o empregado trouxe a bebida dela.
— Podemos conversar um pouco, antes? — sugeriu, assim que voltaram a ficar sozinhos.
Kayla encolheu os ombros.
— Como queiras.
Ele bebeu um pouco da bebida que tinha no copo que repousava na sua frente.
— Que idade tens?
— Começas bem. Se achas que perguntar a idade a uma mulher é forma de começar uma conversa...
— A sério. — insistiu. — Que idade tens. Idade real.
— Trinta e três. — respondeu com indiferença.
— Já pensaste em deixar essa vida?
Kayla fez um esgar incrédulo e abanou a cabeça, dizendo:
— Contrataste-me para foder ou para fazeres de meu conselheiro profissional?
Moniz ignorou a pergunta.
— A Scarlett tinha quase a idade que tens agora, quando decidiu deixar essa vida para ficar comigo.
— Onde queres chegar? Estás a propor-me que tome o lugar dela na tua vida? — questionou com toda a frontalidade.
— Não, nada disso. Estamos só a falar.
— Não pretendo deixar de fazer o que faço nos tempos mais próximos.
Ele anuiu, aceitando a resposta. Levantou-se da mesa, sugerindo:
— Vamos?
Kayla bebeu o resto do gin e copiou o movimento dele, abandonando a mesa elegante do bar.
Seguiram em silêncio para o quarto que se localizava no piso superior. Moniz levava o cartão-chave na mão e abriu a porta do respectivo alojamento, convidando-a a entrar antes de si. Kayla observou o interior requintado e a vista agradável para o rio. Ao ouvi-lo fechar a porta, virou-se e informou:
— Costumo receber antes de começar.
Moniz não colocou objecções, pegando na carteira e retirando um maço de notas que lhe colocou nas mãos.
— Quero que passes a noite comigo. Chega?
Ela contou o dinheiro, muitas centenas de euros que cobriam perfeitamente a sua disponibilidade até à manhã seguinte.
— Sim. — confirmou num tom neutral, disfarçando a agradável surpresa de receber uma soma tão avultada de forma inesperada. — Como é a primeira vez, quero avisar-te que tenho algumas regras.
— Sou todo ouvidos. — acedeu, sentando-se na cama. — Podes ir debitando as regras enquanto te despes.
Era justo, pensou. Kayla começou por tirar o casaco e descalçar os sapatos.
— Deves comportar-te como um cavalheiro. Estás a pagar um serviço sexual, mas isso não te dá o direito de ser incorrecto comigo. — Desapertou o fecho das calças. — Espero que sejas asseado, limpo e tenhas tomado as devidas precauções de higiene. Podes sempre tomar um banho antes, não me importo. — Despiu as calças, revelando-lhe as pernas curvilíneas e as cuecas minúsculas. — Só faço com preservativo. Isso não é discutível nem negociável. — Ele anuiu, vendo-a desapertar a camisa que escondia o sutiã que fazia conjunto com as cuecas. — Perguntas?
— Fazes oral?
— Sim.
— Com ou sem preservativo?
— No sexo oral, como quiseres.
Moniz fez uma expressão agradada.
— Fazes anal?
— Não aprecio, mas se quiseres... Com preservativo, claro.
— Não faço questão.
Kayla ficou a olhar para ele.
— Não te despes?
Ele olhou para a roupa como se só naquele momento tivesse reparado que estava vestido. Levantou-se e começou a livrar-se das peças de vestuário.
— Que me dizes a começarmos com um duche juntos?
— Parece-me bem. — concordou ela. — Leva um preservativo.
— Não é necessário, Kayla. Só quero mesmo desfrutar de um duche contigo.
Minutos mais tarde, a água corria morna pelo chuveiro no interior da cabine do duche na casa de banho privada da suite. Quem espreitasse pela porta pouco veria, uma vez que os vidros estavam suficientemente embaciados para somente se perceber os contornos distorcidos dos corpos nus de ambos. Mesmo assim, era perceptível que ele estava de pé encostado aos azulejos azulados, enquanto ela se ajoelhara de frente para ele com a cabeça à altura da sua cintura.
Fora uma tarde e uma noite sem descanso, somente com uma pausa para jantar uma refeição trazida ao quarto pelo serviço do hotel. Esgotaram o lote de preservativos que Kayla trazia consigo por precaução e quase todos os que Moniz também trouxera. Ela fora uma profissional de nível elevado, mas ele também fora um cliente excelente, o que fez com que todos os momentos de êxtase tivessem sido comuns a ambos. Em momento algum, ela se sentiu tratada como prostituta e ele revelou preocupação em retribuir o prazer que ela lhe oferecia, chegando mesmo a provocar-lhe um orgasmo quando faziam aquilo que Kayla não apreciava.
Na manhã seguinte, sem um minuto que fosse dormido, Kayla abandonou a cama antes que o sono a traísse e acabasse por ficar mais tempo. Moniz protestou sem convicção e deixou-se ficar nos lençóis ouvindo o som do duche dela. Enquanto a via vestir-se, sugeriu-lhe que continuasse ali com ele.
— Eu pago mais essas horas. — insistiu perante a recusa dela.
— Tenho um compromisso. — tornou a recusar. — E preciso de dormir um pouco, antes.
— Outro cliente? — questionou num tom de condenação. Kayla fulminou-o com o olhar, avisando-o que estava a pisar uma linha vermelha. — Ok, ok. Não tenho nada a ver com isso.
Ainda era cedo, mas para quem não dormira, a manhã ia já em grande andamento. Indiferente ao que o seu cliente iria fazer a seguir, Kayla analisou-se ao espelho alisando alguns vincos da roupa, pegou na mala que colocou a tiracolo e preparou-se para ir embora.
— Quero voltar a ver-te! — informou Moniz. — Quero voltar a estar contigo!
Kayla lançou-lhe um sorriso profissionalmente sedutor e retorquiu:
— Tens o meu contacto. E sabes o meu preço.
Ele assentiu, confirmando que estava consciente de que a relação de ambos não passava de um negócio. Esperou que ela se aproximasse para que partilhassem um último beijo de despedida. Kayla não o fez, despedindo-se com um simples aceno e abandonando o quarto sem olhar para trás.
Moniz deixou-se ficar imóvel na cama sem vontade de se levantar. Iria aproveitar para colocar o sono em ordem até ter de deixar o quarto. Ficara encantado com Kayla, de uma forma como já não sentia há muito tempo, talvez há uns cinco anos. Infelizmente, ao contrário da "sua" Scarlett, Kayla não parecia interessar-se por largar a vida fácil e de alto rendimento que a prostituição lhe dava para se agarrar a uma relação séria com um homem que a amasse. Lamentava que ela pensasse assim, mas tinha esperança que as coisas pudessem mudar.
Entretanto, Kayla fizera o percurso até ao átrio de forma automática com o olhar atento no telemóvel, solicitando um Uber para a ir buscar ao hotel e a levar a casa. Aguardou no exterior, perto da entrada do hotel na Av. Brasília, pensando no cliente dessa noite. Moniz fora excelente com ela, obrigando-a a ter a atenção de disfarçar como fora tão boa aquela noite. Tinha vontade de repetir, de estar mais vezes com ele, era um amante fenomenal com a compensação de ainda estar a ser paga para isso. Sim, ele poderia ser alguém capaz de chegar ao seu coração, não tinha problemas em confessá-lo a si própria. Só que aniquilara essa oportunidade ao tornar-se seu cliente. E Kayla jamais permitiria a um cliente dar esse salto. Moniz era um bom tipo, um óptimo amante, o género de cliente quase ideal para alguém como ela. Não queria perdê-lo e lamentava aquela expressão de quem quer encontrar nela a substituta para aquilo que um dia tivera com a sua melhor amiga, falecida cinco anos antes. Iria esfriar tudo o que viesse dali que pretendesse mais que a troca de sexo por dinheiro. Para além disso, havia alguém com quem ela nunca tivera, não tinha, nem nunca haveria de ter qualquer contacto sexual que lhe provocava sentimentos novos, alguém que não a atraía fisicamente, mas que a encantava pela sua maneira de ser e pela forma doce como a tratava, sabendo que nunca teria nada dela para além da amizade dos "jogos particulares", uma vez que ela era da Liga dos Campeões e ele dos campeonatos Distritais. Porém, se pensasse nos homens que poderiam alcançar o seu coração, Valério estava na frente da fila e em grande vantagem para a concorrência. E era por essa relação bonita que crescia entre eles que estava agora preocupada em descansar para estar cheia de energia para o almoço que haviam combinado.
19.1
As redes sociais foram ganhando importância na vida das pessoas ao longo dos anos, desde o seu início no começo do século XXI. Em Portugal, muitos analistas consideram-nas como factor determinante para o rápido crescimento da doutrina nacionalista lusitana e do seu partido. Não havia dúvidas que, talvez inspirados nos exemplos estrangeiros, os responsáveis do PNL pelas redes sociais do partido souberam manipular as ideias das pessoas com o uso das notícias falsas, o logro e a dissimulação, transformando mentiras em verdades e verdades em mentiras. Contudo, também era certo que aquela que tinha sido a grande vantagem para eles, começava agora ser uma arma contra, uma vez que através dessas mesmas redes sociais proliferavam os contestatários, as manifestações de oposição e onde se agrupavam todos os que pensavam de forma contrária ao nacionalismo lusitano. Pinto Henriques quis encontrar uma forma de calar as redes sociais em Portugal, mas Raimundo Antunes conseguira ver mais além.
O clima de quase ditadura e o aumento das restrições à liberdade de expressão criaram um receio no povo como já não se via desde os idos tempos do Estado Novo. Poucos se atreviam a criticar abertamente o governo e o seu regime, a não ser os deputados da oposição. Sim, via‑se muita gente em gritos de revolta na Internet, mas eram quase todos anónimos ou com identidades falsas. No entanto, o SIALE criara uma bela armadilha aos ingénuos com a página do Facebook do Movimento Armado de Lisboa, onde ninguém se atrevia a manifestar apoio aos seus actos, mas a quem muitos escreviam mensagens privadas de suporte, motivação e até desejo de integrar as suas fileiras de resistência contra o nacionalismo lusitano. Pobres coitados desses contestatários que ignoravam que estavam literalmente a cair na boca do lobo. E foi por isso que Raimundo Antunes preferia usar as redes sociais, ao invés de as calar, porque através do logro, o SIALE alcançava e capturava ameaças que de outra forma seriam difíceis de encontrar.
Todos os partidos tinham páginas de Facebook para que os seus "fãs" se agregassem às suas ideias com o simples clique no botão "gosto". Era quase como se, ter mais "gostos", tivesse maior importância que ter mais votos nas urnas. Óbvio que não tinha, mas quem tivesse mais seguidores daria uma imagem de grandeza que poderia levar ao voto dos indecisos. Para além dos partidos, a grande maioria dos políticos tinha as suas páginas pessoais. Bruna Drake era das deputadas com mais seguidores, consciente que muitos a seguiam mais pela beleza que pelas ideias. A Presidência da República também tinha uma. Os movimentos de juventude como a JNL tinham, as associações estudantis... Enfim, não ter era quase como não existir.
O regime nacionalista lusitano não trouxera uma censura aberta, mas espiava a oposição através das suas opiniões, seguindo e avaliando cada identidade que se agregava a eles. O SIALE, apoiado pelos conhecimentos técnicos providenciados pelos serviços secretos americanos, conseguira montar uma estrutura de controlo perigosa para a liberdade do comum cidadão. Dependendo da foto ou texto onde se pusesse um "gosto", uma pessoa poderia ganhar lugar na lista de vigia do SIALE ou ver-se detido com direito a uma visita aos calabouços da polícia política donde nunca se saía com mais saúde que quando se entrava.
José Carlos sabia que as opiniões públicas se haviam tornado perigosas, daí que evitava qualquer tipo de interacção nas redes sociais, limitando-se a ler o que os outros escreviam, principalmente a JNL que se tornara cada vez mais activa nas publicações, difundindo notícias falaciosas ou propagandeando eventos, evitando o tipo de publicações que de certo se identificariam com a sua maneira de pensar, mas que seriam rapidamente eliminadas pelo Facebook com a justificação de apelarem ao ódio, serem xenófobos e homofóbicos. Contudo, José Carlos seguia as publicações para não ser surpreendido por qualquer iniciativa na faculdade onde perdera a presidência da associação académica para Filipe Macieira por motivos políticos.
Desde que Filipe Macieira fora designado para a presidência pela reitoria a mando do Ministério da Educação e Ensino Superior, os membros da JNL movimentavam-se pela Universidade de Lisboa como se fossem intocáveis e uma espécie de polícias dos outros estudantes. Filipe odiava José Carlos, mas o facto de lhe roubar o cargo pareceu desinteressá-lo do colega.
Fruto do que ouvira e testemunhara durante o serviço militar, José Carlos era cauteloso com todo o tipo de comunicação, não descurando a hipótese de estar a ser espiado na Internet, escutado ao telefone ou vigiado na sua vida diária. E transmitira essa forma prudente de agir aos seus amigos mais próximos e mais activos politicamente como era o caso de Afonso e Fernando.
Os três encontraram-se numa esplanada perto do Terminal de Cruzeiros de Lisboa. Conversavam preocupados, sentados à volta de uma mesa quadrada com um copo de cerveja na frente de cada um. O tema eram as constantes manifestações na Europa contra o forte crescimento dos regimes nacionalistas um pouco por todo o território europeu.
— Não me parece que seja a melhor forma de protestar. — opinou José Carlos. — Transformar manifestações em autênticas batalhas campais contra a Polícia...
— A Polícia é o braço armado dos governos. — argumentou Fernando, um convicto esquerdista. — Não podemos ter medo deles e devemos enfrentá-los para demonstrar que somos contra o regime.
— E em que é que andar a partir montras e incendiar carros credibiliza as reivindicações? Ou vandalizar e roubar lojas, como fizeram em França?
A pergunta era de Afonso, mais conservador e com uma visão menos bélica da luta política, dirigida a Fernando que nunca escondera os seus ideais de extrema-esquerda, baseados numa sociedade em que não existe propriedade privada e em que todos são iguais.
— Enquanto não houver justiça e democracia não pode haver paz.
— Não uses esse argumento, Fernando. — admoestou José Carlos. — Esses actos são absurdos. É como se eu agora, para te agredir, desse um soco no Afonso. A luta deve ser dirigida contra aqueles que nos oprimem, não contra inocentes...
— Inocentes? Achas que os grandes grupos económicos capitalistas ou aquelas lojas luxuosas dos Campos Elísios pertencem a inocentes? Estão todos feitos com o regime fascista francês.
— E os donos dos carros incendiados? — questionou Afonso, apoiando o argumento de José Carlos.
— A viverem ali, não são certamente pobres.
José Carlos abanou a cabeça e insistiu:
— Não podes resumir aquilo que consideras maléfico para a sociedade, como o capitalismo, a todas as pessoas que têm algum dinheiro. Estás a ser tão redutor como a extrema-direita quando resume todos os males à cor da pele.
Fernando revelou-se ofendido.
— Não me confundas com essa escumalha.
— Achas que vocês são muito diferentes da JNL? — questionou Afonso, referindo-se ao movimento político clandestino formado por jovens de esquerda que se reviam na ideologia do antigo partido de extrema-esquerda com deputados no parlamento e que haviam quase desaparecido com a perda desses lugares e a forte perseguição do SIALE.
— Somos muito diferentes. — indignou-se. — Não andamos a matar pessoas só porque pensam de maneira diferente, têm uma cor de pele diferente ou uma orientação sexual diferente.
— Não matam pessoas, mas destroem tudo de forma indiscriminada. E são tão cegos de ódio contra o património alheio, quanto outros o são contra raças diferentes.
— Vá, acalmem-se lá. — pediu José Carlos, antes que os amigos se zangassem a sério. — Neste momento, o nosso problema, o problema deste país é o nacionalismo lusitano e o regime virado para extremismos de direita, mesmo que seja de forma encapotada.
— Cada vez menos têm problemas em assumir aquilo que são. — lembrou Fernando. — As malhas do regime fascista do PNL estão cada vez mais apertadas.
José Carlos fez-lhe sinal para se calar. Notou que havia pessoas por perto que poderiam ouvir. Nunca se sabia onde poderia estar um "bufo" do SIALE, alguém que se assemelharia ao mais inocente dos cidadãos e que não passava de um informador da polícia política.
Fernando percebeu e baixou a voz:
— Fala-se que está a ser preparada uma grande manifestação de oposição ao governo. Temos de demonstrar a nossa insatisfação.
— São doidos, se acham que conseguem mais que levar uma tareia da polícia e uma visita às instalações do SIALE. — contrapôs Afonso. — Actualmente, é um suicídio fazer manifestações políticas públicas contra o PNL.
— E que sugeres que se faça, Afonso?
— O Afonso tem razão. Neste momento, isso é suicídio. Temos que aguardar as próximas eleições e ter esperança de que o PNL perca o governo do país.
— Há boas hipóteses que isso aconteça, Zé. Se as eleições forem livres...
— Pois, Afonso, dizes bem, "se" forem eleições livres e não sejam manipuladas pelo regime.
— A União Europeia não permitiria isso, Fernando.
— Qual União Europeia? Aquela que se está a desmoronar perante tanto nacionalismo na Europa, com países a sair da Comunidade Europeia e outros com intenções de os seguirem? Achas que as eleições em Portugal são um problema para Bruxelas?
— São, Fernando. — insistiu Afonso. — São porque sabem que a continuidade do PNL no governo encaminhará Portugal para ser mais um a querer sair da União Europeia.
Fernando não se mostrou convencido e José Carlos tinha sérias dúvidas que os portugueses não estivessem já entregues a si mesmos na definição do futuro do país.
Por momentos, o silêncio gerou-se entre eles. Ficaram a olhar para o rio Tejo a correr tranquilo e a brilhar com o Sol a incidir forte naquela tarde amena de Primavera. Estavam dois navios de cruzeiro atracados no porto, aguardando o regresso de mais uma vaga de turistas estrangeiros que invadira a capital. Lisboa tornara-se um destino apetecível e o comum alfacinha começava a fartar-se destes visitantes aglomerados em hordas que pareciam inesgotáveis.
— Nós deveríamos fazer alguma coisa. — sugeriu Fernando. — Não podemos ficar sentados à espera do que vai acontecer. Devemos isso aos nossos avós, aos antigos estudantes que se revoltaram nas Universidades contra o regime, contra o Estado Novo.
— O Estado Novo ao lado do PNL eram uns meninos de coro. — constatou José Carlos com o olhar perdido no rio.
— O Fernando tem razão. Nestas alturas, são os estudantes que aparecem a dar o corpo às balas. Tem sido assim um pouco por todo o Mundo, ao longo dos tempos. Devíamos começar a pensar fazer algo...
José Carlos não estava convencido. Fernando insistiu:
— Podemos aproveitar o facto de termos perdido importância na Universidade de Lisboa, Zé. Desde que o Filipe te conseguiu afastar que nos tornámos irrelevantes. Talvez essa vitória do Filipe seja uma oportunidade para nos mobilizarmos.
— E que sugerem que façamos? Manifestações? Confrontar as autoridades? Voltar a protestar na Universidade para sermos presos ou desmobilizados com o rabinho entre as pernas? Ou... — José Carlos baixou a voz a quase um sussurro. — Ou juntarmo-nos ao MAL?
— Não me importava de me juntar ao MAL. — confessou Fernando no mesmo tom sussurrado. — Parecem ser os únicos gajos que provocam mossa no PNL. Já nem a oposição do MPP tem qualquer utilidade.
— Fazem o que podem. — defendeu Afonso.
Fernando fez uma expressão de desdém.
— Havias de ver o que era oposição ao governo, se ainda lá estivesse o Bloco.
José Carlos lembrou com discernimento:
— Não sabemos quem está por detrás do MAL. Não me revejo na forma de luta deles. Matam elementos da JNL ou do PNL, mas fazem sempre danos colaterais, ferem e matam inocentes.
— Em todas as guerras há danos colaterais, Zé.
— Mas, isto não é uma guerra, Fernando. É uma luta política que se deve combater com inteligência, não com balas.
— Seja como for, alguma coisa deveríamos fazer. — repetiu Afonso.
Nesse instante, Manuel juntou-se ao grupo, vindo de mais um turno de serviço de segurança à entrada do Castelo de São Jorge. Sabia que os amigos estavam ali e ficara de se lhes juntar após o trabalho. Sentou-se na cadeira vaga, completando o quadrado de clientes à volta da mesa. Acenou ao funcionário para que lhe trouxesse uma cerveja.
— Então? Qual é o tema de conversa? — questionou com boa disposição.
Afonso ia a responder, mas retraiu-se com a aproximação do funcionário que depositou o copo defronte de Manuel. Aguardou que se afastasse e disse em voz baixa:
— Estamos a discutir a melhor forma de fazer oposição ao regime.
— E a que conclusão chegaram?
Foi Fernando quem respondeu num tom derrotado:
— A nenhuma.
— Querem uma sugestão? Movimento Armando de Lisboa.
— Outro... — suspirou Afonso.
Sem descurar o cuidado em não ser ouvido por terceiros, Manuel partilhou:
— Estou a pensar contactá-los. Quero incorporar-me no movimento, lutar contra estes fascistas do governo, contra esta escumalha da JNL.
— És doido? — interrogou José Carlos, zangado. — Não fazes ideia de quem são. Não sabes até que ponto o SIALE pode estar no encalço deles.
— Achas que o SIALE faz ideia de quem sejam? Vocês viram a capacidade deles em matar os tipos da JNL. E o ministro... Achas que se o SIALE pudesse, não tinha impedido isso?
— Não tens certezas, Manuel. E como afro-europeu, se te apanham com ligações a eles, no mínimo correm contigo do país, se não te matarem antes. Não te metas em problemas, amigo.
— Eu percebo o que dizes, Zé. Mas, não podemos ficar quietos.
— Foi o que eu disse. — Fernando encontrara um aliado para a sua sugestão. — São os únicos que conseguem fazer mossa.
— Estou farto de andar pelas ruas com medo de me cruzar com os racistas da JNL, Zé. Quero lutar. Quero fazer algo que os possa atingir.
— Mas, não sabes quem são, Manuel. Para mim, até podem ser uma armadilha do SIALE para nos enganar.
Os três sorriram perante uma ideia tão disparatada.
— Vá lá, Zé. Essa até eu duvido. — disse Afonso. — Achas que se fossem um estratagema do SIALE para nos enganar, iriam matar um ministro do Estado?
— O ministro morreu no hospital com complicações cardíacas derivadas do atentado. Não vos parece estranho que a bomba tenha falhado o carro do ministro por ter explodido antes do tempo, atingindo a viatura que ia à frente com os seguranças?
— Zé! Isso são teorias da conspiração. Pareces um filme de Hollywood.
— Chama-lhe o que quiseres, Afonso. A mim não me convencem. Podiam ter matado o Filipe Macieira em qualquer momento, numa qualquer rua adjacente à Universidade e vão matar meia dúzia de gajos insignificantes da JNL numa esplanada?
— Não é assim tão fácil atingir o Macieira. — referiu Manuel pouco convicto.
José Carlos prosseguiu:
— É como a história do 11 de Setembro. Os terroristas poderiam ter desviado os aviões num dia em que os líderes mundiais estivessem todos na ONU, como acontece tantas vezes, e atirá-los contra o edifício das Nações Unidas. Isso sim, seria um acto contra o "infiel", contra os líderes opressores. Ao invés, matam milhares de inocentes em duas torres só porque eram um símbolo... E o Pentágono? Que avião foi aquele? Matou alguém importante? E o outro que supostamente ia para a Casa Branca?
— Não posso deixar de concordar contigo.
Afonso não partilhava da opinião de José Carlos e Fernando.
— Teorias da conspiração. A seguir vão dizer-me que os aviões nunca existiram?
— Estamos a divergir do que é importante. — lembrou Manuel. — Devíamos todos procurar uma forma de chegar ao MAL e lutar com eles.
— Estou contigo.
— Não contem comigo. — Afonso demarcou-se daquela hipótese. Continuava crente que a oposição ao regime deveria ser feita pela defesa de ideias e a esgrimir argumentos. Acreditava que as próximas eleições legislativas dariam um novo rumo ao país, só tinham de esperar. — Concordo com o Zé, não sabemos quem são ou até que ponto não poderão estar já comprometidos e à beira de serem capturados pelo SIALE. Para além disso, não me revejo em formas de luta que envolvam armas.
— Em nome da nossa amizade, peço-vos que não se metam com esses tipos do MAL. — pediu José Carlos. — Concordo que temos de fazer algo em oposição ao que se está a passar, mais não seja a confrontar a forma como a JNL tem actuado na Cidade Universitária. Mas, o MAL... Parecem-me uma armadilha. Até podem não ter nada a ver com o SIALE, mas não sabemos quem são, o que defendem, se realmente querem o mesmo que nós. Até ao momento, só os vimos matar. E apesar de o fazerem em nome de uma suposta resistência ao nacionalismo lusitano, têm vindo a matar igualmente inocentes.
Fernando acabou por concordar e ajudou os amigos a convencer Manuel a manter-se longe do MAL.
Novamente num tom sussurrado, José Carlos sugeriu:
— Vamos reunir os Corvos todos e conversar sobre isto. Faremos como sugerem, vamos tentar debater hipóteses para nos opormos ao regime, tentar reavivar o espírito estudantil de resistência ao fascismo.
Os amigos concordaram.
Ouviram-se buzinas na avenida que passava junto do terminal. Com o avançar da tarde, o trânsito intensificava-se. No rio Tejo, um outro navio aproximava-se lentamente do porto.
— Como está a tua irmã? — indagou Manuel.
Afonso encolheu os ombros.
— Deve estar bem.
— Tenho tentado ligar-lhe, mas nunca me atende.
— Deve andar ocupada. — justificou Afonso sem fazer a mínima ideia. — Sabes como é... Ela é advogada num grande escritório de advogados.
— Tu e a Ana...? — questionou Fernando em jeito de provocação.
— Não, não. — negou Manuel sem conseguir ser convincente.
Fernando manteve o tom brincalhão:
— Tu vê lá... Se estás interessado nela, talvez devesses pedir autorização aqui ao irmão.
Afonso soltou uma gargalhada.
— Como se eu tivesse alguma coisa a ver com isso. A minha irmã anda com quem quiser.
— Parem lá com isso. — protestou Manuel. — Não andamos um com o outro. Saímos algumas vezes...
— Por mim, Manuel, estás à vontade. És um tipo porreiro e meu amigo.
Manuel fez um aceno sorridente, agradecendo o elogio.
— E tu Afonso? — Fernando parecia decidido a transformar a conversa num debate de mexericos. — Já tiveste sorte com a Shirin?
— Temos falado...
A resposta vaga não satisfez Fernando.
— E?
— E nada, pá!
— Pois, pois... Estás doidinho para lhe saltar para a cueca.
— Deixa-te de merdas! É filha do embaixador do Irão, anda sempre com seguranças e é extremamente religiosa.
— E então? Deve gostar de sexo como qualquer um.
— Importaste de não falar assim dela?
— Ok, ok Afonso. Não te chateies.
José Carlos fez um movimento para se levantar da sua cadeira e disse:
— Bom, vou andando. Fiquei de me encontrar com a Carla.
— Falando em saltar para a cueca... — Fernando foi fulminado pelo olhar de José Carlos. — Desculpa, era a brincar.
Afonso também se levantou, sendo seguido pelos restantes.
— Encontramo-nos no final da semana para o jantar do pessoal?
— Sim, Afonso. Onde vai ser desta vez?
— Estou a tratar disso, Zé. Depois mando uma mensagem a todos a combinar o local.
— Ok.
Despediram-se todos e cada um seguiu o seu caminho.
19.2
A noite chegava cada vez mais tarde e a claridade permanecia intensa em horas a que semanas antes a escuridão já envolvia o ambiente. A Primavera estava no auge e cheirava cada vez mais a Verão, apesar de estarmos a meio de Abril. José Carlos conduzia o seu carro no trânsito citadino da capital, paciente sem solução alternativa a ter de encarar as filas de automóveis em todas as direcções nas ruas de Lisboa. Marcara encontro com a namorada e ia passar pela avenida onde ela morava para a ir buscar e levar para sua casa. Seria a primeira vez que voltariam a passar uma noite juntos, desde a manifestação defronte da reitoria da Universidade de Lisboa, que o fizera perder a presidência da associação de estudantes, uma vez que ele temia que a sua participação tivesse atraído a atenção dos agentes do SIALE e não queria que Carla estivesse por perto se ele se visse confrontado com uma rusga da polícia política em sua casa. Isso não aconteceu e com o passar dos dias, José Carlos percebeu que ele não representava qualquer preocupação para o SIALE ou sequer para Filipe Macieira e a sua JNL. Assim, decidiu retomar aqueles serões com a namorada, o que a deixou encantada quando lhe sugeriu que o fizessem.
Enquanto avançava e parava constantemente no trânsito, José Carlos pensava na sua relação com Carla. Era totalmente apaixonado por ela e sentia-se um sortudo por ter uma namorada tão linda e encantadora. Contudo, não era uma relação perfeita, se é que isso existe. Apesar de toda a intimidade que partilhavam, ela continuava virgem. Desde início, conforme o namoro ia avançando para outros níveis para além dos beijos e das carícias, Carla foi sempre muito frontal e honesta ao referir que não se sentia preparada para que tivessem relações sexuais. Não, não pretendia ir virgem para o casamento. Aliás, o casamento nem estava nos seus objectivos de vida, teria mais depressa um filho com ele. Por enquanto não se sentia preparada para dar esse passo, a perda de algo único. Na verdade, Carla sentia-se extremamente insegura para encarar esse momento, receosa de não estar à altura e desiludir o namorado. Por isso, o namoro tinha esse limite.
Uma buzinadela despertou José Carlos. O carro à sua frente tinha avançado e ele nem reparara. Acelerou para percorrer mais dez metros.
Ele respeitou as suas reservas, consciente que era doloroso não poder ir até ao fim com uma namorada tão atraente, amável e carinhosa. Carla tinha noção disso e, no seu íntimo, também tinha vontade, uma vontade que não se superiorizava ao receio. Contudo, deu abertura a outras formas de compensar essa sua posição. Aos beijos e às carícias começaram a despir-se e a tocar-se sem roupa. Carla não se opôs a que ele lhe desse prazer com os dedos e aprendeu a meter as mãos dentro dos boxers dele e levá-lo ao êxtase. Começou a passar a noite com José Carlos no seu pequeno apartamento, confiando que ele não tentaria nada para além do que já faziam. E o namorado sempre a respeitou. Mais tarde, os dedos dele foram substituídos naquele lugar pelos lábios e pela língua. Revelou-se a Carla uma forma de ter prazer que ela nunca imaginara, tal era a sua ingenuidade naquele campo. José Carlos ensinou-a a fazer sexo oral e com a prática ela tornara-se excelente nesses momentos de intimidade. Só que com o passar do tempo, isso parecia já não ser suficiente para ele, já não era tão gratificante quanto o era ao início. O facto de terem estado este tempo com o namoro limitado à Universidade e às saídas para passear, almoçar ou ir ao cinema fez com que a necessidade de algo mais estivesse atenuada no espírito de José Carlos. No entanto, agora que voltavam a encontrar-se para passar a noite juntos, ele suspeitava que um "69" já não fosse tão arrebatador como antes.
A Avenida de Roma era um sítio péssimo para parar em hora de ponta. Por isso, quando já estava perto, José Carlos aproveitou um semáforo vermelho para dar um toque para o telemóvel dela, o sinal previamente combinado para que ela descesse e já estivesse no passeio no momento em que ele passasse.
Carla lá estava, a aguardar entre dois carros estacionados na avenida. Deslumbrante como costume, vestia uma camisola de malha e uma saia curta. Para José Carlos, ela tinha o melhor par de pernas que ele alguma vez vira. Sorriu ao vê-lo chegar, com o rosto envolto nos longos cabelos louros e a expressão parcialmente escondida pelos óculos escuros. Ele parou sem evitar mais uma buzinadela que ignorou e ela apressou-se a entrar. O seu perfume inundou o interior do veículo. Beijaram-se com paixão por breves instantes e José Carlos reiniciou a marcha, antes que mais alguém buzinasse.
Ainda não se tinham visto naquele dia, uma vez que ele não tivera aulas e ela estivera ocupada com as suas na Faculdade. Notava-se a alegria contagiante dela, animada por voltar a estar com ele, por se estar a iniciar um serão que seria maravilhoso e do qual ela sentia imensas saudades. Ao longo do trajecto entre a casa dos pais dela e a casa dele, Carla falou animada sobre o seu dia, relatando acontecimentos sem importância que haviam preenchido o seu tempo para além das aulas. José Carlos ouvia-a enquanto conduzia, esforçando-se por lhe dar atenção, já que a sua mente tinha outras preocupações para resolver nessa noite.
O apartamento de José Carlos era alugado e situava-se em Chelas, num bairro duvidoso perto do Parque da Bela Vista. Não era um lugar agradável, mas fora aquilo que a capacidade financeira dele conseguira. O lugar não tinha boa fama, mas José Carlos não tinha razão de queixa e a relação dos vizinhos era tranquila e acolhedora. Claro que também lá vivia gente de reputação duvidosa, mas qual é o bairro que não tinha gente indecente? Carla, nascida e criada no bairro de Alvalade, não muito longe dali, sempre olhara para o local como um antro de bandidos. Porém, a sua opinião foi mudando aos poucos com as constantes visitas ao apartamento do namorado. Ele nunca tivera problemas e, verdade seja dita, o seu porte militar e predisposição ao conflito caso tentassem algo contra ele repeliam qualquer má intenção dos marginais que por ali andavam.
Não era um espaço muito grande, uma divisão partilhada entre a cozinha e a sala, um quarto pequeno e uma casa de banho. Apesar do aspecto espartano, ele conseguira dar-lhe um ar acolhedor e Carla gostava de ali estar.
— Vou tomar um banho. — disse ele, ao fechar a porta do apartamento.
— Podemos tomar juntos? — sugeriu ela, acariciando-lhe o peito.
José Carlos sentia-se imundo, transpirado, cansado por um dia que não tivera nada de extraordinário que merecesse ser recordado. Talvez fosse só impressão sua, mas havia um odor proveniente do seu corpo que não lhe agradava, um paradoxo ao perfume hipnotizante dela. Não queria intimidades antes de estar limpo.
— Noutra altura. — recusou, beijando-lhe os lábios com suavidade. — Não demoro.
Carla anuiu com um sorriso e afastou-se para o sofá, enquanto ele seguiu para o duche.
Quase nem deu pelo tempo que esteve sob o chuveiro com a cabeça envolta num turbilhão de palavras, na melhor forma de abordar o assunto com a namorada. Não era um tema fácil e poderia ser complicado de expor... Não, o problema não era falar no assunto, era chegar a uma conclusão satisfatória. Secou-se ao sair da cabine de duche. Amava a namorada com todo o fervor, mas ela tinha de ultrapassar alguns obstáculos.
Ao sair da casa de banho com a toalha à volta da cintura, Carla apareceu na sua frente sem a camisola. O sutiã apertava-lhe os seios, dando-lhe um volume ainda maior que o real. Com um sorriso lânguido, sugeriu:
— Estava a pensar que talvez pudéssemos... antes de jantar? — A resposta dele foi um sorriso concordante. — Espera por mim no quarto. Vou só refrescar-me um pouco.
Trocaram mais um beijo suave e José Carlos caminhou até ao quarto.
Deixou-se cair sobre a cama, permanecendo deitado a olhar para o tecto. Como iria ela encarar o que tinha para lhe dizer?
O som do esquentador silenciou-se, sinal que ela terminara o seu duche. José Carlos ouviu a porta da casa de banho abrir, mas ela era tão leve a caminhar que ele não discerniu os seus passos em aproximação. Carla apareceu no quarto completamente nua, expondo o corpo de curvas perfeitas. Sorriu-lhe sedutora e mordiscou o lábio enquanto se abeirava da cama. Debruçou-se sobre ele e beijou-o na boca de forma sôfrega. José Carlos levantou um dos braços para lhe acariciar os seios. Carla subiu para a cama, virou-se de costas para ele e colocou uma perna de cada lado do seu corpo. Ele apalpou-lhe as nádegas, observando o tufo bem cuidado de pelos louros. Não conseguia ver, mas sentiu as mãos dela a desembrulhar a toalha. Ficou rijo de imediato. Carla baixou as ancas sobre o rosto do namorado. José Carlos adorava o aroma e o sabor daquele lugar virginal. Tocou-a com a língua ao mesmo tempo que sentia uma onda quente rodeá-lo e apertá-lo com lábios ternos e húmidos.
Tal como ele suspeitava, aquilo já não era tão gratificante quanto outrora.
— Espera! — pediu num sussurro. Sentiu-se liberto do anel labial. Ela virou-se ligeiramente e ele viu o seu rosto surpreso aparecer para lá do ombro direito. Acariciou-lhe a coxa num gesto para que saísse daquela posição. — Temos de conversar.
Carla afastou-se na direcção dos pés dele e virou-se no colchão, sentando-se com as pernas cruzadas.
— Que se passa? — questionou sem conseguir esconder alguma apreensão.
José Carlos olhou-a, consciente de como ela era linda, evitando que os olhos caíssem abaixo do pescoço dela.
— Precisamos de falar. — repetiu, elevando-se para também se sentar no colchão.
— Sim. Já ouvi. Que queres falar?
Havia no tom de Carla uma mistura de apreensão e irritação pelo que aí viria. Quando um dos membros do casal começa uma conversa com "precisamos de falar", isso não augura nada de bom.
— Acho que está na altura da nossa relação passar para um patamar superior?
— Que quer isso dizer? — interrogou, consciente daquilo a que ele se referia.
José Carlos procurava as melhores palavras e falar numa forma terna. Contudo, o nervosismo por abordar o assunto toldavam-lhe a inspiração e enrijeciam-lhe a voz.
— Quero fazer amor contigo! — exclamou quase sem respirar.
O rosto dela ensombrou-se.
— Já falámos sobre isso...
— Sim, eu sei. E tenho respeitado o teu pedido. — continuou, nervoso, indeciso ao que haveria de fazer se ela não revelasse abertura para os seus desejos. — Sabes o quanto te amo, não sabes?
— Sim, Zé. Tanto quanto eu te amo a ti. — retribuiu, esboçando um sorriso. — Mas...
— Mas?
— Não me sinto preparada. — justificou. O assunto apanhara-a de surpresa. Ele sempre se demonstrara muito compreensivo, não esperava aquela abordagem tão directa. — Quero fazê-lo num momento em que a nossa relação seja mais que um namoro.
— Mais que um namoro? — questionou ele, algo incrédulo. — O quê? Temos de casar primeiro?
A pergunta surgiu como se fosse algo disparatado. Isso magoou Carla, mas relevou e manteve-se calma.
— Sabes bem o que penso do casamento. Não é importante.
Carla também o queria fazer, apesar de não o admitir porque isso significaria também confessar a sua insegurança. Procurou na sua mente argumentos que continuassem a justificar a sua posição, mas o namorado só ouviu silêncio.
José Carlos estava decidido a que aquela relação subisse ao nível seguinte. Iria jogar a cartada decisiva, arriscaria tudo, qual jogador de poker num casino a colocar em jogo tudo o que havia conquistado até aí.
— A meu ver, a nossa relação está a estagnar. Se não queres tornar isto em algo sério ao ponto de te entregares totalmente, talvez seja melhor darmos um tempo.
Cada uma daquelas palavras atingiu Carla como um alfinete que se lhe espetava na pele nua. Teve vontade de chorar, não o queria perder, amava-o loucamente. Ficou muda a olhá-lo nos olhos, interrogando-se do porquê daquilo, naquele momento, naquela noite.
— Estás a dizer que se não quiser fazer amor contigo, o nosso namoro termina? — A pergunta com que o confrontou não escondeu um ligeiro soluçar. A resposta foi um silêncio confirmativo. — Eu nunca o fiz, sinto-me um pouco perdida com a ideia.
Ele detectou na frase alguma abertura, poderia ser a sua oportunidade e não iria desperdiçá-la. Ofereceu-lhe um sorriso afectuoso e falou-lhe com ternura.
— Não tens de te preocupar. Confia em mim!
— Não se trata de confiar...
— Verás como vai ser bom.
Carla não estava convencida. Contudo, sabia que seria isso ou o fim da relação. Não era justo que ele estivesse literalmente a chantageá-la. Não a obrigava frontalmente, mas só lhe dava um caminho. E ela também não tinha maturidade para perceber que também ele estava tão apaixonado que não iria terminar o namoro.
— Não temos preservativos. — atirou numa última tentativa de fugir a algo que desejava tanto quanto temia.
José Carlos sorriu trocista e retirou da gaveta da cabeceira da cama uma embalagem com vários.
Carla suspirou, não tinha saída a menos que quisesse o fim daquela relação. No entanto, ele não lhe deu tempo para pensar, abraçando-a e beijando-a. José Carlos deitou-a na cama e puxou uma almofada para que a namorada ficasse com a cabeça confortável. Estava tão excitado que teve dificuldade em colocar e desenrolar a borracha. Carla tentou manter-se tranquila, mas o nervosismo pelo aproximar do momento só a deixava mais receosa e contraída. O namorado deitou-se sobre ela, beijou-a e sussurrou-lhe ao ouvido, repetindo:
— Verás como vai ser bom.
Mas não foi...
Se Carla era virgem, José Carlos era completamente ignorante em como conduzir a primeira relação sexual de uma mulher. Nunca tivera sexo com uma virgem. Até quando namorava com Ana, na altura mais nova que Carla, esta já tivera a sua primeira experiência sexual antes de o conhecer. Estava tão ansioso por fazer amor com a namorada que se esqueceu dos preliminares, de criar um ambiente propício à descontracção dela e de a deixar excitada e melosa, pronta a recebê-lo dentro de si. Ao invés, foi tendo uma calma nervosa e dificuldade em lidar com uma penetração que nunca seria fácil naquele cenário. Aos poucos, foi avançando, só que estava a ser doloroso para ela. Carla foi aguentando, não querendo dar sinal de algo que poderia significar o quanto seria má no sexo. Ele continuou e quanto mais excitado estava, menos atenção dava às reacções dela.
José Carlos estava entre as suas pernas e Carla interrogava-se se aquilo é que era fazer amor. Não sentia prazer, apenas dor. Com o intensificar das investidas dele, ela constatou que tudo aquilo só tinha tendência a piorar. Pediu-lhe que parasse. Ele não a ouviu. Ia pedir outra vez, quando uma investida mais intensa atravessou em definitivo o seu último reduto imaculado. Sentiu uma dor aguda, lancinante que a fez dar um grito.
O namorado abrandou e olhou-a, Carla tinha lágrimas nos olhos.
— Estás bem? — perguntou no pináculo da estupidez.
Carla não conseguiu dizer nada, pensando que, se aguentara até ali, não ia desistir agora. Abanou a cabeça num sinal afirmativo. E ele prosseguiu até ao fim.
Não tivera prazer, só dor. Não tivera um orgasmo. E isso, ela sabia bem o que era, pois já tivera muitos à conta dos dedos e da língua dele. Sentia-se destroçada, mais insegura que nunca.
José Carlos tinha noção de que aquilo não fora bom para ela. Porém, não tinha coragem para abordar o assunto.
— Desculpa se te magoei um pouco. — acabou por dizer, recordando o grito dela. — Dizem que a primeira vez implica um momento de dor quando...
Ela não o quis ouvir, levantando-se da cama e caminhando para a casa de banho. Ficou lá alguns minutos e ele ouviu a água a correr. Mesmo sabendo que a perda da virgindade poderia causar algum sangramento, ela não evitou o choque ao ver gotas de sangue entre as pernas. Não era nada de mais, era natural, mas mesmo assim assustador.
Quando retornou ao quarto, já vinha vestida com a saia e o sutiã, procurando a camisola que deixara no quarto e vestindo-a.
— Vou encomendar uma pizza. — sugeriu ele, mantendo um equilíbrio na postura, entre a noção de que fora mau e a tentativa de parecer que fora maravilhoso.
— Não tenho fome. — retorquiu sem o encarar.
— Vou encomendar. Comes o que te apetecer. — prosseguiu ele. — Depois podemos ver um filme e...
— Podes levar-me a casa? — pediu em jeito de ordem.
José Carlos foi apanhado de surpresa.
— Carla...
— Por favor, leva-me a casa! Não quero ficar aqui esta noite.
— Mas, Carla se foi por...
— Não! — travou-o, percebendo que ele iria falar no que tinham acabado de fazer. Não estava em condições de discutir o assunto. — Não quero falar sobre isso. Só quero que me leves a casa.
— Ok. Deixa-me só tomar um banho rápido.
Carla não tornou a dizer uma palavra que fosse e José Carlos não interferiu nessa postura. Percorreram as ruas da cidade com a noite a cair e quase sem trânsito, tão diferente de horas antes. Quando ele parou o carro defronte da fachada do seu prédio, ela ganhou coragem para o encarar.
— Desculpa! — pediu ele, sentindo-se culpado pelo que acontecera. — Não queria...
— Já te disse que não quero falar sobre isso. — interrompeu ela sem ser ríspida, denotando somente estar magoada, ferida no seu orgulho por sentir que fora uma amante péssima.
— Eu amo-te, Carla!
Ela fez um sorriso triste, encurtou a distância entre eles e beijou-o nos lábios sem paixão, apenas como uma despedida.
— Eu também te amo!
Carla saiu do carro. Antes de fechar a porta, tornou a encarar o seu olhar.
— Eu depois ligo-te.
José Carlos anuiu, percebendo que na frase havia uma mensagem subliminar que dizia "quando me sentir preparada para voltar a falar contigo, ligo-te". Ela despediu-se com um sorriso tímido, mas ele não encontrou nenhuma daquela alegria contagiante que lhe vira no rosto quando a fora buscar.
19.3
As políticas do governo contra os estrangeiros a viver em Portugal eram cada vez mais condicionantes para estes. A nova lei da cidadania, como o PNL a baptizara, era o expoente máximo da vertente xenófoba do regime, mas ao longo da legislatura nacionalista lusitana, diversas adendas e inclusão de artigos nas leis tornavam a vida muito complicada para quem não era português segundo os critérios do PNL. Sim, porque não bastava estar naturalizado, viver anos e anos no país ou mesmo ter nascido em Portugal. Para o PNL, ser português era ser branco e descendente de várias gerações nascidas em território luso.
Muitos se interrogavam como fora possível este crescimento do racismo num país tradicionalmente tolerante e acolhedor. A resposta era agora óbvia, apesar de sempre o ter sido, as pessoas não viam ou não queriam ver o caminho que determinadas políticas estavam a levar e seria fácil adivinhar que tudo acabaria por descambar nisto. O constante fluxo de refugiados para a Europa demonstrou que os países não estavam preparados para esse cenário. Se alguns começaram desde cedo a limitar o acesso de migrantes, outros abriram-lhes as portas... escancararam-lhes as portas de entrada. Portugal foi um deles, muito à custa da influência da extrema-esquerda no parlamento português, de partidos que à custa dessas ideias, agora nem um deputado tinham na Assembleia da República. Sim, os portugueses são acolhedores, na sua maioria viam com bons olhos a ajuda a pessoas que fugiam de regimes totalitários, ditaduras e guerras, pessoas que tinham a vida em risco pela sua cor, credo ou ideologia, famílias inteiras que procuram apenas um lugar seguro onde viver, trabalhar e criar os seus filhos. E sim, é legítimo acolher estas pessoas e a grande maioria da população sempre esteve receptiva a isto. Qual foi o problema?
A política dos governos de esquerda era receber indiscriminadamente, conceder tudo e tolerar tudo sob pena de serem considerados racistas por não respeitarem os usos e costumes dos recém‑chegados. Essa postura acabou por retirar direitos aos endémicos, aos naturais do país. O Bloco chegara a sugerir que os Bancos deveriam entregar as casas que tiravam aos portugueses que não as puderam pagar durante a crise, gente honesta despojada de tudo pelo desemprego, aos refugiados. Ou seja, preocupavam-se mais com o bem-estar dos estrangeiros que com o dos portugueses. Estava criado o caminho para o crescimento da vertente extremista oposta. O poder político esqueceu, ou não quis entender, que quem chega é que tem de tolerar os costumes de quem os recebe e não o contrário. Imagine-se o que era alguém bater à porta da nossa casa e pedir ajuda, um tecto onde passar a noite, onde se proteger do frio, onde lhe dessem um prato de comida. Nós deixamos entrar a pessoa em nossa casa e ela senta-se no sofá, muda o canal da televisão para ver o que quer, obriga-nos a ir buscar comida e no fim manda-nos embora da sala porque não quer a nossa companhia ou então podemos ficar se abdicarmos da nossa maneira de ser para adoptar a postura do visitante. Isto tem lógica? Não. Acolher com regras não é racismo, é criar ambiente para que todas as identidades vivam em harmonia. Racismo é perseguir por ser diferente, não é obrigar a cumprir leis. Claro que quem não gosta de cumprir regras vê o racismo como um óptimo argumento para a vitimização.
Assim, na base do surgimento sustentado de forças políticas como o PNL está esta espécie de discriminação que o Estado fez à sua essência, àqueles que constituem a sua população natural. Por isso, perante leis nunca vistas, ainda mais discriminativas que no Estado Novo, fracturantes quase ao nível dos tempos da Inquisição, em que se perseguiam pessoas por credos diferentes do católico, ninguém parecia importar-se. E porquê? Porque quando o povo está relativamente bem vê com bons olhos a defesa de determinados direitos. Porém, quando começam a ver que perdem direitos, perdem segurança, perdem poder, o objectivo passa a ser a defesa dos seus interesses independentemente de quem possa ser prejudicado com isso. O governo do PNL é fascista, xenófobo... Mas, para os portugueses tradicionais, se isso significa mais segurança, não andar a pagar impostos loucos para alimentar refugiados e outros que nada produzem, não ver aquilo que é seu anexado por estrangeiros, não se ver quase espoliado do seu próprio país, então o PNL é a solução. Poderão dizer-lhes que este regime persegue, prende e mata quem não se enquadra na sua visão. Que interessa isso ao comum cidadão que não tem ambições políticas e só quer um país onde possa viver em paz, trabalhar e criar os seus filhos? Há um princípio muito importante que todos os governantes deveriam ter sempre em mente: só se pode esperar solidariedade do povo para com estrangeiros se as suas vidas e dos seus estiverem seguras, caso contrário eles irão sempre apoiar medidas que os defendam independentemente do mal que isso possa causar a quem vem de fora.
Apoiados num regime cada vez mais xenófobo e discriminativo, os jovens da JNL na Universidade de Lisboa, usando das suas funções à frente das associações académicas, começaram a definir novas regras de segregação dos estudantes estrangeiros, onde se incluíam muitos nascidos em Portugal que não correspondiam ao ideal de raça portuguesa referido anteriormente. Assim, definiram que esses estudantes não poderiam frequentar os serviços como a cantina, biblioteca e campos desportivos. Por sua vontade teriam bloqueado também o acesso às aulas, mas Filipe Macieira foi impedido pelo governo que lhe aprovou aquelas medidas. Esses mesmos estudantes poderiam circular nas áreas comuns dos edifícios universitários, mas não podiam permanecer, não podiam simplesmente parar para conversar e só tinham um minuto ou dois para parar e ler qualquer informação que estivesse nos quadros informativos. Estes foram os pontos mais destacados de inúmeras medidas disparatadas que os jovens nacionalistas lusitanos implementaram um pouco por todas as Universidades do país com o aval das respectivas reitorias. Relembrem-se que, semanas antes, as associações estudantis haviam sido sequestradas pela JNL, espoliando os alunos eleitos dos seus cargos. Muitos resistiram e muitos foram agredidos, expulsos e até detidos pelo SIALE. Teria sido esse o destino de José Carlos se não tivesse abdicado do cargo para salvar a amiga Maria da detenção. Também houve reitores que se opuseram a esta invasão da JNL, a este golpe à democracia estudantil que não era mais que um presságio do futuro. E também eles foram afastados.
No meio de tudo isto, o mais surpreendente foi ver alunos que nada tinham a ver com a JNL, que nem sequer eram de pensamento político de direita, muitos nem tinham uma ideologia definida, a concordar com estas medidas de segregação.
Os Corvos opunham-se, mas pouco podiam fazer contra elas. Contudo, recusavam-se a pactuar com os acontecimentos, apesar de a maioria do grupo se enquadrar no quadro étnico promovido pelo PNL. E foi isso que despoletou o acontecimento que tornaria um dos Corvos como alvo para Filipe Macieira.
Afonso caminhava pelo corredor da faculdade, ficara de se encontrar com Fernando para estudarem, uma vez que teriam um exame importante daí a uns dias. O ambiente era calmo, mas sentia-se uma tensão no ar, uma sensação de perigo invisível, a possibilidade de algo nefasto poder acontecer a qualquer momento. A alguns metros mais à frente, dois jovens conversavam tranquilos no corredor, nada de mais, não fosse um deles paquistanês e outro tivesse traços asiáticos cujo Afonso desconhecia a nacionalidade. No país normal que Portugal fora, aquilo era irrelevante. No Portugal do PNL, aquilo era uma espécie de crime.
A menos de dez metros de os alcançar, Afonso viu um grupo de jovens da JNL. Nunca era difícil identificá-los, uma vez que envergavam com orgulho aquela vestimenta de casacos de cabedal e calças militares. Caminhavam na direcção do par com as intenções bem vincadas no rosto. Eram cinco e cercaram os outros dois. Nem falaram. O paquistanês levou um soco violento no rosto que o derrubou. O amigo asiático protestou e levou um pontapé na perna.
— Hei!!! — insurgiu-se Afonso. Não era homem para se deixar ficar perante uma cena daquelas, mesmo que pudesse ser uma atitude quase suicida. — Que estão a fazer?
— Que queres, pá? — questionou aquele que parecia liderar o grupo.
Um outro elemento tornou a pontapear o paquistanês, enquanto o amigo era agarrado por um braço.
— Deixem-nos em paz! — exigiu Afonso.
— Eles não podem estar aqui, ó palhaço. — ripostou. — E tu põe‑te andar, antes que sobre para ti.
— Cambada de cobardes!
Nesse instante, Fernando chegou e deparou-se com a cena. Teve consciência da gravidade do que estava a acontecer e enviou uma mensagem por WhatsApp aos amigos para que viessem em auxílio de Afonso, se estivessem por perto.
O suposto líder não deixou o insulto passar incólume e agarrou Afonso pelos colarinhos. Era notoriamente mais alto e forte que o outro. Os seus comparsas desinteressaram-se dos estudantes estrangeiros, que aproveitaram para fugir dali, e rodearam o estudante de Ciências Políticas.
— Repete lá isso, caralho!
— Cambada de cobardes! — repetiu Afonso, resistindo sem fazer qualquer gesto para se libertar.
O líder dos rufias atirou Afonso para os restantes elementos, os quais o agarraram e imobilizaram.
— Volta lá a chamar-nos cobardes! — rosnou.
— Cobar...
Afonso não conseguiu terminar a palavra, sendo socado com força no rosto, o que fez os seus óculos saltarem para parte incerta.
Fernando não poderia fazer muito, mas avançou para defender o amigo.
— Filhos da puta! — chamou ao aproximar-se. — Não são cobardes? Cinco para um? — Dois deles viraram-se para o confrontar. — Racistas do caralho!
Afonso foi novamente socado, desta feita no estômago.
Fernando viu a distância que o separava dos outros dois extinguir-se. Estes iam a agarrá-lo, quando se ouviu uma voz gritar:
— Pára! Stop! Stop with this stupidity! Parar com isso!
Os olhares generalizados viraram-se para a proveniência da voz. Quem teria tido coragem para se intrometer no conflito? Vivia-se uma época no mundo do Ensino Superior em que ninguém queria chamar a atenção da JNL, nem os professores ou directores, nem mesmo os reitores queriam ver-se envolvidos naquelas questões. Basicamente, a JNL poderia espancar quem quisesse sem que isso tivesse consequências para eles.
Não muito longe, Shirin testemunhara tudo, mas ficara petrificada a assistir à cena. Nem por um momento se lembrara que a sua posição de filha de um embaixador a protegeria de qualquer acto contra si. Simplesmente, estava aterrorizada com aquele clima de medo. Contudo, algo em si não lhe permitiu ficar quieta. Por isso, gritou. E agora todos os olhares recaíam sobre si, os olhares dos agressores, dos agredidos e de mais alguns alunos e professores que assistiam afastados e sem revelar qualquer intenção de se intrometer na questão.
O líder dos marginais não a reconheceu como sendo a filha do embaixador do Irão, apenas a viu como mais uma rafeira estrangeira de vestes largas escuras e cabeça coberta pelo hyjab. Odiava aquelas putéfias islâmicas que se vinham pavonear para o seu país, ofendendo-o com os seus usos e costumes. Fez um movimento na sua direcção, mas travou com a chegada de outros alunos, estes decididos a confrontar o seu famigerado grupo cobarde. Eram João, Sancho, Pedro e Miguel, quatro dos Corvos que se encontravam suficientemente perto para responderem à chamada.
Apesar da inteligência não ser algo que se encontrasse muitas vezes entre os elementos da JNL, este aspirante a chefe de grupo teve noção que perdera a vantagem numérica que agrada sempre a todos os cobardes. Deitou um olhar fulminante a Shirin, como quem demonstrava que trataria dela mais tarde, o que não viria a acontecer, pois quando o sucedido chegou ao conhecimento de Macieira, este informá-lo-ia que ela era intocável. Tornou a aproximar-se de Afonso com o olhar atento aos recém-chegados, fez sinal para que o largassem.
— Estás marcado, cabrão. — avisou num tom ameaçador. — Venham!
Os restantes elementos seguiram-no e afastaram-se para desaparecerem ao fundo do corredor, na direcção oposta àquela onde haviam surgido os amigos de Afonso.
Shirin vira os óculos de Afonso, apanhara-os e apressara-se em seu auxílio.
— Estares bem? — questionou, observando-o num misto de preocupação e fascínio, entregando-lhe os óculos que miraculosamente não se partiram.
Fernando também se aproximou para se inteirar do estado do amigo.
— Estou bem. — respondeu com um esgar de dor e o lábio a sangrar.
Sancho ficou a olhar para o lugar por onde os tipos haviam saído, percebendo que tudo aquilo lhe trouxera à memória uma cena parecida que vivenciara no Porto, semanas antes. João e Miguel acocoraram-se ao lado de Fernando, preocupados com o amigo, enquanto Pedro escrevia uma mensagem no grupo de WhatsApp a descansar os ausentes de que a situação já estava ultrapassada.
— Queres ir ao hospital? — sugeriu Fernando.
— Não. Eu estou bem. — respondeu sem tirar os olhos da iraniana por quem andava encantado. As palavras seguintes foram para ela. — Obrigado. Foste muito corajosa. — Shirin fez uma expressão envergonhada.
João ajudou-o a levantar-se. Para além do lábio, Afonso não apresentava mazelas.
— Parece que ganhaste um "amigo" novo. — disse-lhe Miguel.
João concordou:
— Ganhámos todos, acho eu.
Fernando era quem se mostrava mais apreensivo.
— Talvez seja melhor mantermo-nos o mais juntos possível. Os tipos vão andar connosco debaixo de olho. Não me admira que, à mínima oportunidade, ataquem um de nós.
— Achas? — A ideia pareceu deixar Miguel apavorado. — Não quero passar os meus dias na faculdade a olhar por cima do ombro...
— Isso não vai acontecer. — descansou-o Afonso. — Daqui a pouco já nem se lembram de nós.
Ninguém acreditou que fosse assim tão simples, nem o próprio Afonso.
No meio daquele diálogo, nenhum deles dera conta de que Shirin se afastara e desaparecera do seu campo de visão. Isso deixou Afonso em pior estado que a cena de violência partilhada com os tipos da JNL.
Afonso tornou a ver Shirin no dia seguinte. Ela pareceu não o ver, mas ele modificou o seu caminho para se cruzar com ela. Shirin não conseguiu reter a expressão de agrado por o encarar, mas manteve-se recatada. A iraniana era uma jovem tão bela quanto reservada, muito por influência da sua educação austera e religiosa.
— Nem tive oportunidade de te agradecer, teres agido em minha defesa, ontem, naquela... Nem sei como descrever.
— Nada de grande. — desvalorizou Shirin, sempre a tropeçar no idioma português. — Aqueles gatxos... gaxos...
— Gajos?
— Isso! — confirmou com um sorriso tímido. — São uns... How do you say? Brutal?
— Brutos?
— Yes. Sim, brutos. Não gostar deles.
— Vamos esquecê-los. — sugeriu Afonso.
Houve um momento de silêncio, hesitação. Ela observava-o, notando que ele queria dizer algo e parecia ganhar coragem. Afonso sentia-se tímido em dar o passo seguinte. E Shirin temia o que pudesse vir dali, uma vez que não queria magoá-lo com alguma recusa que ferisse os seus sentimentos. Ele acabou por ganhar coragem e convidar:
— Queres beber alguma coisa?
— Eu não beber álcool.
— Bebemos um sumo ou uma água.
— Melhor não ir a bar de faculdade. Com this rules... regras stupid. Não querem pessoas... from outside, lá.
As recusas dela eram justificadas e dadas com uma expressão de "tenta lá outra vez, quero ser convencida".
— Não precisa de ser aqui. Podemos ir a um café. — Shirin abanou a cabeça. Afonso tinha consciência da realidade dela, muito diferente da mentalidade ocidental. Respeitou-a. — Gostava muito de sair contigo. Compreendo a tua posição. — Falava devagar e com atenção para perceber se tudo o que dizia era compreendido por ela. — Se me quiseres dar uma oportunidade, prometo que nunca farei nada que possa ser desrespeitoso para contigo ou para com os teus costumes e religião.
Shirin ouvia-o com atenção para entender todas as palavras daquele idioma que se esforçava em aprender, desde que viera para Lisboa com o pai embaixador. Afonso falava de forma simples e ela não teve dúvidas em nenhuma frase. Não era comum, nos tempos que corriam, encontrar alguém preocupado em respeitá-la pela sua origem e crenças, já se habituara ao contrário, ao desrespeito ou ao desprezo. Esforçando-se por não se revelar, Shirin estava encantada com ele.
— Tenho dificuldades com português. — disse como se falasse de um outro assunto qualquer. — Por vezes não entender o que dizerem, outras não encontro palavras boas. Por isso, meter tanto english between frases.
Afonso sorriu.
— Posso ajudar-te nisso. Podes treinar comigo. Que dizes?
— Não sei... Eu não, eu... não...
— Podes dizer em inglês, se for mais fácil.
Shirin recusou:
— Não. Tenho de falar portuguese... português. Não querer...
— Quero.
Ela sorriu.
— Não quero... tu ficares...
— Não quero que tu fiques. — corrigiu Afonso.
Shirin tornou a sorrir, vendo um sorriso no rosto dele também.
— Não quero que tu fiques com ideia errada.
Afonso anuiu.
— Não fico. Serei teu amigo e... explicador de português.
— Ok. — concordou Shirin.
Apesar de todas as reservas e regras da sua educação, Shirin deixou que Afonso se fosse aproximando, aceitando os seus convites para pequenas saídas após as aulas para beber um sumo e treinar português. Eram só amigos, mas ambos os olhares revelavam o interesse mútuo.
19.4
Manuel estava de folga naquela tarde enevoada de Primavera. Continuava a não ter resposta às suas mensagens nem os seus telefonemas eram atendidos por Ana. Por isso, decidiu ir ao seu encontro, esperá-la à saída do emprego.
O escritório de advogados localizava-se perto do Parque Eduardo VII, numa linha de edifícios onde existiam escritórios semelhantes, propriedade de alguns dos advogados mais famosos do país. Sempre que Manuel passeava por aqueles lados, sentia a ambição palpitar-lhe no peito, a ambição de um dia ser um advogado conceituado e exercer advocacia num daqueles espaços. Estudava e era um excelente aluno na Faculdade de Direito, mas tinha noção que para um negro seria difícil alcançar esse estatuto no Portugal do PNL.
Não sabia até que horas Ana estaria a trabalhar ou se poderia nem estar ali e ter tido alguma sessão em tribunal. Porém, isso não seria suficiente para o demover da espera, uma vez que precisava de falar com ela, perceber porque o ignorava, julgando ele que partilhavam pelo menos uma amizade.
Sentou-se na relva junto ao passeio contrário aos prédios. Pegou no telemóvel e ficou a ler as novidades nas redes sociais com um olho nas portas por onde ela sairia. O tempo foi passando sem que houvesse vislumbre da sua amiga. Notou que algumas pessoas que passavam o olhavam com uma expressão estranha. Ignorou o facto e prosseguiu a leitura de artigos de um website de notícias.
Em mais uma das muitas vezes que deitara uma olhadela à porta, viu um agente da PSP aproximar-se de si.
— Boa tarde! — cumprimentou-o num tom autoritário e de superioridade.
— Boa tarde! — retribuiu Manuel, denotando curiosidade na voz.
— Posso saber o que está aqui a fazer?
Manuel ficou estupefacto com a pergunta. Levantou-se devagar, pois não gostava de estar num nível inferior ao outro. O polícia deu um passo atrás, como se temesse que Manuel fosse tentar algo contra si.
A pergunta só por si irritava o jovem. Desde quando tinha de dar justificações às autoridades por estar sentado na relva? Contudo, sabia que nos tempos que corriam, deveria evitar problemas.
— Estou à espera de uma amiga. — respondeu, movendo-se lentamente para que nenhum gesto brusco fosse uma oportunidade para uma retaliação do outro.
O polícia olhou-o descrente. Na sua cabeça, os pretos só andavam com pretos. E naquela zona de Lisboa, não se viam muitos sem ser de madrugada, quando as equipas de limpeza vinham limpar os escritórios. Por alguns segundos não se pronunciou, limitando-se a olhá-lo da cabeça aos pés. Por fim, disse:
— É melhor combinar outro local para se encontrar com a sua amiga. As pessoas, por aqui, sentem-se desconfortáveis com a vossa presença.
— Com a "nossa" presença? — questionou Manuel, incrédulo.
— Não queira criar problemas. — alertou o agente em tom ameaçador. — Siga a sua vida e volte lá para o bairro.
Nesse instante, Ana saiu do edifício. Manuel ignorou a última frase xenófoba e apontou:
— Lá está ela. Não se preocupe, vou-me já embora.
E afastou-se do polícia para atravessar a avenida.
— Ana! — chamou.
A irmã de Afonso procurou ao redor a proveniência da voz. Não se mostrou particularmente satisfeita por o ver.
— Olá, Ana! — disse ele com o intuito de lhe dar um beijo, mas rapidamente notou que ela não revelava receptividade para isso. — Está tudo bem?
— Olá, Manuel! — acabou por retribuir.
Algumas das pessoas que passavam por eles olhavam-nos, umas com expressões de curiosidade, outras com um ar de repudio por verem uma jovem vestida com um fato elegante e formal a falar com um preto vestido de calças de ganga e camisola de malha.
— Tenho tentado falar contigo. Nunca respondes às minhas mensagens, nem atendes os meus telefonemas.
Ana ia a responder, quando o agente da PSP voltou a entrar em cena.
— Boa tarde! Este jovem está a incomodá-la? — Meia atordoada com a surpresa da questão, Ana olhou para o polícia. Este pareceu sentir‑se na obrigação de se explicar. — Este jovem tem estado a incomodar as pessoas...
— Eu a incomodar? — insurgiu-se Manuel.
Ana começou a perceber o que estava a acontecer.
— De que forma o meu amigo tem incomodado as pessoas? — questionou ela, carregando a voz quando proferiu a palavra "amigo".
— Tem estado ali no jardim e as...
— Desculpe, senhor agente?! Desde quando é proibido estar ali no jardim? Sou advogada e desconheço qualquer lei que proíba as pessoas de estarem... "ali no jardim".
— Pessoas como o seu amigo...
— Pare! — exigiu Ana, colocando uma mão no braço de Manuel, percebendo que ele iria falar e sabendo que se poderia prejudicar com isso. — Vou fazer de conta que o senhor agente não ia dizer o que penso que ia. Agradeço a sua preocupação, mas na verdade se há alguém que me está a incomodar agora, é o senhor agente. Por isso, se pudermos ficar por aqui, agradeço-lhe e peço-lhe que não desperdice o seu tempo connosco.
O homem fulminou-a com o olhar, mas não quis fazer nada que lhe pudesse causar problemas. Nunca era bom arranjar litígios com pessoas de leis. Fez um aceno com a cabeça em despedida e afastou-se.
— Que está a acontecer a este país, Manuel? — questionou ela, sem esperar que ele tivesse uma resposta, vendo o homem fardado a atravessar a avenida e caminhar para longe. — Isto não é Portugal. Nós não somos racistas.
— Se calhar somos... Se calhar são.
Ana abanou a cabeça, não era assunto que quisesse dissertar ali. Também não queria permanecer na presença dele, pelo menos, não em frente ao seu local de trabalho.
— Tenho de ir, Manuel. Depois ligo-te.
— Como me tens ligado ultimamente? — cobrou ele. — Por vezes, penso que só sais comigo para que te leve aos jantares dos Corvos.
— Se assim fosse, pedia ao meu irmão. — ripostou ofendida.
— Talvez sim... ou talvez não.
— Tenho estado muito ocupada.
Manuel anuiu. Não acreditava que ela estivesse assim tão ocupada que não lhe pudesse, pelo menos, responder às mensagens. Porém, preferiu não batalhar nessa tecla.
— Podemos combinar algo? Gostava de voltar a sair contigo.
Ana procurou uma desculpa no seu cérebro, mas os seus pensamentos foram interrompidos pelo surgimento de Alberto Brito Craveiro Assunção que saía imponente pela porta do edifício. Este, ao ver Ana a falar com Manuel, lançou-lhe um olhar enojado, uma expressão de quase desprezo e desdém.
— Foda-se! — vociferou ela, entre dentes, ao vê-lo.
— Que foi?
— É o meu patrão.
— E?
— Isto não é nada bom. Não queria nada que ele me visse a falar contigo.
— Porquê? — estranhou Manuel. — Ele não me conhece de lado nenhum. — Sorriu. — Já sei, não queres que pense que sou teu namorado? Que tem ele com isso, Ana?
O rosto de Ana permaneceu sério, continuando a olhar para o carro onde o chefe entrara, o qual se começava a afastar avenida acima. Sem pensar, aquilo que lhe saiu da boca foi:
— Que vai ele pensar ao ver-me a falar com um...?
A constatação da realidade atingiu Manuel como uma lança que se lhe espetou no peito. Percebeu, sem qualquer dúvida, o que atemorizava Ana naquela cena.
Ela tomou consciência que verbalizara o pensamento em voz alta, mas era tarde demais.
— Ao ver-te falar com um preto?
— Desculpa, não era isso que queria dizer.
— Sabes, Ana? Nós não somos todos bandidos.
A voz de Manuel revelava uma mistura de mágoa e raiva.
— Eu sei que não, Manuel. Nem eu penso nada disso.
— Será que não?
— Estás a ser injusto. — Ana defendeu-se virando a questão contra ele. — Ainda há pouco te defendi contra alguém que te estava a perseguir num acto completamente racista.
Manuel fez um sorriso escarninho.
— Tu és como aquelas pessoas que se dizem antirracistas, se manifestam contra o racismo, mas depois em pequenas coisas são tão racistas quanto os outros.
— Pensa o que quiseres! Não vou ficar aqui a discutir contigo. — revoltou-se num tom furioso, ofendida pelas palavras dele que, lá no fundo, sabia não serem descabidas. — Tenho mais que fazer. — E virou‑lhe as costas.
— Sim, vai lá. — ripostou ele. — Apressa-te, antes que mais alguém te veja a falar com o preto.
Ana parou e voltou-se de novo para ele.
Manuel julgou que ela lhe iria retribuir com impropérios, mas para sua surpresa, viu um rosto magoado a olhá-lo. Notou que a sua boca se preparava para dizer algo, mas travou-se. Ana acabou por abanar a cabeça como quem concluía que não valeria a pena dizer nada. E ele ficou a observar a sua caminhada para longe, iria certamente apanhar o autocarro numa das paragens no topo do Parque Eduardo VII. Ainda pensou em ir atrás dela, procurar uma forma de apaziguar a querela que se gerara ali. Decidiu não o fazer.
Ana desapareceu ao virar da esquina. Manuel também não iria permanecer ali, arriscava-se a que o polícia o voltasse a interpelar e, desta vez, tudo fizesse para que Manuel perdesse as estribeiras.
— Manuel?
Não reconheceu a voz, apesar de esta não lhe parecer estranha. Olhou em redor e viu quem o chamava, saindo pela mesma porta por onde a amiga viera. Reconheceu o rapaz com quem se cruzara no comboio, o que o ajudara quando fora agredido pela escumalha da JNL. Como se chamava ele? Nunca se recordava. Também o reencontrara uma tarde, quando estava de serviço à entrada do Castelo de São Jorge. Sortudo, tinha uma namorada deslumbrante, aquela morena lindíssima não lhe saíra da cabeça durante alguns dias. Acenou ao jovem. Que raio, como se chamava ele? O outro aproximou-se sorridente. Ah, já se recordava do nome...
— Olá Manuel! — cumprimentou, estendendo-lhe a mão.
— Tudo bem, Valido?
— Valério. — corrigiu, abrindo mais o sorriso. — Está tudo bem. E contigo?
Manuel encolheu os ombros, já tivera dias melhores.
— Trabalhas aqui? — Valério anuiu. — És advogado?
— Nada disso. Sou apenas uma espécie de moço de recados.
— Uma profissão tão digna quanto qualquer outra. — retorquiu Manuel, percebendo a forma depreciativa como ele se descrevera.
Valério concordou.
— E tu? Que fazes por aqui?
— Vim ver uma amiga. — respondeu, dando por si a ter relutância em referir quem ela era, sentindo que já a prejudicara o suficiente.
— Ah... Ok. Estás à espera dela?
— Não. Já falámos. Ela já foi embora.
Percebendo que Manuel não pretendida falar muito mais sobre isso, Valério mudou de assunto:
— Vou para casa. Vais a algum lado ou também vais regressar à Amadora?
— Também vou para casa. Não tenho mais nada para fazer aqui. E para te ser sincero, começo a odiar andar por estas bandas.
Valério não sabia ao certo a que se referia o outro, mas também não perguntou. Acabou por sugerir:
— Já que vais para os meus lados, podemos ir juntos.
— Parece-me boa ideia.
19.5
Aquele jantar dos Corvos era especial, uma vez que para além do encontro de amigos, eles iriam festejar o aniversário de Afonso. Desta feita, a escolha para se reunirem foi um restaurante na zona norte do Parque das Nações, junto do Jardim Garcia de Orta, perto da Torre Vasco da Gama.
Cada vez escurecia mais tarde e as noites iam sendo mais pequenas, como era habitual acontecer até chegar o Verão e o dia mais longo do ano. Aquela zona estava repleta de restaurantes geminados numa linha estrutural de dois pisos virada para o rio Tejo, mas separada da margem pelo arvoredo do jardim. Fora o próprio aniversariante que organizara o jantar, não que houvesse muito mais para tratar que a reserva e convidar os amigos.
O restaurante era um lugar aprazível com oferta de menu para todos os gostos. Tinha um ambiente tranquilo, mesmo estado completamente lotado. A decoração era moderna e o interior iluminado pelo crepúsculo que entrava pelos altos vidros virados para o rio, ao que se juntou a iluminação artificial conforme a luz natural se ia extinguindo. Afonso fizera a reserva com o pedido para que a mesa ficasse no piso superior, junto a esses mesmos vidros. E foi isso que ele encontrou ao chegar, uma longa mesa rectangular composta por várias quadradas alinhadas umas a seguir às outras, compondo o espaço para todos os seus amigos.
Afonso estava particularmente feliz com aquele seu aniversário, tudo porque Shirin aceitara estar presente. Ele não se preocupara em organizar os lugares, somente indicara a Shirin que ficasse na primeira cadeira à sua direita. Como aniversariante, Afonso ocupara a cabeça da longa mesa.
A sua irmã Ana estivera para não vir. Apesar de gostar muito dela, Afonso não se teria importado que ela declinasse o convite, uma vez que parecia ter tendência a provocar tensão com o ex-namorado. Contudo, ela revelou-se comedida nessa noite, evitando esgrimir argumentos com José Carlos. Afonso também notou que, ao contrário do que vinha sendo habitual nos últimos jantares, Ana e Manuel ignoraram‑se mutuamente.
Um outro par também dava sinais de afastamento, José Carlos e Carla. Os amigos já tinham notado algum esfriamento na relação de ambos, quando os viam na Faculdade. Porém, num encontro de amigos como aquele, esse distanciamento era evidente. Para além disso, os namorados haviam chegado separados. E pela primeira vez, Carla trouxera a irmã.
Carla convidara Paula por duas razões, primeiro para servir de escudo a qualquer tentativa de intimidade de José Carlos e justificação para que não o acompanhasse ao seu apartamento, algo que não voltara a suceder desde a noite em que ela perdera a virgindade, e segundo porque notava que Paula andava estranha e decidiu-se a arranjar-lhe um namorado, pois achava que era o que lhe fazia falta e começava a interrogar-se se a irmã gostaria de rapazes, já que só a via na companhia de Benedita. E Carla encontrara aquele que, para si, era o candidato perfeito, Dinis.
Por seu lado, Paula não tinha muita vontade de ir. Desconhecia a maior parte dos presentes, só mesmo com José Carlos e com Inês é que tinha algum contacto mais constante por serem os mais próximos de Carla. No entanto, isso não era suficiente para o evento ser interessante. Só que Carla insistira tanto...
Dinis era dois anos mais velho que Paula. No seu íntimo, sentia uma certa atracção pela inalcançável Carla. Quando esta lhe apresentou a irmã, ele achou-a tão ou mais bonita que a mais velha, ou talvez isso fosse motivado pela noção que com Paula poderia ter alguma hipótese.
Carla tentou evitar, mas não conseguiu ficar sentada noutro lugar que não fosse ao lado do namorado. Também seria incorrecto fazê-lo, não tinham acabado a relação nem ele fizera nada de mal, ela é que estava magoada pelo que acontecera naquela noite ou sentia que falhara como amante e não tinha coragem de encarar isso. Paula sentou-se a seguir, junto da irmã, a qual chamou Dinis para lhe fazer companhia. Paula dispensaria isso, mas teve a educação de não reclamar.
Ana ficou perto do irmão, em frente a Shirin com quem se interessou em conversar, uma vez que esta era uma presença importante, não pelo que representava para o irmão, mas por ser filha de um embaixador. O facto de Manuel ter escolhido a cadeira mais longe de si, confirmou-lhe que a relação deles azedara. Deu por si a lamentá-lo.
Foi Inês quem ocupou a cadeira ao lado de Ana, juntamente com o namorado. As trocas de olhares com Carla fizeram-na perceber que nada se alterara com José Carlos. Elas eram confidentes uma da outra e Inês era a única pessoa que sabia que "aquilo acontecera" entre eles. Ela compreendeu a amiga e apoiou-a, mas percebia o que José Carlos deveria sentir, uma vez que ela sentia o mesmo em relação a Pedro que insistia em ir virgem para o casamento.
João e Vânia eram uma presença recatada, muito envoltos no seu mundo. Dialogavam com os amigos esporadicamente, só mesmo para não parecer que vinham fazer figura de corpo presente. Outro que parecia não ter trazido a cabeça era Sancho que não largava o telemóvel sempre a trocar mensagens com a namorada portuense. Sebastião também estava a leste, mas tirando Sancho que suspeitava disso, não passava pela cabeça de ninguém que a razão do seu alheamento do jantar era a mãe de Carla e Paula.
Fernando costumava ser o mais falador nestes eventos, sempre a trazer a política para assunto principal, mais não fosse para espicaçar o amigo Afonso. Infelizmente, o aumento de rumores de que existiam "bufos" do SIALE um pouco por toda a parte fez com que esse tipo de conversa não acontecesse em lugares públicos.
A presença mais austera do jantar era Maria, a qual continuava a responsabilizar-se por José Carlos ter perdido a presidência da associação de estudantes, cedendo-a para que ela e todos os estudantes detidos não fossem levados pelo SIALE. O próprio José Carlos já lhe dissera que ela não tivera culpa, nem fora só ela a ser detida. Porém, Maria não largava a culpa e mantinha um ar constantemente triste.
Miguel foi o último a chegar ao restaurante.
A conversa foi animada e a refeição deliciosa, acompanhada por vinho, cervejas e sumo. Lá fora a noite caíra por completo. Algumas mesas começaram a ficar vazias.
Sancho levantou-se e retirou o maço de tabaco do bolso. Passou por Sebastião e disse-lhe:
— Vou fumar um cigarro. Queres vir?
Sebastião não fumava, o convite era para conversarem longe dos restantes. O estudante de medicina aceitou e ambos desceram as escadas para o piso inferior, saindo do restaurante, pois era proibido fumar em espaços fechados.
— Como estão as coisas? — Sancho fez aparecer uma chama no isqueiro que protegeu com a mão em concha e levou à ponta do cigarro preso nos lábios. — Tu e a médica?
— Que médica? — questionou Sebastião, fingindo não saber ao que o outro se referia.
— Aquela que falaste no outro dia. — lembrou o amigo. Sebastião sorriu. Não precisou de falar para que Sancho percebesse o que estava a acontecer. — Malandro. Andas a comer uma mulher mais velha e casada.
— Xiu... Ainda te ouvem.
— E qual é o problema? — perguntou, ignorando que estava a falar de alguém que tinha duas filhas que estavam a jantar com ele.
— Não quero que ninguém saiba.
— Ok, ok. — aceitou, expelindo uma baforada de fumo para a noite.
— E a tua namorada?
Sancho encolheu os ombros.
— Não vejo o dia de poder ir em definitivo para o Porto. — Olhou para Sebastião. — Estou a pensar pedir transferência este Verão. Quero ficar perto dela.
— E o que pensa ela disso?
— Ainda não lhe disse.
Entretanto, no interior do restaurante, a conversa prosseguia animada. Miguel falava de um filme que fora ver ao cinema, evitando ser spoiler para com quem também o quisesse ir ver.
— Não eras tu que querias ir ver este filme? — inquiriu Carla, olhando para a irmã.
Antes que Paula fizesse mais que anuir de forma ténue, Dinis revelou que estava a pensar ir ver o filme nesse fim de semana.
— Vocês podiam ir os dois. — sugeriu Carla, aproveitando a oportunidade para atirar a irmã para os braços de Dinis.
— Sim. Por mim... — concordou ele entusiasmado.
O sentimento de Paula em relação a isso era inverso. Contudo, não teve coragem de recusar perante ele e acabou por concordar.
Ana olhou para o fundo da mesa e encontrou Manuel a falar com Maria. Ao contrário do que costumava suceder naqueles jantares, ele não olhou para Ana uma vez que fosse. Ela sentia-se mal com isso, aliás sentia-se mal consigo porque sabia que o ofendera naquela tarde à porta do emprego. Bolas, mas a presença dele a falar com ela quando o patrão saiu... O poderoso Craveiro Assunção já se cruzara com ela, meia dúzia de vezes, depois disso, e em todas lhe lançou uma expressão de quase asco, como se lhe recordasse que ela era um ser impuro por se prestar a conversar com um preto. Ana não gostava do patrão, mas gostava da sua profissão e era ambiciosa. E sabia o quanto aquela cena simples a poderia ter prejudicado. Mesmo assim, sentia-se mal pelos seus actos, Manuel era um tipo porreiro, demonstrara ser seu amigo, parecia gostar dela e nunca fora incorrecto nem tentara nada.
Não havia muito que pudesse fazer para mudar as coisas, mas pelo menos faria o que estivesse ao seu alcance. Levantou-se do seu lugar e caminhou na direcção dele, parando atrás de si e tocando-lhe o ombro. Ele pareceu surpreendido por a ver ali e fez uma expressão de quem só naquele instante dera conta que ela comparecera ao jantar.
— Podemos falar? — pediu sem abandonar a sua usual expressão fechada.
— Tens a certeza de que queres falar comigo? — alertou Manuel. — Está aqui muita gente.
— Não sejas idiota. — repreendeu-o, mantendo o tom suave, algo dissonante com o seu semblante. — Estou a pedir que venhas comigo. Precisamos de falar.
Manuel apontou-lhe a cadeira vaga a seu lado. Ana recusou e, olhando para Maria, pediu:
— Desculpa. É um assunto particular.
Ele acabou por se levantar.
Ana não disse mais nada e afastou-se do grupo, certa de que Manuel seguiria atrás de si. E ele caminhou pelos mesmos passos que ela.
Afonso viu-os a descer as escadas até desaparecerem no andar de baixo. Depois, olhou para Maria.
— Está tudo bem com eles?
A amiga encolheu os ombros, desconhecendo o motivo que os levou a irem conversar para outro lugar.
No fundo das escadas, o casal cruzou-se com Sancho e Sebastião que regressavam do exterior. Atravessaram o átrio para a saída, saindo para a rua. Cá fora, a esplanada estava lotada, mas somente com pessoas a cear e a beber. Ana não parou, continuando a andar como se pretendesse atravessar meia cidade, estugando o passo junto ao muro do jardim público.
Manuel seguiu-a curioso, mas ficou apreensivo ao sair para noite colorida pela alegria das muitas pessoas que ocupavam as esplanadas. O motivo do seu receio eram dois homens de aspecto suspeito, envergando fatos formais e óculos escuros. Calculou que fossem agentes do SIALE.
Ana sentou-se no muro e convidou-o a sentar-se a seu lado. Ele recusou, olhando de soslaio para os indivíduos. Ela notou a sua preocupação e descansou-o:
— São seguranças da embaixada. Estão ali por causa da Shirin.
Foi como se tivessem tirado uma tonelada das costas de Manuel.
— Senta-te. — tornou a convidar.
— Estou bem em pé.
Não insistiu, limitando-se a assentir, consciente que não era cómodo para si falar a olhar para cima. Acabou por se levantar do muro, sacudindo as calças de ganga. A sacudidela demorou mais que o necessário, Ana ganhava tempo para procurar as melhores palavras.
— Devo-te um pedido de desculpas. — acabou por dizer, olhando-o nos olhos. — Não fui correcta contigo. No outro dia, quase disse algo que não devia sequer pensar. Espero que me possas desculpar.
Manuel encolheu os ombros. Não disse nada, apenas encolheu os ombros. Era quase como se tentasse perceber de que servia desculpá-la. Aliás, será que estava aborrecido com ela? Estaria ele já tão habituado a atitudes racistas que já desvalorizava esses comportamentos? Não, não os desvalorizava, apenas sentia que não tinha força para lhes fazer frente.
— Eu não sou racista! — afirmou Ana, calculando que ele não a desculpasse. Procurou justificar-se. — Como é que posso explicar? Sei que tive uma má reacção... Quando vi o meu patrão... A forma como ele me olhou. — Dirigiu o olhar para o rosto de Manuel, alterando a sua expressão séria para uma espécie de súplica. — Não tenho problemas em ser vista a falar contigo.
— Não foi o que me pareceu. — interrompeu ele.
— É complicado, Manuel. Tu sabes, vivemos numa sociedade cada vez mais elitista. Naquele escritório avaliam-te pelo que aparentas ser, não pelo que realmente vales. O que interessa é o estatuto, é a imagem, o dinheiro. Aquele escritório está cheio de advogados que se acham superiores a tudo, então o Craveiro...
— Talvez eu esteja errado, mas isso não justifica tudo, Ana. Jamais viraria as costas a um amigo pelo que as pessoas pudessem pensar de mim.
— Eu não te virei as costas.
— Ficaste furiosa por ele te ter visto comigo. Corrijo. Ficaste em pânico, desesperada, como se eu representasse um crime para essa gente. Ana, se és ou pretendes tornar-te uma pessoa como eles, eu não quero ter nada a ver contigo. Não quero sequer falar contigo.
— Eu não sou assim, Manuel. Tu conheces-me.
— Conheço?
— Não sejas assim. Tu sabes que eu não sou assim.
— O que eu sei é que evitas estar comigo, ignoras as minhas mensagens, recusas os meus telefonemas.
— Tenho estado ocupada, já te tinha dito...
— Como queiras.
— Eu não evito estar contigo. Até gosto da tua companhia.
Manuel soltou uma gargalhada sarcástica.
— Vá lá, Ana. Não sou parvo.
— É verdade.
— Viu-se.
Ana abanou a cabeça, sentindo-se vencida na discussão.
— Aquilo nada teve a ver contigo. As pessoas vivem da imagem, daquilo que julgam delas. Eu sei que perdi mais pontos para ascender naquele mundo de advogados, por o Craveiro me ter visto contigo, que todos os que fui acumulando desde que lá estou devido à minha competência. Não concordo e acho repugnante que as pessoas funcionem assim. — Suspirou e encolheu os ombros. — É a sociedade que nós temos.
— Só é a sociedade que nós temos, se aceitarmos fazer parte dela.
Foi a vez de ela rir perante a ingenuidade daquele tipo de ideais.
— Se não aceitares fazer parte, és excluído.
— Eu já sou excluído, Ana, só por ter a pele desta cor.
— Vá lá, Manuel. Ainda não chegámos a esse ponto.
— Achas que não? — questionou convicto. — Confesso que houve tempos em que talvez acreditasse que o racismo era coisa de alguma minoria branca, tipos com algum desequilíbrio metal... Mas desde que estes fascistas do PNL estão no poder, parece que o racismo andou encapotado e se libertou com o nacionalismo lusitano. Bolas, Ana, eu sou tão português como tu. Mas, hoje, tenho que ter cuidado porque se fizer algo que vá contra as leis inventadas por este governo, sou expulso do meu próprio país.
— Sim, talvez tenhas razão... — concordou, desviando o olhar para as folhas das árvores, uma brisa suave soprou e abanou os ramos. As vozes de dezenas de pessoas a divertirem-se rodeavam-nos. — Infelizmente, volto a dizer, é a sociedade que nós temos. — Tornou a encarar o rosto dele. — Mas, eu não sou assim. Ok, posso sujeitar-me a integrar-me no seio deste tipo de gente, mas apenas para conseguir alcançar as minhas ambições. Não sou racista, Manuel. E se não te consigo convencer disso, lamento, lamento mesmo muito.
O silêncio instalou-se entre eles. Foi um silêncio tão desconfortável que ambos evitaram o olhar um do outro. Porém, nenhum deles demonstrava vontade em se afastar. Manuel queria, mas não acreditava no que ela dissera, Ana não o convencera de que não era racista. Para ele, o importante eram as acções, não as palavras. O que mais o magoava era o facto de gostar tanto dela. Sentiu que estavam num impasse. Não, não era um impasse, era o fim da linha. Tinha a certeza que depois daquela conversa, nada mais existiria entre eles. Aliás, acreditava que a motivação dela para se desculpar era apenas para se tentar sentir melhor com a sua consciência. Era um caso perdido, uma paixão fracassada. Como poderia um dia ter pensado que teria alguma hipótese com ela?
Sem saber muito bem porquê, sentiu necessidade de dizer tudo o que lhe ia na alma. A relação de algo parecido com amizade terminaria ali, naquela noite, por isso, ele iria dizer-lhe o sentia.
— Ana!
Ela encarou-o com um semblante sério, uma defesa invisível.
— Não te vou mentir, Ana. Custa-me muito a acreditar que não seja mais que um incómodo para ti. — Ela abanou a cabeça, agastada, mas ele não permitiu que o interrompesse. — Acho sinceramente que o melhor é afastarmo-nos, somos muito mais diferentes que a diferença da cor da nossa pele. — Ana dava ares de discordar, mas permaneceu calada. — No entanto, quero que saibas que aquilo que mais me custa é o facto de gostar tanto de ti. — O seu olhar feminino revelou surpresa. — Gostava que pudéssemos ter sido amigos, mas na verdade, aquilo que sinto por ti é paixão. Gosto de ti como mulher, não como amiga. Essa é verdade e talvez seja isso que torne tudo o que aconteceu tão... — Encolheu os ombros. — Não sei descrever.
Ana ficou petrificada com a revelação, sem saber muito bem como agir, teve medo de voltar a magoá-lo, ainda para mais estando ele numa posição tão vulnerável como se dispusera a ficar com a confissão.
Sem o saber, Maria acabou por salvar Ana que não sabia como reagir. Maria veio procurá-los para os chamar de regresso à mesa, uma vez que o bolo de aniversário já lá estava e iam todos cantar os "parabéns a você".
— É melhor irmos. — aproveitou Ana, afastando-se para regressar ao restaurante.
Manuel permaneceu alguns segundos no mesmo lugar, consciente que qualquer tipo de relação que pudesse ter existido com Ana terminara ali, naquele momento. Lamentava-o, mas talvez fosse ela que não o merecesse ou isso era apenas uma desculpa para atenuar a dor de um coração partido.
19.6
Desejava que chovesse. Isso ou outra coisa qualquer que pudesse servir de desculpa para se furtar àquele encontro que a irmã decidira arranjar-lhe. Não percebia o que passara pela cabeça da irmã para insistir tanto em que ela fosse ao cinema com aquele rapaz que Paula nem conhecia. Não que ele fosse desagradável, até fora simpático com ela durante o jantar e tentara entabular diálogos que ela foi refutando educadamente. Também se sentia revoltada consigo por não ter tido coragem de dizer que não. Chegara a pensar que aquilo fora um esquema de Carla para ficar sozinha com o namorado, mas isso não tinha qualquer lógica, se o propósito fosse esse, para quê ter insistido tanto que Paula a acompanhasse ao jantar? Agora que pensava nisso, deu-se conta que a relação da irmã com o namorado parecia diferente, mostravam-se distantes... Carla passara o jantar fria com José Carlos. E ele comportava‑se como se quisesse agradar-lhe. A confirmação de que algo não estava bem foi a recusa de Carla em seguir com José Carlos para o seu apartamento, mesmo depois de Paula lhe dizer que não tinha problemas em regressar sozinha a casa ou o namorado se ter disposto a deixar a irmã lá, quando fossem a caminho de casa dele. Carla revelara-se intransigente e recusou. Paula estranhou, uma vez que a mais velha dormia sempre na casa do namorado depois dos jantares de amigos. Bom, mas isso era problema deles, não de Paula para quem o problema imediato era livrar-se daquele encontro com o rapaz simpático e desinteressante.
Paula partilhou o assunto com Benedita. Ambas com dezassete anos, desde que começaram a sair sozinhas que iam juntas a todo o lado. A amizade delas já vinha quase do berço e parecia estranho que fizessem alguma coisa sem a presença da outra. Fora assim que Benedita enquadrara a situação, enquanto Paula só via o facto de não ter vontade de sair com o rapaz.
Contudo, Benedita tinha sempre aquela maneira de ser de avaliar a questão pelos olhos dos outros, como se sentiria se estivesse no lugar deles.
— Agora também era má onda, cancelares a ida ao cinema.
— Que vou eu fazer? Quero ver o filme, mas não o conheço. Acho absurdo ir ao cinema com alguém que não conheço. E depois? Quando acabar o filme? Pode querer ir a mais algum lado... Não tenho paciência para isso. Já para não falar que isto pode ser só o começo, pode querer sair mais vezes...
— Eh! Calma, Paula! Onde tu já vais. — Benedita sorriu com humor. — Ele até pode nem querer voltar a sair contigo.
— Deus te ouça! Mas isso não invalida que tenha de ir com ele ao cinema, hoje.
— Não é o fim do mundo.
Nesse momento, Paula olhou para a amiga e foi como se a luz da sapiência tivesse iluminado o seu cérebro.
— Já sei! Tu podias vir connosco?!
— Eu?
— Sim.
— Ó Paula, por favor. Que vou eu fazer convosco? Segurar na vela?
— Não querias ir ver o filme?
— Sim, mas... Não dessa forma...
— Vá lá, Benedita!
Claro que nenhuma delas seria capaz de recusar qualquer pedido da outra, daí que Dinis iria ser surpreendido pela presença de duas raparigas para o acompanhar na sessão de cinema. Ficaria feliz com isso? A princípio não.
Na noite anterior, Carla decidira tudo pelos dois, o lugar, a hora... só não escolheu o filme porque já estava escolhido. Dinis não se importou, apesar de ser mais velho e aparentemente mais maduro que Paula, ele era um jovem tímido e talvez não tivesse tido coragem sequer para fazer o convite.
Ficaram de se encontrar junto às bilheteiras do cinema no Centro Comercial Vasco da Gama. Dinis chegara primeiro e esperou entusiasmado e com um nervoso miudinho que sempre o acicatava em momentos de ansiedade. Paula não lhe dera muita atenção no jantar, calculou que deveria ser timidez. Porém, ficara fascinado com ela, era tão bonita quanto a irmã, faltando apenas aquela alegria contagiante que brotava de Carla. Tinha a certeza que isso mudaria, conforme se fossem conhecendo. Desejava que aquele encontro corresse bem. Teria o cuidado de não ser intrusivo nem aparentar estar com segundas intenções. Para já, gostaria de ter uma amizade com ela. Sentia falta de interagir com o sexo oposto, nem que fosse só para sair e conversar.
O balde de água fria atingiu-o ao ver Paula chegar na companhia de outra rapariga. Controlou a decepção.
Quando se aproximou, Paula limitou-se a um simples "olá". Não fez qualquer tenção de o cumprimentar com dois beijos, como acontecera no jantar de amigos, quando todos trocavam cumprimentos e despedidas.
Benedita olhou para ele, sorriu-lhe transbordando simpatia, pensando para si que se estivesse no lugar de Paula, não a teria convidado a si para vir também. Sem hesitar, encurtou a distância e cumprimentou-o com um beijo no rosto.
— Olá! Eu sou a Benedita.
— Olá! Dinis. — apresentou-se, dando por si a avaliá-la.
Para Dinis, Benedita não era tão bonita quanto Paula, não tinha aquela imagem atraente de jovem loura elegante, timidamente bela, donde iria brotar uma mulher sensual. Benedita era mais forte, não tinha corpo de modelo, mas não deixava de ser bonita e cativante, já para não falar que a sua simpatia a tornava apaixonante. E o subconsciente de Dinis escondia um certo fetiche por raparigas ruivas. As duas vestiam um estilo idêntico, calças de ganga e blusão sobre camisolas de malha. A única diferença, constatou ele, seria o número que cada uma vestia, uma vez que Benedita era mais roliça. Para Dinis, Paula era beleza em bruto, mas a amiga denotava uma maturidade que lhe dava classe e tinha uma expressão que, quando o olhava, lhe causava uma sensação estranha, desconhecida e que lhe agradava.
Perante o cumprimento da amiga, Paula sentiu-se na obrigação de dar um beijo no rosto de Dinis. Fê-lo de forma tão superficial que ele quase não o sentiu.
Benedita conhecia tão bem a amiga que lhe lia o frete estampado no rosto. Não era justo para o rapaz que estaria certamente interessado nela. Paula seria uma tola, se não aproveitasse, ele era tão bonito. Perante o enfadamento dela e a timidez dele, Benedita deu por si a ser a mais madura do trio.
— Eu vou comprar os bilhetes. — disse, dando oportunidade para que a amiga e o rapaz tivessem uns minutos a sós para dizer algo.
— Não espera... Eu vou! — desperdiçou ele sem perceber a oportunidade. — Eu pago.
Benedita ia a recusar, mas Dinis insistiu em oferecer os bilhetes delas.
— É bem giro. — disse Benedita, enquanto ele se deslocou à bilheteira.
Paula encolheu os ombros, completamente desinteressada nisso.
Os três entraram na sala de cinema. Dinis tivera a inteligência de entregar os bilhetes numerados às raparigas por forma a que o bilhete de Paula fosse o número a seguir ao seu. Mesmo assim, Paula tentou que a amiga ficasse entre eles. Benedita atirou-lhe uma expressão condenatória que Paula percebeu de imediato e aceitou o destino de ficar ao lado de Dinis.
O filme foi o que se esperava, não desiludiu nem foi algo que se destacasse nas suas memórias cinematográficas. Dos três, apenas Benedita desfrutou em pleno. Dinis passara aquelas quase duas horas a pensar numa forma de prolongar o momento para além do filme, enquanto Paula ansiava pelo fim, desejosa de terminar aquele encontro tão absurdo que a irmã lhe arranjara.
Quando abandonaram a sala de cinema, Dinis fez alguns comentários acerca do filme, como forma de tentar entabular conversa com Paula. Perante os monossílabos que esta proferia entre dentes, Benedita decidiu corresponder ao diálogo. Paula ficou muda até chegarem à saída e ficarem perante o espaço do enorme varandim em formato oval contornado por lojas.
— Bom... Obrigada pelo bilhete. — agradeceu Paula em tom de despedida.
Dinis vinha tão compenetrado na conversa com Benedita que quase sentiu um choque com o que parecia ser o fim daquele encontro. Quase em desespero, o melhor que se lembrou de dizer foi:
— Não querem tomar um café? Ou beber alguma coisa?
Paula abanou a cabeça e franziu o rosto.
— Não, obrigada. Temos de ir.
— Já? — questionou ele. Depois olhou para a amiga dela e, numa expressão de "ajuda aí", insistiu. — Podemos dar um passeio junto ao rio, ir beber alguma coisa nas esplanadas...
— Por mim, tudo bem. — concordou Benedita, entrando no jogo para o ajudar.
A solidariedade da amiga para com o rapaz aborreceu Paula. Em resposta, olhou para Benedita e sugeriu:
— Se quiseres, vai tu. Eu tenho de regressar a casa. Tenho coisas para fazer.
Benedita ficou surpresa com a resposta. No seu íntimo, considerou que a amiga estava a ser parva em não aproveitar o facto de que o rapaz estava visivelmente interessado nela. E ele era tão bonito...
— Não te importas?
— Claro que não. — concordou Paula num tom semelhante a "se é isso que queres" e um semblante irritado. — Posso voltar para casa sozinha. — Fez um sorriso escarninho. — Sei o caminho.
Benedita olhou para Dinis, esperando a sua reacção. Olhou-o como se dissesse "sei que querias que fosse ela a ir contigo, mas parece que serei eu, queres?"
Dinis lamentou que Paula não quisesse vir, mas perante a predisposição da amiga dela em vir com ele, não ficou completamente desiludido. E, verdade seja dita, a amiga revelara ser uma companhia muito mais cativante. Sorriu para Benedita e manteve a proposta.
Paula despediu-se da amiga com um beijo e atirou um aceno distante a um Dinis que já esperava um beijo idêntico. Virou costas a ambos e seguiu na direcção das escadas rolantes sem olhar para trás. Teve pena que Benedita não tivesse vindo com ela, mas o alívio por se ver livre do rapaz era tão grande que compensava o facto de voltar para casa sozinha. Só esperava que o rapaz não aproveitasse aqueles momentos sozinho com Benedita para a tentar converter numa aliada a convencê-la a gostar dele, tal como a irmã parecia tentar.
Curiosamente, Carla estava em casa quando Paula chegou. Carla iria dedicar aquele fim de semana em exclusivo aos estudos, uma vez que tinha um exame na segunda. Ao sentir a irmã chegar, veio ao seu encontro com um semblante surpreso e curioso por Paula já estar em casa.
— Então? — quis saber ansiosa.
Paula encolheu os ombros e contou-lhe uma versão resumida das últimas horas. Carla abanou a cabeça incrédula. Não valia a pena tentar demonstrar à irmã que estava a ser uma idiota, seria perda de tempo. E tempo era algo precioso para os seus estudos.
Benedita chegou ao prédio onde viviam, pouco antes do jantar, mas não quis entrar em casa sem passar primeiro pelo apartamento da família Maia. Quando Paula a encarou, lançou-lhe um olhar aborrecido por a outra não ter largado o chato e regressado com ela. Claro que aquela postura serviu como uma espécie de escudo para aquilo que Paula esperava ser uma conversa em que a amiga lhe viria falar do rapaz, tentar convencê-la de que era interessante e que tinha intenções para além da amizade com ela... Enfim, viria com o papel de advogada de defesa ou vendedora daquele "produto".
Benedita ignorou o ar aborrecido. Curiosamente, ela própria aparentava uma expressão defensiva, como se tivesse feito algo errado. Começou a falar em Dinis, como se procurasse justificar a sua decisão em o ter acompanhado.
— Coitado. Estava a ser tão simpático. Pareceu-me cruel largá-lo assim, depois de nos ter oferecido os bilhetes.
— Como queiras. — retorquiu Paula com desdém. — Não me interessa.
— Não te interessa mesmo?
A pergunta foi quase ofensiva para Paula.
— Claro que não me interessa. Não pretendo voltar a vê-lo.
Para sua surpresa, Benedita suspirou e sorriu.
— Então não te importas que eu esteja interessada nele?
Aquilo foi um choque para Paula, apesar de não saber explicar em que é que aquilo a chocava. Mesmo assim, teve dificuldade em articular a resposta. Mas, rapidamente percebeu que a hesitação poderia ser interpretada como tendo ela interesse em Dinis.
— Não, não me importo nada. — respondeu quase sem respirar. Benedita sorriu feliz. — E ele está interessado em ti?
Mal terminou a interrogação, Paula arrependeu-se do tom que usara. Fizera a pergunta como se o facto de Dinis estar interessado em Benedita fosse descabido.
— Não sei. — respondeu magoada. — Mas, combinámos voltar a ir ao cinema amanhã.
— Outra vez? — Paula suspirou. Não queria voltar a sair com ele.
Benedita teve a oportunidade de ripostar o golpe daquela pergunta que a magoara:
— Não te preocupes. Desta vez, será só eu e ele.
20.1
Bárbara tinha uma vida que poderia ser vista por muitas pessoas como sendo pouco convencional, uma mulher solteira que trabalhava no Palácio de São Bento como assessora do primeiro-ministro. No entanto, porque haveria alguém achar isto pouco convencional? Na verdade, só teria essa opinião quem conhecesse a real relação que Bárbara mantinha com Pinto Henriques. Com quase trinta anos, ela tinha um cargo invejável, um ordenado muito acima da média, despesas pagas que incluíam a casa, um automóvel que lhe fora oferecido por ele com dinheiros públicos e inúmeras regalias. Para além disto, costumava dar‑lhe alguns presentes ou oferecer-lhe algo que ela quisesse, apesar de Bárbara ter noção que deveria ter cuidado para não esticar a corda. Em troca, tinha de exercer as funções de assessora do primeiro-ministro com um mínimo de competência e ter o corpo sempre apetecível e pronto para ele. Não era uma amante cara, uma vez que Pinto Henriques usava o dinheiro do Estado para os seus interesses. O PNL era um partido com fortes ligações à corrupção. Razão tinha Raimundo Antunes quando um dia disse que se perdessem as Legislativas, bem podiam pensar todos em fugir de Portugal. E talvez nem no estrangeiro estivessem a salvo da justiça internacional.
Após mais um dia de trabalho, Bárbara chegou a casa com o cansaço acumulado de quem pouco fizera ao longo do expediente. Sentia-se desejosa de tomar um banho, pois aquela tarde fora uma daquelas em que o chefe estava bastante tenso e ela teve que o descontrair. A juntar a isso, o mês de Abril revelava-se quente e tudo o que mais queria era um belo banho de imersão, antes de preparar qualquer coisa para jantar.
A escuridão do seu apartamento extinguiu-se quando ela entrou e ligou as luzes do vestíbulo. Tinha um espelho logo à entrada e olhou-se, avaliando-se. O rosto estava cansado, envelhecido. Receava o avançar da idade como se fosse muito mais velha que os seus vinte e nove anos. Ainda para mais porque temia que um dia o chefe a pudesse trocar por outra ainda mais nova. Isso seria uma infelicidade, pois Bárbara gostava de ser amante do homem mais poderoso de Portugal. Desenganem-se os que pensam que essa figura seria Flávio de Melo. No Portugal do PNL o homem que mandava em tudo era Pinto Henriques. Por isso, ela sentia-se no lado vencedor, inserida no grupo que ditava as leis, que mandava, a quem todos tinham de obedecer.
Tirou o casaco e descalçou os sapatos de salto alto, perdendo uns cinco centímetros de altivez. Sim, ela comportava-se como se olhasse o mundo de cima para baixo, sendo subserviente às figuras importantes do governo e submissa ao seu patrão. Não se importava, ser amante... Nem se poderia considerar uma amante, era apenas um objecto sexual que Pinto Henriques usava quando lhe apetecia. Ele não demonstrava qualquer afecto por ela, mas nunca fora incorrecto ou a tratara mal. Talvez fosse bom, se pudesse retirar algum prazer das vezes que o tinha em si, mas... Havia coisas piores na vida.
Avançou pelo corredor, quando um arrepio lhe atravessou a espinha. Não sabia o porquê, mas o seu instinto deixou-a alerta. Por que razão sentia que algo não estava bem? Olhou em redor, procurando algo que os seus olhos não viam, mas que o seu espírito captara. Houve uma corrente de ar ou seria uma deslocação de algo invisível? Pensou em pegar no telemóvel e chamar a polícia. Se o fizesse, estariam ali em cinco minutos, não fosse ela assessora de quem era. Porém, sentir-se-ia estúpida em chamá-los para nada. E ao que parecia, não existia nada no seu apartamento além de um receio infundado.
Apesar de tudo, deu dois passos para entrar na sala, movendo-se com cuidado, alerta com a possibilidade de estar ali alguém. Gostava de ter uma arma, uma pistola, algo prático e fácil de usar contra criminosos, apesar de nunca ter pegado numa arma. Nesse instante, perante a sala deserta e sem nenhum perigo, Bárbara teve a inspiração de procurar na cozinha algo com que se defender. Estás a ser estúpida, repetia a si mesma a cada segundo que passava e em que nada revelava ameaçar qualquer perigo. No entanto, a vida ensinara-a a confiar no instinto. Passou para o lado oposto do corredor e entrou com o mesmo cuidado na cozinha. A intensa luz que brotou da lâmpada no tecto confirmou-lhe que também ali nada a colocava em perigo. Viu a bancada em pedra mármore e o suporte das facas. Ia a dar os passos para ir buscar uma das lâminas, quando num movimento súbito sentiu alguém atrás de si.
Não teve tempo de gritar, nem sequer de reagir. Vindo de trás, uma mão tapou-lhe a boca, enquanto outro braço lhe envolveu a cintura, imobilizando-a e fazendo-a perceber que não tinha força para se libertar da captura. Mesmo assim, debateu-se para se libertar, um esforço enorme e infrutífero. Em menos de cinco segundos, o seu pensamento viu-se mergulhado em múltiplas interrogações acerca do que lhe iria acontecer nos minutos seguintes. Teria surpreendido um ladrão em sua casa? Estaria ele ali à sua espera? Quereria roubar-lhe o dinheiro, as joias? Bárbara tinha muitas coisas de valor em casa. Sentiu o corpo comprimido contra o dele, não tinha dúvidas de que era um homem que a agarrava. Temeu as intenções que ele pudesse ter. Agora, não se importava de parecer uma parva por ter chamado a polícia quando tivera oportunidade de o fazer. O intruso apertou-a mais, parecia estar a desfrutar da situação. Que ser doentio seria aquele? O pensamento seguinte arrepiou-a, sabia como era uma mulher apetecível, estaria ele ali para a violar? Iria matá-la? Como tinha as mãos soltas, tentou puxar-lhe o braço da mão que lhe tapava a boca. Não tinha força e acabou por desistir.
— Não tenhas medo. Não te vou fazer mal. — ouviu a voz dele quase a segredar-lhe ao ouvido. Notou que tinha um sotaque acentuado que inicialmente não conseguiu reconhecer, até ele dizer ao que vinha. — Trabalho para a embaixada dos Estados Unidos.
Que raio estava a fazer um funcionário da embaixada dos Estados Unidos em sua casa, comportando-se como um criminoso? Não acreditou no que ele disse.
— Vou soltar-te. Mas, se gritares, não terei problemas em te calar, seja lá como tiver de ser. Estamos entendidos?
Ele afrouxou o abraço para que ela pudesse reagir. Bárbara assentiu, equacionando como fugir-lhe.
Contudo, ele não era ingénuo e encaminhou-a para a sala sem a largar ou destapar-lhe a boca. Conduziu-a para o sofá.
— Vou tirar a mão da tua boca. Espero não me arrepender. — avisou, mantendo o outro braço à volta da cintura dela. — Irei retirar do bolso a prova de que sou quem digo ser.
Bárbara tornou a anuir. Cumpriu o compromisso de não gritar quando já o poderia fazer e viu surgir diante dos seus olhos um crachá e a identificação de um agente dos serviços secretos que trabalhava na embaixada norte-americana.
— Ok. Acredito em ti. Podes largar-me?
Ele soltou-lhe a cintura e Bárbara virou-se para ele, encarando um homem de cabelo ruivo da altura dela, olhos frios como gelo e uma barba rala da cor do cabelo. Vestia uma camisola e calças pretas. Aparentava um porte forte e esguio. Sentiu-se excitada ao vê-lo e talvez não se importasse que o agente a agarrasse mais um pouco.
— Senta-te! — ordenou como se fosse ele o dono da casa.
Bárbara sentou-se numa ponta do sofá, ele copiou-lhe o movimento na ponta oposta.
— Desculpa ter entrado assim em tua casa, mas é importante que ninguém saiba que este nosso encontro existiu.
Ela olhou-o numa mistura de curiosidade e surpresa.
— Que queres de mim?
Ele sorriu, trocista.
— Eu não quero nada, Bárbara. As pessoas para quem trabalho é que têm uma proposta para ti.
— E para quem trabalhas,...? — O final da pergunta teve a entoação de quem queria saber o nome.
— Ken. Podes tratar-me por Ken. Já te disse, trabalho para a embaixada americana.
— És americano?
— Que interessa isso?
— Curiosidade.
Ken fechou o sorriso e atirou-lhe uma expressão fria.
— Não queiras ser demasiado curiosa.
Bárbara levantou as mãos num sinal de rendição, não iria fazer mais perguntas. Limitou-se a observá-lo, perdendo o receio de que ele lhe fizesse mal ao mesmo tempo que uma excitação crescente lhe queimava o peito.
— Queremos alguém que esteja suficientemente perto do primeiro-ministro para que nos passe informações...
— Deves estar doido! — interrompeu ela. — Espiar contra o governo? Só se quisesse perder o emprego... Aliás, o emprego seria o menos. O mais certo, se fosse descoberta, era ser presa.
Ken ignorou as palavras dela, limitando-se a levar a mão ao bolso das calças e a retirar um envelope de papel pardo bastante gordo. Atirou‑o para o colo dela, dizendo:
— Tens aí dez mil euros. E é só o começo. Os meus chefes estão dispostos a recompensar-te muito bem por cada informação que tragas.
— É um risco muito grande.
— É um risco maior se não aceitares. — alertou com naturalidade.
Bárbara sorriu como se aquilo não passassem de palavras vãs.
— Não vejo como.
— Já te dei a conhecer que a embaixada pretende espiar o vosso chefe de governo. Se não aceitares colaborar, terei de te matar.
Não houve qualquer sinal de emoção na forma como falava. Ken era um agente prático, frio e calculista. Estaria a falar a sério? Bárbara não estava na disposição de saber até onde ele estaria disposto a ir. Sentiu o peso dos dez mil euros no colo, aquele dinheiro iria saber-lhe bem, quase tão bem como lhe saberia despir o homem que estava na sua frente. Fez de conta que ponderava uma decisão, ao mesmo tempo que cruzou as pernas de forma sensual, procurando obter o interesse dele. Notou-lhe o olhar concentrado no movimento dela.
— Se eu aceitar, a quem deverei reportar o que descobrir?
— A mim.
Bárbara lançou-lhe um sorriso agradado e mordeu o lábio inferior.
— Isso significa que te irei ver mais vezes.
— Lamento que sim. — confirmou com uma expressão que correspondia ao que ela queria.
Bárbara desviou o olhar para o envelope. Abriu-o como se só naquele momento se lembrasse de confirmar se era dinheiro que continha. Viu as notas de euros arrumadas.
— Como te posso contactar... Ken?
Do outro bolso, o agente retirou um telemóvel.
— Podes usá-lo à vontade, está codificado para que não sejas escutada pelo SIALE.
— Como posso ter a certeza disso?
— Fomos nós que equipámos o SIALE, sabemos como deixá-los surdos.
Ela recebeu o aparelho pequeno, lançando-lhe um sorriso e um olhar de quem questiona que mais teria de fazer para que ele percebesse o que queria.
— Deves é ter o cuidado que ninguém o descubra. — prosseguiu, quebrando-lhe as fantasias que lhe polvilhavam o cérebro. — Não estás livre que o SIALE te reviste a casa. Guarda-o num sítio seguro e não andes com ele. Isso também poderia denunciar-te.
— Mas, podemos encontrar-nos ou terei de transmitir as informações só pelo telemóvel?
A pergunta deixou Ken algo confuso. Por instantes, não percebeu onde ela queria chegar, até ficar mais lúcido e retorquir:
— Queres transmitir a informação pessoalmente?
— Se for contigo, sim.
Ken sorriu.
— Isso pode ser perigoso para nós. Alguém pode suspeitar de alguma coisa.
— Estou certa de que consegues entrar no meu apartamento de forma tão invisível quanto fizeste hoje.
Ele tornou a sorrir, desta feita com um ar orgulhoso de quem sabia ser excelente naquilo que fazia.
Bárbara trocou a posição das pernas. Pegou no envelope e no telemóvel e colocou-os sobre o braço largo do sofá. A seguir, encarou-lhe o olhar e tornou a mordiscar o lábio inferior. Será que tinha de lhe dizer com todas as letras o que queria? Felizmente, não.
Sem que houvesse mais qualquer palavra, Ken avançou para ela num salto que encurtou toda a distância que os separava, segurou-a pelo pescoço e beijou-a com força, enquanto a outra mão lhe apertava o peito de forma rude. Em resposta, ela abriu os lábios para lhe saborear a língua e afastou as pernas convidando-o meter a mão dentro da sua saia.
20.2
O governo de Portugal costumava reunir-se no edifício da Presidência do Concelho de ministros, em Campo de Ourique. Porém, na realidade, os verdadeiros concelhos de ministros realizavam-se no gabinete do primeiro-ministro no Palacete de São Bento com a presença somente de Pinto Henriques e Raimundo Antunes, os que verdadeiramente mandavam nos destinos do país.
É certo que, apesar de todo o poder crescente dos nacionalistas lusitanos em Portugal, estes ainda dependiam financeiramente dos seus patrocinadores, onde se destacava a "Toda-Poderosa" Ricardina Trindade, a qual aumentara o financiamento ao Estado em muitos milhões em troca do banco público que, fazendo fé nas prioridades do PNL, lhe iria cair em mãos muito em breve, o que tornaria o Banco Trindade no maior banco português e um dos maiores da comunidade europeia.
Laurentino Pinto fora, desde sempre, contra este acordo que o obrigaram a assinar com Ricardina Trindade, cumprindo a ordem de Pinto Henriques. Porém, como lacaio que era, limitou-se a protestar timidamente com o mesmo impacto que uma formiga tem num elefante e assinou tudo o que lhe fora ordenado. Se houve tempos em que os ministros das finanças tinham um poder que parecia superar o do chefe do governo, com o PNL isso era mito. Laurentino desesperava em ginásticas financeiras para satisfazer as necessidades dos planos de Pinto Henriques relativos ao que se avizinhava, ao golpe que deceparia o país do mais alto magistrado, dando ao PNL o poder absoluto. À conta disso, não havia dinheiro para as coisas importantes como a Saúde, Educação, incentivos à Economia, etc... A insatisfação do povo era grande, mas não se via ninguém protestar abertamente sob pena de ter o SIALE em cima. O ministro das finanças, juntamente com Pinto Henriques, era o visado em comentários "à boca calada", entre círculos de amigos que partilhavam opiniões silenciosas e com o cuidado da certeza de que cada parede poderia ser um microfone. Somente os deputados do MPP continuavam a fazer fogo cerrado de críticas no parlamento e davam voz àqueles que não se sentiam seguros para dizer o que pensavam. Porém, a menos que algo fosse feito, também em breve o MPP corria o risco de ser calado pelo SIALE.
No seu gabinete, Pinto Henriques via tudo o que fora planificado com Raimundo Antunes e o marechal Costa Almeida a correr como previsto. Daí que as suas preocupações se virassem para assuntos mais pessoais. Sentado na sua cadeira, observava a janela do seu gabinete com um incómodo irritante a perturbá-lo. Desde que Helena Blackhorne lhe dissera qual o orfanato onde abandonara a filha de ambos que aquele nome lhe martelava o pensamento com a certeza nebulosa de que já o ouvira antes. Mas, não se recordava onde e em que contexto. Fosse como fosse, estava decidido a encontrar a sua filha ou pelo menos o destino que tivera, se por infelicidade a vida lhe tivesse sido curta.
Aquele assunto era tão pessoal que nem o seu homem de maior confiança teria o direito de saber a verdade. Contudo, ele precisava de Raimundo Antunes para que este usasse as suas fontes e recursos para lhe descobrir a filha. Por isso, naquela manhã, Pinto Henriques pediu ao líder do SIALE que o visitasse para fazer o ponto da situação.
— A que se deve esse interesse nessa criança, Henriques? — questionou o MAI, quando o primeiro-ministro voltou a abordar o assunto da criança que a esposa do embaixador abandonara, antes de partir para os Estados Unidos, algo que ele ficara de investigar.
A pergunta de Raimundo merecia um "não tens nada a ver com isso, limita-te a fazer o que te mando". Só que Pinto Henriques precisava dos esforços dele e qualquer atitude estranha poderia criar suspeitas no outro e levá-lo a procurar mais que aquilo que devia e ficar a saber algo que poderia ser usado contra si. E se há coisa que a vida ensinara a Pinto Henriques era a não confiar em ninguém, nem naqueles que lhe mereciam maior confiança.
— Não sei aquilo com que poderemos contar com este embaixador.
— Compreendo, Henriques. Mas, as informações que tenho é que ele é um tipo alinhado com os nossos interesses, é um aliado.
— Seja como for, temos de estar preparados para tudo.
— E em que é que essa criança... Criança que agora já deverá ser uma mulher, se estiver viva. Em que é que essa criança nos poderá ser útil?
— Tal como referiste no jantar na embaixada, não parece que o embaixador tenha conhecimento disso. — lembrou o primeiro-ministro, apesar de ter a certeza do seu desconhecimento após a conversa que tivera ali com Helena. — Por isso, poderá ser um trunfo se tivermos de "motivar" a senhora Blackhorne a convencer o marido de algo que nos interesse.
Raimundo Antunes concordou com aquele ponto de vista.
— Tal como me tinhas pedido, Henriques, coloquei o SIALE a tentar saber mais informações sobre isso. Só que nesta fase, todas as vigilâncias e controlos têm consumido os nossos recursos. Ainda não tive oportunidade de destacar um agente para aprofundar isso.
Pinto Henriques controlou a raiva que sentia por o outro ter dado tão pouca importância à questão. Forçou um sorriso e retorquiu:
— Percebo, Raimundo. Tens feito um excelente trabalho. Mas, eu ficaria muito satisfeito se me trouxesses mais informações acerca dessa crian... dessa mulher.
— Tudo bem, Henriques. Vou dar directrizes para que investiguem isso. — concordou, puxando de uma pasta com mais um relatório do SIALE para o seu líder. Apontou-lho. — Informações acerca dos desenvolvimentos relativos ao MAL. O nosso Movimento Armado de Lisboa tem recebido inúmeras mensagens de apoio e pedidos para colaboração em acções contra nós.
O primeiro-ministro abriu a pasta contendo diversas páginas com informações. Fechou-a logo de seguida, atirando-a para cima da sua mesa.
— Faz-me um resumo, Raimundo.
— Não podemos deter todas, mas mantemos as mais insistentes sob vigilância. As que se revelam eventualmente mais perigosas recebem uma visita de agentes do SIALE. Passam uma noite na prisão, conversamos com eles. — Raimundo sorriu com o eufemismo que usara para descrever que os pobres coitados eram torturados e espancados. — Se não sentirmos que são uma ameaça, libertamo-los com um voucher para o hospital — O MAI estava humoristicamente inspirado, a vida deveria estar a correr-lhe bem. — Outras permanecem nas celas. — Adoptou uma postura mais séria. — Muitas dessas mensagens de apoio eram de escumalha estrangeira, pretos, brasileiros... muita dessa gente de merda. Esses foram capturados e estão detidos a aguardar a expulsão do país.
— Como é que os vão transportar para os países de origem?
— Para te ser sincero, o país de origem de muitos é o nosso. Infelizmente, Portugal deixou-se emporcalhar ao longo das últimas décadas. Permitimos-lhes que peçam exílio onde quiserem. Há por aí muito país governado por esquerdalha com os braços abertos para os receber.
— Não sei se isso será muito bom, em relação ao que a comunidade internacional pode começar a dizer de nós. Temos de ser comedidos até completarmos o nosso plano.
— Que sugeres, Henriques?
— Dá sumiço a uns quantos, Raimundo. Vê aqueles que tenham menos laços, que não despertem muita curiosidade se, pura e simplesmente, desaparecerem.
Raimundo sorriu, um sorriso meio tresloucado, usual nele sempre que se via perante a liberdade de dar azo à sua criatividade demoníaca.
— Tenho carta branca?
Pinto Henriques assentiu em silêncio.
Nada mais prendia o líder do SIALE ali. Despediu-se do seu chefe do governo reafirmando o compromisso de lhe trazer novidades acerca da filha da esposa do embaixador, o mais rapidamente possível.
No entanto, Raimundo Antunes continuava a sentir que alguma coisa não batia certo naquele interesse tão grande de Pinto Henriques naquela criança. E se sentia que procuravam esconder-lhe algo, isso era o impulsionador imediato para que se dedicasse a descobrir tudo. Raimundo não abdicava do princípio de que todo o conhecimento era uma arma que poderia servir para atacar ou defender.
O automóvel oficial do Ministério da Administração Interna aguardava o seu regresso, estacionado no pátio defronte do palacete. O motorista e o segurança, dois agentes do SIALE, conversavam tranquilos enquanto esperavam. Ao verem o seu chefe descer a escadaria exterior, retomaram as suas posições, o motorista ao volante e o segurança a abrir a porta de trás.
O dia nublado ameaçava chover. Sentado no banco traseiro, deu ordens para que o motorista conduzisse para o seu ministério, situado numa das alas da Praça do Comércio.
Novamente com a mente ocupada na questão da filha da esposa do embaixador, Raimundo ponderou a melhor estratégia para tratar daquele assunto. Poderia ser apenas uma investigação como tantas outras ou ser algo que viesse a revelar-se de uma importância acima do esperado. Sentia confiança em qualquer agente do SIALE, qualquer um poderia estar à altura de receber aquela missão. Porém, Raimundo queria alguém experiente, alguém que sabia como se mover, obter o que ele queria com discrição, a pessoa que nunca lhe falhara e trazia sempre óptimos resultados, até mesmo quando o enviara como emissário aos aliados do PNL espalhados pelos países mais importantes do mundo. Pegou no telemóvel e escolheu o nome do agente na sua lista de contactos.
— Doutor Antunes! — cumprimentou a voz que atendeu.
— Olá, Rafael! Já regressaste ao Porto ou ainda andas a tratar dos teus assuntos pessoais?
— Ainda estou por Miranda do Douro, doutor Antunes. E conto permanecer por cá algum tempo. Para além de estar a resolver a questão familiar, tenho tido o cuidado de observar as pessoas. Nunca se sabe onde poderão estar inimigos.
— Alguma coisa a reportar? A tua nova irmã...
— Não, não, doutor Antunes. — apressou-se Rafael a negar. — A Clara não tem o mínimo interesse em política, vive preocupada em não estragar os negócios que o pai lhe deixou.
— És um tipo competente, Rafael. Enquanto te tiver a ajudar, não terá que se preocupar. — Raimundo não era pessoa de elogios, mas com aquele agente, as coisas eram diferentes. — Então, quem te causa suspeita? Dá para perceber pelo teu tom que tens suspeitas.
— Algumas pessoas importantes da região comportam-se como se fossem os donos do mundo. Ainda não obtive informações suficientes para perceber que posição têm em relação à política, mas estou a trabalhar nisso.
— Não vejo motivos para preocupações, Rafael. A região é governada pelo nosso partido, temos a presidência do governo regional dessa zona. — O tom de voz do líder do SIALE era revelador do seu desinteresse. — Lamento interromper-te a reunião familiar, Rafael, mas preciso que venhas a Lisboa, tenho uma missão para ti.
Houve um silêncio momentâneo no telefonema. Mesmo sendo o líder supremo do SIALE e olhar para todos os agentes com igual distanciamento, Raimundo tinha uma predilecção especial por Rafael. Talvez por isso tivesse desvalorizado a hesitação da resposta e compreendido.
— Claro, doutor Antunes. — acabou Rafael por concordar. — Estarei aí amanhã à tarde.
— Sei que estás a aproveitar o facto de teres descoberto uma irmã. E que estás a ajudá-la. Só que, neste momento, terás de suspender esse lado da tua vida e dedicar-te à nossa causa.
— Claro, doutor Antunes.
Viajar de Miranda do Douro a Lisboa não era uma viagem fácil, nem a situação exigia que fosse feita com urgência. Por isso, Rafael decidiu deixar a Herdade dos Jordões e ir para o Porto, passar a noite no seu hotel. Clara lamentou a sua partida, até porque ele a avisou que poderia ter de estar ausente alguns dias, uma vez que tinha diversas situações para resolver relativas às suas empresas e não conseguia dar‑lhe uma estimativa de regresso. Contudo, repetiu-lhe diversas vezes que estaria sempre contactável e que ela lhe deveria ligar sempre que quisesse.
Quando chegou ao hotel, a noite ia a meio. Mesmo com boas estradas resultantes das obras públicas anteriores à governação nacionalista lusitana, a viagem era demorada. Para além disso, verificava-se alguma falta de manutenção em muitas vias, uma vez que as Obras Públicas obtinham tanto do Orçamento de Estado quanto Saúde, Educação...
Permitiu-se a descansar na manhã seguinte e só deixou o quarto de hotel para almoçar. Ao início da tarde, fez-se à estrada pela principal autoestrada do país que ligava o Porto a Lisboa. Desta feita, deixou o Porsche na Invicta e veio ao volante de um Mercedes.
Rafael Guerra raramente entrava no edifício do SIALE, era um daqueles agentes que andavam livres e activos. O SIALE não precisava de ter relatórios constantes dele para saber que Rafael cumpriria as suas funções e o juramento que fizera à entidade e ao nacionalismo lusitano. Estacionou no parque reservado do edifício. Passara o portão fortemente guardado por dois agentes com armas automáticas, empunhando a sua identificação. Tinha credenciais especiais que só pelas linhas douradas que envolviam a sua foto informavam a quem visse da sua importância. Um dos agentes fez uma espécie de vénia, reconhecendo o seu estatuto e indicou ao colega que levantasse a cancela.
No momento em que entrou no edifício, mais uma vez vendo a segurança abrir alas ao verem as credenciais, Rafael encontrou uma agente de compleição física algo masculina, cabelo branco, olhos pequenos e semblante frio. Rafael sorriu-lhe.
— Olá, Tarântula!
Vylka fez uma expressão torcida, o que nela representava algo parecido com um sorriso. Aproximou-se dele e abraçou-o.
— Olá, Rafael!
— Como tens passado?
Ela encolheu os ombros.
— Atarefada. O normal.
— A Viúva Negra também cá está?
— Não. Está numa missão a norte.
— Pena. Também gostava de a ver.
Rafael e Vylka tinham feito a recruta no SIALE juntos. A Viúva Negra viera a juntar-se a eles mais tarde. Ao longo desse tempo, os três criaram uma relação de amizade que nunca esmoreceu quando cada um foi atirado para missões díspares. Poderiam passar meses sem se ver, mas a ligação que mantinham era muito forte. Elas eram as agentes mais mortíferas do SIALE, as melhores para Raimundo Antunes. Rafael não era um assassino, a sua competência ia para outro campo e era igualmente o melhor.
— Que vieste cá fazer? — A pergunta de Vylka obteve um sorriso irónico de Rafael. — Tens razão, não tenho nada com isso, nem os agentes devem discutir as missões que têm.
— O chefe está à minha espera.
— Não te prendo mais. Gostei de te ver, Rafael.
— Eu também. Se vires a Viúva, diz-lhe que lhe mando um beijo.
Vylka anuiu.
Raimundo Antunes aguardava a chegada de Rafael sentado na cadeira do poder, no seu gabinete, no último piso do edifício. O espaço tinha claridade, mas a tonalidade escura das paredes dava um ambiente de obscuridade à divisão. O líder do SIALE levantou-se com a aproximação do mais novo, apertando-lhe a mão que este lhe estendera.
— Olá, Rafael!
— Boa tarde, doutor Antunes.
— Senta-te! — indicou, apontando para a cadeira vaga no lado oposto da sua mesa de trabalho, e voltou a sentar-se.
Raimundo não era homem de perder tempo, nem contornar as questões, gostava de ir direito ao assunto.
— Tenho uma missão para ti. É uma missão que vai exigir o máximo de sigilo. Qualquer passo em falso poderá causar problemas diplomáticos. — Rafael ouvia com atenção. — Recordas-te da investigação que fizeste acerca do novo embaixador americano e a mulher dele? — Rafael confirmou com um aceno de cabeça. — Lembras‑te da questão do bebé que a gaja terá abandonado, antes de ir para os states?
— Sim. Ela tinha engravidado de um tipo com quem namorou no Porto.
— Exacto. — atalhou Raimundo. — O nosso primeiro-ministro incumbiu-me de saber mais informações acerca dessa criança. O senhor engenheiro considera que isso poderá ser uma informação valiosa para uma eventualidade futura.
— Eventualidade futura?
— Não interessa, Rafael. Não é importante para o que preciso de ti. Quero que investigues o paradeiro dessa criança.
— Não vai ser fácil. — alertou Rafael. — Na altura, não aprofundámos mais a questão, mas acho que não havia muita informação sobre isso.
Raimundo colocou os cotovelos sobre a mesa e debruçou-se na direcção de Rafael, dando um ar de cumplicidade à conversa.
— A razão por que quero que sejas tu a tratar deste assunto, é porque acho que algo não bate certo neste... interesse do nosso primeiro‑ministro.
— Como assim?
— O que te vou dizer é ultrassecreto. Só tu e eu teremos conhecimento deste dossier. Mais ninguém no SIALE terá participação nisto. Estarás por tua conta. — Fez uma pausa para que o agente assimilasse as condições. — Oficialmente estarás no rasto da bebé que foi abandonada e em saber qual o seu destino, se está viva ou morta. Se concluíres que está viva, quero que a descubras. A parte não oficial da tua missão, é o que te vou dizer agora. — Nova pausa. Raimundo observou Rafael com uma expressão dura, acentuando a importância que a sua tarefa teria. — Quero que investigues mais o passado da senhora Blackhorne. A vida dela em Portugal, o máximo que conseguires saber. E quero que descubras quem foi o homem com que ela se relacionou no Porto, na juventude. É esta parte que, como já percebeste, é muito delicada e poderá trazer-nos problemas diplomáticos. Por isso, conto com a tua discrição e profissionalismo.
Rafael assimilou o que ouviu. Conhecia o seu chefe há tempo suficiente para também reconhecer o que lhe ia em mente, para além do que lhe verbalizara.
— Desculpe a pergunta, doutor Antunes. Tenho a sensação de que o senhor está desconfiado de alguém.
Raimundo sorriu, agradado com o seu agente.
— Sim, o teu instinto está correcto. Estou desconfiado de alguém, mas não te vou dizer quem. Quero que investigues tudo isto ao pormenor. — Levantou-se da cadeira e entendeu-lhe a mão num gesto que o dispensava da reunião. — Quero que me vás mantendo actualizado.
— Assim farei, doutor Antunes.
20.3
A investigação da vida de Helena na sua juventude rapidamente desembocou num beco sem saída. Rafael pegara nos dados da primeira investigação, a qual fora bastante básica em relação à esposa do embaixador, e prosseguira com maior atenção nesse ponto, esmiuçando o que fosse possível. Porém, pouco mais conseguiu saber que aquilo que já sabia, Helena fora estudar para o Porto, estivera lá uma temporada, namorara um rapaz mais velho e regressara a Lisboa grávida. Os seus pais já não eram vivos e a família mais próxima nunca estivera bem a par do que acontecera com a criança. Para além disso, Helena não era uma jovem com muitas amizades, aliás, todas se perderam no tempo com a sua permanência nos Estados Unidos. Nos raros casos em que conseguiu alguém que lhe desse informações relevantes, uns diziam que a criança nascera antes de ela partir, outras referiam que ela fora grávida para o outro lado do oceano. Curiosamente, todas davam como certo que a criança fora com a mãe. Só que, analisando o que outro colega conseguira descobrir, nos Estados Unidos não existia qualquer registo de a criança ter chegado ao país com a mãe. Analisando os dados obtidos pelo colega que fizera a investigação anterior, viu que chegara à conclusão de que a criança fora abandonada num orfanato. Como conseguira ele saber isso?
Se a jovem Helena não tinha amigos ou amigas de confiança suficiente para partilhar aquele assunto, o mesmo não acontecia com a sua mãe. Naquela época, a mãe de Helena partilhava uma amizade desde os tempos de infância com outra senhora, uma espécie de irmã que nunca tivera. E esse mesmo colega descobrira através dessa senhora que a avó lhe confidenciara que a filha tivera a criança às escondidas e fora intransigente em querer entregá-la num orfanato. Como não havia muito mais informação, Rafael decidiu procurar e falar pessoalmente com a senhora.
A morada indicada era na Avenida de Roma, em Lisboa. Nos dados recolhidos estava um número de telefone fixo, mas Rafael não quis marcar uma hora para a visitar, preferindo aparecer de surpresa, não dando tempo para que pudessem inventar alguma história para esconder a verdade. Claro que não encontrava justificação para que ela tivesse interesse em mentir-lhe, mas mais valia jogar pelo seguro. O relatório também referia que a senhora vivia com a neta. Subitamente, deu por si a teorizar que essa neta poderia ser a criança desaparecida, deixada àquela amiga de confiança... Não, não podia ser, a miúda tinha dezassete anos e a filha da embaixatriz deveria ter uns trinta e três.
Rafael conduziu o seu Mercedes pelo trânsito caótico da capital. Aquela avenida era um caos para o estacionamento e ele nem se deu ao trabalho de procurar o respectivo prédio enquanto conduzia, preferindo seguir as indicações dos parques de estacionamento e deixar o veículo num subterrâneo junto ao Fórum Lisboa.
O dia estava bonito, solarengo e agradável para andar na rua, mesmo em avenidas movimentadas como aquela. Rafael memorizara a morada e, logo que entrou na avenida vindo da rua adjacente de acesso ao parque, olhou para a numeração das portas e virou na direcção correcta. Caminhou uns cinquenta metros, atravessou a avenida, percorreu mais uns trinta e ficou defronte da porta pretendida. Pressionou o botão esquerdo na fila de topo onde todas as campainhas se perfilavam. A senhora vivia no último piso.
— Quem é? — questionou uma voz idosa, pelo intercomunicador, ao fim de alguns segundos.
— É a casa da senhora Genoveva?
— Sim?!
— Bom dia, minha senhora. O meu nome é Rafael Guerra. — apresentou-se, evitando referir a sua ligação ao SIALE, uma vez que isso assustava as pessoas e não havia necessidade de o fazer naquele momento. — Seria possível dar-me alguns momentos da sua atenção? Precisava conversar consigo.
— Oh. Infelizmente, agora não tenho tempo.
— Peço desculpa por insistir, mas é sobre um assunto que falou há tempos com um colega meu.
— Um colega? — questionou a voz, entrecortada pelas falhas de ligação do intercomunicador.
— Sim. Sobre uma amiga sua que tinha uma filha...
— Ah... sim. Recordo-me. Mas, já disse ao seu colega tudo o que sei. — informou com pouca vontade em receber aquele estranho. — Não tenho mais nada a dizer.
— Compreendo, mas gostaria de rever consigo alguns pormenores. — Rafael falava denotando que não desistiria. — Prometo que não lhe tiro muito tempo.
— Talvez agora não seja muito oportuno.
As recusas da senhora poderiam ter várias justificações, mas a mais plausível poderia ser o receio de receber um estranho em sua casa. Por isso, Rafael jogou a cartada que não lhe deixaria alternativa.
— Se me puder abrir a porta, eu subo e poderei mostrar-lhe as minhas credenciais do SIALE para que veja que não tem nada a recear.
A última coisa que alguém queria era criar problemas a um agente do SIALE. Por isso, Rafael ouviu o clique a destrancar a porta do prédio.
Quando saiu do elevador, viu uma senhora idosa a esperá-lo atrás da porta aberta do apartamento esquerdo. Num gesto instintivo, olhou para a porta oposta, como se esperasse ser recebido também por algum vizinho preocupado e amigo da senhora. Porém, essa porta estava fechada como se ninguém ali vivesse.
— Rafael Guerra! — repetiu, mostrando a identificação a Genoveva.
A senhora anuiu e convidou-o a entrar.
Rafael constatou que o apartamento era grande, a seu ver, demasiado grande para uma avó e uma neta. Para além disso, aquela zona era caríssima, o que não significava que Genoveva fosse rica, poderia ser apenas um caso exemplar das rendas antigas que não acompanharam o crescimento da inflação. Toda a decoração era representativa disso, da presença de alguém que já ali vivia há muitos anos. Viu-se conduzido para uma sala de mobiliário escuro, sendo convidado a sentar-se no sofá, ficando virado de frente para a idosa que ocupou o lugar na poltrona.
— Como lhe disse, senhor Guerra, já contei tudo o que sei ao seu colega.
Rafael fez um aceno com a cabeça.
— Eu sei, mas gostaria de rever consigo aquilo que conversou com ele.
Genoveva abriu os braços, em sinal de "como queira".
Rafael olhou em redor.
— Tem aqui uma bela casa. Vive sozinha?
— Não. Vivo com a minha neta. — respondeu, interrogando-se sobre o que teria aquilo a ver com o assunto que o trouxera ali.
Contudo, Rafael queria tentar perceber como ela se comportaria a mentir ou a dizer a verdade e, para isso, questionava-a sobre coisas que já sabia.
— Que idade tem ela?
— Dezassete anos.
— E os pais?
O rosto de Genoveva ensombrou-se.
— Faleceram.
Rafael percebeu que o assunto era melindroso e não viu necessidade de o aprofundar.
— A senhora era muito amiga da... — Rafael consultou os apontamentos, simulando não ter muito conhecimento dos dados. — ...da senhora Alba, correcto?
— Sim. Conhecíamo-nos desde pequenas, éramos muito amigas. Partiu cedo demais.
A mãe de Helena falecera a meio da primeira década do século.
— Conheceu a filha Helena?
— Sim, claro.
— Como é que a descreveria?
Genoveva socorreu-se das suas lembranças. Explicou a Rafael que Helena era uma jovem muito carismática, consciente daquilo que queria para si e com objectivos bem definidos para o futuro.
— Ambiciosa?
— Sim.
— Ela foi estudar para o Porto, correcto?
— Sim. A mãe queria que a filha tivesse estudado em Lisboa. A Alba adorava a filha e não queria que a Helena fosse para longe. Naquela altura, viajar entre Porto e Lisboa não era como hoje. Mas, acho que, o que a Helena queria mesmo, era afastar-se da família.
— Porque acha isso?
— Era uma família muito conservadora. A Helena era uma miúda rebelde. A Alba tinha consciência de que a filha se sentia reprimida na sua ambição. Viver em Lisboa implicava regras que ela não tinha de respeitar no Porto. — Genoveva suspirou. — Bem se viu no que isso resultou.
— Refere-se à gravidez?
— Que mais poderia ser?
— Pode falar mais sobre isso?
— Não há muito a dizer que já não saiba.
A frase foi proferida como uma tentativa de terminar a conversa, Genoveva desejava que o homem se fartasse e fosse embora. Realisticamente, não tinha nada de novo a dizer-lhe. E ter um agente do SIALE em casa era assustador.
— Todas a informações que temos referem que a Helena teve a criança, mas umas dizem que ela a levou para os Estados Unidos onde viria a falecer, outras falam numa morte súbita, ainda em Portugal.
— Nenhuma delas é verdade! — afirmou Genoveva, repetindo o que dissera antes.
— Sim, eu sei. Mas, a senhora Genoveva é a única pessoa que relata como destino da criança um orfanato.
— A família tentou esconder o assunto ao máximo. Naquela época, uma rapariga aparecer grávida não era o escândalo que teria sido no meu tempo. Mas, para a família da Alba, isso ainda era um sacrilégio. A Helena não queria a criança. Como lhe disse, era uma rapariga ambiciosa com planos para o futuro que uma bebé só iria prejudicar. Quis abortar, mas os pais impediram-na. Eram católicos convictos, o aborto era para eles um pecado mortal. Se me pergunta a minha opinião, acho que teria sido preferível ao que acabou por ser feito.
— O orfanato?
— Abandoná-la num orfanato. Sim, acho cruel, acho que só quem tem uma pedra no lugar do coração é capaz de algo semelhante.
— Talvez fosse uma forma de conseguir dar algum conforto...
— Não diga isso. — interrompeu Genoveva com um esgar amargurado. — A Alba prontificou-se a ficar com a neta. Disse à Helena que poderia seguir a vida que quisesse, lutar pela sua ambição... A neta ficaria consigo. — Fez uma pausa, como se recordasse aqueles anos. — Acho que a Helena temeu que, mais tarde, aquela criança viesse a sobrar para si. Por isso, à revelia da família, levou a bebé e, segundo ela contou à mãe, deixou-a num orfanato.
— Como é que a família reagiu?
— A Alba ficou destroçada. Perdia a neta que mal conhecera e iria perder a filha que já estava com tudo preparado para partir para os Estados Unidos.
— Foi com alguém?
— Não faço ideia, senhor Guerra.
— Nunca mais teve notícias da Helena?
— Pouca coisa, só até a Alba partir deste mundo. Depois perdi completamente o contacto com a família.
— E até ao falecimento da sua amiga?
— Apenas que a Helena casara nos Estados Unidos. Mas, acho que a relação entre a filha e os pais ficou tão danificada que nem os convidou para o casamento.
— Não voltou a saber nada da Helena? — Genoveva abanou negativamente a cabeça. — E em relação à criança? — O mesmo movimento. — Sabe qual foi o orfanato em que a Helena deixou a bebé?
Genoveva fez uma expressão lacónica e disse:
— A filha nunca revelou o nome do orfanato para que a mãe não fosse resgatar a criança.
— Percebo.
Rafael levantou-se do sofá. Nada mais tinha a fazer ali. Genoveva copiou-lhe movimento, aliviada por ele se ir embora. Porém, Rafael tornou a olhar para a idosa e questionou:
— Em relação ao pai da criança, sabe alguma coisa?
— Nem a família sabia. Só que era alguém que ela conhecera enquanto esteve no Porto.
— Ele saberia da criança?
— Não faço ideia.
— Muito obrigado, senhora Genoveva. Agradeço o seu tempo e todas as informações que me deu.
Nessa noite, Rafael telefonou a Raimundo Antunes para o colocar a par das últimas informações que acabavam por não trazer nada que já não soubessem. Ambos chegaram à conclusão que aquela linha de investigação já não os levaria a lado nenhum, por isso, Raimundo ordenou ao seu agente que se concentrasse no pai da criança, pois talvez este soubesse algo.
Durante vários dias, o líder do SIALE e MAI do governo do PNL não teve qualquer notícia de Rafael. Soubera apenas que ele iria voltar ao Porto e investigar a identidade do homem com quem a embaixatriz namorara e engravidara, mais de trinta anos antes. Isso não o preocupava, pois sabia do empenho que Rafael empregava em cada missão para a qual era destacado. O que verdadeiramente o surpreendeu foi o ar afectado com que lhe apareceu no gabinete do edifício do SIALE, até porque não esperava tê-lo de volta a Lisboa sem antes lhe dar qualquer ponto da situação.
— Consegui descobrir o pai da criança. — acabou por dizer, meio pálido e como se receasse partilhar a informação.
— E?
— Nem sei como hei de dizer isto.
Com toda a naturalidade, Raimundo ficou a olhá-lo da sua cadeira. Rafael leu-lhe a expressão, interrogando-se se iria ser uma novidade o que tinha para lhe contar.
— Confesso que tive dificuldade em acreditar, doutor Antunes. E confirmei toda a informação, antes de vir.
— Desembucha, rapaz!
— O homem com quem a embaixatriz teve uma relação na juventude é o... é... foi o engenheiro Pinto Henriques, o nosso primeiro‑ministro.
Raimundo ficou impávido, o que surpreendeu Rafael. Na verdade, o MAI já andava desconfiado disso, não só pelo interesse manifestado na criança, como no facto de saber que Helena Blackhorne o visitara no Palacete de São Bento e o outro não lhe referira nada.
— Fizeste um bom trabalho, Rafael. — foi a única coisa que lhe disse. — Podes regressar ao Porto ou às tuas questões pessoais.
Rafael aceitou a ordem, deixando uma pasta com o relatório completo da investigação que fizera para entregar ao seu chefe.
No seu gabinete, Raimundo Antunes ficou algum tempo sozinho, isolado de qualquer distracção e com ordens específicas para que ninguém o incomodasse. Ponderou na melhor forma de abordar o assunto com o seu chefe de governo, não queria criar atritos com ele, mas tinha de lhe comunicar o que descobrira, não havendo como contornar o facto de que fora além da tarefa que o outro lhe incumbira.
Pinto Henriques estava no Porto. Só vinha a Lisboa quando as suas funções de primeiro-ministro o exigiam, o que iria acontecer daí a dois dias. Sendo assim, Raimundo ordenou que marcassem, com a assessora dele, uma reunião em São Bento.
As luzes da ampla sala de Pinto Henriques estavam acesas, apesar de a tarde ir a meio. Estava um daqueles dias diluvianos e chovia com proporções bíblicas. O primeiro-ministro estava de pé, a olhar para a chuva pela janela, quando Raimundo Antunes entrou.
— Boa tarde, Henriques!
— Boa tarde, Raimundo! — retribuiu sem se mover.
— Já tenho novidades acerca do que me pediste.
Pinto Henriques voltou-se. A frase obtivera uma expressão entusiasmada e curiosa.
— E então?
— Já sabemos quem é o pai!
Raimundo dissera-o de forma cortante, como se procurasse golpear o outro com as palavras. Na verdade, sentia-se traído por o chefe não lhe ter confiado aquele segredo.
O primeiro-ministro pareceu empalidecer, mas rapidamente se refez, equacionando que o MAI não tivesse a informação correcta.
— Quem é ele?
— Não me lixes, Henriques! — vociferou Raimundo, esquecendo temporariamente que estava diante do seu superior hierárquico. — Tu sabes bem quem ele é.
Numa qualquer outra situação, Pinto Henriques teria advertido o seu ministro para a forma como falava. Porém, a culpa impediu-o de uma reacção convincente.
— Não estou a perceber.
Raimundo abanou a cabeça, silencioso, e caminhou até à cadeira vaga defronte da secretária do chefe do governo. Esboçou uma expressão incrédula perante o olhar do primeiro-ministro. Por fim, acabou por dizer:
— O homem com quem a embaixatriz teve um romance na juventude foste tu, Henriques. — O silêncio do outro confirmou a veracidade da história. — Tu és o pai daquela criança. Por isso é que estás tão interessado em saber quem é e onde está.
Pinto Henriques revelou-se abatido, demonstrou uma figura frágil que Raimundo nunca vislumbrara nele. Isso desapontou-o.
— Não percebo porque não foste sincero comigo, Henriques.
— Não é um assunto fácil, Raimundo. Preferia que ninguém soubesse. Calculo que, agora, já mais gente para além de ti saiba.
— Apenas o meu agente. E isso não é problema, confio nele.
O primeiro-ministro anuiu e ficou a olhar para o MAI a aguardar mais informações. Raimundo recusou-se a dizer o que quer que fosse sem que o outro demonstrasse querer saber.
— E então, Raimundo? Conseguiram descobrir a criança? A mulher?
— A tua filha, queres tu dizer.
— A minha outra filha.
Raimundo fez um sorriso trocista.
— Pelas minhas contas, esta será mais velha que a Cristina.
— E então?
— Já para não falar que a tua filha legítima vai ter de partilhar a herança com uma irmã que desconhecia ter.
— Deixa-te de merdas, Raimundo. Para começo de conversa, eu ainda estou vivo e estarei por muitos anos. Além disso, não me parece que essa questão seja problema teu.
Raimundo Antunes levantou as mãos em sinal de não querer conflitos.
— Infelizmente, não conseguimos saber nada sobre a criança. — relatou o líder do SIALE com um certo prazer em dizê-lo. — Ninguém sabe qual o orfanato onde a senhora Blackhorne abandonou a filha. Por isso, descobrir o paradeiro dela é mais difícil que encontrar uma agulha num palheiro.
— Eu sei qual foi! — exclamou Pinto Henriques com rudeza.
— O quê? Sabes? — interrogou Raimundo com toda a surpresa e alguma irritação por o seu chefe continuar a esconder-lhe as coisas. — Como sabes?
— Isso não te interessa nem é importante para o caso. Sei onde e o dia. Só tens de mandar o teu agente investigar.
— Há mais alguma coisa que saibas? Ou terei de descobrir para que o partilhes comigo?
— É tudo quanto sei. — rematou com frieza.
O MAI levantou-se da cadeira com o compromisso de brevemente trazer novidades acerca disso.
— Raimundo! Ninguém pode saber disto, entendeste? — rosnou‑lhe. — Livra-te que isto chegue ao conhecimento da Cristina.
— Sou um túmulo. — retorquiu o outro com desdém.
Pinto Henriques fulminou-lhe as costas com o olhar, mas não proferiu qualquer sílaba, sem ser em pensamento.
Se ela ficar a saber, acredita que serás!
20.4
Vanessa Leal olhava para a fachada do orfanato com uma expressão séria. Causava-lhe repulsa pensar que um lugar que fora criado para acolher e proteger crianças órfãs ou negligenciadas permitia acesso a gente desequilibrada que obtinha prazer em abusar delas.
Iria ser recebida pela responsável da instituição, uma freira austera que já geria aquele lugar há décadas. A reunião fora marcada para uma entrevista com ela que tinha como objectivo divulgar o trabalho feito pela instituição na protecção e educação de jovens. A mentira servira para lhe dar acesso a falar com a freira.
Todo o interior era de uma austeridade medonha. Uma freira relativamente nova recebeu-a na entrada e encaminhou-a pelo edifício. Vanessa cruzou-se com algumas raparigas de diversas idades.
— Já não têm cá rapazes? — questionou a jornalista, enquanto avançava por um corredor escuro e decoração minimalista.
A freira virou-se e revelou confusão, acabando por dizer:
— Este orfanato sempre foi dedicado a meninas. Nunca tivemos cá rapazes.
— Nunca? — insistiu Vanessa, surpreendendo-se.
— Que eu saiba... Já cá estou há alguns anos e não me recordo que tivéssemos acolhido rapazes.
— E antes?
— Que eu saiba... — repetiu, parando como se procurasse resgatar na memória qualquer eventualidade de isso ter acontecido. — Só se tivesse acontecido temporariamente... Houve tempos em que abandonavam bebés à nossa porta. Se deixassem um rapaz, enviávamo-lo para outra instituição da Igreja.
— Nunca tiveram jovens já crescidos, talvez entre os cinco e os doze ou treze anos?
— Rapazes? No meu tempo não. Mas, talvez seja melhor esclarecer isso com a madre.
A responsável máxima daquele lugar aguardava-a num gabinete obscurecido, apesar da luz exterior que entrava pela alta janela da divisão. Para pessoas que apregoavam levar uma vida minimalista em prol das crianças, o espaço pareceu-lhe demasiado rico com mobiliário caro, uma decoração requintada e algumas peças luxuosas expostas nas prateleiras. A senhora, que deveria ter uns setenta e muitos anos, recebeu-a com um rosto fechado e uma simpatia protocolar, envergando um hábito de freira imaculado e humilde. Porém, Vanessa viu o relógio de ouro num pulso e a pulseira dourada no outro, já para não falar do crucifixo dourado pendurado ao pescoço e incrustado de pedras preciosas. Sobre a mesa, um telemóvel de última geração e um computador portátil que, naquele instante, estava desligado.
Assim, ninguém se importaria de ser pobre e humilde.
A senhora falava de forma pausada e baixa, como se receasse despertar o seu Deus se proferisse uma palavra num tom acima. Estendeu uma mão flácida a Vanessa, a qual apertou com desdém, e apontou a cadeira de braços vaga.
A jornalista sentou-se e começou por agradecer a disponibilidade da freira em a receber. Prosseguiu com uma explicação pormenorizada do objectivo da sua reportagem, inquirindo a outra a espaços, convidando-a a ir falando sobre a instituição. Aquela conversa inocente prolongou-se bastante até Vanessa perguntar:
— Alguma vez tiveram cá rapazes?
— Rapazes? — questionou a freira, como se a jornalista tivesse perguntado se viveram lá dinossauros.
— Sim. — insistiu Vanessa. — Alguma vez este orfanato acolheu meninos para além das meninas?
— Não. Este orfanato é exclusivo para bebés, crianças e jovens do sexo feminino. A nossa Igreja tem outros espaços que são dedicados ao acolhimento de meninos.
Algo não batia certo com o que o informador lhe dissera.
— E algum desses espaços fica aqui perto, tem ligação com este orfanato?
As sucessivas questões começaram a deixar a freira alerta. Porém, havia que ter cuidado com as respostas a dar a uma jornalista, não fosse isso deixá-la ainda mais curiosa. Por isso, com uma falsa naturalidade, respondeu:
— Não.
Vanessa foi tomando apontamentos. Na maior parte das vezes, nada de relevante, era apenas para ganhar tempo e pensar na questão seguinte.
— Que aconteceria se abandonassem um bebé do sexo masculino à vossa porta?
Houve uma expressão de enfadamento por parte da freira. No entanto, explicou que esse bebé seria acolhido temporariamente, alguns dias no máximo, até ser transferido para um orfanato masculino.
Será que o seu informador se enganara na morada? Não era possível que tivesse sido vítima de abusos ali, a menos que isso tivesse acontecido quando ainda era um bebé... Só de pensar nisso, sentiu uma náusea. Infelizmente, existia gente assim, mas naquele contexto, parecia demasiado rebuscado que o tipo anónimo tivesse sido uma vítima naquele lugar. Começou a concluir que fora atirada para mais uma perda de tempo. Contudo, recordou-se do caso que perseguira uns anos antes, o suposto abuso de crianças em orfanatos, religiosos que abusavam de meninas. Teve um momento de inspiração:
— Costumam receber visitas?
— Visitas? — questionou a freira, arregalando os olhos.
— Sim. Pessoas que visitam as meninas?
A tensão no olhar da entrevistada tornou-se tão visível que Vanessa detectou que tocara em algo.
A freira idosa pigarreou, desviou o olhar e respondeu:
— Interessados em adoptar? Sim, por vezes recebemos casais candidatos a adopção que nos são enviados pela Segurança Social.
Vanessa escreveu. Escreveu tanto que a outra ponderou se a jornalista estaria a escrever toda a reportagem diante de si. Subitamente, parou. Encarou o olhar da freira.
— E padres?
— Padres?
— Sim, padres. Os padres não costumam visitar as meninas?
— Porque haveriam os padres visitar as meninas? — questionou com indignação, fazendo a pergunta parecer uma idiotice.
— Talvez para as aconselhar...
A forma natural como Vanessa fizera a sugestão, fez a idosa constatar que talvez estivesse a fazer uma tempestade num copo de água.
— Sim... às vezes... é bom para as meninas conversarem com um padre. É uma forma de as encaminhar pelo melhor caminho. Muitas destas crianças têm necessidade de ter uma figura paternal que as possa...
— E bispos? — interrompeu Vanessa. — Ou cardeais?
A freira enrubesceu. Havia fúria no seu olhar. A jornalista estava a atirar o barro à parede para descobrir sabe-se lá o quê. Fosse como fosse, estava a aproximar-se perigosamente de assuntos sensíveis.
— Não percebo a sua pergunta.
— São só padres que visitam...
— Eu percebi o que perguntou. — atalhou a freira, cortante. — Só não percebo o contexto da pergunta.
Vanessa não perdeu a compostura, nem se atemorizou com o azedume crescente na voz da entrevistada. Se estivesse errada, nada tinha a recear, se estivesse certa, aquela mulher merecia as chamas do seu Inferno.
— Estou a fazer uma reportagem sobre a instituição. Queria esclarecer a influência que essas figuras da Igreja podem ter no futuro das meninas.
A invenção de Vanessa pareceu encontrar lógica no cérebro da outra. Num tom menos antipático, explicou:
— Todos eles têm uma influência muito positiva nas vidas destas jovens.
— Não respondeu se são apenas padres.
— Isso é importante? — interrogou com desdém.
— Revela a importância que a Igreja dá ao assunto, pelas figuras que dedica a isso. — Estava inspirada. — Não acha que ter um cardeal ou um bispo a dedicar tempo a conversar com uma jovem demonstra maior preocupação pelas meninas que a visita de um padre? Não, não estou a desvalorizar a figura do padre, mas... Percebe o que quero dizer?
— Não partilho da sua visão, Vanessa. Todos nós somos servos humildes de Deus, em igual forma e empenho.
Vanessa assentiu sem qualquer crença naquelas palavras e escreveu mais um pouco.
— Pode descrever-me como se processam essas visitas?
— Como?
Sem desviar a atenção dos olhos arregalados da freira, Vanessa explicou num tom sóbrio:
— O que acontece, quando um padre visita as meninas?
— O que acha que acontece? — questionou com indignação. — Não percebo onde quer chegar.
— Peço desculpa, eu é que não percebo o seu desconforto com a pergunta.
— Desconforto? Que desconforto? — A voz da freira revelava que perdera a preocupação em acordar o Senhor. — Não sei se gosto daquilo que poderá estar a sugerir.
— Não estou a sugerir nada. Só estou a perguntar o que acontece quando um padre visita as meninas. A senhora está presente?
— Posso estar ou não. O que tem...
— É normal o padre ficar sozinho com as meninas?
— Não vejo em que é que isso...
— Não poderá ser confrangedor para uma menina ficar sozinha numa sala com um homem, quando está habituada a ver-se rodeada de raparigas e mulheres?
— São homens da Igreja, anjos na terra, incapazes...
— Sabia que há relatos de homens da Igreja que abusam de meninas em orfanatos?
A pergunta foi colocada como uma lança atirada no meio de uma batalha. Sem pudor, sem medo, sem preocupações das consequências, apenas com o objectivo de acertar no alvo. E aqui, o alvo era fazer a freira perder a compostura, dar sinal de que Vanessa tocara na ferida.
Talvez a primeira reacção da idosa tivesse sido o que a jornalista queria, só que a experiência fizera-a conseguir travar a tempo. Fulminou‑a com o olhar, endureceu a expressão e as suas mãos apertaram de tal forma os braços da cadeira que os nós dos seus dedos ficaram brancos como cal.
No entanto, a forma como respondeu trazia uma calma diabólica na voz:
— Não sei onde anda a ouvir essas mentiras. E lamento que tenha vindo aqui fazer-me perder tempo, utilizando de forma vil um esquema de logro, enganando-me com uma reportagem que não é mais que uma tentativa de denegrir a Igreja.
— Registo que não negou que isso acontecesse no seu orfanato, optando por negar em sentido geral, sendo que coloco muitas dúvidas que possa responder por todas as instituições e elementos da Igreja.
— Registe também que quero que saia imediatamente. — rosnou‑lhe.
Não valia a pena insistir em mais perguntas. Aquilo só servira para a deixar mais convicta que os abusos existiam, só precisava de encontrar alguém disposto a prová-lo com o seu testemunho. Enquanto abandonava a sua cadeira, Vanessa ouviu a idosa chamar outra freira, a qual a acompanhou à saída.
Quando estivera tão perto de desvendar aqueles crimes, a sua testemunha morrera num acidente de viação antes de lhe contar qual era a instituição ou as instituições onde isso acontecia. Faria aquele lugar parte do que a testemunha lhe queria denunciar? O seu instinto soprava‑lhe que deveria manter aquele orfanato debaixo de olho.
Enquanto caminhava pelas ruas de Lisboa, Vanessa tornou a pensar no tal "Zé", o homem estranho que lhe viera fazer uma denúncia sobre aquele lugar, o que se revelara um engano. Não havia meninos ou rapazes naquela instituição, não era verosímil que os pudessem levar para ali para serem abusados. Haveria certamente formas mais simples de o fazer. Gostava de poder falar com alguma órfã dali, principalmente uma das mais velhas, conseguir ler-lhe os resultados das perguntas, caso ela tivesse sido uma vítima. Só que isso seria quase impossível, a menos que tivesse oportunidade de interpelar alguma que saísse da instituição. Não era fácil, mas também não era impossível.
Decidiu parar numa esplanada, beber um café e fazer um relatório mental. Tornou a pensar no informador, a denúncia tinha duas partes, aquele orfanato e as figuras do MPP com Manuel Teixeira à cabeça. Pensar no líder da oposição como um abusador de menores naquele orfanato não tinha lógica. O político não fazia bandeira disso, mas todo sabiam da sua homossexualidade. Um homem gay não abusa de meninas. Quando muito, seria um pedófilo de meninos. Nada parecia bater certo naquilo que "Zé" lhe contara. Começou a convencer-se de que a estavam a fazer perder tempo. No entanto, se alguém se preocupava em fazê-lo era porque se estava a aproximar de algo e queriam desviar a sua atenção. Para além disso, a experiência profissional já a ensinara que mesmo os maiores logros têm um fundo real, daí que talvez tudo aquilo não fosse uma completa perda de tempo.
No entanto, em relação a Manuel Teixeira não tinha nada. A suspeita que haviam feito chegar até si não justificava que fosse confrontar o líder da oposição, iria criar animosidades com ele sem necessidade, pelo menos por enquanto. Vanessa sabia que quando se partia para um confronto, seria imperial ter provas bem fundamentadas, caso contrário arriscava-se a um processo por difamação. Porém, se parecia improvável que Manuel Teixeira estivesse envolvido em abusos naquele orfanato, isso não invalidava que não pudessem existir membros do partido a usar aquela instituição para esse fim. Fosse como fosse, a avaliar pela reacção da responsável máxima do orfanato, algo se passava na instituição. Para já, manteria de lado a possibilidade de envolvimento de políticos do MPP até algo mais concreto.
Sozinha numa mesa lateral da esplanada meio lotada, Vanessa sorriu para ninguém, consciente que nalgum acaso do destino, poderia ter ido desembocar à linha de investigação que perseguia há alguns anos.
20.5
— Não conseguimos. É um beco sem saída. — explicou Raimundo a Pinto Henriques, entregando a folha com o relatório dos últimos dados obtidos com a busca pela filha abandonada por Helena. — Ela fugiu da instituição aos dezasseis anos. Mas, conseguimos o nome. — Pinto Henriques arregalou os olhos, como se estivesse prestes a ver uma foto da filha que nunca conhecera. — As freiras deram-lhe o nome de Conceição. Algo relacionado com o dia em que a deixaram lá, acho eu.
Isso batia certo com o que Helena lhe acabara por confessar.
— Fugiu sozinha?
— Sim.
— E ninguém sabe para onde foi? Como é isso possível?
— Perderam-lhe o rasto. E... — Raimundo sentiu alguma relutância em dizer o óbvio. — Para o orfanato, era mais uma boca para alimentar. Achas que se importaram que fugisse ou em saber para onde iria? Tinha dezasseis anos, era quase maior de idade. Lamento não ter nada mais para ti.
— O que achas que lhe pode ter acontecido?
Drogas, prostituição, crime e morte era uma realidade certa para o MAI. Mas, não valia a pena martirizar mais o seu primeiro-ministro. Raimundo limitou-se a responder:
— Não faço ideia.
Pinto Henriques não se dava por vencido.
— Não há registos dela? Com certeza que registaram a criança, ela deve ter identificação, não há documentação sobre ela? Não conseguem descobrir um número de cartão de cidadão ou número fiscal? Algo que nos possa ajudar a localizá-la?
— O orfanato perdeu muitos registos. As freiras não souberam explicar muito bem... O certo é que há muitos casos de raparigas que saíram da instituição e os seus registos se perderam.
— E na Segurança Social? As crianças dos orfanatos não são seguidas pela Segurança Social?
— Estamos a trabalhar nisso, Henriques. — mentiu o líder do SIALE, pouco disposto a continuar a despender recursos naquela busca. Não queria saber da filha do outro para nada e receava que o seu chefe perdesse o foco no que era realmente importante, os planos do PNL para tomar o poder em absoluto. — Assim que tiver mais novidades, eu informo-te. Não te preocupes.
Nesse momento, o intercomunicador apitou e ouviu-se a voz da assessora:
— Senhor primeiro-ministro, tenho o arcebispo de Braga ao telefone para falar consigo.
— Ele que ligue mais tarde.
— Eu disse-lhe que o senhor estava em reunião, mas D. Narciso insistiu muito, diz que é um assunto urgente.
— Está bem, Bárbara. Pode passar a chamada.
Logo que ouviu a sua voz, Pinto Henriques percebeu o quanto Rathesleon estava furioso. Não perdera tempo com cumprimentos e iniciou um relato enraivecido acerca de ter sido informado que a jornalista, que D. Narciso solicitara ao primeiro-ministro que fosse silenciada e que este se comprometera a tratar do assunto, estava agora mais perto que nunca de lhe causar problemas.
— Parece-me, senhor primeiro-ministro, que o senhor e o seu partido não passam de um monte de balelas. Temos um acordo e vocês não cumprem nada do que combinámos.
— Tenha calma, D. Narciso. Estou certo de que não é nada que não se possa resolver.
— Não me venha com tretas. Para mim é evidente o que vocês estão a fazer. Eu apoiei-vos, mas vou sempre a tempo de vos puxar o tapete.
A ameaça começou a enfurecer Pinto Henriques. Não aceitava que lhe falassem naquele tom, que tentassem intimidá-lo, muito menos um padreco pedófilo. Controlou a raiva.
— Tenha lá calma e diga-me o que aconteceu.
— A jornalista foi fazer perguntas ao orfanato que... Veja lá a coincidência. — O tom era de uma ironia enraivecida. — O mesmo orfanato que o senhor tem naquele miserável relatório que me mostrou, quando veio propor-me o acordo.
— Estou certo de que não passa de uma infeliz coincidência.
— Deixe-se de tretas, homem! Quero aquela jornalista calada. Será que os seus lacaios conseguem tratar de algo tão simples?
Raimundo Antunes notou o rosto ruborizado do seu chefe de governo, percebendo que este estava prestes a explodir, mas esforçava‑se para se controlar. E a voz que ouviu revelou a capacidade de autocontrolo.
— Não se preocupe. Iremos tratar do assunto.
Quando desligou, Pinto Henriques ia partindo o telefone, tal foi a força com que o colocou no descanso. Olhou para o MAI.
— Não disseste que ias afastar a jornalista que andava a fazer perguntas sobre o arcebispo?
— Sim.
— Então como é que ela foi logo dar ao local onde nós sabemos que o gajo andou a...?
Raimundo não pareceu surpreendido.
— Mandei um agente fazer-se passar por informador e falar com ela. — relatou. — Uma treta acerca de ter sido abusado numa instituição, quando era miúdo. E que um dos abusadores fora o Teixeira. Deu-lhe o endereço de um orfanato onde tudo teria acontecido.
Pinto Henriques arregalou os olhos, adivinhando:
— Não me digas que lhe deste o endereço...
— Exacto.
— És maluco, Raimundo? Estás doido?
O líder do SIALE ignorou os insultos e explicou:
— Dificilmente a Vanessa Leal se deixaria enganar com tão pouca informação acerca da possibilidade de o Manuel Teixeira ser um pedófilo. Atirar o nome dele só serviu para criar a dúvida. Já em relação ao arcebispo... Óbvio que não o vamos denunciar, mas talvez não seja mau para nós que ela se mantenha a farejar os calcanhares ao Rathesleon. Por vezes, acho que esse crápula julga que está acima de nós. — O primeiro-ministro anuiu em concordância. — Achei que a podemos usar para manter o gajo com o rabinho apertado. Nunca se sabe se não teremos de ter um trunfo para o controlar. E se ela chegar a ele, antes do tempo, prometo-te que arranjo forma de a calar de vez. — O MAI fez uma expressão penitente, tão falsa quanto ele. — Sei que agi sem te consultar, por isso, peço desculpa e se achares que devo modificar...
— Não, não Raimundo. Mais uma vez, a tua perspicácia não frustrou as nossas expectativas. — elogiou com um sorriso que perdeu de imediato. — Tu e o SIALE são extraordinariamente eficientes. Espero poder dizer o mesmo em relação ao que te pedi acerca da... Conceição.
— Fica descansado.
Pinto Henriques ia a dizer algo, quando a sua expressão empalideceu. De súbito, começou a abrir as gavetas da secretária, lembrando-se de algo. Retirou uma pasta da terceira. Raimundo reconheceu o relatório acerca do arcebispo que lhe entregara antes da reunião do primeiro-ministro em Braga. Os olhos do mais velho percorreram as linhas dactilografadas em busca de algo. Pinto Henriques não escondeu o semblante chocado, ao encontrar o que procurava. Apontou a pasta a Raimundo e disse com a voz afectada:
— Lê isso Raimundo! Já viste o nome do orfanato onde o arcebispo...?
Raimundo Antunes pegou nas folhas e leu. Percebeu ao que o chefe de governo se referia, mas não manifestou qualquer preocupação com o assunto.
— É mera coincidência.
— É o mesmo lugar onde a minha filha foi abandonada.
— Isso não significa...
— Já imaginaste se ele a...? — alvitrou Pinto Henriques. — Se ele algum dia lhe tocou, eu próprio mato esse cabrão.
— Tem calma, Henriques! Estamos a especular e isso nunca é bom. Sabemos que o arcebispo é execrável, mas precisamos dele. O mais certo é nunca se ter cruzado com a tua filha. Não o podemos transformar num inimigo. Ele está alinhado com os nossos interesses.
— A aliança com ele não justifica tudo. Além disso, se tivermos que acabar com ele, arranjaremos outro para o lugar.
— Isso não é assim tão simples. O Rathesleon é um homem muito poderoso. E estamos perto da data de execução dos nossos planos, não podemos andar a fazer modificações. Nem ter a Igreja contra nós.
— Sim, eu sei Raimundo. Todos os nossos aliados europeus mantêm a Igreja como aliada nos seus países. No último congresso da nossa família partidária europeia, isso ficou bem explícito.
— Por isso, tem lá calma com o arcebispo. Quando o poder já não nos puder fugir das mãos, trataremos do Rathesleon, se for caso disso.
Raimundo devolveu a pasta ao primeiro-ministro.
Pinto Henriques e Raimundo Antunes abandonaram o Palacete de São Bento ao mesmo tempo. O primeiro iria regressar ao Porto, enquanto o segundo tinha assuntos a tratar na sede do SIALE. O MAI teve de ouvir repetidamente que deveria prosseguir a busca por Conceição até cada um deles ter entrado no respectivo automóvel oficial.
Poucas pessoas permaneciam no edifício. Bárbara tinha o sector privado do primeiro-ministro por sua conta. Tinha uma missão e não se esquecera de lhe dar andamento, aproveitando a oportunidade. Saiu do seu lugar de secretária confirmando que não havia ninguém por perto. Não evitou pensar no elemento dos serviços secretos que a angariara para colaborar com a embaixada norte-americana. Na sua mente, não eram as imagens do acordo que via, eram os momentos em que ele a virara contra o sofá da sua sala e a possuíra de forma bruta. Fizera-a ter vários orgasmos como há muito não sentia.
O gabinete estava silencioso e obscurecido pela diminuição de claridade exterior. Lá fora, os ruídos citadinos perdiam-se ao longe. Ela avançou confiante pela sala, contornando a mesa de trabalho do patrão e observando o que estava à vista. Ken explicara-lhe que deveria procurar qualquer informação relacionada com a embaixada, o embaixador ou a embaixatriz. Era nisso que deveria concentrar-se.
Começava a ficar com pouca luz, mas não quis ligar qualquer foco de iluminação no gabinete que pudesse denunciar a presença de alguém na sala privada do primeiro-ministro. Pinto Henriques era um homem que gostava de ter tudo organizado, porém, a sua mesa estava algo desarrumada, o que não era normal. Bárbara tentara ouvir alguma da conversa entre os membros do governo, mas foi impossível sem se arriscar a levantar suspeitas.
Não havia nada que pudesse ser relevante para transmitir a Ken. Ainda não seria daquela vez que teria algo para lhe dar. Teve pena, gostava de ter uma razão para que ele voltasse a sua casa. Prestes a ir embora, reparou na ponta de uma folha entalada entre duas gavetas. Abriu a de baixo e viu a folha, certamente atirada apressadamente para ali. Pegou na folha dactilografada com o timbre do SIALE. Teve dificuldade em ler, mas teve a inspiração de ligar a lanterna do telemóvel que lhe daria luz suficiente para ver o texto.
Se fotografasse era perfeito. Contudo, era o seu telemóvel de trabalho e as fotos poderiam ser detectadas pela vigilância do SIALE. Como justificaria ter fotografado aquilo? Não justificava e seria presa. Memorizou a informação contida no relatório de duas páginas, frente e verso, o qual referia o nome da embaixatriz e a existência de uma filha que supostamente fora abandonada recém-nascida por ela na juventude. Bárbara ficou chocada. Continuou a ler. Percebeu que alguém no SIALE estava destacado para prosseguir com a investigação. Não compreendia que interesse o assunto poderia ter para o governo do país, mas seria certamente uma informação importante para entregar a Ken.
Obviamente que só Raimundo Antunes sabia da ligação de Pinto Henriques ao caso, daí que em momento algum o nome do primeiro‑ministro estivesse no relatório.
Bárbara tornou a colocar tudo no sítio, sentindo a ansiedade a percorrer cada poro do seu corpo. Ora ali estava algo pelo que valeria o interesse de Ken em a visitar. Saiu apressada do palacete, meteu-se no carro e enfrentou o trânsito lisboeta em hora de ponta.
Lamentava não ter consigo o telemóvel secreto que Ken lhe entregara. Poderia agilizar as coisas, ligando-lhe no meio do trânsito para que ele fosse indo para o apartamento dela. Ficou excitada com a ideia de entrar em casa no escuro, ser agarrada por ele, imobilizada... Sentir aquele friozinho de tensão, a dúvida ridícula que pudesse não ser ele, mas sim um criminoso a sério. Ele era bruto, batia-lhe, mas ela gostava... como gostava.
Despertou para a fila de carros à sua frente. Teria de ter paciência.
Claro que, quando chegou a casa, já noite cerrada, ele não estava lá. As capacidades de agente de Ken não incluíam a adivinhação. Bárbara largou tudo, correu para o quarto, investiu contra o lugar onde escondera o aparelho e fez o telefonema.
20.6
Não se via um veículo pelas estradas de Lisboa. Numa noite tão escura, se não fosse a iluminação urbana, não se veria um palmo à frente do nariz. Ken circulava pelo Eixo Norte-Sul montado na sua mota, acelerando sem preocupação pela velocidade, pois a matrícula de corpo diplomático dava-lhe toda a protecção para não ser incomodado pela polícia de trânsito. Regressava do apartamento de Bárbara, a idiota que ele convencera a espiar o primeiro-ministro do seu próprio país. Patriota como era, considerava pessoas assim umas traidoras. Ele jamais seria capaz de atraiçoar o seu país em favor de outro, como aquela parva estava a fazer. Mas, ainda bem que era assim e ainda bem que era tão jeitosa e interessada nele. No entanto, não deixava de ser uma idiota, mas não o seriam todos os naturais daquele país? Um dia, alguém dissera que os países do sul da Europa só queriam vinho e sexo. Talvez isso fosse verdade. A idiota que o recebera na sua casa e entre as suas pernas ficara orgulhosa de o estar a ajudar, convencida se calhar que era uma espécie de bond girl...
Desviou na saída perto do Jardim Zoológico, curvando depois para a esquerda, vendo já o seu destino perto, a embaixada dos Estados Unidos da América em Lisboa.
As medidas de segurança eram extremamente apertadas, até para um agente dos serviços secretos. Lisboa não era considerada uma cidade perigosa para os diplomatas americanos, mas mesmo assim nada era deixado ao acaso quando se tratava de proteger os seus num país estrangeiro. Ken parou no ponto de controlo da entrada, mostrando a sua identificação e sendo autorizado a passar. Circulou devagar pela propriedade, evitando que o roncar forte do motor fosse incomodativo.
Logo que saíra do apartamento de Bárbara, Ken enviara uma mensagem codificada pelo seu telemóvel para a pessoa que o incumbira daquele assunto. Em menos de um minuto, recebeu a resposta para que se apresentasse na embaixada e esperasse no gabinete do senhor embaixador.
Já era bastante tarde, quase madrugada. Não se viam funcionários para além dos elementos dos serviços de segurança e militares que guardavam o território norte-americano em solo português. Ken possuía credenciais e um nível de acesso que lhe permitiam circular livremente pela embaixada, conhecia cada canto como a palma das suas mãos, pois há uns bons quinze anos que estava destacado em Portugal. Numa passada tranquila, atravessou os salões e dirigiu-se ao gabinete oficial do embaixador. Entrou e ligou a luz. O interior tinha as paredes forradas por estantes repletas de livros. Acima da poltrona por detrás da secretária de Ronald Blackhorne, uma foto oficial do presidente dos Estados Unidos da América. A mesa estava completamente limpa, nenhum documento seria deixado ao acaso e se o embaixador estivesse na posse de algo secreto, isso estaria trancado no cofre cuja combinação apenas ele conhecia. O espaço era grande, talvez demasiado para uma divisão que pretendia ser apenas o local de trabalho de uma única pessoa. Nenhum visitante era ali recebido, para esses eventos existia uma sala específica. Ken observou o sofá luxuoso onde não se atreveria a sentar, bem como o bar recheado de bebidas que não se atreveria a tocar. Aquele lugar tinha mais regras que o imaginável. Olhou para o tecto trabalhado, pintado de branco com relevos abstractos e uma sanca dourada em toda a volta. Viu o chão em madeira cuidada, a qual não sabia identificar de que árvore teria vindo, sendo que não tinha dúvidas que seria algo que custara muitos dólares.
A porta do gabinete abriu-se. Por ela, entrou a embaixatriz, a senhora Blackhorne. Não foi surpresa para Ken, pois era para ela que ele trabalhava naquele assunto.
Helena vestia um roupão de seda, revelando que já se encontrava deitada quando ele a contactara com a mensagem codificada. Ken recebeu-a em sentido com as mãos cruzadas atrás das costas e olhar fixo num ponto indistinto na estante. A conversa entre eles decorreu em inglês.
— Boa noite, senhora embaixatriz!
— Boa noite, Ken! — Caminhando imponente, Helena ocupou a poltrona do marido. — Que novidades me trazes?
Com a autorização dela, Ken soltou-se da posição militar o olhou para a patroa. Helena revelava um olhar gélido num rosto fechado.
— Parece que o SIALE está a investigá-la. — Ken pareceu constrangido em falar. — Algo acerca da sua juventude, antes de ter viajado para os Estados Unidos. — Helena observava-o atenta sem revelar qualquer emoção. — Que teria engravidado... — A relutância em abordar o assunto era evidente, demasiado melindroso para conversar com alguém do estatuto dela. — Parece que estão à procura de uma criança que supostamente seria sua filha.
Helena desviou o olhar, como se assimilasse a informação. Ken receava que o assunto fosse de tal forma problemático que pudesse sobrar para si. A embaixatriz confiava nele, conhecia a folha de serviço de Ken e estava a pagar-lhe bem para aquela tarefa pouco convencional. Helena também sabia que, para o trabalho ser bem feito, não poderia haver segredos entre ela e o seu agente.
— Que descobriram até agora sobre essa criança?
— Sabem que foi abandonada num orfanato, sabem qual o orfanato e sabem que a rapariga viveu lá até aos dezasseis anos. A partir daí, não sabem mais nada.
Aquela informação não surpreendia Helena. Tinha noção que assim que cedera à exigência de Pinto Henriques em dizer-lhe onde e quando abandonara a bebé, ele iria fazer tudo para descobrir a filha.
— Continuam a investigar?
— A minha fonte não me soube dar uma resposta concreta. Esta informação está escrita num relatório do SIALE apresentado ao primeiro‑ministro. Não existiam indicações se iriam parar ali ou prosseguir com a busca.
— Não acredito que fiquem por aqui.
— Posso fazer uma pergunta... uma pergunta pessoal, senhora embaixatriz?
— Não é preciso fazer, eu respondo. Sim, a criança é minha filha. — Ken assentiu sem fazer qualquer comentário. — Se só têm registo dela até aos dezasseis anos, significa que passaram mais... — Fez um cálculo mental rápido. — ...mais dezassete sem que nada se saiba dela. Até pode estar morta.
A última frase foi proferida com um desprendimento atroz.
Gerou-se um silêncio desconfortável para Ken. A embaixatriz parecia ponderar a situação. Acabou por questionar:
— E o pai? O relatório fazia alguma referência ao pai?
— Não, a minha fonte não encontrou qualquer referência ao progenitor.
Claro, pensou Helena, Pinto Henriques iria manter-se de parte, pois não tinha interesse que se soubesse que tinha sido ele o pai abandonado. Sorriu para Ken.
— Como calculas, eu sei quem é o pai.
— É importante para a minha missão que eu tenha essa informação?
— Para já, não, Ken.
Por enquanto, não haveria qualquer vantagem em que se soubesse que ela e o primeiro-ministro do país onde o marido era embaixador tinham sido amantes e partilhavam a paternidade de um ser que poderia já ter deixado este mundo.
— Quais são as suas ordens? — questionou Ken, despertando a embaixatriz dos seus pensamentos.
Helena ponderou.
— Mantém a tua fonte activa e atenta. Temos de partir do princípio que o SIALE vai continuar a investigar. Entretanto, quero que tu próprio tentes descobrir o paradeiro da minha... dessa mulher. Vamos dar como adquirido que está viva. Por isso, é crucial que a encontremos antes do SIALE. Compreendes, Ken?
— Claro, senhora embaixatriz.
— Não será benéfico para ninguém que se venha a saber que eu tenho uma filha. Principalmente para o senhor embaixador. Quero que trates este assunto como um caso sensível para a segurança nacional. Imagina o que seria o nosso embaixador saber que a esposa partilha uma filha com um cidadão do país onde exerce essas funções? Ficaria numa posição vulnerável. E os Estados Unidos nunca podem ficar vulneráveis perante ninguém. Percebido, Ken?
— Claro, senhora embaixatriz.
— Se o SIALE a descobrir, isso poderá ser um trunfo contra nós. Não confio neste governo, nestes nacionalistas.
— Que deverei fazer, quando a descobrir?
Helena sabia o que queria que fosse feito. Deveria ter tido essa coragem há trinta e três anos quando a parira. Contudo, ainda era cedo para decidir esse destino.
— Informas-me. Na altura te direi o passo seguinte.
— Com certeza, senhora embaixatriz.
Helena levantou-se da poltrona, dispensando o agente dos serviços secretos. Porém, quando se aproximava da porta, Ken disse:
— Senhora embaixatriz!
— Sim?
— O relatório continha o nome com que a bebé fora registada.
A senhora Blackhorne fez um sorriso escarninho.
— Achas que isso me interessa?
— Tenho a obrigação de a informar daquilo que sei.
Helena anuiu, concordando com percepção correcta que o agente tinha das suas obrigações.
— É irrelevante para mim, Ken. Essa criança nunca deveria ter nascido. Mas, uma vez que nasceu, rezo a Deus para que não tenha vivido muito para além desses dezasseis anos.
21.1
Ivo nunca tivera uma amante. Poderia ter tido fantasias, pensar nessa possibilidade, mas amava tanto Sónia que jamais a trairia. Depois, apareceu Anabela. No entanto, não foi por ela ter menos vinte e poucos anos e fazê-lo sentir mais novo, não foi por ela ser extremamente sensual e atraente, talvez nem tivesse sido pela inteligência na forma como o foi seduzindo e percebendo que ele estava vulnerável ao seu encanto. Para Ivo, o que o fez atravessar a linha vermelha foi o desaparecimento progressivo da intimidade entre ele e Sónia, o afastamento na cama, a quase ausência de contacto sexual.
Curiosamente, ter uma amante parecia ter melhorado a sua relação com Sónia. Não sentia aquela necessidade de fazer amor com a esposa, uma necessidade quase animalesca quando se passava demasiado tempo, o que evitava a tensão entre eles e as consequentes discussões e desentendimentos. Ele estava saciado, por isso não a incomodava quando estavam entre os lençóis. E Sónia convivia bem com isso. Talvez tivesse chegado àquela idade em que o sexo é algo dispensável. Claro que não passava pela cabeça de Ivo que, tal como ele tinha uma amante, Sónia também se mantinha sexualmente activa com um jovem estudante de medicina de quem se tornara mentora.
Sendo assim, o casamento de Ivo e Sónia redescobrira o paraíso da relação, a qual retomara o entendimento quase perfeito, raramente surgia um assunto que pudesse causar desentendimento e, de tempos a tempos, até eram capazes de fazer amor.
No entanto, a recente experiência de Ivo naquela vida dupla iria ensinar-lhe que, até na relação com uma amante, a vida não é um mar de rosas.
Era sexta, aproximava-se mais um fim de semana. A relação entre Ivo e Anabela era muito profissional durante a semana, exceptuando as pequenas provocações e flirts no interior do gabinete, mas nada de relevante. Ela continuava a brincar com ele, fazendo o resumo da agenda diária pela manhã com a saia exageradamente puxada para cima, piscava-lhe o olho, insinuava-se, mas nada mais que isso, raramente se tocavam e jamais perderam a formalidade no tratamento entre patrão e funcionária. Depois, no fim de semana, Ivo tinha sempre aqueles encontros para jogar golfe ao domingo. Encontros a que habituara a esposa com a justificação de que, apesar de não ser fã nem ter jeito para aquele desporto, eram encontros importantes onde conhecia pessoas influentes e que poderiam abrir portas interessantes para os negócios da empresa. Sónia estranhava que ele não tivesse qualquer equipamento para a prática, sem ser a indumentária meio "tio de Cascais" com que saía de casa nesses dias. Porém, pouco lhe interessava, levantar questões sobre isso poderia virar-se contra si, levá-lo a ele a levantar também algumas dúvidas do porquê de ela ter vindo a aumentar as horas extra no hospital. Claro que os encontros no golfe não existiam, os encontros para jogar golfe eram os encontros entre Ivo e Anabela, no apartamento da jovem.
No fim de semana anterior, depois de terem passado o domingo todo na cama, Anabela surpreendera-o com um pedido. Falou num imprevisto qualquer que a obrigara a gastar dinheiro e que estava com dificuldade em ter a totalidade da verba para pagar a renda desse mês. Ivo descansou-a, oferecendo-se para lhe adiantar o valor em falta no dia seguinte. Ela agradeceu-lhe, saltando novamente para cima dele.
Naquela sexta, ao fim da tarde, Ivo sentia o cansaço de uma semana extenuante de trabalho com a ansiedade saborosa de saber que no domingo iria estar com Anabela. Não era fácil vê-la todos os dias sem poder fazer tudo aquilo que lhe passava pela mente.
Anabela entrou no gabinete com ar casual, sorriu-lhe cúmplice e parou junto da mesa do chefe.
— Não se esqueça da reunião na segunda de manhã, doutor Maia. — Ele anuiu com o olhar faminto nela. A jovem sorriu e fez uma expressão hesitante. — Estou com um dilema, não sei se o doutor Maia me poderá ajudar.
— Diga Anabela.
Ela debruçou-se sobre a secretária e baixou o tom de voz:
— Vi uma mala lindíssima numa loja. Também vi uma lingerie que acho que o meu namorado ia adorar. Estou a pensar levá-lo lá, talvez ele me queira oferecer as duas. O que acha?
— É esse o seu dilema, Anabela? — questionou desconfortável, percebendo o seu papel naquela conversa. Ela anuiu. — Acho que talvez seja melhor alguma contenção. Afinal, ainda na semana passada teve um "imprevisto".
Anabela não conseguiu esconder o balde de água fria que a resposta lhe causou. Porém, refez-se rapidamente e concordou:
— Tem razão, doutor Maia. Até segunda!
— Até segunda, Anabela! — retribuiu, vendo-a afastar-se e ansioso por domingo. — Divirta-se!
Perto da porta, Anabela voltou-se para o chefe. O seu rosto era angelical e revelou um semblante carinhoso.
— Em vez de me divertir, este fim de semana vou aproveitar para descansar. Espero que o meu namorado não apareça este fim de semana. Estou mesmo a precisar de descansar.
Pensando ser uma brincadeira entre dois amantes secretos, Ivo sorriu e entrou no jogo:
— Hum... Ele é bem capaz de aparecer.
— Espero bem que não o faça! — afirmou de forma cortante. — Preciso mesmo de descansar. Bom fim de semana, doutor Maia.
Ivo percebeu a mensagem, assim que a porta se fechou.
O assunto foi a bater-lhe na cabeça desde o escritório até chegar a casa. Seria esse o preço por a ter? Teria chegado a hora de retribuir os encontros de domingo com dinheiro? Não chegava tê-la contratado? Na verdade, não a contratara para que fosse sua amante. O que o levara a escolhê-la? Pois...
Ao entrar em casa, o ambiente era silencioso. Percebeu que não estava sozinho porque havia claridade proveniente dos quartos. Largou a pasta e o casaco no vestíbulo. Olhou para a cozinha escura e a sala fracamente iluminada por resquícios de luz vindos lá de baixo dos candeeiros da avenida.
A filha mais nova apareceu no corredor.
— Estás sozinha?
— Sim.
— A tua mãe?
— Hoje tinha turno extra. Ela não te disse?
Ivo recordou-se que Sónia lhe dissera de manhã que iria fazer horas extra nessa noite e só deveria voltar de madrugada.
— Sim... — confirmou com um suspiro. — Já não me lembrava.
Ia para perguntar pela irmã dela, quando ouviu uma chave raspar na fechadura. A porta atrás de si abriu-se e Carla entrou.
Não precisava de perguntar para saber que ninguém se preocupara em preparar o jantar. Olhou para a filha mais velha.
— Vais sair?
— Acabei de chegar, pai.
Ele sorriu, a pergunta parecia absurda.
— Sim, não é isso... Vais sair esta noite?
Carla abanou a cabeça com um ar triste. Ivo calculou que não era só ele que carregava problemas relacionais.
— E tu? — A pergunta foi dirigida a Paula. Ela não costumava sair, mas era usual ir até ao apartamento do lado para estar com a amiga ou esta vir para o seu quarto e ficarem a ver Netflix ou HBO.
Paula abanou a cabeça.
— A Benedita arranjou namorado. — disse Carla no lugar da irmã. Havia decepção na sua voz. — Quando umas tontas não aproveitam, há outras que não desperdiçam.
Ivo não percebeu nada.
— Vou encomendar umas pizzas. Alinham?
Era isso ou alguma delas ir para a cozinha.
O fim de semana estava a ser uma seca para Ivo. Sónia chegara quase ao amanhecer de sábado e depois do meio-dia ainda dormia. Ele teve o cuidado de não a incomodar.
As filhas tinham saído para algo que já não faziam há algum tempo, uma saída de manas. Carla e Paula, mesmo com as normais quezílias entre irmãs, sempre foram muito unidas. Viviam uma época estranha, uma vez que Paula sentia a amiga de sempre a afastar-se para estar com o namorado, o seu primeiro namorado, enquanto Carla mantinha algum distanciamento de José Carlos, ainda a avaliar as consequências daquela noite e como isso poderia ter sido prejudicial ao namoro.
No domingo, Ivo não estava na disposição de passar aquele dia sem o "golfe". Acordou cedo, a hora que se tornara um hábito nas últimas semanas para aquele dia de descanso. Sónia dormia profundamente. Deu duas voltas na cama, procurou o relógio e viu as horas. Ia para se levantar, quando uma mão lhe segurou o braço.
— Bom dia, amor!
Ivo olhou para Sónia. Estava acordada.
— Bom dia, querida!
Baixou-se para lhe beijar os lábios.
— Vais para o golfe? — questionou ela, desperta.
Ivo hesitou. Estivera na cama a pensar numa forma de convencer Anabela a concordar que ele passasse lá por casa.
— Não sei...
Sónia encostou-se a ele, colando a camisa de dormir ao seu pijama. Tornou a beijá-lo. A cumplicidade de ambos não precisava de palavras para saber o que ela queria. Continuaram a beijar-se por longos minutos, de forma apaixonada, até ela travar o momento. Atirou a roupa da cama para trás, lençol e edredão caíram aos pés da cama para o chão. Despiu a única peça com que dormia, instigando o marido com o olhar para este se despir. Ficaram nus, ajoelhados sobre o colchão, frente a frente. Abraçaram-se. Sónia sentiu a excitação do marido entre as coxas. Beijaram-se. Olharam-se nos olhos.
Talvez tivesse sido aquele o clique, o estar olhos nos olhos com o marido, aquele marido maravilhoso que amava incondicionalmente, o qual ainda duas noites antes traíra com um jovem da idade da filha. Receou denunciar-se por esse mesmo olhar. Para se proteger, virou-se para a cabeceira da cama, colocando-se de costa para Ivo. Puxou-o para si conduzindo as suas mãos para os seus seios. Encostou o rabo à cintura dele.
Ivo não apreciava que ela ficasse de costas para ele. Tinha mais prazer se pudesse observar o êxtase no rosto dela. Já unificados, tentou mudar a posição, mas obteve a completa relutância dela.
Sónia também não morria de amores por aquele capítulo do kamasutra, mas sabia que era incapaz de o encarar durante o acto. Teria sido mais inteligente esperar pela noite, fazer amor a coberto da escuridão.
Em consequência, foi desconfortável para ambos. Ivo teve a sua descompressão e Sónia simulou que tivera prazer.
Enquanto a esposa abandonou a cama e correu para a casa de banho, Ivo teve consciência de como aquilo fora... Nem sabia como descrever sem ser "mau". Sentia um amor profundo por ela, mas o sexo... Não se sentia minimamente satisfeito, saciado. Pensou em Anabela e nos domingos passados com ela.
Deitado na cama, nu e a olhar para o tecto, ouviu o som do duche, a água a correr, Sónia a lavar-se do que haviam acabado de fazer. Deu por si a pensar quanto poderia custar uma “mala lindíssima”. Pegou no telemóvel e escreveu a mensagem "sei que queres descansar, mas estava a pensar que talvez me pudesses mostrar a tal mala".
A resposta demorou e quando o telemóvel apitou, Sónia regressara ao quarto, vestindo a roupa que normalmente usava para andar em casa. Ivo abriu a mensagem recebida e leu "já descansei ontem, estarei à tua espera para me levares ao shopping".
— Está tudo bem? — interrogou Sónia, vendo-o olhar pensativo para o aparelho.
Ivo anuiu e respondeu:
— Sim. É o pessoal do golfe.
Enquanto falava, teclou no ecrã "também quero ver a lingerie".
— Sempre vais jogar, hoje?
Antes de responder, leu "vais ter oportunidade de a ver no meu corpo".
— Sim. Hoje nem me apetecia. Mas parece que vai estar presente um irlandês, um tipo importante das telecomunicações.
21.2
José Carlos sabia que aquela noite fora um erro, não deveria ter pressionado a namorada e agora sofria as consequências disso com o visível afastamento de Carla. Não voltaram a abordar o sucedido e ela justificou o distanciamento com a necessidade de se concentrar numa fase importante dos estudos. Carla não evitava o namorado e na Faculdade continuavam a ser o casal habitual, havia beijos, havia carinho, mas José Carlos questionava-se se tudo aquilo não pretendia apenas manter uma certa aparência de que ele continuava a pertencer-lhe. Não voltaram a sair sem ser para encontros de amigos, como sucedera no aniversário de Afonso, momentos em que José Carlos tentava uma reaproximação e Carla mantinha o escudo invisível levantado.
Sabia que tinha errado ou, pelo menos, que não agira como deveria ter agido. Custava-lhe a admitir, mas o erro só acontecera porque, de certa forma, ele era tão virgem quanto ela naquela situação. Revira inúmeras vezes mentalmente a cena, o momento que deveria ter sido especial, memorável, uma recordação da fusão física do amor que partilhavam. Ao invés, tudo se resumira a excitação precoce e dor. Carla nunca lho dissera, mas ele poderia ter-lhe lido no rosto a palavra "desagradável", quando atingira o auge e percebera que para ela tudo não passara de desconforto. Tentou justificar-se a si próprio que a primeira vez de uma mulher nunca era bom, as vezes realmente arrebatadoras vinham com as repetições e aperfeiçoamento. Porém, receava ter sido tão mau amante que a namorada talvez não quisesse repetir a experiência.
No entanto, a situação como estava não podia continuar. Sentia‑se refém de uma relação que nem percebia muito bem naquilo que resultaria. Precisavam falar, esclarecer a visão que cada um tinha daquela noite, perceber o que falhara... Isso ele sabia, falhara tudo, falhara ele. Mas, tinham de falar e perceber como ultrapassar aquilo. Ou será que ela queria terminar?
Nessa tarde, ambos tinham aulas na Faculdade de Direito. José Carlos aproveitou a oportunidade, quando ela se aproximou para lhe dar um beijo, dizendo:
— Podemos encontrar-nos depois das aulas?
— Tenho de ir... — iniciou uma desculpa para recusar.
Ele não lhe deu tempo e insistiu:
— Precisamos de conversar.
Alguns dos amigos estavam por perto e nenhum deles queria dar sinal de que algo não ia bem no namoro.
Carla queria declinar, mas não encontrou palavras que não demonstrassem ao mesmo tempo que a relação estava em crise. Ela própria ainda colocava muitas questões a si mesma, pensando no que queria daquele namoro. Não queria perder José Carlos, mas também já não sentia a mesma magia.
— Não quero falar aqui. — sussurrou, aproveitando as conversas animadas dos outros estudantes.
— Onde tu quiseres, desde que seja hoje.
Aquilo soava a ultimato. Estava farta de ultimatos, estava cansada de ter de corresponder ao que esperavam dela. Também não queria combinar nada que implicasse que ele a fosse buscar ou que ficasse dependente dele. Se a conversa tinha de ser com aquela urgência, seria no seu território. Óbvio que não lhe iria sugerir a casa dos pais, mas combinou num café da Avenida de Roma.
Por que raio tinha de estar a chover? Parecia um presságio. Seria o resultado da conversa tão triste quanto o ambiente? Quando estivera na Faculdade a tarde parecia solarenga, mas o entardecer trouxe nuvens e pouco depois da hora de jantar, já noite, a chuva caía com abundância. Carla saiu de casa, surpreendendo os pais.
— Não demoro. Vou só tomar um café com o Zé Carlos.
Sónia sugeriu que a filha convidasse o namorado a subir, ao invés de ir para a chuva. Ivo pigarreou, revelando pouca disposição para receber o namorado da filha. Carla refutou a sugestão, não queria ter a "tal conversa" sob o olhar dos pais.
Assim, vestiu um sobretudo, calçou umas botas de cano alto e enfrentou a intempérie, segurando o guarda-chuva e caminhando os cerca de cinquenta metros que separavam o seu prédio da pastelaria. Nem sequer teve de atravessar a avenida, somente caminhar pela calçada.
José Carlos já a esperava, sentado solitário numa das mesas interiores da pastelaria. O estabelecimento tinha esplanada, mas só um maluco iria para lá com aquele tempo. Ele tinha o cabelo encharcado e o blusão pingava para o chão, pendurado nas costas da cadeira. Forçou um sorriso ao vê-la, quase como se temesse que ela não viesse. Levantou-se e recebeu o beijo suave que lhe deu nos lábios.
— Apanhaste uma molha...
— Tive de deixar o carro no parque. Já sabes como é esta avenida para estacionar.
O parque subterrâneo não ficava muito longe, mas com aquela chuva tornara-se longínquo.
Carla fez sinal ao empregado para que lhe trouxesse um café.
José Carlos tinha uma chávena suja vazia na sua frente, pelo que já deveria ter chegado há algum tempo e optou por tomar o seu café antes, talvez para não mostrar como estava nervoso.
— Aqui estou. Que queres falar? — incitou ela, observando o seu rosto, consciente que o amava mais que aquilo que seria aconselhável.
— Quero pedir-te desculpa. — foi o melhor que conseguiu para iniciar o assunto. — Quero pedir-te desculpa pela outra noite.
Carla sabia que iam falar daquilo, mas só ao ouvi-lo verbalizar é que se deu conta que iriam mesmo discutir aquilo, cara a cara. Olhou em volta, como se a clientela da pastelaria estivesse expectante pela sua reacção. Porém, as únicas três pessoas que se espalhavam pelas mesas nem repararam na presença deles.
Não estava em causa a sinceridade. Ela sabia o quanto ele era sincero consigo. Não conseguiu dizer nada, parecia bloqueada para comentar qualquer coisa que se relacionasse com aquela noite.
José Carlos interpretou aquilo como um castigo. Carla estava magoada com ele, pela forma como fora incompetente durante o acto.
— Não te devia ter pressionado.
— Pois... Não devias mesmo. — acabou por dizer, mantendo-se séria.
Ele assentiu, triste pelo seu comportamento.
— Quero falar abertamente sobre isso. — explicou, acariciando‑lhe a mão que não segurava a chávena. — Acho que temos de ter essa conversa.
Carla não queria ter aquela conversa, mas também não teve vontade de o impedir. Era um assunto pendente e quanto mais o mantivesse em suspenso, mais estaria a corroer o namoro.
— Fui uma besta, Carla! Queria tanto fazer amor contigo... — O rosto de Carla ruborizou, como se todos tivessem ouvido as palavras dele. — Acabei por ter pouco cuidado. Tenho noção que não foi bom para ti.
Ela revelou um sorriso escarninho.
— Não, não foi. — Depositou a chávena sem café no pires. Sentiu a mão quente dele sobre os seus dedos. — Foi... desconfortável. Sinto que fui uma... amante péssima.
— Não digas isso. A culpa não foi tua. Eu devia ter sido mais paciente.
Carla não conseguia encará-lo e falar sobre o assunto. Brincou com a colher de café no interior da chávena sem nada, olhando para as manchas do seu batom na porcelana.
— Estava insegura. Sabia que seria estranho... a primeira vez, mas... Não sei, acho que não estava a contar com a dor... com tanta dor.
— Acho que mais que a dor, causei-te uma ferida. E tenho medo que essa ferida seja fatal para a nossa relação.
As palavras dele fizeram-na ganhar coragem para enfrentar o seu olhar. Estremeceu por ele tocar no ponto. Inconscientemente, virou a mão que ele acariciava e fechou os dedos à volta dos dele.
— Também tenho medo.
— Achas que podemos voltar ao que éramos? Antes de... Eu amo-te Carla! Amo-te mesmo muito!
— Receio não estar à altura do que esperas de mim. — retorquiu ela, num tom meio soluçante. — Talvez eu não seja a mulher que desejes ter na cama.
— Não digas isso, Carla.
— Eu não quero voltar a fazer amor contigo!
A afirmação foi dita sem respirar e quase demasiado alto e susceptível de ser ouvida por estranhos. Carla sabia como aquilo seria fracturante, seria o fim do casal José Carlos e Carla. Ela amava-o, mas a simples ideia de se imaginar novamente com ele entre as suas pernas causava-lhe um arrepio na espinha.
Para sua surpresa, José Carlos não se mostrou surpreso.
— Já esperava que dissesses isso.
— Então, talvez a ferida não se feche. — lembrou Carla com os olhos húmidos. — Talvez tenhamos criado uma ferida fatal.
Ele abanou a cabeça, revelando-se mais lúcido que aquilo que ela poderia imaginar. Existiam tantas miúdas giras que o satisfariam mais e melhor... Para que perdia ele tempo, ali, com ela?
— Se eu aceitar esse compromisso, podemos voltar ao que éramos?
— Que compromisso, Zé?
— De não voltarmos a fazer amor.
Carla soltou uma gargalhada de escárnio.
— A sério? Achas que acredito que lides bem com isso? — Abanou a cabeça. — Não quero um namorado que me vá trair.
— Nunca te iria trair, Carla. Estou disponível a esperar o tempo que for necessário para que te sintas confortável para que voltemos a tentar.
— Já uma vez te dispuseste a esse compromisso. E depois...
— Agora sei o resultado que pode ter.
Houve um suspiro agastado. Carla estava cansada devido às incertezas em que o namoro deles se transformara. A forma como perdera a virgindade criara-lhe um sem número de receios e insegurança. Contudo, de uma coisa tinha absoluta certeza, amava-o com toda a força do seu ser e não queria deixar de ser sua nem que ele deixasse de ser seu.
— Eu amo-te, Zé!
— Eu também te amo, Carla!
Ela debruçou-se sobre a mesa e trocaram um beijo apaixonado.
21.3
A tristeza habitual no rosto de Paula adquirira maior intensidade com o namoro da amiga. Benedita apaixonara-se por Dinis e era correspondida, pelo que estava imensamente feliz com aquele acaso. Porém, Paula não estava triste por Dinis ter escolhido a amiga, até porque fora ela quem não lhe dera a mínima oportunidade. E Dinis acabou por agradecer aos deuses do destino porque Paula poderia ser mais vistosa, mas Benedita era mais calorosa e gostava tanto dele como ele descobrira que gostava dela. A tristeza de Paula tinha outra razão, uma razão tão absurda que até ela se recusava a aceitar esse facto.
Na escola, tanto ela como Benedita continuavam a ser vítimas de bullying por parte da execrável neta do presidente da república e do seu grupo. Benedita sempre fora o lado forte das duas e, agora que tinha namorado, a sua autoconfiança era ainda maior. Contudo, Paula sofria com essas investidas, com os insultos e com o facto de Patrícia nunca mais a ter atacado fisicamente, no WC feminino, puxando-a para um canto para a beijar e apalpar. Sim, aquilo que mais doía a Paula era não ter como voltar a sentir o sabor dos lábios da colega nos seus. E se o bullying era humilhante, Paula sofria mais ao ver Patrícia com o namorado, o rapaz mais giro do colégio, não porque quisesse o rapaz para si, mas porque queria estar no lugar dele.
Paula tinha agora mais momentos solitários, aqueles que costumava partilhar com Benedita e que agora a amiga "trocara" pela companhia de Dinis. Benedita continuava a nutrir uma amizade profunda e forte por Paula, mas aos dezassete anos e numa fase de descobertas era natural que preferisse estar aos beijos com ele que à conversa em casa com a amiga. Apesar de tudo, Benedita não falava muito do namoro com Paula, uma vez que lá no fundo sentia que lhe "roubara" um potencial namorado e interpretou o aumento da tristeza dela como arrependimento por não ter aproveitado o interesse do rapaz. Por isso, Benedita evitava o assunto.
Paula tinha então mais momentos solitários. E nesses momentos, fantasiava cenas que a envolviam a ela e Patrícia, descobrindo uma sensação estranha que parecia queimar-lhe o corpo, cada vez que imaginava a outra a beijá-la. Para além disso, todas as cenas envolviam violência, outra característica que Paula descobriu em si, quanto mais violência colocasse na fantasia, mais excitada ficava. Imaginava Patrícia a bater-lhe, a dar-lhe chapadas, a morder-lhe ao mesmo tempo que a beijava, a empurrá-la, a tocá-la à bruta... Todas as fantasias a colocavam a ser violentada pela colega de escola. E isso dava-lhe um prazer brutal, quase doentio.
No mundo real, Patrícia não voltou a interessar-se por Paula nesse capítulo, limitando-se às cenas normais de insultos a ela e a Benedita. Esse desprezo magoava mais Paula que qualquer palavra injuriosa que lhe dirigisse, mesmo que na frente de terceiros. Isso fez com que Paula se começasse a odiar a si própria. Numa tarde solitária em casa, estava tão deprimida que decidiu castigar-se, infligindo dor a si mesma, beliscando-se. Para além da dor, teve um arrepio de prazer. Deu por si a explorar o seu corpo e a sensação de dor noutros locais, beliscando ponto sensíveis.
Meu Deus, seria assim tão simples obter prazer?
Preferia que fosse Patrícia a magoá-la naqueles lugares do seu corpo, mas não havendo outra solução, imaginou a outra a fazê-lo, enquanto ela própria se fustigava de dor.
21.4
— Temos que acabar com isto! — avisou de forma assertiva, olhando para o jovem nu na sua frente. — Isto não pode continuar, eu sou casada.
— E? — questionou ele, olhando para os seios firmes dela apontados para si. Sorriu divertido. — Não estou à espera que te divorcies.
Sónia estava sentada na cama de um hotel barato em Lisboa com as pernas nuas a abraçar a cintura de Sebastião, igualmente sentado com as pernas cruzadas por baixo dela.
— Isto é errado. Sou tua superior, mentora e responsável pela tua educação como médico.
Sebastião anuiu descontraído.
— Sim. Adoro as aulas de anatomia.
— Pára de brincar! — exigiu, mantendo os braços atirados para trás, apoiando o corpo inclinado na direcção oposta a ele. Olhou para o porte musculado, os braços cruzados sobre o peito forte, a jovialidade que parecia fazê-la rejuvenescer, cada vez que faziam sexo. — Isto é bom, mas é errado.
O assentir leve da cabeça, levou Sónia a pensar que ele compreendia e a ajudaria a colocar um fim ao adultério.
Sebastião ficou em silêncio, contemplando um corpo feminino de meia-idade com todas as curvas no sítio, tudo no lugar. Colocou as mãos nas coxas dela e acariciou-as com ternura.
— Tal como disseste, isto é bom.
— Mas, é errado.
— Não interessa. — retorquiu. — Não estamos a fazer mal a ninguém.
— Eu estou.
— Não, não estás. Já te disse, não estou à espera que te divorcies.
Sónia sorriu, nunca trocaria o marido por homem nenhum, nem por aquele jovem com aspecto de deus grego. Dele só queria sexo. Pelo menos, nisso estavam em sintonia, porém ela queria que ele a afastasse, queria que fosse ele a ter a iniciativa que ela considerava ser obrigação sua. Mas, o sexo era tão bom.
O sorriso dela despertou uma reacção nele. Sónia sentiu-a por baixo de si. Abriu mais o sorriso e moveu as ancas num convite. Sebastião ajudou a que se voltassem a unir.
22.1
A cúpula do Partido Nacionalista Lusitano era composta por pessoas muito inteligentes, logo à cabeça com o primeiro-ministro Pinto Henriques e o seu mais próximo ministro, Raimundo Antunes. Contudo, apesar de todo o plano elaborado que tinham para o seu futuro de poder absoluto em Portugal, obtiveram também o factor sorte com a conjuntura política mundial que se vivia.
Em Espanha, a Catalunha insistia na independência. Sem uma posição estável nas cortes espanholas, o governo demonstrava insegurança dando abertura a negociações que não eram mais que empurrar o problema com a barriga. Jamais um governo daria independência a uma região de Espanha sem ser imediatamente deposto pelo rei. Contudo, essa fragilidade fez renascer pretensões semelhantes no País Basco, trazendo do passado a era de actividade terrorista dos independentistas bascos. Os espanhóis sentiam-se na sua grande maioria atraiçoados pelo governo, o que abriu caminho ao crescimento do partido nacionalista espanhol que já possuía uma fatia considerável de lugares no parlamento.
Em França, a extrema-direita chegava finalmente ao poder. Os sucessivos governos do início do século XXI não conseguiram resolver os problemas reivindicados pela população, a perda de poder de compra, um desnível cada vez mais acentuado entre as classes sociais, descontrolo da criminalidade e uma crescente agressividade contra estrangeiros, principalmente magrebinos e árabes do médio oriente, associados aos atentados que continuavam a acontecer sem que as autoridades demonstrassem ter condições para os evitar. Em resultado dessa eleição, a França fechou as fronteiras e deu início ao processo de saída da União Europeia, o que fazia de si o segundo país a entrar nesse caminho depois da saída do Reino Unido na consumação do famigerado Brexit.
O nacionalismo estava em forte crescimento por toda a Europa. Não se via nada assim desde os anos trinta do século XX. Alguns arautos vaticinavam já a morte anunciada da União Europeia.
A Itália tivera um regime parcial de extrema-direita que conseguira rechaçar e afastar até se ver novamente fustigada por hordas de migrantes em fuga dos seus países. Fartos de ver o sul do país transformado em campos de refugiados, o eleitorado italiano ofereceu a chefia de governo a um novo Mussolini que, mesmo assim, teve de fazer coligação com centristas para governar. Contudo, ia a caminho de fechar a Itália ao Mundo.
O Reino Unido prosseguia a sua caminhada solitária desagregada de uma Europa de onde quis sair, procurando sempre resgatar o melhor de dois mundos, as vantagens de ser membro da UE e as vantagens de não ser. Em resultado do Brexit, a Escócia queria a independência e procurava apoios na UE, principalmente na Alemanha. O nacionalismo de Londres era encapotado, uma interpretação de abertura a todos com acessos concedidos só a quem interessava.
A Áustria ia pelo mesmo caminho, tal como a Hungria e a Polónia, já com alguns anos de regimes com laivos de nacionalismo. A Suíça, um dos povos mais elitistas e mesquinhos da Europa, mantinha a sua posição neutral em tudo, mas começava a retirar direitos aos cidadãos não nascidos na comunidade helvética.
Por sua vez, o país onde surgira o regime nacionalista mais cruel da História, a Alemanha, mantinha-se imune ao nacionalismo. E apesar de consentir a existência de partidos com esses ideais, os alemães não tinham memória curta e não lhes davam hipótese de chegar ao Bundestag (parlamento alemão). Havia manifestações de extrema-direita e comícios de índole fascista e nazi. Só que eram tratados como aquilo que eram, meros ajuntamentos de marginais. A Alemanha tão criticada parecia ser o pilar que mantinha viva a União Europeia em desmembramento.
Por outro lado, os Estados Unidos, um aliado militar da Europa, era um adversário económico com um presidente que via no desmembramento da UE uma vantagem para a sua Economia. Apoiava as tendências nacionalistas na Europa com o objectivo de dividir para conquistar. Neste caso, dividir a economia europeia para a conquistar em proveito dos Estados Unidos.
Já a Rússia via na eventual morte da UE uma oportunidade para reforçar a sua posição militar, uma vez que o crescente nacionalismo europeu iria eventualmente provocar fissuras na NATO. Algo que o presidente americano não conseguia visualizar, cego pela oportunidade de lucro. E é preciso não esquecer que a Rússia era já um regime de nacionalismo extremo com objectivos claros de regressar aos tempos de poderio da União Soviética, tendo já dado os primeiros passos com o apoio à guerra na Ucrânia e a sua parcial invasão.
Nos restantes países europeus, notava-se um crescimento do nacionalismo, ainda sem grande expressão, mas com pretensões e caminho aberto para crescer.
Perante isto, o governo português tinha mais garantias para o golpe que pretendia executar, garantias que Rafael Guerra confirmara no seu périplo por vários países ao serviço secreto do PNL e do SIALE. A Europa tinha cada vez mais problemas com que se preocupar que olhar para aquele cantinho na Ibéria onde nacionalistas procuravam o poder absoluto num país pequenito.
Num Portugal continental dividido em oito regiões autónomas, o PNL dominava ao liderar todos os governos a norte do Rio Tejo, à excepção de Lisboa e Setúbal, a única região dividida pelo rio. As autónomas Entre Douro e Minho, Beira Litoral e Trás-os-Montes e Alto Douro eram governadas em maioria pelo PNL. Para além destas, governavam em coligação com os sociais-democratas na Beira Interior e em coligação com os socialistas na Estremadura e Ribatejo. Lisboa e Setúbal tinha um governo do MPP em maioria e no Algarve um governo em coligação com os sociais-democratas. O Alentejo fugia a toda a conjuntura política nacional e internacional ao ser governado em maioria pelos comunistas.
Desde as primeiras Regionais que o Alentejo era governado por uma acérrima e ferrenha comunista chamada Ondina Barrancos, uma mulher sexagenária com enorme influência em toda a região. Tinha uma imagem poderosa, rosto de sorriso cínico e postura de trabalhadora do campo, baixa e entroncada. Usava o cabelo grisalho curto e penteado para trás. De forma depreciativa, as pessoas diziam que se tivesse bigode era a cara chapada do Estaline. Envergava sempre calças de tecidos rudes e camisas axadrezadas ou camisolas de gola alta, predominantemente em tons vermelhos. Falava e gesticulava como um operário fabril sindicalista, algo que lhe estava nos genes. Governava em maioria e com punho de ferro. Toda a oposição política, até mesmo o PNL, tinham muita dificuldade em coexistir com os comunistas no Alentejo.
No entanto, o Alentejo via avolumar-se mais um conflito, uma vez que Portalegre reclamava mais direitos, mais atenção e mais protagonismo, revoltados por estarem inseridos, desde a Regionalização, numa região comunista de olhos postos em Beja e a rebocar Évora. Era sem dúvida um nicho de crescimento para os partidos mais fortes da Assembleia da República, PNL e MPP, mas apenas os nacionalistas pareciam obter resultados nos insatisfeitos portalegrenses.
Ondina Barrancos tinha noção de que o distrito de Portalegre estava a ser uma porta de entrada ao crescimento de eleitorado para a oposição na assembleia regional. Porém, apesar dos avisos dos seus assessores, ela preferia manter a ostracização do norte da região, indiferente ao crescimento do número de pessoas que começavam a evoluir do não gostar para o ódio profundo pela sua pessoa.
22.2
A manhã de Sol convidava a um passeio pela propriedade, uma herdade extensa onde se criavam cavalos e gado, para além da produção de mel e azeite. Ficava situada entre Nisa e Castelo de Vide, o local que os pais de Jorge Smith haviam escolhido para viver quando se mudaram para Portugal em plena II Guerra Mundial, fugindo aos bombardeamentos alemães e procurando refúgio num país que permanecia neutral e imune ao conflito.
Com oitenta anos bem conservados, Jorge nunca se cansava de olhar para a tranquilidade da paisagem, o lugar onde a família construíra o seu lar e a sua subsistência. Os seus pais poderiam ter ido para qualquer lugar, eram apenas um casal em fuga, refugiados de uma guerra sangrenta. Poderiam ter ido para o Douro que era mais comum aos britânicos, mas eles queriam algo diferente.
Jorge já nascera em Portugal, em finais da década de quarenta do século passado, após o fim do conflito mundial. Margaret e Óscar Smith nunca equacionaram regressar a Inglaterra. Margaret tinha somente um único familiar vivo, Robert, o irmão mais velho. Óscar já não tinha ninguém.
Uma ave de rapina piou sobre a cabeça de Jorge, lá no alto, a sobrevoar atenta em modo de caça. Deveria haver por ali um coelho ou um rato. O mais velho dos Smith conservava a sua imagem de homem do campo, afável e autoritário quando necessário. Todos gostavam dele, desde os empregados até aos vizinhos ou aos habitantes das localidades próximas. Curiosamente, os atritos costumavam vir da família, desentendimentos geracionais motivados por personalidades fortes.
Jorge enviuvara duas vezes, dois casamentos dos quais tinha quatro filhos.
O mais velho, Tobias, tinha o nome do bisavô, um homem com cinquenta e sete anos que auxiliava o pai na governação dos negócios. A mulher de Tobias e os seus três filhos viviam na herdade. A seguir, o irmão Wilson, dez anos mais novo que Tobias, aquele que mais se desentendia com o pai. Wilson vivia em Beja e as suas simpatias comunistas exasperavam Jorge que odiava a presidente do governo regional, Ondina Barrancos, pelo desinteresse manifestado para com a região deles. Contudo, Wilson defendia que a culpa daquela ostracização era dos próprios habitantes do distrito de Portalegre, os quais não se esforçavam por agradar ao governo regional. Escusado será dizer que o assunto era motivo para acesa discussão. Wilson era divorciado e tinha um filho. O terceiro irmão era Júlia Smith que vivia em Lisboa, vinte anos mais nova que Tobias e dez anos mais nova que Wilson. Por fim, a filha do segundo casamento de Jorge, Nevie (abreviatura de Genevieve, o nome da sua bisavó). Nevie tinha trinta anos, vivia na cidade de Portalegre e era um espírito livre cheio de rebeldia e com tendências anarquistas.
Curiosamente, os filhos de Jorge Smith eram o retrato das tendências políticas do país, Tobias partilhava a simpatia do pai pelo MPP, Wilson era comunista, Júlia virava-se para o nacionalismo e Nevie era contra todos os poderes instituídos.
Naquele dia, iria acontecer o encontro mensal, o Domingo do mês em que a família se reunia para um almoço na propriedade e para o velho Smith se ver rodeado dos seus filhos e netos. Contudo, aquele almoço seria diferente do usual, uma vez que ele tomara uma decisão que pretendia colocar em prática nessa tarde.
A família de Jorge guardava um segredo muito importante, uma verdade mantida escondida ao longo de mais de um século. Esse segredo da sua família estava relacionado com a sua avó e fora confiado à sua mãe e ao seu pai pelo avô Tobias. Como filho único, na altura devida, os seus pais passaram-lhe o segredo sem a interrogação que se lhe deparara ao longo dos últimos anos, se deveria transmitir esse segredo a todos os filhos ou somente a um deles. Só que os anos foram passando sem que ele se decidisse, até ao dia em que um seu amigo de longa data falecera subitamente, o que o despertara para a realidade de lhe poder acontecer o mesmo e acabar por levar o segredo consigo para o túmulo. Por isso, tomou a iniciativa de o fazer no almoço seguinte em que reunisse os filhos, pois iria partilhá-lo com todos.
— Pai! — gritou uma voz que lhe interrompeu os pensamentos.
Jorge voltou-se para trás e viu o seu filho a chamar, acenando. Tobias era quase uma cópia do pai, o mesmo ar encorpado, a boina na cabeça, as camisas aos quadrados com as mangas arregaçadas, as calças de tecido resistente enfiadas nas botas altas. Vinha avisá-lo que os irmãos estavam a chegar.
A casa da família era um edifício térreo, um único piso que se alongava numa boa dimensão. Jorge e o filho caminharam lado a lado, tendo o pai debitado diversas indicações de coisas a fazer nos próximos dias, como se temesse esquecer-se de uma que fosse.
Os restantes filhos aguardavam no alpendre da entrada, conversando animadamente, dando a imagem errada de que existia uma grande empatia entre eles. Era mera conversa de circunstância, uma vez que raramente falavam fora dali. O mais falador era Wilson, um autêntico parlapatão, contador de histórias onde ele tinha sempre o papel principal e onde surgia sempre como dono da razão. Vestia-se como o sócio de um clube de golfe, polo de marca, calças elegantes, casaco formal e sapatos a brilhar, mal-empregados para pisar terra batida. Júlia, envergando um vestido elegante em tons azuis, sorria cínica e anuía às palavras dele, discordando mentalmente de tudo. Entre eles, completamente alheada da conversa, Nevie dedicava toda a atenção no telemóvel e parecia a única com noção do sítio para onde vinha, ao vestir calças de ganga, camisola de malha e sapatilhas. Ao contrário da irmã que usava um penteado resultante de várias horas no cabeleireiro, Nevie tinha o cabelo cortado curto de forma tosca, quase como se tivesse sido ela a cortar o cabelo a si própria.
— Olá, pai! — cumprimentou Wilson, antecipando-se às irmãs.
Jorge recebeu o beijo do filho, olhando em redor.
— O meu neto?
— Não pôde vir... — lamentou sem convicção. — Fim de semana da mãe... Sabe como é.
— Não, não sei. — retorquiu aborrecido. — Nunca me divorciei. — Houve um semblante de pesar no rosto de todos, uma recordação muda da morte das mães. — E não me parece que a tua ex se recusasse a trocar o fim de semana para que o avô visse o neto.
— Ah... pois... Deixe lá, fica para o mês que vem.
Jorge teve vontade de insistir na revolta, mas a filha mais velha travou-o, cumprimentando-o com um beijo.
— Olá, pai!
— Olá, Júlia! Vieste sozinha?
Júlia trouxera o namorado no mês anterior. Pareciam muito apaixonados e Jorge foi levado a pensar que em breve iria haver novo casamento na família. Ela limitou-se a assentir. Porém, o pai manteve o olhar cravado nela, exigindo uma explicação.
— Terminámos.
— Terminaram?
— Sim.
— Quando?
— No outro dia.
— Pareciam tão...
Ela fez um sorriso de desdém:
— Lá está o pai. Foi só um caso amoroso. Ninguém esperava que durasse.
Jorge abanou a cabeça, incrédulo com a forma leviana como os jovens levavam a vida. Quantos namorados conhecera à filha? Quantos nem chegara a conhecer? Não queria pensar nisso. Direccionou o rosto para a filha mais nova.
— Não vais dar um beijo ao teu pai?
Apesar dos seus trinta anos, na presença do pai, Nevie comportava-se como uma adolescente enfadada. Na verdade, ela e o pai nunca tiveram grande proximidade e tudo se degradou mais com a morte da mãe. Tal como acontecia com Wilson, era fácil que se desencadeassem discussões de teor político entre eles, aliás, eram as únicas vezes em que Nevie se revelava e mostrava a todos a sua rebeldia e espírito interventivo na defesa do ideal utópico de que somos todos iguais e tudo é de todos. Fora isso, era apenas uma mulher pacata que viera cumprir a obrigação de almoçar com o pai e os irmãos.
Era exasperante para Jorge as visões políticas dos filhos esquerdistas. Porque não podiam ter todos os olhos abertos como o filho varão? Ou, no mínimo, a inclinação questionável de Júlia para o nacionalismo?
Jorge entrou em casa, liderando o grupo de filhos que o seguia, sempre com Wilson a tagarelar, procurando ser o centro das atenções. Na longa sala de refeições, o filho mais velho e o mais novo de Tobias já ocupavam os seus lugares na mesa, frente a frente, na extremidade oposta ao lugar do patriarca da família. A esposa de Tobias e a filha permaneciam na cozinha a preparar o almoço.
O filho mais velho de Tobias, Álvaro, tinha vinte e poucos anos e era estudante universitário em Portalegre. Preparava-se para ser o próximo elemento da família a entrar no negócio. O seu rosto virou-se para a chegada dos tios, evitando olhá-los directamente. Trocaram-se cumprimentos distantes, principalmente entre Álvaro e Nevie. O filho mais novo de Tobias ainda nem entrara na adolescência e ignorara completamente os tios, permanecendo de olhar vidrado no telemóvel, a jogar.
Jorge sentou-se no seu lugar habitual, à cabeceira da mesa. Tobias sentou-se à sua direita e Wilson apressou-se a ocupar o lugar à esquerda do pai, olhos nos olhos com o irmão mais velho. Júlia escolheu para si a cadeira junto de Wilson. Entre ela e Álvaro, ficou Nevie, o que pareceu deixar o jovem desconfortável.
Por breves instantes, o silêncio dominou o ambiente. Subitamente, ninguém parecia saber o que dizer. Foram todos salvos pela entrada da nora de Jorge que, auxiliada pela filha adolescente, transportava o almoço para a mesa. Ambas ocuparam as únicas cadeiras vazias, entre Tobias e o elemento mais novo da família Smith.
Todos se serviram à vez, tendo Álvaro servido o irmão que parecia ignorar que o almoço iria começar. Foi o pai quem o chamou à realidade, ordenando-lhe que largasse o aparelho.
Apesar de a imagem de família transparecer calma e afável, poderia sentir-se alguma tensão no ar. Existiam assuntos mal resolvidos entre alguns elementos e pairava sobre todos o receio que o início de qualquer assunto descambasse em discussão. Tobias via Wilson como o irmão que nada dera à propriedade e muito lucrara com ela, um privilegiado. Por seu lado, Wilson via em Tobias alguém que açambarcava para si aquilo que deveria ser distribuído pelos irmãos de forma igualitária. Já Júlia não gostava da mulher de Tobias, pois esta entrara na família pouco antes da morte da primeira mulher de Jorge e acabara por ser a figura feminina dominante na casa e a quem devera obediência até se mudar para Lisboa. Esta antipatia era partilhada por Nevie que sofrera algo semelhante após o pai enviuvar segunda vez.
— Como estão a correr os negócios? — questionou Wilson, fazendo assunto.
Tobias fez uma expressão sarcástica.
— Até parece que te preocupas com isso.
— E preocupo.
— Tu preocupas-te é com a tua parte, com aquilo que te possa vir a calhar em herança.
— Tanto quanto tu.
— Eu, ao menos, contribuo para o negócio, já tu...
— Eu...
— Podem parar com isso? — exigiu Jorge. — Eu ainda não morri.
— Peço desculpa, pai!
— O Tobias é que começou.
— Pareces um miúdo, Wilson! Não te preocupes que os negócios estão bem entregues na minha mão. E o teu irmão tem sido um auxílio precioso. Se tivéssemos um governo regional que não olhasse para esta parte do Alentejo como se fosse um gueto, ainda poderíamos estar melhor.
Houve um suspiro dos restantes, aproximava-se um foco de discussão.
— A doutora Ondina faz o que pode e não diferencia os seus concidadãos.
Jorge olhou para Wilson com um semblante irritado.
— Estás a gozar comigo?
— Não. Só estou a constatar um facto. É muito mais fácil atribuir as culpas dos insucessos à presidente do governo regional.
— Vá lá! Não vamos agora discutir política ao almoço. — interveio Júlia para acalmar os ânimos.
— Essa comuna não mexe um dedo para o desenvolvimento de Portalegre. Só mesmo os comunas cegos como tu é que acham o contrário.
— O Alentejo é uma das regiões que mais tem evoluído no país, longe dos compadrios do corporativismo, dos capitais e dos grupos empresariais.
— Ó meu Deus! Pareces uma gravação, Wilson. Essa ladainha já nem se usa. A tua presidente é uma mulher mesquinha.
— Portalegre é um distrito que quer sugar dinheiro à região para explorar ainda mais a classe operária.
— Olha lá! Nós temos vários empregados, vários elementos dessa "classe operária". Vai lá perguntar-lhes se estão a ser explorados.
— Não me referia aos seus empregados.
— Pois... Referes-te à figura abstracta do homem do campo explorado que ninguém vê, mas que os comunistas acreditam que existe. Achas que a terra é de quem a trabalha? Tens bom remédio, quando herdares a tua parte, entrega-a aos nossos empregados.
— Sou bem capaz de o fazer.
— Sim, sim, Wilson. Mais depressa enfiavas tudo na porcaria do partido da tua presidente.
— Vamos mudar de assunto, pai. — pediu Tobias. — Já sabe que não vale a pena discutir esse tema com o Wilson.
— Como têm corrido os estudos, Álvaro? — questionou Júlia, sem grande interesse, apenas para mudar de assunto.
Álvaro respondeu com um cenário optimista, acentuado pela mãe que alavancou os resultados do filho. A seguir, prolongou a questão aos restantes filhos, relatando como iam na escola e as boas perspectivas de sucesso desse ano lectivo. Júlia ignorou-a.
O almoço prolongou-se sem que houvesse grandes assuntos. Jorge não se pronunciou, mas lamentou para si que se visse rodeado de pessoas que revelavam estar a fazer um frete por ali estar. Em alguns momentos, o único som na sala eram os talheres a embater nos pratos e o som dos pássaros lá fora. Assim que terminou, a sua nora começou a levantar a mesa com a ajuda da filha.
— Álvaro! — chamou o avô. — Podes tirar uns cafés para nós?
— Claro, avô. — aceitou, levantando-se da cadeira e olhando para os tios. — Quem quer café?
À excepção do seu irmão mais novo, o qual saiu da mesa e da sala, todos aceitaram.
Ao ficar sozinho com os filhos, Jorge informou:
— Quero ter uma conversa importante com vocês os quatro no meu escritório.
22.3
O escritório era um espaço confortável iluminado por duas janelas pequenas viradas a sul, composto por uma secretária de trabalho com um cadeirão atrás, um sofá e duas poltronas. As paredes vazias continham somente algumas molduras com referências a notícias sobre os cavalos criados na propriedade. O mobiliário era simples e apenas para apoio do escritório com estantes de pastas e livros.
Jorge encabeçou o grupo que entrou na divisão, sentando-se no seu lugar atrás da secretária. Tobias escolheu para si a poltrona mais próxima da mesa de trabalho. Wilson e Júlia ocuparam o sofá, confrontando o irmão mais velho. Sem grande interesse na reunião, Nevie arrastou-se atrás do grupo e despenhou-se na poltrona mais longínqua da sala.
O rosto sério evidenciado por Jorge deixou os filhos apreensivos, interrogando-se sobre o que sairia daquela reunião. Que assunto sério seria esse que o pai tinha para partilhar longe dos ouvidos da nora e dos netos?
— Chegou a hora de vos dar conhecimento de algo muito importante que tenho mantido em segredo.
— Meu Deus, pai! — interrompeu Júlia. — Não me diga que está doente?!
Jorge Smith levantou a mão para que a filha se mantivesse em silêncio e abanou a cabeça, negando essa hipótese. Observou os rostos curiosos dos quatro e prosseguiu:
— A nossa família guarda um segredo importante que tem passado de geração em geração. Bom... De facto, só passou do vosso bisavô para a vossa avó e da vossa avó para mim. Resta-me transmiti-lo à minha descendência, ou seja, a vocês os quatro.
Algo no tom grave da voz de Jorge manteve os filhos na expectativa sem que ninguém se arriscasse a interrogar ou interromper. Que segredo seria esse com mais de um século?
— A vossa bisavó Genevieve nasceu e cresceu nos arredores de Londres. Não sei se alguma vez comentei isso com algum de vocês. — Houve um abanar de cabeça de Júlia e Tobias, enquanto Wilson mantinha o olhar cravado no pai. — Aos... acho que dezasseis anos, conseguiu emprego como criada de uma família nobre inglesa. Tornou-se muito amiga da senhora baronesa que, apesar de ter filhos e filhas, tinha um carinho especial por ela. A avó Genevieve acompanhava a senhora para todo o lado, inclusive à casa de um monarca exilado recentemente em Londres, o qual se vira despojado do trono no seu país. — Jorge fez uma pausa, analisando as expressões expectantes dos ouvintes. — Decorria o ano de 1911. A senhora baronesa tinha grande admiração pelo ex-monarca, um jovem de vinte anos, e via nele uma boa possibilidade de casar uma das filhas e, quem sabe, fazer dela rainha quando ele recuperasse a coroa. Acontece que o imprevisível... Quer dizer, imprevisível para a senhora baronesa, caso contrário jamais se teria feito acompanhar pela criada nas visitas ao jovem com as filhas. Apesar de, segundo a vossa bisavó, as moças serem bem bonitas, ela superava-as bastante em beleza. Por isso, o jovem apaixonou-se pela criada da baronesa.
Júlia fez uma expressão de espanto. Wilson fez um gesto de desdém e desvalorizou:
— Isso parece um argumento de filme de má qualidade.
— Quem era o jovem? — questionou Tobias.
Jorge ponderou se haveria de o revelar naquele momento ou continuar a história. Encostou-se na cadeira, manteve o olhar nos quatro rostos e disse:
— O último rei de Portugal.
— O quê? — espantou-se Wilson.
Jorge confirmou com um aceno de cabeça.
Júlia demonstrou toda a incredulidade e suspirou:
— A nossa avó envolveu-se com...
Nevie pronunciou-se pela primeira vez, ganhando um interesse renovado.
— Calma! Deixem o pai continuar.
— Ele apaixonou-se pela avó Genevieve de tal forma que pretendia mesmo casar-se com ela.
— Querem ver que somos todos descendentes dele?! — tornou a interromper Wilson.
Tobias deu um soco no braço da poltrona.
— Ó pá, cala-te! Deixa ouvir o pai!
— Não, não somos descendentes do último rei, nem herdeiros do trono. — informou Jorge, fechando desde logo aquela possibilidade. — No entanto, a bisavó Genevieve teve um caso amoroso com ele.
— Um caso?
Percebendo onde Nevie queria chegar, Jorge não deixou dúvidas:
— Encontravam-se em segredo na casa de um amigo do rei, perto de Twickenham. E sim, houve envolvimento sexual.
Com o sentido prático que lhe era característico, Júlia questionou:
— Se pretendia casar com ela, porque não o fez?
— Só se quis aproveitar dela. — respondeu Nevie. — Era um rei a tirar proveito de uma pobre criada.
— Estás enganada, Nevie. — corrigiu o pai. — Segundo as memórias da vossa bisavó, ele queria mesmo fazê-lo. Contudo, não pudera assumir o seu amor por Genevieve e casar com ela, como era sua vontade, por isso ir contra a tradição real. Um monarca não podia casar com uma plebeia. E os monárquicos continuavam a alimentar a esperança de voltar a restaurar a Monarquia em Portugal. Sendo assim, o jovem ex-rei teria de casar com alguém de linhagem real. O último monarca português partilhou o seu sentimento junto dos que lhe eram próximos, sendo todos eles contrários a esse desejo. Acontece que, com o decorrer desses encontros, a vossa bisavó engravidou.
Houve uma reacção de espanto unânime. Wilson antecipou-se na adivinha:
— A avó Margaret?
— Idiota! — retorquiu Tobias. — O tio Robert era mais velho que a nossa avó Margaret.
— Isso é verdade? — interrogou Júlia, sentindo-se a viver um cenário surreal. — O tio Robert era filho do rei?
Jorge Smith anuiu lentamente, dando-lhes tempo para digerir a informação.
— Então é esse o segredo. — concluiu Nevie.
— Sim.
— E o rei soube?
— Claro.
— E abandonou-a! — atalhou a filha mais nova que abominava a distinção das pessoas por classes sociais.
— Não, Nevie, não a abandonou. Aliás, o ex-rei era suficientemente novo e ingénuo para ter pensado que esse facto validaria a sua intenção de casar com ela. Claro que isso não aconteceu. Em resposta a essa eventualidade, a rainha-mãe, a viúva do rei assassinado, com a ajuda de outros monárquicos, escolheu uma noiva para o rei exilado, a princesa com quem ele viria a casar.
— Não lutou por ela, pela nossa bisavó. — lamentou Júlia. — Ou, pelo menos, não o suficiente.
— Agora podias ser princesa. — ironizou Wilson.
— Seriamos certamente melhores que os Souvares.
— Deixem-se de lirismos! — admoestou o pai. — Nós não somos descendentes do rei.
— Sim, isso já percebemos. — disse Tobias. — O descendente é o tio Robert.
Jorge deu continuidade ao relato:
— Apesar de não poder assumir aquele filho e ter de se afastar da vossa bisavó, o jovem ex-rei fizera chegar, por intermédio de pessoa da sua confiança, dinheiro a Genevieve para que nunca lhes faltasse nada. Claro que não voltou a contactar com ela e julgo que nunca chegou a conhecer o filho.
— E o bisavô Tobias? Sabia que Robert não era seu filho?
Jorge anuiu à pergunta da filha mais velha.
— Quando conheceu Tobias Norton, a bisavó já estava grávida. E vivia um momento particularmente difícil, uma vez que confessara a gravidez à baronesa e, em resposta, esta expulsara-a da casa. Claro que nunca revelara quem era o pai e passou por uma reles rameira que não soubera manter as pernas fechadas.
— Escumalha nobre. — vociferou Nevie num tom enojado.
Jorge ignorou o comentário.
— Mas, continuando... A bisavó conheceu o bisavô Tobias. Nessa altura ainda não se notava a barriga, mas perante o afastamento do pai da criança e a crescente proximidade de Tobias, ela revelou-lhe a verdade, mesmo sabendo que isso o poderia fazer repudiá-la. Só que o bisavô Tobias era um homem com H grande. — Jorge sorriu. — Ou apenas um homem apaixonado por uma jovem linda.
— E casou com ela. — completou Júlia, falando encantada como se estivesse a ver uma comédia romântica.
— Sim, eles casaram depois do nascimento da criança. Contudo, para evitar o falatório de quem nada mais tinha para fazer, optaram por se afastar de Londres.
— E o crápula do jovem rei? — questionou Nevie, vendo o ex‑monarca como um ser abjecto. — Seguiu a sua vida e esqueceu a jovem de quem se aproveitara.
— Estás a ser injusta, Nevie. Não foi assim que aconteceu. Algum tempo mais tarde, ele encontrou-se secretamente com o bisavô Tobias e, por vontade do ex-rei exilado, firmaram um acordo de forma a que o pai de Robert financiasse a família. Com o passar dos anos e sem que a esposa do rei deposto gerasse um filho, este entregou a Tobias documentos que provavam a relação dele com Genevieve, a troca de correspondência e a verdadeira paternidade de Robert. Mesmo assim, o último rei de Portugal deixou escrito que, após a sua morte e não havendo outros herdeiros, deveria ser tornado público a existência daquele filho bastardo, o qual teria direito legítimo em reivindicar a coroa que o pai perdera.
— Mas isso nunca aconteceu. — lembrou Tobias bisneto. — Ninguém soube.
— Quando o rei exilado faleceu de forma súbita, ainda novo, em 1932, essa última vontade desaparecera dos registos. — explicou Jorge. — Caberia a Tobias Norton tornar pública a paternidade de Robert com base nas provas que lhe haviam sido entregues pelo ex-rei. Conhecendo o segredo da linhagem de Robert, Tobias Norton sabia também que a possibilidade de reconquistar Portugal para a Monarquia era uma utopia. Se o verdadeiro monarca não o conseguira em mais de vinte anos, não seria um jovem bastardo a alcançá-lo. Temendo pelo efeito que essa revelação pudesse ter na vida de Robert, Tobias e Genevieve esconderam a verdade de todos, incluindo do filho.
— Então, como é que isso chegou ao seu conhecimento?
A questão de Wilson recebeu resposta:
— O bisavô Tobias Norton tinha inteligência para saber que, mesmo não usando aquele segredo, não o deveria apagar da História. Talvez um dia pudesse ser útil. Por isso, incumbiu a sua filha Margaret da guarda da documentação. Ela fora a única pessoa que ficou a conhecer o segredo com a missão de o transmitir à sua descendência, mas sem que o irmão ou descendentes deste soubessem.
— Então o tio Robert nunca soube?
— Não. Os vossos bisavós passaram o segredo a Margaret que era quatro anos mais nova que o vosso tio Robert. A avó Margaret, como sabem, veio a casar com o avô Óscar Smith.
— E o tio Robert?
— Ao contrário dos vossos avós, o tio Robert permaneceu em Inglaterra. Casou e teve uma filha, a prima Matilda que viria a casar com o primo Charles...
— Do qual nasceu o primo Peter, isso já nós sabemos. — atalhou Wilson, demonstrando-se subitamente com pressa de terminar aquela reunião. — Começa a fazer-se tarde e eu tenho de regressar a Beja.
— Vai andando. — sugeriu Tobias, mantendo a atenção no pai.
— O primo Peter veio para Portugal. — lembrou Júlia. — Eu recordo-me. Nos anos oitenta, não foi?
— Sim, veio visitar-me. — confirmou Jorge Smith. — Ia passar uma temporada em Coimbra. Era para ser temporário, mas acabou por se apaixonar por uma estudante universitária portuguesa e ficou por cá.
— Recordo-me de ir ao casamento. — disse Tobias.
Wilson também se recordava da cerimónia.
Jorge Smith fez uma expressão abatida.
— Faziam um casal muito bonito. E a nossa prima portuguesa era uma joia. Aquele acidente...
Subitamente, uma névoa de tristeza abateu-se sobre todos, motivada pela trágica recordação. Peter e a esposa tiveram um grave acidente de automóvel que custou a vida a ambos, sobrevivendo somente a única filha do casal, suficientemente nova para nem se recordar do momento. A jovem acabou por ser criada pelos avós maternos.
Júlia quebrou o momento de pesar com a certeza que se deparava aos irmãos:
— Então o legítimo herdeiro do trono de Portugal é...
— O herdeiro do trono de Portugal é a nossa prima. — confirmou Jorge. — A questão da legitimidade será sempre controversa. Mas, não há dúvida que é nas veias dela que ainda corre o sangue real da linhagem do último monarca.
Nevie levantou-se da sua poltrona, demonstrando algum desprezo pelo que acabara de ouvir.
— As monarquias estão mortas. E as que ainda existem irão acabar mais tarde ou mais cedo. Não percebo o dramatismo desse segredo que, para mim, não tem valor nenhum. Portugal é uma República. A nossa prima não é herdeira de nada.
— É herdeira do património real. — lembrou Wilson que aproveitou também para se levantar. — Aquilo que está na posse dos Souvares deveria ser dela. Seja como for, não é problema meu. — Olhou para o relógio e depois para Jorge. — Pai! Tenho de ir andando.
O patriarca dos Smith fez um aceno concordante e recebeu o beijo de despedida do filho.
— A Monarquia é retrógrada, um conceito antiquado. — insistiu Nevie. — Não tem lugar nos países desenvolvidos.
— Pois, pois... Só sobrevive em países de terceiro mundo como o Reino Unido. — retorquiu Wilson irónico. — Até à próxima, Nevie.
Nevie despediu-se do irmão com um gesto seco.
Mantendo o seu lugar no sofá, Júlia manifestou a sua opinião:
— É um segredo importante, mas apenas pelo ponto de vista patrimonial. O facto de poder ser herdeira do trono é irrelevante, a meu ver, já que esse trono não existe.
— Eu acho que deveríamos contar-lhe. — sugeriu Tobias. — Ela tem o direito de saber. Eu quereria saber no lugar dela. E ficaria muito revoltado com quem me escondesse isso.
— E o que achas tu que a nossa prima poderia fazer em relação a isso, Tobias? — A pergunta veio de Wilson ao abrir a porta do escritório. — Sozinha contra os Souvares? Contra a família que há um século que é vista por quase todos como herdeiros reais. E ia fazê-lo para quê? Lutar por uma coroa inexistente? Pela riqueza patrimonial? Enfrentar os monárquicos que continuam a acreditar que um dia voltaremos a ter um rei? Não me parece que a nossa prima queira fazer ainda mais inimigos.
— Sim. Já deve ter que chegue. — concordou Júlia, levantando‑se.
Wilson despediu-se de todos e desapareceu pela porta que abrira.
Nevie seguiu-lhe o exemplo, aproximando-se do pai para lhe dar um beijo de despedida e lançar um aceno aos irmãos.
Júlia parecia ser aquela que mais ficara perturbada com a revelação.
— Portugal já não tem reis. Mas, se isso se soubesse, poderia pôr em causa o património dos Souvares. Acho que devemos manter tudo em segredo. E, graças a Deus, que eles não sabem disso. Caso contrário, sabe‑se lá o que não poderiam fazer contra ela. — Deu um beijo ao pai. — Seja como for, não nos diz respeito. Se fossemos uma Monarquia, tínhamos o dever de expor a história. Sendo uma República, o assunto resume-se a luta patrimonial, o que é irrelevante para nós.
— Ela é nossa prima. — lembrou Tobias. — É família. Temos o dever de defender os interesses dela.
— E que interesses são esses, Tobias? Colocá-la na linha de fogo de todos os monárquicos deste país? Que ganharia ela com isso?
— Justiça, Júlia!
A irmã soltou uma gargalhada de escárnio.
Tobias olhou para o pai.
— Pelo menos, tem o direito de saber.
— Façam como entenderem. — finalizou Júlia. — Tenho de regressar a Lisboa e, infelizmente, ainda não fizeram uma autoestrada daqui até lá.
Sozinhos no escritório, pai e filho entreolharam-se.
— Todos estes anos me debati com a dúvida se haveria de partilhar isto com todos ou só contigo. Chego à conclusão de que perdi o meu tempo com os teus irmãos. Nenhum me pareceu preocupado ou ter a noção da dimensão deste assunto.
— Seria certamente mais polémico, se Portugal fosse um reino e nós pudéssemos colocar em causa o rei. Assim... Sou obrigado a concordar com a Júlia, tudo se resume a luta pelo património que os Souvares arrebataram para si com a justificação de serem a única linhagem real existente.
— Os republicanos portugueses foram muito competentes no regicídio, mas também tiveram a sorte do lado deles. Mataram o rei e o príncipe, beneficiaram da fraqueza da pobre alma que subiu ao trono, a qual nunca conseguiu gerar um herdeiro legítimo. O sucessor mais próximo, o irmão de D. Carlos também não gerou herdeiros... Enfim, os astros alinharam-se pela República.
Houve um silêncio ponderativo na sala.
— Continuo a achar que o pai deveria contar-lhe a verdade.
Jorge abanou a cabeça.
— Não é essa a minha função. O segredo foi-me delegado para que o guardasse, não para o divulgar.
— Então para que o guardamos? Porque não deixá-lo morrer connosco?
Jorge Smith não tinha uma resposta concreta para lhe dar.
— Quando eu morrer, és livre de o divulgar, se assim entenderes. — Encolheu os ombros. — Ia dizer-te que consultasses os teus irmãos antes, mas... Sinceramente, acho que estão a lixar-se para o assunto. Calculo que, cada um deles, ao chegar a casa, já nem se lembrará deste segredo.
— Não teria tanta certeza, pai. A Nevie, talvez. A Júlia não sei bem o que pensar, mas terá outras coisas com que se preocupar. Agora o Wilson... Onde cheirar a dinheiro...
— Não digas isso do teu irmão.
— Não é mentira, pai.
— O teu irmão tem outras ideias, visões diferentes das nossas... Se ele se apanhasse com a fortuna dos Souvares, ainda enfiava tudo nos comunas.
Tobias riu-se numa expressão sarcástica.
— Não me parece que o comunismo dele seja tão fanático. O Wilson, no que respeita a dinheiro... Basta ver a forma como observa tudo e quer saber tudo, nas poucas vezes que cá vem. Parece que tem medo que lhe fiquem com alguma coisa.
Jorge concordava com aquele ponto de vista, mas omitiu a sua opinião. Levantou-se da cadeira e espreitou pela janela.
— Aquilo a que me propus está feito, transmiti-vos o conhecimento. Agora, é hora de voltar ao que realmente interessa. Anda, Tobias, vamos às cavalariças ver como estão os cavalos.
Nota do Autor
Nesta nota de autor, pretendo esclarecer alguns pontos desta história que me parecem importantes, a fim de evitar confusões ou interpretações erróneas que se possam formar de um livro que pretende apenas e unicamente ser uma obra de ficção e um bom momento de leitura. Como referi anteriormente, qualquer semelhança entre as personagens e pessoas que vos lembrem vagamente alguém é pura coincidência. Não me baseei em ninguém para a criação de qualquer protagonista ou figura secundária desta história.
O primeiro esboço de Os Corvos de São Jorge foi escrito em 1997, ainda antes do referendo da Regionalização. Era um tema muito falado na época, daí que tenha estimulado a minha imaginação para um enredo que se desenvolveu bastante ao longo dos anos seguintes. Os Corvos de São Jorge foi mesmo o primeiro projecto de livro que escrevi, o qual ficou “na gaveta” ao longo dos anos, sendo desenvolvido e enriquecido por novas personagens, novos enredos, novas visões… Já para não falar que também a minha experiência na escrita evoluíra imenso como é natural.
No entanto, há pormenores que remontam ao esboço inicial, como acontece com o partido político que engloba o maior grupo de malfeitores da história, o Partido Nacionalista Lusitano. Nesta ficção literária, o PNL é um partido de extrema-direita que pretende exemplificar todos os perigos que partidos extremistas, sejam de direita ou esquerda, podem representar numa sociedade democrática. Naquela época, eu estava longe de imaginar que, passadas duas décadas, teríamos uma força política parecida a ser a terceira maior bancada no parlamento. Também nesse esboço nasceu o MPP como a representação de um partido centrista, equilibrado que tem como função ser a oposição aos extremismos. Nenhum elemento de qualquer partido obteve inspiração em algum político do passado ou do presente da realidade política de Portugal. O PNL é uma espécie de ideologia idêntica ao nacional‑socialismo de Hitler que tem como líder um homem que explora ódios antigos, ódios adormecidos que, de tempos a tempos, são despertados para reivindicar direitos. Seja pelas constantes acusações de centralismo de Lisboa, os ódios das claques dos clubes do sul e do norte ou apenas por bairrismos, o cenário coloca somente a hipótese do que poderia ser o futuro do país, se um homem usasse esses conflitos que nos parecem irrelevantes para um potencial capaz de dividir Portugal. E esse tema explora a hipótese de adicionar a essas querelas regionais a divisão de Portugal continental em regiões autónomas, deixando-nos num cenário idêntico a Espanha e que a realidade nos tem mostrado ser foco para grupos independentistas. É claro que Portugal é um país de brandos costumes. Porém, não é por só acendermos uma vela que isso impede, por desatenção, que essa pequena chama toque um cortinado e incendeie uma casa.
Continuando a esclarecer alguns factos relatados no livro, confirmo que os reis referidos existiram, mas isso penso que é da sabedoria geral de quem tem conhecimento da nossa História de Portugal.
Comecemos por D. Miguel que, enquanto rei de Portugal, foi responsável por uma guerra civil. Não vou fazer um relato extenuante dos acontecimentos da época, parte deles foram já descritos nas conversas de Clara Jordão com o seu padrinho. Recomendo aos interessados a pesquisa e leitura desse período da nossa História. No que respeita aos relacionamentos amorosos de D. Miguel, durante o seu reinado, sendo solteiro manteve uma relação duradoura com uma nobre da qual resultou a sua primeira filha que ele reconheceu mais tarde como legítima para suprir a necessidade que tinha de apresentar sucessão dinástica. Reza a época que D. Miguel terá tido uma segunda filha, enquanto rei, fruto de uma relação com uma mulher de origem humilde, a qual não obteve o mesmo reconhecimento da irmã. Contudo, nenhuma delas casou com um Souvares, até porque a família Souvares não existe. E como não existe, nenhum Souvares usurpou o título de duque de Bragança ao neto de D. Miguel, D. Duarte Nuno, cujo pai foi D. Miguel Januário, um dos sete filhos do rei exilado, todos do seu casamento na Alemanha com a princesa Adelaide de Löwenstein‑Wertheim-Rosenberg, e todos eles nascidos no exílio. É claro que as primeiras filhas reclamaram o direito de sucessão, mas sem sucesso, talvez porque não tivessem tido a sorte de se cruzar com o Souvares calculista e manipulador que se julga que terá sido a personagem descrita na reunião da Irmandade dos Ducados Extintos. É certo que, apesar de Portugal ser uma república, a questão da sucessão e direito a um trono que não existe em Portugal continua a ser discutida entre os monárquicos, havendo diversas linhas reivindicativas desse título, seja por supostos filhos bastardos do rei D. Carlos, seja proveniente dos descendentes de D. Miguel, seja por outras pretensões. Recomendo aos interessados no assunto uma pesquisa histórica para perceberem os argumentos de todas as pretensões, bem como as alegações que definiram o neto de D. Miguel como legítimo herdeiro do título de Duque de Bragança e do trono português.
Certo é que o último rei de Portugal, D. Manuel II, não teve filhos no seu casamento com a princesa Augusta Vitória de Hohenzollern-Sigmaringen, nem fora dele. Por isso, nada, para além da minha imaginação me leva a crer que D. Manuel II tenha tido algum relacionamento com uma jovem plebeia inglesa e que, dessa relação, tenha nascido um filho. D. Manuel II subiu ao trono após o regicídio onde fora morto seu pai, o rei D. Carlos, e o Príncipe Real e sucessor ao trono, D. Luís Filipe. Com a queda da Monarquia e implantação da República, a família real fugiu para o exílio, tendo D. Manuel II vivido posteriormente em Londres, onde não conheceu nem teve uma relação amorosa com a tal plebeia inglesa Genevieve, cuja existência não passou da minha imaginação. D. Manuel II casou na Prússia com a princesa Augusta Vitória e retornou a Londres onde viveu até à sua inesperada morte. Sem filhos, caberia ao seu tio, D. Afonso, a sucessão ao trono, só que também este viria a falecer sem descendentes, deixando assim a chamada linha de sucessão pelo Ramo Constitucional terminada, a linha sucessória dos descendentes do rei D. Luís morria ali. Por isso, quando conhecerem a bisneta do filho bastardo de D. Manuel II, talvez sintam que poderia dar uma boa rainha, caso ela fosse tão real quanto uma coroa real numa república.
Por fim, se chegaram até aqui, o meu muito obrigado pelo tempo que despenderam a ler “Os Corvos de São Jorge – Ventos do Passado”. E peço desde já desculpa por este ser apenas o primeiro volume de uma história que se tornou muito maior que aquilo que imaginei naquele primeiro esboço.
Espero por vós em “Os Corvos de São Jorge – Democracia Golpeada”.
Boas leituras!!!