Despedida

Despedida

Poucas horas depois da partida do Sultão, escrevi e publiquei no Facebook um texto de despedida que foi igualmente a forma de informar os que nos são mais próximos de que o nosso amigo já não estava entre nós.

Deixo aqui esse texto:

O povo costuma dizer que não há duas sem três, mas é mentira.
Salvei-te duas vezes e não consegui salvar-te pela terceira.
Vi-te partir, sentindo que parte de mim partia contigo, uma parte boa, e eu nem tenho muitas. Hoje, um pedaço de mim morreu contigo, fica a dor, o sentimento de perda, a culpa que para sempre me acompanhará por não te ter resgatado mais cedo.
No entanto, fica também a história, a nossa história.
Salvei-te a primeira vez quando nasceste, quando a tua mãe morreu e tu ficaste sozinho. Ouvi-te miar com fome, fiz-te chegar comida e leite de forma arcaica sobre uma vedação, consciente que aquilo não era solução. Não me passava pela cabeça adoptar-te, eu não tinha gatos nem pretendia ter. Mesmo assim, talvez tivesse ficado contigo se não tivesse aparecido quem te adoptasse. Saltei a vedação e fui buscar-te. Tu bufaste-me, mostraste o teu delicioso mau feitio. Segurei-te com uma toalha, eras tão pequenino que cabias na minha mão. Entreguei-te a quem iria cuidar de ti.
Viveste seis anos com essas pessoas. Eu não te via muito, mas ia sabendo de ti. Cuidavam de ti, não te tratavam mal, mas também não te amavam como merecias. Davam-te um tecto e comida, mas mantinham-te afastado da família porque supostamente tu eras agressivo. Quando te voltei a ver, tu já eras um gatarrão bem bonito. Graças a mim, abriram-te a porta para o resto da casa, mas a libertação da garagem foi efémera e voltaste ao isolamento. Passados seis anos, a família que cuidava de ti mudou de casa e não encontrou no futuro um espaço para ti. Entretanto, a vida fizera-me cruzar com outros dois gatos que me adoptaram. Na altura, era complicado trazer-te para minha casa, sendo tu “agressivo”. Tentei encontrar-te novamente um lar. A família com quem vivias, dizia já ter alguém que trataria de ti. Eu sabia bem qual seria o teu destino, como essa pessoa "trataria" de ti. O prazo esgotava-se, a família que te tinha não queria levar-te com eles e eu não encontrava um novo lar para ti. Podes não acreditar, mas houve noites que nem dormi a pensar em ti.
Foi então que tomei a melhor decisão e te salvei pela segunda vez trazendo-te para minha casa. Tu nunca foste agressivo, tinhas medo, fugias dos humanos porque não conhecias humanos que te amassem. Mantive-te isolado dos teus irmãos durante um tempo até que se habituassem uns aos outros, coisa que aconteceu em cerca de um mês. Não confiavas em ninguém, fugias para o primeiro canto que te pudesse esconder de mim, sempre com medo de tudo. Um dia, coloquei a minha cara em frente à tua e fechei os olhos. Podias ter-me arranhado ou mordido. Esperto como sempre foste, percebeste a mensagem, se eu confiava em ti àquele ponto, tu também podias confiar em mim. Aos poucos, aproximaste-te, começaste a deitar-te junto a mim e à tua outra amiga humana com quem partilho a minha vida. Ficavas junto dos teus irmãos, ora a descansarem pacificamente, ora a correrem uns atrás dos outros. Dormias tranquilo sem medo porque aqueles humanos que ali estavam te amavam incondicionalmente.
Viveste assim dos seis aos doze anos. Eu sabia que um dia te iria perder, mas nunca pensei que tudo fosse tão rápido, que numa semana tivesses perdido metade do teu peso de forma fulminante, que os rins tivessem decidido abandonar-te…
Fiz o que pude, veterinário, hospital, internamento… Infelizmente, nada havia a fazer, apenas poupar-te ao sofrimento, à dor… Teria carregado contigo o tempo que fosse preciso para onde fosse necessário. Só que tu já não vivias, definhavas, apático deitado sem reagir. Tive de te deixar partir, evitar que continuasses a sofrer, por mais que me doesse fazê-lo. E assim, não te consegui salvar pela terceira vez. Acompanhei-te até ao fim com o coração dilacerado, consciente que levavas contigo parte mim. Nunca a perda me doeu tanto. Tu não eras só um gato, eras família, eras amigo, companheiro. Fui muito feliz contigo. E espero que tu também tenhas sido muito feliz connosco.
Nunca te esquecei! Descansa em paz, Sultão!