Sultão (2011-2023)

Sultão (2011-2023)

Este é o primeiro texto que escrevo aqui. Ponderei bastante se deveria usar este espaço para algo mais que a divulgação dos meus livros. Contudo, a escrita sempre foi uma forma de libertação, uma maneira de respirar melhor quando a vida parece demasiado negra, quando as dores na alma são tão dilacerantes que começamos a ruir interiormente.

Escrevo este texto no dia seguinte a um dos piores da minha vida. Nunca caminhei pelo vale das sombras como ontem, tentando ser forte e sentindo ao mesmo tempo que ruía por dentro. Sei que há muitas pessoas que acharão ridículo aquilo que sinto, muitos dirão "era apenas um gato". Mas, não era apenas um gato, era um amigo e um companheiro, era família, era parte de mim. E essa parte de mim morreu ontem com ele.

O texto que se segue é um excerto do livro que escrevi em 2019. Escrevi-o com a noção que um dia passaria por algo semelhante e desejando que esse dia viesse o mais tarde possível. Agora, serve para homenagear quem partiu na realidade.

Nunca te esquecerei! Descansa em paz, Sultão!

 

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No auge do Outono, no regresso a casa vindo de Londres, Peter alertou-me para algo:

— A Tio anda muito apática e come pouco.

Olhei para a gata que, ao contrário do habitual, não viera receber-me e permanecia aconchegada na sua cama. Baixei-me junto dela e acariciei-lhe o pelo, obtendo um ronronar de agrado. Fui preparar-lhe uma latinha da sua comida preferida e coloquei num pires. Mal ouvia o som da lata, ela vinha a correr para comer. Porém, desta vez, manteve-se imóvel. Levei o pratinho para perto dela. Tio lambeu um pouco e desinteressou-se.

— Estás a ver? Tem estado assim, Daniel.

— Talvez seja melhor eu levá-la ao veterinário.

Sem perder tempo, coloquei-a com cuidado na transportadora.

O veterinário que a observava regularmente ficava a dois quarteirões da nossa casa, pelo que ia sempre a pé até lá. Ele observou-a minuciosamente com semblante apreensivo. Eu via a cena com o coração nas mãos, temendo o diagnóstico. Por fim, disse-me que ela não apresentava sinais de qualquer doença, tudo se resumia a velhice. Custava a acreditar que Tio fosse já uma gata sénior, mas quando a adoptara já era uma gata adulta e vivia comigo havia uns dez anos. Numa postura austera, o veterinário recomendou que a mantivesse o  mais confortável possível e... que me preparasse para o pior.

Não me quis convencer disso, Tio não poderia estar a... Não, não queria acreditar nisso. Fosse como fosse, alterei algumas rotinas, procurando estar mais tempo com a gata. Podia recusar-me a aceitar, mas o meu inconsciente encaminhava-me para esse desfecho.

Algumas noites mais tarde, fiquei sozinho no apartamento estúdio, uma vez que Peter saíra para jantar com uns amigos e chegaria tarde ou nem sequer viria passar a noite a casa. Tal como costume, telefonei a Mafalda para mais um relato do dia, partilhando as incidências do meu e ouvindo as satisfações e frustrações que uma pediatra poderia atravessar em Moçambique.

A seguir, peguei em Tio e vim para o sofá ver televisão, deitando-a no meu colo. Ela aninhou-se nas minhas pernas e permaneceu confortável, apreciando o meu pentear com os dedos do seu pelo tricolor. Ela olhou para mim, tinha um olhar mais intenso que muitos seres humanos. Quase a julguei ver sorrir. Que disparate, os gatos não sorriem. Voltou a aninhar-se no meu colo, pressionando-me suavemente com as patitas, como se dissesse "gosto muito de ti". Quero acreditar que ela estava a agradecer-me, se bem que talvez eu tivesse mais a agradecer-lhe a ela por todos aqueles anos em que muitas vezes fôramos a única companhia um do outro.

Na televisão, distraí-me com um filme de acção que rapidamente perdeu importância em conflito com o meu sono. Estava cansado de mais um dia, começava a considerar seriamente a hipótese de tirar umas férias, daí que tenha adormecido. Acordei com outra coisa qualquer a passar no ecrã.

— Vá, Tio. Vamos dormir. — disse eu à gata, acariciando-lhe a cabeça. Ela não se mexeu. — Tio! — A minha voz não provocou qualquer efeito. — Tio? — Percebi que arrefecera e não havia sinais de que respirasse. — Tio? Tio? — Sem que me apercebesse, as lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto. — Acorda, Tio! Tio! TIO!!!

Agarrei-a com força, abanei-a como se isso a pudesse trazer de regresso à vida. Claro que os seus olhos permaneceram cerrados. Abracei-a junto ao peito com força e chorei como uma criança. Ela adormecera o sono eterno...

Naquela noite não perdi uma gata, perdi uma amiga e companheira que percorrera comigo os últimos dez anos, quase desde o triste dia em que o meu tio falecera. Fora a minha companhia na solidão, a presença alegre a cada chegada minha a casa, a cúmplice de brincadeiras, ouvinte de desabafos. Tio vivera comigo em Almada, mudara-se comigo para Moscavide, regressara comigo a Almada, viajara comigo para Edimburgo... A gata era parte de mim, parte da minha vida. Um pedaço do meu ser partia com ela. E aquela casa nunca mais seria a mesma sem a sua presença. Num momento de introspecção, com Tio nos braços apertada contra mim, pensei nos meus tios e pedi-lhes que, se os seus espíritos se cruzassem, tomassem conta dela por mim.

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