QUARTZO TITÂNIO

I

Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!

Este fora o lema que governara desde sempre o seu dia a dia.

A claridade intensificava-se num amanhecer cinzento, onde as nuvens tristes davam um ar pesado à imensidão do Lago Ontário que se avistava lá do alto do apartamento localizado quase no topo de uma das muitas torres de condomínios luxuosos de Toronto.

Encostado à parede adjacente à grande janela do quarto, ele observava o horizonte ao mesmo tempo que via a sua imagem reflectida no vidro. A sua visão desfocou o fundo para se centrar no reflexo, no rosto a ganhar rugas, o cabelo grisalho onde a tonalidade escura parecia perder cada vez mais terreno para a clara. Por mais que os músculos lhe dissessem o contrário, ele era um homem de meia-idade.

Baixou o olhar para o peito nu. Também ali os pelos brancos cresciam como ervas em vasos de flores. Sinais de velhice que procurou rebater, arrancando as linhas albas... Não valia a pena, por cada um que vencesse, outros dois cresceriam. Estava a ficar barrigudo, apesar de ter uma vida pouco sedentária. Mais um sinal da idade? Talvez.

Tornou a olhar para o exterior, a atenção arrebatada para uma pequena aeronave em linha de aterragem com a pista do Billy Bishop, um pequeno aeroporto situado na Centre Island, uma das ilhas frontais à cidade. O ruído dos motores mal se ouviu, tal era a capacidade isolante dos vidros do apartamento.

Perdeu-se em pensamentos, cego no manto de nuvens. Iria chover? Que lhe interessava isso? Uma embarcação afastava-se do porto, talvez para navegar nos canais entre as ilhas. Deixou de registar a vida lá fora. Pensou em si, no facto de estar a chegar aos cinquenta anos. A angústia dos últimos tempos regressou. Seria a tão falada crise da meia‑idade?

Não se sentia velho. Nem mesmo quando se via ao espelho. Sentia‑se... Como se sentia ele? Não sabia explicar. Era uma angústia profunda que lhe vinha sabe-se lá donde, algures dum lugar profundo na sua alma.

— Bom dia! — disse uma voz ensonada.

A sonoridade rouca feminina puxou-o para a realidade do interior. Na cama, uma cabeça meio encoberta pela cabeleira escura emergia entre os lençóis.

— Bom dia! — retribuiu ele num tom neutro.

O rosto estremunhado cravou os olhos nele. Ensonados, procuraram habituar-se à luz exterior.

— Estás bem?

Ele anuiu sem dizer uma palavra. Percebeu que não lhe apetecia falar. Voltou a encarar o exterior, o ambiente tão deprimente quanto a sua alma.

— É bem capaz de chover. — disse a voz feminina.

Era aquele tipo de frase que se dizia só para não se ficar calado.

Sentindo o movimento dela na cama, ele rodou novamente a cabeça e observou-a, vendo uma mulher escultural a sair dos lençóis completamente nua.

Sem preocupação em disfarçar a noite mal dormida, por culpa dele, ela desfilou todas as curvas do seu corpo perante o seu olhar, formas que pareciam ter sido criadas por um Leonardo Da Vinci. Não deveria ter mais de trinta anos e a expressão era intensa, como quem está sempre pronta a saciar o parceiro. Parou junto dele e deu-lhe um beijo nos lábios.

— Posso usar o duche?

— Estás à-vontade.

Ela sorriu, mordiscando o lábio.

— Queres fazer-me companhia?

— Obrigado. — recusou cortês.

A mulher assentiu sem demonstrar decepção ou satisfação. Virou costas e deslizou pelo soalho silencioso como se fosse uma pluma, desaparecendo na porta da casa de banho privada.

Ele retornou à observação da paisagem e a mente a divagar nas recordações, como um satélite velho que sai de órbita e perde a utilidade.

O som da água a correr foi a única coisa que se ouviu por ali. Ele nem se apercebeu disso até ao momento em que a mulher, que fora completamente sua nessa noite, desligou o chuveiro.

Viu as horas no smartwatch preso no pulso esquerdo. O seu cérebro reviu a agenda para esse dia. Teria uma manhã e uma tarde preenchidas, nada a que não estivesse habituado. Pegou no smartphone e abriu o email para ver se havia novidades. Algumas mensagens novas, nada de especial, e muita porcaria publicitária não solicitada. Posou o aparelho sobre a cómoda de linhas modernas no exacto momento em que ela saiu da casa de banho.

Não era assídua da casa ou da cama dele, mas dava a entender que não fora a primeira vez que ali estivera. Surgiu tal como chegara na noite anterior ao apartamento, saia curta e casaco formal que ele sabia só esconder o sutiã. Penteara o cabelo preso num rabo-de-cavalo para disfarçar que não o lavara no duche. O rosto não estava maquilhado, o que não lhe tirava um grama de beleza. Sob o olhar atento dele, sentou-se na cama, cruzando as pernas de forma cativante e calçou os sapatos de salto alto. Por fim, levantou-se, encarando-o numa mistura de humor e sedução.

— Calculo que não me tenhas feito o pequeno-almoço.

— Nem para mim costumo fazer.

— Então, está na hora de ir andando.

Ele não a demoveu, assim como ela não arredou pé. Faltava o último acto. Ele pegou na carteira e retirou algumas notas de cem dólares. Ela recebeu-as com agrado. Afinal, tudo não passava de uma transacção comercial, uma profissional do sexo que recebia o pagamento pelo empenho da noite intensa que proporcionara ao seu cliente.

— Queres que volte, logo? — sugeriu, guardando as notas na pequena malinha que usava pendurada no ombro.

— Quando quiser repetir, eu ligo-te. — contrapôs ele sem qualquer emoção.

Ela deu-lhe um último beijo e foi embora.

 

Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!

 

Logo que ouviu a porta do apartamento a fechar, ele caminhou para a casa de banho privativa do quarto, sentindo ainda o cheiro do perfume dela ali. Havia uma névoa ténue no ar e o ambiente era meio abafado, resultante do duche exageradamente quente que ela tomara. Quase de forma automática, enfiou-se na cabine e abriu o chuveiro, deixando a água quente tombar-lhe sobre o corpo.

Comprar amor, como ele lhe chamava, era o mais fácil. Claro que não comprava amor, estava a comprar sexo. Não havia qualquer amor envolvido naquela situação, a menos que se considerasse o amor delas às notas que recebiam. Não era qualquer uma que passava a noite com ele, não era qualquer prostituta que obtinha aquele grau de confiança. Houve alturas em não se preocupava com isso e contratava uma qualquer que lhe despertasse desejo. Um quarto de hotel, duas ou três horas, e estava resolvido. Porém, a idade cansou-o disso. Preferia fornecedoras habituais ao invés de pagar à primeira puta que lhe aparecesse. Por isso, agora, tinha uma lista com uma dezena de nomes, mulheres com idades entre os vinte e oito e os trinta e três anos a quem ele ligava quando queria sexo e companhia.

A água massajava-lhe o corpo, percorrendo-lhe a pele como as mãos e os lábios de uma concubina eficiente. Pagar por sexo era o mais cómodo, evitava cobranças, evitava discussões. Ele estava a pagar, a pagar bem, e havia um acordo tácito de que a palavra "não" era proibida. Faziam tudo o que ele queria, quando ele queria. E mais importante de tudo, nunca o rejeitariam.

A rejeição era o pior numa relação, numa paixão. O embate violento quando a pessoa que nos provoca um formigueiro no estômago, nos faz perder o apetite e o sono, nos acorda para a realidade de que não quer o mesmo que nós...

Aconteceu-lhe uma vez na vida. Há... Quantos anos foram? Foi antes de vir para o Canadá, por isso, já lá iam quinze ou dezasseis anos. Sim, estivera apaixonado, perdidamente apaixonado. E nem sequer fora rejeitado, pelo menos, não até certa altura. Amara aquela mulher com toda a essência do seu ser. Para quê? Para um dia ver o tapete ser-lhe puxado debaixo dos pés e ele cair com estrondo no chão da rejeição. Não precisava disso, não precisava de relacionamentos, não queria envolvimentos sentimentais com ninguém. Nada como pagar para ter uma mulher...

Então, porque sentia ele aquela angústia? Aquela solidão...

 

Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!

 

Foda-se! Então, onde se compra o medicamento para o que estava a sentir? Na verdade, nem ele sabia interpretar o que o perturbava.

Olhou-se ao espelho. Barbeara-se após o duche, penteara o cabelo grisalho e passara creme no rosto. Bolas, quando um homem se preocupa em passar cremes antienvelhecimento no rosto, algo está a padecer em nós. Vestiu uma das suas camisas caríssimas e o um dos seus muitos fatos Ermenegildo Zegna. Não gostava de usar gravata, mas ia ter algumas reuniões importantes. Calçou um dos pares menos caros da Louis Vuitton que tinha e sentiu-se pronto.

O quarto dava para um átrio quadrado com mais três portas, iluminado pela claridade proveniente da enorme sala do apartamento, cuja parede oriental era completamente de vidro e com acesso a uma varanda larga com vista para o Lago Ontário. As três portas correspondiam a mais dois quartos inabitados e uma casa de banho geral para uso das visitas inexistentes da casa.

Ele saiu com o casaco do fato na mão, tendo o cuidado de não causar qualquer vinco. Avançou para a sala com a atenção no ecrã do smartphone, lendo algumas das notícias do dia.

A sala era composta por um gigantesco sofá em U, o qual fora colocado frontalmente com um ecrã de proporções bíblicas, fino como uma placa de gesso cartonado e equilibrado num tripé sobre um móvel de um metro de altura. Para lá deste, uma mesa rectangular em vidro para refeições que nunca aconteciam, acompanhada por meia dúzia de cadeiras confortáveis raramente utilizadas. O espaço prosseguia, sempre acompanhado pelos vidros que transformavam a parede numa espécie de tela fotográfica da maravilhosa vista do lago. Após a mesa, um balcão, uma espécie de ilha com um tampo em mármore claro, delimitava a divisão entre sala e cozinha. Junto a este, três bancos denunciavam ser ali que as escassas refeições eram ingeridas.

A cozinha era digna de um filme, tinha quase um aspecto futurista. Não faltava lá nada de aparelhos e equipamentos, mas para ele bastaria ter as portas dos armários. O uso que dava àquele espaço era um sacrilégio para qualquer chef. Os seus olhos procuraram a máquina de café, seria a única coisa a que se daria ao trabalho. O médico já o alertara várias vezes para uma alimentação mais saudável, inclusive que parasse de sair de casa sem tomar o pequeno-almoço. Ele não mudara nada.

Vivia sozinho, algo a que se habituara de tal forma que já nem considerava a possibilidade de ter outro ser humano a partilhar o seu espaço. Contornou o balcão e dirigiu-se à máquina do café. Porém, o som do telemóvel travou-o. Reconheceu o número. Era o seu advogado.

— Bom dia, Matt! — cumprimentou sem entoação.

O advogado era o seu homem de confiança para todos os assuntos legais, pago a peso de ouro, semanalmente, muitas vezes para nem precisar dele.

— Bom dia, Gabriel! — disse a voz austera do outro lado. — Já tenho o contrato que me pediste para analisar. Para quando precisas de um parecer? Até ao final da semana...

— Esta tarde, Matt. Preciso de um parecer até ao fim da tarde.

— Ok.

Desligou. Desistiu de fazer o café. Não queria perder mais tempo.

Gabriel era o seu nome, o nome daquele homem de meia‑idade que vivia sozinho num luxuoso apartamento em Toronto com vista para o lago. Viera para o Canadá em trabalho, quinze anos antes, com uma proposta milionária para agenciar jogadores profissionais. Naquela altura, o seu rendimento já era fantástico, mas incomparável com a fortuna que fizera nos anos que se seguiram e que continuava a fazer. Ele era, apenas e só, representante de jogadores da MLB, a liga profissional de basebol, da NHL, a liga profissional de hóquei no gelo, da NBA, a liga profissional de basquetebol e ainda tinha alguns contactos privilegiados na NFL, a liga profissional de futebol americano. Por isso...

 

Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!

 

O trânsito citadino estava normal, nem mais nem menos que noutros dias. Gabriel conduzia um Ferrari F8 Tributo, automóvel que envergava o tradicional encarnado da marca italiana e chamativo como uma loura de minissaia num bar. Pouco antes de parar num semáforo, o telemóvel tornou a chamar. O sistema de áudio calou a playlist com as suas músicas favoritas e fez ecoar o toque estridente. Ele carregou no botão do volante que atendia as chamadas.

— Que me dizes a um jogo dos Blue Jays, logo à noite? — convidou a voz que saiu dos altifalantes, sem que antes houvesse um cumprimento.

Teve vontade de dizer que os Blue Jays eram a equipa mais imprestável de Toronto, mas não convinha dizê-lo a um importante director dessa mesma equipa. Os Toronto Blue Jays eram a equipa profissional de basebol da cidade.

— Não sei. Qual é o motivo?

— É preciso um motivo para ver os nossos campeões?

Alguém lhe explicasse que para ser campeão era preciso fazer aquilo... como se diz... ah... Ganhar? Pois, ganhar.

— Eu conheço-te. Esse convite tem água no bico.

— Ok, ok. Temos interesse em... Prefiro não falar por telefone. Queria conversar contigo sobre isso.

— Tudo bem. Ligo-te mais tarde, a confirmar.

Quando desligou, Gabriel já circulava na Bay Street rumo a norte. Com a celeridade que o trânsito lhe permitiu, virou à direita na Adelaide Street e alguns metros mais à frente, virou à esquerda, embrenhando-se no parque automóvel subterrâneo do Bay-Adelaide Centre onde se localizava o seu escritório.

Apesar de o Bay-Adelaide Centre ser um edifício de escritórios de grandes empresas, algumas a ocupar pisos inteiros e mais que um andar, Gabriel ocupava apenas um pequeno sector para o seu negócio, num dos pisos intermédios, partilhado com mais algumas pequenas empresas, um espaço com um gabinete privado, sala de reuniões e recepção. Contudo, fizera os possíveis para que a sua localização fosse a esquina do edifício, o que levava a que o seu gabinete tivesse duas paredes em vidro com vista para a cidade.

A recepção era composta por um balcão em madeira com metro e meio de altura, onde um jovem recebia quem entrasse, atendia o telefone, recepcionava o correio e apontava recados. Quando Gabriel procurara a pessoa para ocupar aquele lugar, quis acima de tudo que fosse eficiente, organizada e trabalhadora. Mas, preferencialmente, um homem. Para si, havia coisas que não se misturavam, tal como o trabalho e o prazer, e a eventualidade de ser secretariado por uma funcionária esbelta poderia colocar isso em causa. Para além disso, simpatizara com o rapaz na entrevista, já que demonstrara ter um vasto conhecimento de desporto.

— Bom dia, Francis! — cumprimentou ao entrar.

Francis era natural do Quebec. Escusado será dizer que o seu desporto favorito era o hóquei no gelo. E não escondia o ser fervor em tornar a ver os Nordiques a disputar jogos na NHL. Deveria ter uns trinta anos, envergava roupas formais que nada pareciam ter a ver com ele e o cabelo estava sempre muito bem penteado. O rosto era simpático sem perder a expressão profissional.

O gabinete de Gabriel era amplo e espaçoso. A sua secretária situava-se na única parede que não tinha janelas nem porta, apenas um armário com gavetas, um pequeno bar, onde Gabriel guardava algumas garrafas de whisky, e uma estante com inúmeras fotos dele com muitos jogadores mundialmente conhecidos, algumas das maiores estrelas do desporto norte-americano. Qualquer um deles saberia bem quem era Gabriel e uma boa fatia percentual daqueles desportistas deviam-lhe os melhores contratos da sua carreira. A secretária era composta por um tampo robusto de madeira escura, sempre muito bem arrumada, quase sem pastas ou papeis soltos e apenas com o laptop solitário. Entre a estante e a mesa, um cadeirão confortável. Ele escolhera aquele posicionamento para poder ficar virado de frente para os vidros enormes que lhe permitiam ver o exterior de edifícios empresariais. No que sobrava de parede onde se localizava a porta do gabinete, somente um sofá longo e uma mesa rasa de apoio.

O estado de espírito sombrio permanecia em si. Numa passada lenta, caminhou pelo espaço até aos vidros, ficando a olhar para a rua, vendo pessoas e carros a movimentarem-se lá em baixo, sempre em stress. O silêncio à sua volta parecia irreal naquele cenário protegido pelas janelas insonorizadas que bloqueavam o ruído daquela que era, para si, uma espécie de mini New York. A recordação da cidade, quando ali chegara uma década e meia antes, veio-lhe à mente. Já era uma cidade com o rebuliço dos grandes centros urbanos mundiais, mas tinha agora muitos mais edifícios a arranhar o céu e a vida empresarial crescera exponencialmente, desde esse dia. O Canadá era outro mundo, mais evoluído, mais civilizado. Tivera alguns contratempos a instalar-se, mas gostara do país, da cidade e das pessoas logo ao primeiro momento.

Os últimos tempos em Portugal haviam sido terríveis. Profissionalmente as coisas corriam bem, já era um agente desportivo com alguma influência e já fazia bom dinheiro com isso. Quando era novo, jogara hóquei em patins. Nunca fora muito bom nos estudos, excepto em Matemática e Inglês, disciplinas que pareciam talhadas para si. Apesar de ter algum jeito para usar o stick, cedo teve noção que o hóquei nunca poderia ser um modo de vida, o seu ganha-pão. Por isso, abandonou a modalidade quando deixou de estudar e começou a trabalhar como vendedor de carros num stand de automóveis. Tinha jeito para os números, sabia fazer negócios e adorava ganhar dinheiro. Passou para o ramo imobiliário e a ganhar ainda mais. Contudo, foi quando surgiu a oportunidade de trabalhar no mundo do desporto a representar jogadores que descobriu a sua verdadeira vocação.

Começara com o agenciamento de jogadores de equipas secundárias e em modalidades com menor expressão que o futebol. Nunca desistiu. E conforme os seus representados iam evoluindo na carreira, também o seu nome se projectava no meio. A sua carteira de agenciados engrandeceu e cada vez com mais jogadores de futebol. Antes dos trinta anos, Gabriel já falava regularmente com os presidentes dos principais clubes portugueses e alguns dos maiores da Europa.

O futebol sempre fora o seu desporto de eleição. Em miúdo chegara a sonhar ser jogador da bola, mas rapidamente percebeu que os seus pés eram como duas tábuas quando encontravam uma bola. Daí ter ido parar ao hóquei. Sendo o futebol o seu favorito e também a modalidade onde mais se movimentava, foi surreal encarar a proposta que lhe apresentaram para trabalhar no Canadá como agente de jogadores profissionais. Em Portugal era um nome de primeira linha. No Canadá, seria apenas mais um a trabalhar para uma grande empresa com outros seus iguais. Na altura, sentiu-se a regredir na carreira e esteve prestes a recusar, apesar da perspectiva de rendimento superar em muito aquilo que já conseguia amealhar. Contudo, outros factores o levaram a tomar a decisão que tomara, quinze anos antes.

O telemóvel tocou, despertando-o das recordações.

— Estão a tentar lixar-me, Gabriel.

— Calma, Tiivu. — pediu, reconhecendo a voz. — Que aconteceu?

Tiivu era um jogador finlandês de hóquei no gelo que fora contratado pelos Toronto Maple Leafs a uma equipa sueca. Os Maple Leafs eram a principal equipa de hóquei da cidade, uma das mais históricas da NHL e a segunda com mais títulos de uma competição com mais de cem anos e a mais emblemática de todo o Mundo daquela modalidade. Gabriel era o empresário de Tiivu e fora ele quem tratara da sua transferência para a América do Norte. Segundo o hoquista, sem esconder a irritação na voz, o clube e o treinador estavam a ponderar enquadrá-lo nos Toronto Marlies. Isso significava que, em vez de jogar na melhor liga mundial, iria jogar na equipa de reservas que competia naquilo a que os americanos chamavam uma minor league, a AHL, ou seja, uma espécie de competição de jogadores jovens a tentar provar que tinham lugar na NHL. Claro que Tiivu achava que nada tinha a provar.

Gabriel sabia que não fora aquilo que ficara acordado. Tiivu não se iria mudar para o outro lado do oceano para jogar nas reservas.

— Eu falo com o General Manager, Tiivu. — descansou-o.

O finlandês agradeceu, mais calmo, ciente que Gabriel resolveria a questão.

Desligou a chamada e guardou o aparelho no bolso. Irritava-o que os clubes não cumprissem os acordos verbais. Sim, aquilo não ficara escrito no contrato, fora conversado e os directores dos Maple Leafs concordaram que aquele investimento não seria para desperdiçar na AHL. Só que depois o treinador mudou...

Teria de tratar do assunto, telefonando ao General Manager e combinar uma reunião com ele. Aquilo não poderia ser resolvido a falar ao telefone. Gabriel adorava os Maple Leafs, era adepto da equipa desde que chegara ao Canadá. Mas, isso não o obrigava a aceitar o desrespeito para com os seus representados.

Tornou a olhar para a rua. Não estava com paciência para problemas ou resoluções. Comprometera-se e cabia-lhe a ele reivindicar a concretização das expectativas de Tiivu, só que o seu estado de espírito sugava-lhe qualquer vislumbre de paciência para a solução. Se quisesse, poderia comprar vários Ferrari iguais ao seu, mas não encontrava lugar nenhum onde conseguisse comprar... paciência.

 

Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!

 

O vento soprava fresco pelas ruas da cidade.

Normalmente, faria aquele pequeno percurso de carro, mas estava a precisar de andar e o seu destino não era suficientemente longe para o demover de enfrentar a cacofonia populacional de Toronto. Saiu do edifício directamente para a Bay Street, orgulhoso com a constatação de como era uma pessoa importante ao ponto de conseguir que o GM dos Maple Leafs concordasse em recebê-lo ainda nessa manhã.

O Sol parecia despontar no céu cinzento, sendo que dificilmente conseguiria furar por entre os prédios. Só mesmo se incidisse numa linha paralela às longas ruas de Toronto é que o seu brilho chegaria aos passeios. Era por isso que as pessoas aproveitavam as praças e pracetas para permanecer alguns minutos.

O fluxo humano não era tão intenso como noutros horários. Mesmo assim, muita gente circulava por ali, desde turistas dos quatro cantos do Mundo até aos simples estafetas que transportavam documentos e encomendas entre empresas. A maior parte dos seres humanos traziam auriculares nos ouvidos, parecendo à primeira vista estarem a falar sozinhos. Na rua, Gabriel fazia o mesmo, caminhando com os seus Galaxy Buds inseridos nos ouvidos para atender as constantes chamadas de trabalho.

Estava com tempo. Numa passada calma, chegaria ao ScotiaBank Arena, onde seria recebido pelo GM, em dez a quinze minutos. O tipo recebia-o com brevidade, mas não de imediato, daí que tivesse estipulado trinta minutos entre o telefonema e a reunião. Gabriel fez um desvio na Kigs Street para passar pelo Starbucks na esquina daquela rua com a Yonge Street.

A loja estava praticamente vazia. Na sua frente, somente um casal de turistas e uma jovem com ar de universitária. Atrás do balcão trabalhava um jovem com trejeitos divertidos, extremamente afável. Gabriel comprou um Cappuccino dos grandes, pagando e sendo generoso na gorjeta.

Ao voltar ao exterior, a sua atenção foi captada para a porta do One King Hotel, no lado oposto da rua. Reconheceu a mulher sedutora de cabelos ruivos que saía do edifício, era uma das dez da sua lista. Ela vinha distraída, concentrada no telemóvel, mas algo a fez olhar para ele. Gabriel sorriu e acenou-lhe, não tinha qualquer complexo em reconhecer e ser reconhecido na rua por uma das suas profissionais do sexo. Ela retribuiu o sorriso e o aceno, tomando a direcção oposta à dele.

A depressão voltou a pressioná-lo. Podias comprar-lhe o corpo, o sorriso, os beijos, a companhia, o que ele quisesse... Fora isso, não estando a pagar, era um aceno cordial numa relação de fornecedor para cliente.

 

Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!

Nem tudo se compra, talvez...

 

Evitou com esforço que a aura negra se abatesse mais sobre ele. Bebeu o líquido quente e apressou-se de volta à Bay Street, onde retomou a direcção sul. Prosseguiu numa passada constante, abstraído da sonoridade envolvente, uma vez que ligara a playlist do Spotify no telemóvel para o descontrair. Alcançou a Front Street, uma rua larga que se cruzava na sua frente. Aguardou que a sinalização dos peões lhe permitisse atravessar, cerca de dois minutos, e passou para o outro lado, encarando a enorme Union Station.

As muitas linhas ferroviárias entravam na estação, a oriente, por um viaduto que cobria a Bay Street na sua linha de alcatrão rumo ao lago, a qual só terminaria na Queens Quay, junto ao Harbour Square Park. Gabriel encontrou um aglomerado humano mais intenso, devido às obras, quando continuou por esse viaduto.

Toronto tinha aquela curiosidade, as passagens não eram simples passeios junto à estrada, eram semelhantes a corredores de edifícios, separados dos carros por vidros, o que protegia os transeuntes da poluição do ar e do som. Era mais um pormenor revelador de uma cidade com mentalidade muito evoluída.

Tornando a sair para o exterior movimentado de automóveis, Gabriel virou imediatamente à direita e ficou defronte da ScotiaBank Arena.

Naquele enorme pavilhão disputavam-se jogos de hóquei no gelo e basquetebol. A equipa de basquetebol eram os Raptors, a única canadiana a disputar a NBA, depois de Vancouver ter perdido a sua para Memphis. Gabriel também agenciava alguns dos jogadores dos Raptors e tinha muitas esperanças que, em breve, os Toronto Raptors se tornassem na primeira equipa canadiana a vencer a NBA.

Curiosamente, e sem ter essa intenção, parou exactamente sobre o emblema dos Raptors pintado no passeio daquela fachada. Confirmou as horas e avançou pelas portas giratórias.

 

 

 

 

 

II

O Sol voltara a desaparecer durante a tarde. Gabriel conduzia o Ferrari sem infringir qualquer regra, apesar de gostar que os cavalos andassem à solta.

A reunião correra bem. Não podia obrigar o staff técnico dos Maple Leafs a colocar Tiivu no gelo em todos os jogos, mas obteve um compromisso de que não seria exilado nos Marlies. Regressara ao escritório, informara o finlandês e viu-se envolvido em mais assuntos para tratar relativos aos seus jogadores, uma vez que se aproximavam os inícios das épocas de hóquei e basquetebol.

No entanto, a seguir a um almoço que não passara de umas sandes mastigadas à pressa, Gabriel abandonou o Bay-Adelaide Centre para um compromisso que nada tinha a ver com a sua profissão.

O potente motor do Ferrari ecoou na Bay Street. Os semáforos pareciam ter combinado todos em seu desfavor. O trajecto foi muito parecido ao que realizara a pé pela manhã, até entrar na Gardiner Expy, a via rápida que atravessava Toronto ao longo do lago, e permitir-se a pisar o acelerador.

Olhou para a direita, vendo o aproximar da CN Tower, uma das maiores torres do Mundo. Logo a seguir, reparou no Rogers Centre, o estádio onde a equipa de basebol, os Toronto Blue Jays jogavam, com a sua cúpula fechada. Calculou que ia chover. Os habitantes de Toronto há muito que se haviam habituado a ver no Rogers Centre uma espécie de boletim meteorológico, pois se a cúpula estivesse fechada era sinal de que a chuva visitaria a cidade, enquanto que se estivesse aberta isso representaria que os guarda-chuvas poderiam ficar em casa.

Ao longo dos anos no Canadá, Gabriel não evitara só os relacionamentos amorosos, também evitara amizades, fosse com homens ou mulheres. Optara pela via da solidão, uma vida independente de tudo e de todos.

 

Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!

 

Para quê tentar fomentar amizades? Para que serviriam amigos, a não ser para o incomodar e fazer perder tempo? E tempo livre era coisa escassa no seu dia a dia. Se quisesse ir beber um copo, ligava para um dos nomes da lista de dez. Se quisesse ir ver um filme ao cinema ou outro espectáculo a que não estivesse interessado em ir sozinho, ligava para um dos nomes da lista de dez. Na verdade, os únicos espectáculos em que demonstrava interesse eram os desportivos e gostava sempre de ir sozinho, acabando por encontrar conhecidos que lhe colmatavam os tempos morto. Se quisesse ir jantar fora, ligava para um dos nomes da lista de dez. E ainda beneficiava do facto de, em todas essas ocasiões em que ligava para um dos nomes da lista de dez, terminarem na cama do seu quarto.

Se quisesse falar, se precisasse de desabafar, de alguém que o escutasse, que talvez lhe pudesse dar um conselho ou contrapor a sua visão dos factos, então, Gabriel ia ao encontro da pessoa a quem pagava para isso, um psicólogo a quem gostava de chamar de terapeuta para evitar o peso da palavra "psicólogo".

O doutor Phil vivia numa moradia num bairro familiar em Mississauga, uma localidade a oeste de Toronto da qual não distava mais que uns vinte quilómetros. Era um afro-americano nascido em Buffalo que, quando se formara, acabara por se radicar na região de Ontário. Cinquentão, Phil revelava um aspecto de sexagenário, mas o seu espírito e humor eram de trintão.

O gabinete onde recebia os pacientes era tão natural como a sala de estar de um qualquer apartamento. Naquele lugar, nada dava sinais de se tratar de um consultório ou sequer um escritório. As paredes eram beges, o tecto branco e o chão alcatifado, o que produzia uma sensação de paz a quem entrava. Várias fotos de paisagens bonitas emolduradas e penduradas compunham a decoração, onde o mobiliário era um sofá, uma poltrona, uma mesa baixa e um aparador comprido. Todo o espaço era iluminado de forma ténue pela claridade do exterior proveniente das janelas a que os canadianos apelidavam de "french doors". A vista era somente o relvado do jardim que envolvia a moradia.

Naquela tarde não havia muita luz a entrar, as nuvens persistiam em sobrevoar as margens do lago Ontário e seria uma sorte se não chovesse. Phil recebeu Gabriel com aquele sorriso acolhedor de sempre. Tinha um estilo muito próprio, envergando sempre uma camisa clássica, calças de bombazina e um colete sem mangas, como se tivesse deixado o casaco esquecido algures. Calçava sapatilhas, sempre sapatilhas.

O ambiente na sala era iluminado pela linha de luz suave das lâmpadas escondidas na sanca que rodeava o tecto da divisão. Para além disso, ao lado da poltrona, um outro candeeiro de pé enviava uma luz fraca que se destinava a apoiar o utente do assento.

Gabriel não retribuiu o sorriso, quase nunca o fazia. Não ia ali visitar um amigo, ia visitar o terapeuta, o que significava que estava com um problema e com poucos motivos para sorrir. Phil estava habituado a isso e desvalorizou aquilo que poderia ser alguma antipatia do paciente. Gabriel entrou e percorreu o espaço em movimentos automáticos, já perdera a conta às vezes que ali fora, e sentou-se no sofá. Phil acompanhou-o e tomou o seu lugar na poltrona.

— Como te sentes, Gabriel?

— Na merda.

Parecia incompreensível que alguém com tanto dinheiro pudesse não ser feliz.

Ah... Havias de ter contas todos os meses e não ter dinheiro para as pagar. Talvez assim soubesses o que é infelicidade.

Phil não fazia juízos, não lhe cabia julgar, apenas ouvir e ajudar.

— Continuas a ter episódios de angústia?

— Cada vez mais frequentes.

— A que é que achas que isso se deve?

— Esperava que me soubesses dizer, Phil. Afinal, é para isso que te pago.

Phil fez uma expressão paternalista.

— Já te disse várias vezes, Gabriel. Pode ser descrito como depressão, mas acho que tu sofres simplesmente de solidão.

— Podes passar-me uma receita com o medicamento? — questionou com sarcasmo. — Deve haver uma merda qualquer que se possa comprar para atenuar isto.

— Sim, podia receitar-te antidepressivos. — respondeu sério. — Mas, não me parece que a solução seja afogares-te em comprimidos.

Gabriel inclinou a cabeça para trás e olhou para o tecto.

— Ao ritmo que isto vai, ainda me vou afogar é no lago Ontário.

— Estás quase com cinquenta anos, Gabriel. Não achas que é tempo de abrandares a tua vida profissional e pensar em construir algo na tua vida particular?

Baixando o olhar, Gabriel encarou-o com um sorriso irónico.

— A minha vida privada vai muito bem, obrigado.

— Nota-se...

— Que sugeres, então?

— Que deixes alguém entrar no teu mundo.

Ouviu-se uma gargalhada de escárnio.

— Relacionamentos? Não preciso de relacionamentos, Phil. Quando preciso de relações, pego no telemóvel e... Tu percebes.

Phil abanou a cabeça, discordante.

— Sentes-te menos sozinho, quando contratas prostitutas para te aquecer a cama?

A expressão no rosto de Gabriel era uma mistura de irritação, desdém e prepotência.

— Costuma ser tão intenso que nem penso nisso.

Phil anuiu.

— Ok, ok. Então, deixa-me colocar isto de outra maneira. Tens noites de sexo intenso com mulheres fabulosas, não duvido, mas... Quando elas adormecem ao teu lado, o que é que sentes?

— Que preferia que se fossem embora.

— Porque não as mandas embora? Estás a pagar-lhes para fazerem o que queres.

— Pode apetecer-me repetir. — retorquiu escarninho.

— Ok. E quando acordas de manhã? Ela está ali ao teu lado. Sentes algum afecto por...

— Sinto que se ela já se tivesse ido embora quando acordo, isso seria perfeito.

— Desculpa dizer-te isto, mas tu não és capaz de sentir afecto por ninguém, Gabriel. Tu geres a tua vida como um negócio. Aquilo que precisas, compras. Não tens uma namorada, tens putas a quem pagas para foder. Não tens amigos. Pagas-me a mim para te ouvir e conversar contigo.

— Se isso te degradada...

— Não te faças de parvo, Gabriel. Sabes o que estou a dizer.

— Quanto menos gerires a tua vida de forma sentimental, menos sofres.

— Nota-se.... Estás em claro sofrimento, em angústia. Porque não o admites? Estás infeliz porque te sentes completamente sozinho.

— Bom, acho que estás a exagerar. Lido com pessoas diariamente, eu...

— Quantas pessoas te telefonam quando fazes anos?

Gabriel emudeceu.

— Quantas pessoas te ligam a desejar um feliz Natal o um feliz Ano Novo? — insistiu Phil. — Aliás, já agora, quantas pessoas te ligam para falar contigo de alguma coisa que não seja trabalho?

O psicólogo foi fulminado pelo olhar de Gabriel.

— Vai-te foder, Phil!

O silêncio abateu-se sobre eles. Gabriel desviou o olhar para as french doors, enquanto Phil o ficou a observar impávido, paciente, aguardando que ele levasse o tempo que fosse necessário.

— Estou cansado, Phil. — acabou por dizer, suspirando.

— Não acredito que tenhas sido sempre assim, Gabriel.

Ele pareceu ponderar a questão. Evitou encarar o semblante de análise do psicólogo. Sim, ele nem sempre fora assim. E por mais que se recusasse a aceitar a razão, Gabriel sabia a causa.

— Nós já nos conhecemos há algum tempo. — lembrou Phil. — Nunca falaste muito sobre a tua vida em Portugal, antes de vires para o Canadá.

Gabriel ouviu as suas palavras com sensação que o outro lhe tocava com um dedo numa ferida aberta.

— Que tem isso a ver com o assunto, Phil?

— Tu demonstras sempre desconforto, quando o assunto se desloca para o teu passado que antecedeu a vinda para Toronto. Acho que aconteceu algo, nessa altura.

— Estás enganado. — negou pouco convincente.

O outro permaneceu em silêncio, observando-o. Gabriel percebeu que não o enganaria, nem a si se conseguiria enganar. Tinha dois caminhos, ia embora ou...

— Prefiro não me recordar disso. Foi há muito tempo?

— Alguma vez partilhaste o que aconteceu com alguém?

— Não.

— Sou pago para te ouvir, Gabriel.

— O que não quer dizer que te queira contar, Phil.

— Como queiras, Gabriel.

Novamente o silêncio. Phil aguardou com paciência de chinês. Era pago à hora, por isso, o outro poderia continuar ali caladinho as horas que precisasse. E Gabriel parecia estar em sintonia, pois não se mexeu e ficou com o olhar perdido no vazio. Por fim, disse:

— Tinha pouco mais de trinta anos.

 

 


 

 

III

Gabriel tinha pouco mais de trinta anos e a vida corria sobre rodas à velocidade estonteante do sucesso. Aquele dia fora um dos exemplos pelo qual valia a pena fazer o que fazia, ser agente desportivo e negociar a compra e venda de jogadores entre clubes.

Fora mesmo um dia fenomenal. Ao fim da manhã, fechara a transferência de uma estrela brasileira em ascensão no Brasil para o FC Porto, vindo do Palmeiras, um jovem de vinte anos que tinha meia Europa atrás de si. À tarde, negociara com êxito a venda do passe do jogador mais valioso do Benfica, o ponta de lança goleador, para o Real Madrid. Ambas significavam muitos milhares de euros de comissão.

Correra tudo tão bem que Gabriel sentia que não podia desejar mais nada e quase teve receio que algo de mau lhe acontecesse em contrapartida.

Naquela época, ele vivia no Parque das Nações, perto do rio. Quase sem tempo livre, os seus momentos de descompressão eram em caminhadas junto ao Tejo. Solteiro, bem-parecido, sem amarras, tinha relacionamentos esporádicos, namoros que duravam umas semanas até que ambos chegassem à conclusão que chegara a hora de seguirem caminhos diferentes, sem mágoas e sem cobranças.

Nessa noite, para descontrair, decidiu passar por um bar perto de Santa Apolónia, um lugar das suas preferências para beber um whisky, conversar com alguém conhecido e, eventualmente, engatar uma mulher disponível para sexo de ocasião. Porém, naquela noite, só queria relaxar num ambiente cheio de gente, desfrutar daquilo que a vista lhe oferecia, dialogar com um ou outro ser e... ir embora para casa descansar.

O ambiente estava fantástico, a música tocava alta, mas não tão alta que impedisse os clientes de conversarem. As mesas estavam cheias, gente bonita por todo o lado, sorrisos, expressões, gestos... Como qualquer espaço semelhante, a luminosidade era nocturna, luzes a criar uma mistura de luz e penumbra, deixando as mesas num enquadramento menos luminoso. Funcionárias escolhidas a dedo atendiam às mesas, elegantes e sensuais sem serem vulgares. Atrás do balcão, outras três a servir bebidas, sorridentes, afáveis, sedutoras, cativando para que a clientela quisesse mais e mais bebidas. Os únicos homens que trabalhavam naquele lugar eram os seguranças, tipos com o formato de um guarda-fatos envergando uma indumentária formal, quase como se fossem agentes secretos ao serviço de sua majestade.

Gabriel sentara-se ao balcão. Conhecia e era reconhecido por todas as funcionárias. Os seguranças também sabiam quem ele era e, ao contrário da grossa maioria daqueles que ali queriam ir, não era sequer interpelado ao entrar. As barwomen tratavam-no de forma melosa, retribuindo as gorjetas generosas que lhes deixava sempre. Para além disso, não era qualquer um que tinha o estatuto dele, um cliente com uma garrafa de whisky 18 anos, em seu nome no bar, só para si.

Naquela noite, ali estava, a pensar como o dia fora bom e que não poderia ser melhor. Tinha o olhar perdido nas dezenas de garrafas expostas na parede, quando, de súbito, alguém lhe tocou o braço esquerdo.

— Desculpa incomodar.

Gabriel virou-se para a voz. Viu uma mulher elegante, sorridente, de cabelos claros pelos ombros. O rosto era jovial, os olhos cor de amêndoa, o nariz singelo e a boca de lábios bem desenhados, pintados num tom rosado. Vestia uma camisa digna de uma escriturária e calças de ganga.

— Não incomodas. — acedeu ele, retribuindo o sorriso e notando que ela parecia estar um pouco "tocada".

— Olha, queria pedir-te um favor. Sei que parece estúpido, nem nos conhecemos. — Sim, decididamente, parecia já ter bebido para além da sua dose. — Não sei porquê, ali as minhas amigas — Apontou para um lugar qualquer que ele não acompanhou com o olhar, mantendo-o nela. — acham que tu és uma espécie de deus grego.

— Não sou grego, sou português. — retorquiu curioso.

— Whatever. — ripostou com um gesto de desinteresse.

— Em que te posso ajudar?

— Elas apostaram comigo que eu não era capaz de vir meter conversa contigo, seduzir-te e fazer com que saísses daqui comigo. — Gabriel ouvia-a interessado. — Por isso, o que te quero pedir é que faças de conta que aceitaste o meu convite, eu vou buscar as minhas coisas e colectar a aposta, volto para aqui e vamos embora juntos. Lá fora, depois, cada um segue o seu caminho.

— E que ganho eu com isso?

A pergunta pareceu surpreendê-la, como se tivesse a certeza de que ele faria aquilo voluntariamente. Encolheu os ombros e não chegou a nenhuma conclusão.

— Fazemos assim. — propôs ele. — Saímos daqui juntos e podemos ir beber um copo a minha casa, que dizes?

O rosto dela endureceu. Ficou muito séria. O sorriso desapareceu como o Sol coberto por uma nuvem negra. As amêndoas fulminaram-no. A mão, que até ali estivera no braço dele, afastou-se. Não ficou qualquer dúvida no ar que a proposta dele a ofendera, um golpe sujo a uma brincadeira dela com as amigas.

— Esquece. — disse num tom cortante. — Desculpa ter-te incomodado. — E virou-se para regressar à mesa das amigas.

Gabriel segurou-lhe o braço com gentileza. Sentindo o seu toque, ela tornou a disparar o olhar para ele, revelando uma expressão agressiva.

— Desculpa. — pediu Gabriel. — Agora fui um estúpido, um idiota.

Ela não alterou o semblante duro, fechado, mas não fez qualquer movimento para que ele a largasse ou continuar a afastar-se.

— Podes largar-me o braço, se faz favor? — solicitou com altivez. Gabriel soltou-a. Ela retornou à posição anterior. Quando tornou a falar, não existia na voz ou na face qualquer sinal de embriaguez. — Não ando à procura de engates. Foi apenas uma brincadeira das minhas amigas. Nem sequer foi interesse meu ou desculpa para meter conversa contigo. — Olhou-o da cabeça aos pés com desdém. — Elas podem achar-te um deus grego, mas não fazes minimamente o meu género.

— Ok, já percebi.

— Mais uma vez, desculpa ter-te incomodado.

— Espera.

Mesmo falando como se quisesse ir embora, ela continuava ali.

— Já te disse que fui uma besta. Peço desculpa por isso.

— Esquece.

— Deixa-me compensar-te. — Ela olhou-o com uma expressão torcida. — Já não estava a contar ficar muito mais tempo. Eu ajudo-te a enganar as tuas amigas. Vai buscar as tuas coisas e saímos daqui juntos. — Sorriu. — Depois, cada um vai à sua vida.

Mantendo o rosto antipático, ela anuiu e, dessa feita, afastou-se.

Gabriel chamou a funcionária. Disse-lhe que ia embora, entregou‑lhe uma gorjeta generosa e despediram-se com um beijo na face. Quando saltou do banco onde estivera sentado, a desconhecida reapareceu com o casaco vestido e uma malinha pendurada no ombro. Ele percebeu que ela se virou de forma a que as amigas a vissem e sorriu para Gabriel de forma sedutora e interessada, um dos sorrisos mais falsos que ele alguma vez vira. Sem dizer nada, deu-lhe o braço e ambos atravessaram o espaço na direcção da saída.

— Obrigada. — agradeceu ela, quando já se encontravam na rua.

— De nada.

A noite estava amena e muito agradável. Tirando os seguranças do estabelecimento e meia dúzia de jovens que aguardavam oportunidade para entrar, não se via mais ninguém por ali.

— Tens carro? — indagou Gabriel.

— Não. Vou apanhar um táxi.

— Eu faço-te companhia, até que apareça um.

Ela observou-o curiosa. Gabriel notou-o como resultado de qualquer especulação que lhe iria em mente.

— Eu estou de carro, mas não te ofereço boleia porque não quero ser mal-interpretado. — Ela virou-lhe as costas, olhando para a rua, procurando vislumbrar a chegada de um táxi. — Posso ao menos perguntar o teu nome?

Ela tornou a encará-lo.

— Olga.

— Olá, Olga! — disse, estendendo-lhe a mão. — Eu chamo-me Gabriel.

Olga aceitou o aperto de mão e atenuou a expressão séria.

— Mais uma vez, desculpa, aquilo lá dentro.

— Já passou. E não precisas de ficar aqui à espera.

— Fico mais descansado se te vir ir para casa em segurança.

Ela esboçou um sorriso.

— Já sou crescidinha, Gabriel. Além disso, não tens que te preocupar com uma desconhecida que, depois de hoje, talvez nunca mais vejas na tua vida.

— Seja como for. A menos que a minha presença te incomode, prefiro aguardar contigo.

— Como queiras. — respondeu, encolhendo os ombros.

Ficaram alguns momentos em silêncio. Poucos carros passaram na rua e nem um táxi. Ao fim de alguns minutos, Olga voltou a falar:

— Se continuar assim, ainda aceito a tua boleia.

— Se quiseres...

— Vais para onde?

— Parque das Nações.

Ela fez um sorriso trocista, um sorrido que o derreteu.

— Vais exactamente para o lado oposto ao meu.

— Posso fazer um desvio. Onde vives?

— Oeiras.

— Eu levo-te.

— Não te quero dar ideias.

— Como queiras, Olga. — desistiu.

Enquanto esperavam, foram caminhando lentamente pelo passeio. Gabriel olhou para trás. Lá ao fundo, os jovens tinham entrado ou desistido com a oposição dos seguranças.

O silêncio instalou-se, não tinham assuntos a partilhar. O vento soprou leve, agitando os cabelos dela. Olga penteou-se distraída.

Vindos do fundo da rua, surgiram dois indivíduos com ar suspeito. Gabriel sentiu a tensão nela, quando reparou na aproximação deles. Temeu ser um alvo fácil para um assalto, caso Gabriel não estivesse ali. E mesmo com ele, não saberia o que os outros poderiam fazer. No entanto, os dois tipos olharam para eles de forma demorada, mas não pararam sequer e prosseguiram o seu caminho.

— Que terá acontecido aos táxis desta cidade? — questionou ela para o ar.

— Ainda é cedo. Só daqui a umas horas é que se lembram de passar por aqui para começar a recolher a debandada a sair dos bares.

— Acho que vou aceitar a tua boleia. — decidiu, falando num tom vulnerável. — Mas, é o segundo favor que me irás fazer na mesma noite. Este tenho de retribuir.

— Não precisas de retribuir, Olga. Não me custa nada.

— Deixa-me pagar-te um copo. — sugeriu. — Conheço um lugar catita, perto de Belém. Fica em caminho. Que dizes?

Meia hora mais tarde, estavam sentados, frente a frente, num bar em Belém. Olga ainda estava pasmada com o facto de ter vindo à boleia num Porche Panamera.

O lugar era muito mais tranquilo que aquele donde vieram. Não havia música ambiente, somente um lugar tranquilo onde as pessoas se agrupavam em mesas para conversar num tom suave, respeitando o princípio de não incomodar os restantes. Não estava cheio, bem pelo contrário, só metade dos lugares estavam ocupados. Um vidro gigantesco virado para o rio mostrava um cenário ponteado de luzinhas na margem oposta e uma linha negra por onde a água corria eterna. Eles ficaram numa mesa mesmo junto ao vidro. Entre eles e o rio, um passeio largo que terminava na margem descendente empedrada.

Por momentos, ficaram a olhar-se curiosos. Dois copos eram os únicos objectos na mesa, um whisky de malte para ele, uma cola com gelo e limão para ela.

— Já bebi a minha conta por hoje. — dissera Olga, ao pedir a bebida.

— Não te preocupes. Prometo que, se ficares bêbada, não me aproveitarei de ti.

Ela rira e ripostara num tom acolhedor:

— Por estranho que pareça, acredito em ti.

Depois, o silêncio instalara-se. Não era desconfortável, era relaxante e uma espécie de descanso de duas almas que haviam tido um dia longo e stressante. Ambos olhavam para o exterior sem nada verem. Por fim, ele apanhou-a a olhar para si.

— Que se passa?

— O que fazes na vida? Não é qualquer um que tem um carro daqueles.

— Sou traficante de droga. — respondeu, simulando que falava verdade. O tom não deixava dúvidas. E ela acreditou, ficando pálida. — Estou a brincar contigo. Sou empresário de futebol.

Olga revelou um enorme alívio. A seguir, fez um sorriso escarninho.

— Engraçadinho...

— Havias de ter visto a tua cara.

Olga abanou a cabeça, era a sua vez de simular, aparentando ter ficado aborrecida com a brincadeira. Não durou muito e sorriu-lhe, dizendo:

— Na prática, realmente és um traficante, mas de jogadores.

— Nunca tinha pensado nisso nessa perspectiva.

— Vá lá, Gabriel, estou a exagerar.

— E tu, o que fazes?

— Sou investigadora científica.

— És cientista?

— Não é bem cientista, trabalho num laboratório. Faço parte de uma equipa de investigação que estuda tratamentos para doenças oncológicas.

Gabriel fez uma expressão de surpresa.

— Hum.... Estou impressionado.

— Não dá para comprar Panameras. — ripostou ela com humor.

— Mas, salvas vidas.

— Tento.

— Estou deveras impressionado. Aliás, confesso que me sinto fascinado contigo.

— Não abuses, Gabriel. Já te disse que não estou interessada.

Ele sorriu, um sorriso que ela considerava bastante atraente.

— Sentir-me fascinado por ti, não quer dizer que queira dormir contigo. — atirou ele, procurando reverter aquele quadro que lhe dava o papel de sedutor não correspondido. — O fascínio resulta daquilo que fazes. É graças a pessoas como tu que existem tratamentos para doenças que eram incuráveis.

— Percebo. — compreendeu, fazendo uma espécie de "biquinho" com os lábios. — Mas, honestamente... Não queres?

— O quê?

— Dormir comigo?

— Não. — mentiu.

— E se eu quisesse dormir contigo?

— Ias dormir sozinha.

— Ena! — protestou, encaixando a rejeição. O rosto endureceu ligeiramente. — Para quem há pouco me convidava para um copo em sua casa...

— Convidei-te para um copo. Estamos aqui a beber um copo.

— Deixa-me adivinhar, também não faço o teu género?

— Para dormir, não.

— Qual é o teu género para dormir?

— Almofadas.

Olga soltou uma gargalhada deliciosa sem conseguir evitar chamar as atenções para si. Fez um ar envergonhado e olhou em redor como se pedisse desculpa.

— Então só dormes sozinho? — questionou divertida. — Não existe uma miss Panamera para te aquecer a cama?

— Achas que se não fosse solteiro, te teria convidado para minha casa ou estaria aqui a beber um copo contigo?

— Ui... Não sei como deva interpretar isso. — disse ela como se estivesse preocupada. — Se, agora, eu não for igualmente solteira, que irás pensar de mim?

— Não és solteira?

— Divorciada. — informou séria, ao fim de breves momentos.

Gabriel percebeu que o assunto era melindroso, talvez até recente, daí que talvez ela não o quisesse abordar.

— Ok. Somos os dois descomprometidos. — atalhou.

Olga fez um gesto revelador que isso poderia não ser totalmente verdade. Gabriel ficou confuso e permaneceu atento a ela, esperando um esclarecimento. Olga sorriu, era um sorriso nervoso, culpado, desconfortável.

— Tenho uma filha. — acabou por dizer sem respirar. — Por isso, não posso dizer exactamente que não tenho compromissos.

— Eu referia-me a não termos namorados.

— Eu sei. Mas, quis dizer-te isto. Quis que soubesses que tenho uma filha.

— Porquê?

— Porque é importante para mim. A minha filha é o que existe de mais importante na minha vida.

— Não ponho isso em causa, Olga. Só não entendi porque é tão importante para ti que eu saiba que tens uma filha.

Não houve resposta. Ela queria ter uma, sabia o que queria responder, mas não encontrou coragem e refugiou-se na observação dos desconhecidos.

Gabriel quebrou o silêncio:

— É recente?

— Recente?

— O divórcio.

— Estamos separados há três meses.

— É oficial?

— Como assim?

— Já se divorciaram legalmente?

— Nunca fomos casados, Gabriel. Vivíamos juntos. — Olhou para o vazio como se recordasse tempos idos. — Decidimos viver juntos, quando engravidei. — Ela parecia adivinhar-lhe as perguntas. — Não foi planeado, mas a gravidez foi recebida com muita felicidade por ambos.

— Que idade tem ela?

— Sete anos.

— Calculo que não esteja a ser fácil, a separação dos pais.

— Nada mesmo. Já tem idade para compreender as coisas e não aceita que os pais já não vivam na mesma casa. — Fez um sorriso triste. — Este fim de semana está com o pai. — O sorriso tornou-se irónico. — Claro que se assim não fosse, eu não estaria aqui. Que mãe seria eu a sair com as amigas e a deixar a miúda sozinha em casa?

— Não pensei que o fizesses.

— Eu e o pai da Íris mantemos uma relação cordial. Estamos a tentar fazer com que resulte pelo bem dela.

— A tua filha tem um nome lindo.

— Obrigada. Fui eu que escolhi.

Voltaram a silenciar-se e procuraram assunto na visualização dos restantes clientes.

Olga olhou para o relógio.

— Está a ficar tarde. É melhor irmos.

— Claro. — concordou ele, fazendo sinal ao empregado.

A noite continuava amena e agradável. Dava vontade de ficar ali, junto ao rio, sem pressas, a saborear o ambiente. Gabriel e Olga caminharam devagar em direcção ao local onde o automóvel ficara estacionado. Não disseram nada, mas ela tomou a liberdade de lhe segurar o braço.

Junto ao Porche, ele levou-a até à porta do passageiro e abriu-lha como um cavalheiro que era. Ela entrou, sorrindo-lhe. Quando ele contornou o carro e entrou para o lugar do condutor, ouviu-a dizer:

— Já não se vêem muitos homens a tratar uma mulher com a gentileza com que tu fazes.

— Estou a ser interesseiro, é uma forma de te tentar dar a volta.

Olga sorriu. Por estranho que pudesse parecer, conhecia-o há poucas horas, mas já era capaz de lhe descodificar as palavras, sabendo quando ele falava a sério ou com humor. Ali, percebeu que brincava, da mesma forma que entendeu a seriedade, no momento em que ele parou defronte do seu prédio e lhe disse:

— Gostava de te voltar a ver.

Ela não respondeu de imediato, como se ponderasse a questão. Contudo, olhou-o com um imenso calor amendoado, séria, intensa.

— Não sei... — hesitou, aproximando-se para se despedir com um beijo na face. — Não sei se será boa ideia.

— Porquê?

Olga beijou-lhe a face e segredou-lhe:

— Tenho medo de me deixar apaixonar por ti.

A confissão surpreendeu-o. Viu-a afastar-se, subitamente vulnerável, ficando a um palmo do rosto dele.

— Facilmente me apaixonaria por ti, Olga. E não tenho medo disso.

Houve um sorriso no rosto dela, uma expressão de agrado. Não disse nada, mas voltou a aproximar-se e beijou-o nos lábios.

Foi um beijo suave, uma exploração recíproca entre duas pessoas que se beijam pela primeira vez. Depois, tornou-se mais intenso, ao ponto de revelarem uma vontade imensa de se comerem um ao outro.

— Queres subir? — convidou ela, quebrando o beijo.

— Tens a certeza?

— Sem compromissos, Gabriel. Ambos o queremos e nada há que nos impeça de o fazer.

 

Gabriel surpreendeu-se pela forma como acordou ao fim da manhã de Domingo. Estava deliciosamente confortável na cama de Olga com ela a dormir nos seus braços, ambos encaixados como se fossem uma concha. Sentia-se o homem mais feliz do Mundo. Fora uma noite maravilhosa, intensa, apaixonada, loucamente saborosa.

Olga continuava a dormir. Ele teve receio de fazer qualquer movimento que a acordasse. Beijou-lhe os cabelos e sorveu o aroma do seu corpo delicioso. Permitiu-se a recordar o corpo nu dela, as etapas lentas em que se foram descobrindo um ao outro. Não conseguia explicar, mas estava fascinado com ela.

Um movimento denunciou que começava a despertar. Acordou aturdida, quase como se não se lembrasse que aquele homem adormecera na sua cama depois de muito sexo. Estremunhada, virou-se e encarou-o com um sorriso. Beijou-o com ternura.

— Bom dia, Gabriel.

— Bom dia, Olga.

Olga olhou paras as horas.

— Bolas, não pensei que fosse tão tarde.

— É Domingo, Olga.

— Tenho de ir buscar a minha filha a casa do pai.

— Eu posso levar-te. — sugeriu Gabriel.

Para sua surpresa, Olga fez uma expressão séria.

— Gabriel. — iniciou com seriedade e cuidado nas palavras. — Isto... Isto, entre nós. Isto é só sexo. É bom, muito bom. Mas, é só sexo. Não pretendo que seja só hoje, quero repeti-lo e espero que tu também queiras, mas... — Ele olhava-a, atento, algo confuso. — A minha filha é uma parte da minha vida ou não pretendo que entres.

— Porquê? — questionou.

Olhavam-se deitados, ainda abraçados. Ele sentiu aquilo como um golpe. Não foi capaz de se afastar, mas ficou magoado. Ela percebeu e procurou explicar-se o melhor que soube.

— Não quero que a presença de outros homens a confundam. Sei que procuras diversão, sexo...

— Espera um pouco. — interrompeu ele. — Como é que sabes o que procuro ou o que quero?

— Então diz-me. — pediu com ternura. — Esperas que nos tornemos um casal?

Gabriel ia a responder afirmativamente, mas algo o retraiu e o fez colocar a questão frontalmente:

— Sê sincera comigo, Olga. Tu e o teu marido.... Há hipótese de voltarem? Uma reconciliação?

— Não Gabriel. Foi muito grave o que ele fez. Não há volta, nem que ele fosse o único homem à face da terra.

Gabriel sorriu e teve a deliciosa, cruel e dolorosa certeza de que estava apaixonado por ela como, talvez, nunca tivesse estado por mulher alguma.

— Não quero só sexo contigo, Olga. Quero mais que isso.

— O que queres exactamente? — insistiu ela, num tom quase ríspido. — E não te esqueças que tenho uma filha.

— Quero amar-te. — confessou. — E não tenho problema nenhum em que tenhas uma filha.

— Não quero que a Íris volte a sofrer. Se eu permitir que atravesses essa linha, sei que irá sofrer se, daqui a uns tempos, perceberes que não é isto que queres.

— Vais ter de confiar em mim.

— Vamos com calma, Gabriel. — pediu carinhosa. — Hoje... Hoje, tu vais para casa e eu vou buscar a Íris.

— Como queiras. — retorquiu decepcionado.

— Concedes-me um pedido?

— Diz.

— Podemos continuar assim, por algum tempo? Só sexo?

Gabriel não respondeu. Ao invés, levantou-se da cama. Pareceu ponderar a resposta e acabou por dizer:

— Acho que no fim disto tudo, eu é que ainda me vou magoar. Não sei explicar como, mas esta noite, desde que nos conhecemos, senti que criámos uma química forte entre nós. Não consigo ver-nos apenas como dois adultos que se encontram para sexo. Sinto por ti, algo mais forte que isso. Se não posso ter isso, acho que é melhor ficarmos por aqui.

Para sua surpresa, Olga riu-se.

— É a primeira vez que um homem me rejeita completamente nu. — Ele ia protestar, mas ela fez um gesto para que esperasse. — Será como queres, Gabriel. Eu vou deixar-te entrar nessa parte da minha vida. Hoje vais conhecer a Íris. Mas, juro-te, se fizeres algo que a faça sofrer, hei de odiar-te para o resto da tua vida.

 

Íris era uma menina de sete anos alegre e sorridente. Tinha os olhos da mãe, o cabelo menos claro e uma fisionomia redondinha e fofa. Gabriel não acompanhou Olga quando ela foi buscar a filha ao novo apartamento do pai, ficando a aguardar ao fundo da rua. A pequena sentiu-se intimidada com o desconhecido, mas acabou por interagir cada vez mais com aquele novo amigo da mãe.

Gabriel não sentia qualquer incómodo com o facto de a sua namorada ter uma filha, mas também não via a criança como se fosse uma filha, só porque tinha uma relação com a mãe dela. Aliás, ele nunca sentira o chamamento da paternidade, nem os filhos alguma vez haviam sido um objectivo de vida. Para além disso, Íris não precisava que ele ocupasse o papel de pai, uma vez que o seu era bastante presente na sua vida, independentemente da separação com a mãe. Nem seria um suplente ou um substituto dele, caso o pai a decepcionasse dalguma forma. Partindo do princípio, tal como Gabriel desejava, que a relação com Olga duraria para o resto da vida, Íris seria uma amiga mais nova, a filha da sua paixão, alguém para quem ele estaria sempre disponível, sempre que ela precisasse de si.

Íris era uma criança adorável. Olga fizera um esforço hercúleo para ser o escudo que protegera a filha das mazelas da separação. Mesmo ferida e magoada com o homem com quem vivera sete anos e que a traíra, Olga manteve uma relação cordial com ele, quase uma amizade, mesmo que no seu íntimo não o quisesse ver à frente. Consequentemente, após o choque inicial, Íris encarou com naturalidade aquela realidade. Tal como foi achando normal que aquele amigo da mãe fosse visita constante da casa e dormisse muitas vezes no quarto da mãe, tal como o seu pai fazia quando lá vivia.

O passar do tempo criou laços afectivos entre Gabriel e Íris. Tal como ele não a via como uma filha, também a pequena não o via como um pai. Era o amigo da mãe, o Gabi, como ela lhe chamava porque tinha uma colega na escolinha que se chamava Gabriela e todos lhe chamavam Gabi. Ele não se importava. Para Gabriel também foi uma surpresa perceber que tinha algum jeito com as crianças. Participava nas brincadeiras dela, contava-lhe histórias e ripostava ao "Gabi" com um carinhoso "Arco-íris", que era como ele lhe chamava com ternura.

Ao longo de dois anos, a relação de Gabriel e Olga foi o paraíso. Faziam vidas independentes um do outro, nunca chegaram a colocar a hipótese de viverem juntos, mas Gabriel dormia frequentemente em casa de Olga. Por seu turno, quando Íris passava fins de semana com o pai, Olga mudava-se para o apartamento de Gabriel.

Apesar de o esconder, Gabriel tinha um certo ciúme dos encontros entre Olga e o pai da filha, mesmo que esses não durassem mais que o tempo necessário para deixar ou ir buscar a filha. Com o passar das semanas, esse ciúme, esse receio que ela pudesse voltar para o marido foi‑se esfumando. E Gabriel sentiu a cada dia que Olga seria a mulher da sua vida e que envelheceriam juntos.

Olga e Íris tornaram-se uma parte muito importante da vida de Gabriel. Fora uma época em que ele se sentia completamente realizado, tanto na vida pessoal como na profissional. Costumava levá-las a viajar com ele, foi assim que Íris visitou a Disneylândia em Paris e que Olga concretizou o sonho de ir a Florença. As viagens de trabalho dele tornaram-se menos entusiasmantes porque ia sozinho e com uma saudade imensa da namorada e da pequena.

Sim, Gabriel não tinha dúvidas, era feliz.

Depois...

Não teve nada a ver, foi uma coincidência.

Ele era um empresário de futebol de muito sucesso, nada comparado com alguns tubarões empresariais que se moviam no meio e muito menos alcançava o estatuto daquele que chegaria a ser considerado o melhor empresário de jogadores de futebol do Mundo. Contudo, ganhava uma fortuna e era um homem muito rico. Entre os seus contactos, recebeu um convite para trabalhar no Canadá, numa agência de activos desportivos, para fazer o que já fazia e ganhar dez vezes mais. Não pensou duas vezes e recusou.

Gabriel não precisava daquele trabalho, nem se queria afastar de Olga ou impor-lhe uma mudança de vida desnecessária. Mesmo que ela estivesse na disposição de o acompanhar com a filha, não seria justo afastar Íris do pai, nem o pai da filha.

Nunca comentou a proposta com Olga. Contudo, o facto de se sentir tão seguro em recusar propostas milionárias em prol dela, fê-lo pensar que estaria na altura de a relação passar ao nível seguinte. Ao fim de dois anos de relação, Gabriel não tinha qualquer dúvida, queria casar com ela e iria fazer o pedido.

Em simultâneo, algo aconteceu. Para sempre seria recordado por si como o tempo em que subira ao Céu e rapidamente caíra no Inferno.

Fizera uma viagem a Itália para tratar de mais uma transferência de jogadores. Tal como sempre acontecia nestas viagens solitárias, telefonava a Olga e trocavam mensagens. Aquela não fora diferente, conversaram apaixonados e nada antevira o que se sucederia. Ele já era para ter feito o pedido de casamento, mas quis deixar passar o aniversário da pequena Íris para que uma novidade daquelas não retirasse protagonismo a um momento anualmente ansiado pela criança. Assim, o pedido aconteceria quando ele regressasse de Itália, uma vez que partira logo após o evento.

Três ou quatro dias, não fora mais que isso, se bem que o turbilhão de emoções que se seguiram lhe deixaram os pormenores da recordação algo enevoados. Nesse espaço de tempo, Olga revelara-se a mesma apaixonada e melosa de sempre, ao telefone ou nas mensagens que trocavam. Na última noite transalpina, Olga telefonou-lhe. Algo na voz dela surgiu ao ouvido de Gabriel como um alerta. Sentiu-se imediatamente tenso, como se adivinhasse que algo mau aí vinha. Se pudesse, teria desligado a chamada e atrasado o mais possível o que não queria ouvir. Fingiu não perceber e recebeu a voz dela com:

— Olá, amor!

— Olá, Gabriel!

Pois... Não houve um "olá, amor" no outro lado como era usual.

— Está tudo bem?

— Temos de falar.

— Estamos a falar, Olga. — retorquiu sem perceber que a sua voz adoptava um tom agreste em defesa.

— Aconteceu algo.

— Que aconteceu, Olga?

A resposta foi a respiração dela.

— Estás bem, Olga? — insistiu quase como se desejasse que ela lhe fosse contar uma fatalidade ao invés do que adivinhava estar para vir.

— Não sei como hei de te dizer isto, Gabriel.

— Experimenta usar uma coisa que se chama "palavras". — atirou, tremendo, mas com a voz firme.

— Não precisas de falar assim.

— Estás a deixar-me preocupado e não desembuchas. Que se passa Olga?

— Quero terminar a nossa relação! — afirmou segura, quase sem respirar.

— O quê? Porquê? Donde vem isso agora?

— Aconteceu algo...

— Foda-se, Olga! Já ouvi essa merda. Que aconteceu? Diz de uma vez!

— Eu e o pai da Íris... Nós.... Aconteceu.

— Aconteceu o quê? Ao menos, sê crescidinha e diz as coisas como gente adulta. — rosnou ele, furioso.

— Fizemos sexo. — respondeu ela num tom agressivo. — Fomos para a cama um com o outro. Fodemos. Ele comeu-me, eu comi-o a ele. Satisfeito?

Gabriel não respondeu. Sentiu a mágoa, a dor da traição percorrer‑lhe o corpo. Uma fúria imensa atravessou-lhe a espinha, teve vontade de partir o telemóvel em mil pedaços.

— Percebes agora porq...

— Vai pró caralho, Olga!

— Não seja mal-educado.

— Antes mal-educado que puta.

Novo silêncio. Gabriel esperou que ela dissesse algo. Só houve silêncio por alguns momentos. Por fim, a voz de Olga surgiu fria como gelo.

— Ok, Gabriel. Apesar de não concordar, talvez mereça que me chames isso. Seja como for, quis só informar-te que está tudo acabado entre nós. Adeus!

— Espera! — pediu ele sem atenuar minimamente o tom rude. — Isto não acaba assim só com um "adeus".

— Não tornes as coisas mais difíceis. Nós já não temos mais...

— Não me refiro a ti. — interrompeu. — A Íris...

— Que tem a Íris?

— Quero despedir-me dela.

— Isso é desnecessário. Nem me parece que lhe faça bem passar por isso.

— Porquê? Eu gosto da tua filha, não quero desaparecer assim da vida dela, como se me tivesse evaporado.

— Tu és apenas o namorado da mãe. Neste caso, um ex-namorado. Daqui a dois ou três dias já nem se lembra de ti.

— Como podes dizer isso, Olga?

— Adeus, Gabriel!

— Olga!

Ela desligou-lhe a chamada na cara.

 

 

 

 

 

IV

— Nunca mais as viste?

Gabriel olhava para as mãos com os olhos vagos nas recordações.

— Só uma última vez, Phil. — relatou. — Quando regressei, decidi estupidamente ir a Oeiras e forçar um reencontro. Para te ser sincero, não sei bem o que esperava fazer, quando a visse. Estava tão magoado, tinha o coração esfrangalhado.

— E reencontraste-a? — questionou o psicólogo. Gabriel anuiu. — Que aconteceu?

As luzes da sala haviam ganho uma tonalidade mais forte com o escurecimento lento do exterior. Phil mantinha a sua posição, atento, ouvinte, sentado na poltrona. Gabriel atravessava uma onda de trevas a recordar os momentos mais horríveis da sua vida.

— Por coincidência, quando cheguei e estacionei o carro, vi-a sair do prédio com a filha e o ex. Vinha com um ar apaixonado, de mão dada com ele. Vi-os beijarem-se, o que me provocou uma sensação semelhante a um soco no estômago. Queria bater em ambos. Só que, logo de seguida, reparei no rosto feliz da Íris. Conhecia-a há tempo suficiente para perceber como estava feliz por os pais estarem juntos. Em todo aquele cenário, eu era a figura deslocada, era eu quem não pertencia ali. A única pessoa... — Fez uma pausa, procurando as palavras. — A única culpada era a Olga. Fora ela quem me fizera acreditar numa mentira. Nem sequer culpava o gajo, fizera o seu papel, reconquistara a mãe da filha. — Nova pausa. Na mente de Gabriel, o rosto de Íris. — E jamais faria qualquer coisa que quebrasse a felicidade da miúda. A criança não merecia. Sei que gostava de mim, mas eu não era nada ao lado do pai.

— E elas? Viram-te?

Gabriel abanou a cabeça.

— Não. Os três prosseguiram o seu passeio até desaparecerem na esquina seguinte. E eu fui-me embora para sempre.

— Nunca mais soubeste nada delas?

— Não quis saber. Apaguei-as completamente da minha vida.

— E depois disso? Não houve mais ninguém?

— Depois disto, atravessei as trevas. Queria desaparecer. — Gabriel olhou para a expressão inquiridora de Phil. — Não, Phil, não me tentei matar. Estava na merda, mas não ao ponto de querer acabar com a vida. Queria desaparecer dali, dos sítios que me faziam lembrá-la.

— Foi por isso que vieste para o Canadá?

Ele anuiu.

— Recuperei a proposta e, na altura, pareceu-me o melhor caminho. Desfiz-me de tudo o que tinha em Portugal e parti para nunca mais voltar.

— Nunca mais voltaste a Portugal?

— Não.

Phil esperou que Gabriel prosseguisse o relato, mas ele limitou-se a pegar no telemóvel e a analisar as chamadas não atendidas, uma vez que mantinha o aparelho silencioso sempre que ali ia.

— Foi por isso que te fechaste ao Mundo?

— Como assim? — questionou Gabriel, olhando para Phil. — Não me fechei ao Mundo. Apenas limitei o acesso das pessoas ao meu.

— Que conclusão tiras dessa decisão, ao fim destes anos?

— Que foi a melhor decisão que tomei. Não preciso de merdas destas na minha vida, Phil. Não preciso de acreditar em fantasias para ser despertado para a realidade. E se tens dinheiro, podes ter tudo sem chatices.

— No entanto, aí estás tu, mergulhado em angústia e solidão.

— Como é que se costuma dizer, Phil? O que não nos mata, torna‑nos mais forte.

Phil assentiu irónico, não partilhava daquela visão.

— Acho que devias repensar o futuro. Talvez te surpreendesses, se deixasse alguém...

— Pois, pois. Ambos sabemos onde isso me levaria. — contrapôs Gabriel. Tornou a olhar para o telemóvel. — Tenho de ir. Obrigado por este bocado, Phil.

 

A cúpula do Rogers Centre tinha razão, a chuva vinha a caminho. Quando Gabriel regressava a Toronto pela Gardiner Expy, a noite caía e os aguaceiros grossos embatiam no para-brisas do Ferrari. Enquanto fez o trajecto entre Mississauga e Toronto, Gabriel aproveitou o sistema de som ligado ao smartphone para responder aos telefonemas. Não era a melhor das oportunidades para conduzir e falar ao telefone ao mesmo tempo, mesmo em versão "mãos-livres", mas tinha o tempo limitado e queria inteirar-se dos assuntos antes de chegar ao compromisso desse início de noite, o jogo de basebol na casa dos Blue Jays.

Nenhum dos telefonemas mereceu o tempo que lhe tiraram. Nada de relevo, pontos de situação relativos a potenciais interesses de clubes, um ou outro agente a propor um acordo para que ele ajudasse na contratação de um seu agenciado, enfim... Nada que lhe interessasse, nem para o qual tivesse paciência, tal como aquele jogo a que ia.

Quem o convidara para assistir também lhe reservara um lugar no parque privativo do estádio. Aliás, era habitual ter acesso a um lugar para o seu F8 sempre que ia aos jogos de basebol, o que era raro. Preferia o seu lugar intocável no ScotiaBank Arena e despender tempo a ver os Maple Leafs ou os Raptors. Contudo, sabia que o convite se prendia com negócios, daí que não pudesse... não devesse recusar.

Encontrou algumas caras conhecidas que cumprimentou, mas com quem não perdeu muito tempo. Subiu pelo elevador e foi sair a um dos luxuosos pisos de camarotes. Sabia onde o tipo estava, o camarote era dele, um dos directores do clube.

Algumas dezenas de pessoas circulavam pelo corredor, a maior parte equipada com um qualquer adereço identificativo dos Blue Jays. Gabriel sorriu sozinho, certo de que quando se iniciassem as épocas da NHL e NBA, aquele estádio teria muito menos espectadores sempre que os jogos coincidissem com o hóquei ou o basquetebol.

Ao chegar ao camarote, a porta estava aberta. O espaço era semelhante a uma sala de estar com sofás, um balcão e mesas com bancos altos viradas para um grande vidro por onde se poderia ver o campo lá em baixo. Em posição oposta à entrada e logo ao lado desse vidro, uma porta igualmente envidraçada permitia que se acedesse às confortáveis cadeiras dos espectadores. O interior era todo em tons de azul, vermelho e branco, as cores dos Blue Jays. Gabriel entrou, reparando nas pessoas que já lá estavam. Viu o director que o convidou, um homem na casa dos setenta anos, vestido com um fato caríssimo, um outro tipo mais novo também com ligações ao clube e envergando a mesma formalidade, uma rapariga de vinte e poucos anos, loura platinada e cheia de curvas com um vestido reluzente e apertado, a qual ele sabia ser relações-públicas do clube, e uma outra mulher que ele não conhecia.

O homem mais velho sorriu-lhe com simpatia e cumprimentou-o. Gabriel apertou-lhe a mão, fez um aceno ao outro homem e sorriu para a RP que se aproximou e se ofereceu para lhe servir uma bebida. Gabriel declinou a oferta, aterrando os olhos na única pessoa que desconhecia. O seu anfitrião reparou e apressou-se nas apresentações.

— Gabriel, é a Rachel. — informou. — A Rachel é representante dos Washington Nationals e veio visitar-nos para nos apresentar uma proposta para o Lewis.

Rachel era uma mulher alta, tão alta quanto ele. Tinha cabelos longos acobreados e um rosto tipicamente americano do sul. Aliás, quando falou, Gabriel identificou-lhe imediatamente o sotaque sulista. Vestia um fato de saia e casaco estilo empresarial em tons claros, elegante e caro. O rosto era expressivo, uma simpatia protocolar que pretendia cair nas boas graças de quem teria de convencer a levar avante o seu negócio. Tinha olhos azuis, nariz aquilino e uma boca suculenta. Fisicamente não ficava atrás da esbelta RP dos Blue Jays, ainda para mais com aquele ar maduro e sensual.

Gabriel estendeu-lhe a mão com um sorriso, mas as palavras foram dirigidas ao director.

— O Lewis? Vocês sabem que a vender os melhores jogadores, nunca conseguirão ganhar títulos?!

O anfitrião ignorou o comentário e explicou:

— A proposta é muito boa.

Se fosse tão boa como quem a trazia, Gabriel sabia que seria difícil recusarem-na.

Lewis era um dos melhores lançadores da equipa. Para quem não sabe muito acerca de basebol, mas já viu alguma imagem do desporto, o lançador é aquele tipo que está no meio do campo a lançar a bola para que esta chegue ao seu colega de equipa atrás do batedor, sem que o batedor acerte na bola. Complicado? Bom, a questão fundamental é que Lewis era talvez o jogador mais influente da equipa.

Por seu lado, Rachel representava os Washington Nationals, outro clube profissional de basebol da MLB, equipa americana sediada na capital dos Estados Unidos, Washington D. C., e candidata às World Series, nome da fase final de apuramento do campeão.

— Prazer em conhecer-te, Gabriel. — disse ela num tom rouco.

Ele leu-lhe a expressão sedutora, sabia que tudo fazia parte de um jogo para o convencer a concordar com a sua proposta. Até onde estaria disposta a ir? O tempo o diria. Correspondeu à simpatia, analisando-a, adivinhando que deveria estar perto da sua idade, apreciando aquela beleza madura de mulher experiente que sabia o que queria e como queria.

No exterior ecoou a música habitual dos eventos desportivos para animar o público. Ainda nem metade da lotação se esgotara. No recinto relvado, alguns jogadores aqueciam e treinavam lançamentos.

— Então a Rachel foi o motivo do convite. — constatou Gabriel, olhando para o director.

O homem riu-se bonacheirão, segurando no copo de brandy.

— Espero que não estejas decepcionado. — desejou Rachel, fazendo uma espécie de beicinho.

— Se conseguir evitar que o Lewis saia dos Blue Jays, não fico. — retorquiu Gabriel, entrando no tom dela.

Rachel simulou um semblante magoado.

— Oh... Assim, serei eu a ficar desapontada.

O espaço era iluminado numa tonalidade creme. Porém, a luz pareceu perder força quando a iluminação dos holofotes mergulhou o campo numa onda de brilho.

— Vai começar. — chamou o director.

A zona reservada defronte de cada camarote tinha duas linhas de cadeiras confortáveis, as quais eram limitadas pela beira da bancada. Estavam no piso intermédio. Abaixo deles estava a bancada ao nível do relvado, acima deles os lugares mais distantes e menos caros.

O responsável do clube encaminhou os convidados de forma a que Gabriel e Rachel ficassem sentados ao lado um do outro. Depois, ele sentou-se ao lado de Gabriel, fazendo uma espécie de cerco ao agente desportivo para, juntamente com ela, o convencer a aceitar a proposta que tinham para Lewis. Se convencessem o empresário do jogador, convenceriam o jogador.

Ao longo do início do jogo, Rachel foi falado dos detalhes da proposta, os valores envolvidos para o jogador, o que o clube ganharia com a transacção e quanto caberia a Gabriel. Era mesmo uma proposta ao nível de quem a trazia, interessante, bem estruturada e que dava vontade de agarrar.

Porém, Gabriel não chegara ao estatuto que tinha, a facilitar os negócios à parte contrária, por isso permaneceu impávido como se lhe estivessem a oferecer um quilo de laranjas para concordar com o negócio. Para além disso, passou o jogo todo a elogiar a exibição de Lewis, o qual fez um daqueles jogos de valer o bilhete.

Astuta, Rachel colocou a mão no braço de Gabriel e com um ar sofrido, confessou:

— Não poderemos ir muito além disto.

— Então, é melhor irem até onde podem ir, Rachel.

— Terei de falar com os Nationals, Gabriel.

Ele franziu o rosto, não acreditando que uma empresária na posição dela não tivesse uma margem de manobra para aumentar a parada.

— A sério, Gabriel. — insistiu, afectuosa. — Quero trazer-te algo irrecusável.

— Tudo bem, ficarei à espera.

— Sou capaz de ter novidades, amanhã. Podemos discutir a nova proposta num jantar? — sugeriu ela.

— Não sei. — respondeu Gabriel, voltando-se para o director. — Tens disponibilidade?

Rachel apertou-lhe o braço, chamando o seu olhar para si.

— Acho que podemos resolver a questão entre nós. — Olhou para o director dos Blue Jays. — Não achas, meu caro?

— Claro que sim, Rachel.

Ela tornou a encarar os olhos de Gabriel.

— Então, que me dizes? Amanhã à noite?

Para surpresa dela, com certeza pouco habituada a ser rejeitada, Gabriel recusou e apresentou como alternativa que ela passasse no seu escritório no dia seguinte à tarde.

A empresária teria preferido um jantar, num ambiente intimista, onde pudesse fazer algum jogo de sedução para o convencer. Na verdade, não estava surpreendida, Gabriel era um dos melhores agentes de jogadores da América do Norte, por isso, teria de jogar nas regras dele.

 

O ambiente no gabinete de Gabriel estava luminoso, tal como a cidade que, naquele dia, trocara a chuva pelo Sol radioso. Ele aguardava sentado na sua cadeira atrás da mesa de trabalho, analisando o contrato que obtivera o parecer favorável do seu advogado.

Na hora marcada, Francis surgiu na entrada acompanhado pela pessoa que combinara aquela reunião com ele. Gabriel levantou-se e recebeu Rachel com um sorriso protocolar, enquanto Francis regressou ao seu posto na recepção.

Rachel apresentava-se no mesmo estilo de vestuário de mulher de negócios, como acontecera no Rogers Centre. Desta vez, o fato era mais escuro, mas combinava na perfeição com o seu tom de cabelo. Gabriel reparou que a camisa dela tinha dois botões a mais desapertados, certamente com o intuito de o distrair para o decote.

Gabriel convidou-a a sentar no sofá.

— Tens aqui um belo espaço. — constatou ela, sentando-se numa das pontas do sofá.

Ele não se pronunciou e sentou-se na extremidade oposta, deixando espaço suficiente, entre eles, para que outras duas pessoas se sentassem.

Abrindo a sua mala de trabalho, Rachel retirou uma folha impressa com as insígnias dos Nationals e entregou-a a Gabriel. Ele pegou no papel e leu-o com atenção. Não havia dúvidas que queriam mesmo o Lewis, uma vez que aumentavam bastante os valores envolvidos.

— É o máximo que podemos oferecer. — confessou ela.

Gabriel fez uma expressão desconfiada. Rachel contrapôs com um sorriso sedutor e num tom fingido de vulnerabilidade, revelou:

— Acredita, Gabriel. Eles não vão dar mais que isso. Acima desses valores, só se for eu a pagar. — Sorriu. — E eu não tenho dinheiro para isso.

Ele ia aceitar e sabia que Lewis aceitaria logo que visse a proposta. Era muito mais que aquilo que auferia em Toronto. No entanto, estava curioso com aquele jogo de sedução que Rachel vinha a fazer desde que a conhecera.

 

Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!

 

— Esperava mais... — suspirou Gabriel.

Rachel revelou surpresa no olhar.

— Por favor, Gabriel. Isso é uma proposta multimilionária.

Ele ignorou a frase.

— Tu também vais lucrar bastante com isto, Rachel.

— Tal como tu.

Gabriel pareceu ponderar a questão. Percebeu que trazia uma certa irritação no espírito, uma irritação que o corroía desde que estivera a reviver os últimos anos em Portugal, na sala de Phil. Odiava quem se aproveitava dele, principalmente mulheres que faziam charme para o enganar. Sentia que Rachel o procurava seduzir para o levar a fazer o que ela queria, tal como Olga o enredara numa malha de amor que não fora mais que uma ilusão amarga de um falso sentimento. Olga usara-o até recuperar o ex-marido, Rachel queria usá-lo para lucrar com a mudança de Lewis dos Blue Jays para os Nationals.

 

Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!

Seria Rachel capaz de se vender?

 

Na sua mente, Gabriel equacionou até onde estaria ela disposta a ir para o convencer. No dia anterior, sugerira um jantar. Todos os sinais que vinham dela apontavam para a selagem do acordo no quarto de hotel onde estava hospedada. A verdade é que não tinha paciência para esse tipo de jogos, gostava de ser prático, daí a lista de dez nomes quando se queria envolver com alguém. Dar-lhe-ia um certo gozo colocar-lhe as cartas na mesa, apresentar a contraproposta de "eu aceito o acordo se formos para a cama". Não. Queria algo mais imediato, do género "despes o casaco e a camisa, fazes-me uma mamada agora e eu aceito o acordo". Ia ainda a pensar noutra hipótese, quando a voz dela o despertou das fantasias.

— Olha, Gabriel, nós não nos conhecemos. Sei o que estás a pensar. — Não, não sabia. — Que estou a fazer bluff, que posso ir mais longe. Não posso. A sério que não posso. — Havia algo de genuíno na voz dela, falava com frontalidade, sem esquemas, longe do ar de sedução e numa postura profissional. — Tenho pena, não só pelo dinheiro que não vou ganhar, mas porque gostava de realizar um negócio com alguém com o teu prestígio.

— Sou apenas um empresário de desporto como tu. — retorquiu, sentindo-se estúpido pelas ideias que lhe passaram na cabeça.

— Já ando nisto há vários anos, mas não tenho o teu prestígio. — concluiu com um sorriso cansado.

Sem saber explicar porquê, Gabriel sentiu uma súbita simpatia por ela.

— Não te preocupes. — descansou-a. — Eu aceito esta proposta.

Ela ofereceu-lhe um sorriso radioso de uma felicidade genuína.

— Fico a dever-te uma.

— Não me ficas a dever nada, Rachel. — recusou, retribuindo o sorriso. — São negócios e ambos ganhamos com eles.

Gabriel calculou que a sua aceitação levasse ao fim daquela reunião. Contudo, Rachel não se mexeu e ficou a olhar para ele. Que quereria ela? Pensou em fazer aquele gesto típico de olhar para o relógio e dizer "bom, penso que está tudo tratado".

— Não te sentes só?

A pergunta dela atingiu-o com surpresa. Ficou confuso. Onde pretenderia chegar? Já tinha o que queria. Ponderou as intenções dela. Haveria algum interesse para além do comercial?

Rachel não esperou a resposta e continuou:

— Não sei o que pensas sobre isso, mas acho esta vida muito solitária. Eu sinto-me solitária.

E que tenho eu a ver com isso, interrogou-se Gabriel. Pouco ou nada lhe interessava a vida dela.

— Tenho quarenta e três anos. — Parecia mais velha. — Sou uma empresária de sucesso, realizada profissionalmente, mas.... Ando sempre de hotel em hotel, a atravessar a América de ponta a ponta ou o Canadá. Quando chego a casa... — Fez um ar triste sem qualquer pretensão de representar. — Enfim...

Gabriel percebeu que ela queria apenas desabafar, vendo-o como um igual, e procurando nele um espelho de si própria, como se Gabriel tivesse alguma solução. Perante o silêncio dele, ela acabou por dizer:

— Desculpa, Gabriel. Não quero estar a maçar-te com as minhas tretas. Imagino que tu não passes pelo mesmo. Nem te conheço, se calhar tens mulher e filhos... — Fingiu divertimento. — Talvez até quisesses é estar no meu lugar.

— Enganas-te! — exclamou sério. — Compreendo perfeitamente o que sentes. — No olhar dela surgiu a constatação de que, sem querer, encontrara outro solitário.

Uma expressão de grande seriedade brotou no rosto de Rachel, como se nesse instante tivesse percebido que poderia estar a dar sinais contraditórios ao seu objectivo.

— Desculpa, Gabriel. Acho que devo dizer-te uma coisa, tenho obrigação de ser bem clara nisto. Não sei bem porquê, comecei a desabafar isto contigo, mas... Não estou a atirar-me a ti. É mesmo só uma conversa de ami... — Interrompeu-se, encolhendo os ombros. — Bom, ia a dizer amigos. — Não reprimiu um semblante ingénuo. — Claro que não somos amigos, conhecemo-nos ontem. Porém, não me importava que o pudéssemos ser.

Gabriel observou-a inexpressivo. Não precisava nem queria amigos. Se os quisesse, comprava-os.

— Não pensei que te estivesses a atirar a mim. — mentiu. — Para te ser sincero, tu nem fazes o meu género.

Apesar de não estar a tentar seduzi-lo, nenhuma mulher gosta de ser rejeitada, daí que tivesse feito uma expressão torcida de quem não acreditava, questionando:

— E qual é o teu género?

Sem preocupação em ser frontal, Gabriel respondeu sem filtros:

— O género das que recebem dinheiro para fazer sexo e não chateiam.

Rachel não esperava tamanha sinceridade. Recompôs-se da revelação e retorquiu, perdendo alguma simpatia:

— Sim, tens razão, de facto não sou o teu género. E desculpa estar a chatear-te.

— Espera, Rachel. Percebeste mal. Não me referia a ti. Não me estás a chatear, nem tão pouco a aborrecer.

Aquilo pareceu agradar-lhe, apesar de abominar homens que pagavam a mulheres para terem sexo. Considerava-o uma exploração das necessidades de quem não tinha outra forma de sobreviver. Contudo, ele era um solitário como ela e Rachel sabia bem que disparates um ser humano poderia fazer para combater a solidão.

— Para ti, o sexo é um negócio.

— Não o diria dessa forma. Isso seria se ganhasse dinheiro a fazê‑lo. Digamos que é um fornecimento de serviços. — Gabriel falava num tom afável, sem complexos. — Se queres comer e não queres cozinhar, encomendas a comida ao domicílio ou passas num take-away antes de ir para casa. Eu, como não quero relacionamentos, prefiro contratar profissionais quando sinto necessidades sexuais.

Rachel sorriu.

— Desculpa, estar a rir. Acho curioso estarmos a falar nisto. Nós que mal nos conhecemos.

— Não tenho problemas em falar nisto. E tu puxaste o assunto.... Espero que não estejas chocada.

— Não, nada disso. — negou ela prontamente. — Aliás, como calculo que não seja algo que andes por aí a partilhar com toda agente, penso que me estarás... a abrir a porta para uma amizade.

— Talvez me tenhas interpretado mal. — contrapôs com distanciamento. — Não ando à procura de fazer amigos, estamos só a conversar.

Foi um balde de água fria ou, melhor, um balde de gelo sobre ela. Podia entender que alguém recusasse avanços de cariz sexual, mas não compreendia que outra pessoa recusasse uma sugestão de amizade.

— Não me digas... A amizade, para ti, também é um negócio?

— É algo que não me faz falta.

— Olha, a mim faz. — confessou magoada. — Ainda há pouco me declarei a ti como querendo ser tua amiga. — Foi a vez dela de não ter problemas em ser frontal e falar sem filtros. — Digo-te com toda a sinceridade... Bolas, acabaste de me magoar. És a primeira pessoa que vejo recusar um amigo, a primeira que me recusa como amiga.

Gabriel não duvidou que a magoara, era perceptível na voz dela e na expressão triste.

— Não é nada pessoal, Rachel. É um problema meu. Não quero amigos!

A empresária encaixou a frase como uma despedida. O assunto que a levara ali estava tratado, felizmente com sucesso. Lamentava ter aberto o peito a uma pedra de gelo que se escondia por baixo da capa de ser humano. Levantou-se do sofá, triste e séria sem lhe reconhecer direito a receber mais nenhum sorriso seu.

Gabriel copiou o seu movimento. Sabia que estava a ser injusto e cruel. Era o seu sistema defensivo contra a Humanidade a funcionar em pleno. No entanto, fora surpreendido pela vulnerabilidade demonstrada por Rachel, que desde o primeiro momento irradiava uma imagem de segurança e imponência, perante a rejeição da amizade.

— Espera um pouco. — sugeriu com arrependimento. — Talvez esteja a ser... Não sei como o definir.

— Estúpido? — atirou ela. — Desculpa a honestidade, mas para mim, alguém rejeitar um amigo só pode ser estúpido.

— Sou uma pessoa complicada. Tu não compreenderias.

— Coloca-me à prova!

— Coloco-te à prova? Que quer isso dizer?

Rachel cruzou os braços sobre o peito, olhando-o intensamente. Sentia algo por ele, algo que não era carnal ou sentimental, apenas gostava dele e continuava envolvida na sensação estúpida de que ele poderia ser alguém interessante para conviver, nem que fosse para trocar um email ou um telefonema sem nenhuma razão em especial. Curiosamente, verbalizou-o. Consciente que já "despira" tanto das suas inseguranças diante dele que não seria aquilo que a deixaria pior.

Ele ficou a observá-la. Porque seria tão difícil dar aquele passo tão simples de estender a mão e confessar que estava a atravessar um momento angustiante de merda e a viver uma solidão atroz? Bolas, pá, ela só quer um amigo, é uma solitária como tu.

Gabriel imaginou imensas coisas para dizer, mas não abriu a boca. Rachel interpretou-o como um caso perdido e uma completa perda de tempo.

— Bom, é melhor ir andando. — disse sem o encarar. Havia tristeza na sua voz.

— Ainda ficas por Toronto?

Que te interessa isso? Que merda queres tu de mim?

Apesar de o pensar, Rachel não o disse. Continuou a não o encarar e passou por ele.

— Parto amanhã de manhã para Seattle, tenho uma reunião.

— Espero que voltemos a falar.

Ela virou-se para ele. Tinha os olhos húmidos.

— Sim, é provável que sim. Estamos no mesmo negócio, Gabriel. É natural que nos cruzemos para uma qualquer transacção de jogadores.

— Desculpa! — pediu com sinceridade.

— Não tenho nada a desculpar-te. Não fizeste nada.

— Não desistas.

— Não desisto? — A pergunta foi feita numa mistura de surpresa e confusão. — Não desisto de quê?

Gabriel encolheu os ombros e passou a mão pelo cabelo, cansado, atrapalhado, inseguro.

— Estou a ser uma besta, eu sei. É maravilhoso que me estejas a oferecer a tua amizade. — Abanou a cabeça, decepcionado consigo próprio. — Fechei-me há muito tempo para as pessoas. Não sei como reagir.

Rachel percebeu o pedido de auxílio nas palavras. Esboçou um sorriso e aproximou-se dele. Não tinha nada a perder, por isso, abraçou-o. Sentiu toda a retracção do corpo dele.

Meu Deus, há quanto tempo ninguém te abraça?

— Não precisas de me abraçar, se não quiseres. — sussurrou-lhe. — Eu não desisto de ti. Quero ser tua amiga. Serei paciente.

— Obrigado. — agradeceu com a boca no seu cabelo.

— Sem más interpretações, Gabriel. Não quero mais que uma amizade.

— Eu sei. Eu nem a amizade sei se quero.

— Claro que queres. — afirmou ela.

Afastaram-se.

— Obrigado por tudo, Gabriel. O contrato do Lewis é importante, mas aquilo que começámos a criar aqui hoje, entre nós, é muito mais valioso. Pelo menos para mim.

Gabriel não disse nada. Para ele era... Nem sabia muito bem, mas não era melhor que dinheiro e saúde.

— Ligo-te um dia destes.

— Liga-me quando chegares a Seattle.

Rachel sorriu.

— Não é demasiado cedo? — Ele abanou a cabeça. — Será como queres... amigo.

 

A noite caíra, quando Gabriel saiu do Bay-Adelaide no seu Ferrari F8 Tributo rumo a casa. Ainda havia muito trânsito na cidade, mas ele não demorou mais que o habitual. Ao chegar ao seu apartamento, sentiu o cheiro perfumado resultante da visita da empresa encarregue de fazer a limpeza e manutenção do espaço, duas vezes por semana. Entrou na sala e olhou para a cozinha com o habitual tédio e desinteresse em cozinhar. Pegou no smartphone e abriu a aplicação que usava para encomendar comida. Escolheu algo simples e viu que demorariam meia hora entregar.

Sentiu cansaço e uma forte necessidade de descomprimir. Aquela conversa com Rachel fora estranha e, mal ela abandonara o seu gabinete, arrependeu-se de não ter fechado a porta à amizade que ela lhe oferecera. Estava tenso e sabia o que precisava. Voltou a olhar para o ecrã e abriu os contactos do telemóvel, procurando um dos dez nomes daquela lista especial. Ponderou quem haveria de escolher e decidiu-se, clicando no nome "artístico" dela. Fez uma conta rápida, enquanto ouvia o toque de chamada, meia hora para entregar a comida, outra meia hora para comer... Ela atendeu, reconhecendo o número e cumprimentando-o melosa como uma comercial empenhada em agradar ao cliente. Estava disponível, claro que estava, com o que ele pagava... Gabriel combinou para daí a hora e meia.

Para relaxar, foi tomar um duche rápido e lavar-se de um dia complicado como todos pareciam ser ultimamente. Quando tocaram à campainha, Gabriel recebeu o estafeta com a comida. Não se preocupou em vestir mais que um robe turco. Comeu alheado da realidade, sentado ao balcão com o olhar perdido na realidade escura do lago avistado através dos enormes vidros.

Há hora marcada, o som melodioso da campainha voltou a ecoar pelo apartamento. Gabriel permanecia com o robe, não perdera tempo a mudar de roupa. Lavara os dentes e perfumara-se antes de ela chegar. Lá porque estava a pagar não tinha que se despreocupar com a satisfação dela, recebendo-a com mau hálito e cheiro duvidoso.

A mulher que veio ao seu encontro era alta, mais alta que Gabriel devido aos saltos altos das botas. Tinha um longo cabelo louro penteado em trancinhas coladas à cabeça e vestia um sobretudo que a cobria do pescoço aos pés. Sorriu-lhe libidinosa e ele recebeu-a com a excitação a crescer. Ela entrou e despiu o sobretudo, revelando a minissaia, a camisola com decote generoso e as botas de cano alto pelos joelhos.

 

O mundo parecia não existir naqueles momentos, talvez os únicos em que se conseguia abstrair da angústia e das lacunas que lhe queimavam a alma. Estava sentado no sofá, encostado com a cabeça tombada para trás, os olhos fechados, a saborear o momento. Um friozinho ténue picava-lhe a pele da barriga. Tinha as pernas afastadas e os cotovelos dela apoiavam‑se nas suas coxas. Valia cada dólar, a loura. Gabriel abriu os olhos e rodou a cabeça para baixo. A mulher estava ajoelhada no chão, defronte de si, entre os seus joelhos. Acariciou-lhe o cabelo entrançado ao ritmo a que ela o chupava e lhe tocava com os dedos ternos.

O som do telemóvel ecoou na sala, era um sinal da chegada de novo email. A prostituta olhou para ele com a boca cheia e parou, largando‑o.

— Queres que pare? — perguntou, caso ele quisesse ver se era importante.

Gabriel cravou os olhos nela, excitado, vendo o peito volumoso, dois rochedos que o silicone aumentara.

— Não. Continua.

 

Sozinho no sofá, Gabriel deixou-se levar pela curiosidade. O email poderia ser alguma novidade interessante, uma proposta de comercialização de algum jogador ou a confirmação de um acordo de transferência. Pegou no aparelho, tocando no ecrã para que o sistema lesse a sua impressão digital. Esperava que não fosse uma qualquer mensagem de spam. Mesmo antes de abrir a aplicação do email, passou-lhe pela cabeça a hipótese de Rachel lhe ter escrito alguma coisa. No entanto, ao ver o nome do remetente e o assunto, empalideceu.

A loura regressou da casa de banho completamente nua. Sorria protagonizando aquele papel de quem estava louca de tesão e ansiosa para que ele a agarrasse e a fizesse sentir todo o desejo dentro de si. Contudo, reparou no estado perturbado dele.

— Está tudo bem?

Gabriel anuiu aturdido.

— Surgiu um imprevisto. Vais ter de ir embora. — Ela fez um ar decepcionado, mas não protestou. — Não te preocupes, pago-te a noite toda e vou chamar um Uber para te levar onde quiseres. — Ela anuiu. — Onde queres que ele te deixe?

Ela disse-lhe a morada e pegou nas roupas para se vestir. Fê-lo ali, onde ficara a camisola e o sutiã. Depois, retornou à casa de banho para ir buscar as cuecas e a saia.

— Espero que tudo se resolva. — desejou, enquanto calçava as botas.

— Não te preocupes com isso. — respondeu ele, entregando-lhe as notas de dólares. — Tens aí um bónus pela chatice.

Ela recebeu as notas, retirou o combinado e devolveu-lhe o resto.

— Não é preciso. — recusou com um sorriso atraente. — Não foi chatice nenhuma.

— Fica com ele. Considera-o um presente.

Ela abriu mais o sorriso, vestiu o sobretudo e beijou-o com paixão.

Despediram-se e a loura foi-se embora, esperar o Uber que deveria estar mesmo a chegar.

Novamente sozinho, Gabriel tornou a olhar para o smartphone, para a aplicação de email com a lista de mensagens, onde a primeira linha estava com as letras num negro carregado. O nome do remetente era Olga e o assunto continha "por favor, não apagues sem ler primeiro".

Ao fim de mais de quinze anos de inexistência na vida um do outro, Olga voltava a contactá-lo.

 

 

 

 

 

V

A chegada da mensagem de Olga quebrara-lhe completamente o clima e a vontade de continuar a usufruir dos serviços da loura. Nem precisou de ler, bastou-lhe a noção de que ela o voltava a contactar, após tantos anos, para o desinteressar daquilo que contratara.

A primeira vontade foi apagar a mensagem sem sequer ler, não lhe dar essa importância, não perder um segundo que fosse com aquilo. Porém, entre a vontade de ler e a de apagar, já lá iam muitos segundos. Sabia que, se apagasse sem ler, por muito que isso lhe parecesse a melhor forma de se vingar, também se recriminaria e iria andar nos tempos mais próximos a questionar-se acerca do que lá estaria escrito.

Ao fim de uns dez minutos, decidiu-se a ler.

A mensagem começava com um simples "Olá Gabriel".

 

“Olá Gabriel,

Como estás? Espero que estejas bem. Por vezes, até me custa a acreditar que já passaram quinze anos. Sei que não fui correcta contigo, mas espero que todo este tempo já tenha cicatrizado as feridas que te possa ter deixado. Deves estar a questionar-te o porquê de te contactar ao fim destes anos. É simples, quero pedir-te um favor. Não tenho ilusões, Gabriel, sei que não mereço, talvez não tenha sequer o direito de tentar pedir-te um favor. E é verdade. Só que, aquilo que peço, não é um favor para mim, é para alguém muito importante para mim e, acredito que também para ti, apesar de tudo. Ela é a pessoa que mais amo neste mundo. Estou a pedir-te um favor para a Íris, a minha filha. Lembras-te dela, não lembras? A Íris decidiu prosseguir os estudos no estrangeiro, vai frequentar uma Universidade em Montreal, a McGill. Não sei se conheces. Ela é uma miúda espectacular, trabalhadora, objectiva e empenhada em seguir os seus sonhos. A McGill é um sonho para ela e candidatou-se, apesar de não conhecer ninguém no Canadá, nem nunca ter viajado para tão longe de mim. É uma excelente aluna, formou-se cá com distinção, mas quer sempre mais, saber mais e mais. Terias orgulho nela. Conseguiu ser admitida e em breve mudar-se-á para Montreal. Como te disse, não conhece ninguém lá. Deves estar a perguntar-te o que tens tu a ver com isto. Eu explico. Há algum tempo, soube que estavas no Canadá. Não sei onde vives e o Canadá é muito grande. Mas, se de alguma forma pudesses ajudar a Íris a integrar-se, seria um favor impagável que me farias. Sei que não tenho o direito de to pedir, muito menos que aceites ajudar-me. Mas, também sei que sempre gostaste muito da Íris. Por isso, se a puderes ajudar... Não te culparei se recusares, nem ficarei magoada contigo. Aliás, se as feridas estiverem saradas, mesmo que não possas ajudar a Íris, não me importava que reatássemos o contacto, trocar umas mensagens ou conversar. Pensa naquilo que te peço com carinho. Beijinhos. Olga."

 

Gabriel ficou a olhar para o texto, imóvel, como se fosse uma estátua. Releu mais duas vezes, constatando que o seu português estava mais enferrujado que aquilo que pensava, para ter a certeza de tudo o que continha a mensagem. Indignou-se por ela perguntar como ele estava e por desejar que estivesse bem. Como se isso lhe interessasse. O bem-estar dele não lhe importou há quinze anos, não era agora que isso mudaria. E depois, escrevia como se há quinze anos tudo não tivesse passado de um afastamento de dois amigos que seguiram caminhos diferentes. Era preciso ter lata. E ainda falava em feridas? Em cicatrizes? E julgava que o tempo passara um pano em tudo. Odiava-a. Vinha pedir-lhe um favor. Pelo menos, nisso estavam de acordo, ela não merecia que lhe fizesse qualquer favor.

A partir dali algo atenuou a raiva de Gabriel. A referência a Íris fê‑lo retornar às memórias da criança pequena, doce e divertida que ele vira pela última vez com nove anos e que a mãe o impedira de se despedir dela. Pensou como estaria ela. Bolas, como o tempo passa. Fez contas de cabeça. Íris deveria ter vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Sentiu-se velho. Constatou que estava a sorrir para o ecrã, lendo os feitos da pequena.... Qual pequena, Gabriel? Íris era agora uma mulher.

A tristeza regressou. Gostaria de ter acompanhado a evolução dela. Nunca pretendera ser um pai, nem nunca a vira como filha. Mas, gostava muito dela, não só por ser filha da sua namorada da altura, como porque entre eles sempre houve uma empatia fabulosa. Mais uma coisa que não perdoava a Olga, tê-lo privado daquela relação com Íris.

Continuou a ler. Sim, tinha orgulho nela.

Parou a leitura. Voltou atrás algumas linhas. Íris vinha estudar para o Canadá. Pensou se estaria na disposição de a ajudar. Claro que sim, mas.... Surpreendeu-se por perceber como ela era importante para si, uma espécie de sensação adormecida todos aqueles anos que despertara com aquele email. Sim, iria ajudá-la... Não, não ia.

Como seria a Íris de vinte e tal anos, a Íris adulta? Seria uma réplica da mãe? Teria o mesmo feitio interesseiro, aproveitador dos sentimentos alheios? Que expectativas traria consigo em relação a ele? Gabriel não queria ninguém na sua vida privada. Ela poderia querer ser sua amiga. Só que um dia regressaria a Portugal e a amizade ficaria com um oceano pelo meio. Habituar-se a ela, seria deixar-se contagiar por uma doença que acabaria com ele mais tarde.

Estava a exagerar. A miúda só queria alguém para a ajudar a instalar-se. Ele poderia fazer isso, mantendo algum distanciamento, deixando bem claro que a ajudava ao início e depois ela seguiria a sua vidinha. Toronto ficava a uma hora de avião de Montreal e cerca de cinco a seis horas se fosse de carro ou comboio. Não seriam certamente visita um do outro.

Leu a última parte "mesmo que não possas ajudar a Íris, não me importava que reatássemos o contacto, trocar umas mensagens ou conversar. Pensa naquilo que te peço com carinho. Beijinhos. Olga."

Gabriel colocou o telemóvel de lado e disse para o ar:

— Vai-te foder, Olga!

Nunca gostara de tomar decisões por impulso, nem nunca o fazia, excepto nalguns negócios que implicaram decisões rápidas. Por isso, optou por não responder ao email e foi para a cama.

A noite foi péssima, uma vez que mal dormiu com toda aquela situação a metralhar-lhe os pensamentos. Contudo, na manhã seguinte, ele tomou uma decisão e não teve dúvidas do que iria fazer. Iria responder à mensagem.

Se sucumbisse à vontade que lhe ia na alma, digitaria um texto enorme a lembrar Olga da cabra que era, a puta que fora e que não tinha o direito de o incomodar ou esperar que fizesse o que quer que fosse por ela. Em opção, pensou em dizer o mesmo, mas de forma sucinta e mais elevada. Ponderou melhor. Não lhe iria dar o gosto de revelar o quanto as feridas ainda estavam abertas. O melhor seria comportar-se com ela da mesma forma como havia vindo a fazer com todas as pessoas nos últimos quinze anos, ser frio e distante.

"Olga. A Íris que me escreva para o meu email. Verei com ela, o que posso fazer. Gabriel"

Se fosse esperta, Olga perceberia que Gabriel não queria falar mais com ela. E Olga era esperta e, de certeza, percebeu a mensagem sublinear que a mensagem levava. No entanto, uma hora mais tarde, Gabriel recebeu na sua caixa de email:

"Obrigado, Gabriel. Fico em dívida contigo. És um querido. Já dei o teu email à Íris. Ela vai escrever-te, como pediste. Vamos falando. Beijinhos. Olga"

Vamos falando? Vai pró caralho, Olga!

 

Gabriel passou o dia no escritório em Bay-Adelaide. Teve alguma dificuldade em concentrar-se, quando chegou, motivado pelos últimos desenvolvimentos, mas assim que os assuntos profissionais exigiram a sua máxima concentração, o resto ficou em segundo plano.

Francis trouxe-lhe o almoço, sushi dum take-away, conforme ele lhe pedira.

A meio da tarde, Rachel telefonou-lhe. Gabriel ainda se sentia inseguro em relação ao caminho que queria tomar com ela. Por isso, ignorou a chamada. Ela voltou a tentar, cinco minutos mais tarde, e obteve o mesmo resultado. Um minuto depois, ecoou o aviso de novo sms com a mensagem "deves estar ocupado, era só para te dizer que já estou em Seattle". Não estava ocupado, estava indeciso. Tinha sentimentos contraditórios em relação a ela, uma vez que tanto queria ser seu amigo como queria nunca mais a ver. Por ora, ela estava a mais de quatro mil e cem quilómetros de distância, por isso, não faria mal responder "estou numa reunião, desculpa, falamos depois". Falariam depois, numa altura em que nem ele saberia quando seria.

A tonalidade de luz foi diminuindo lá fora. Da sua secretária, Gabriel foi vendo a intensidade da iluminação dos prédios à volta a aumentar, enquanto se multiplicava em telefonemas e emails. Lewis ficara felicíssimo com a proposta dos Washington Nationals e pediu a Gabriel que avançasse com o processo, uma vez que tinha a sua concordância para a transferência.

Ao entardecer, chegou à caixa de email de Gabriel uma mensagem nova. Era de Íris. Sem saber explicar porquê, hesitou em abri-la. Porém, lá clicou sobre o assunto "Viagem para o Canadá".

 

"Olá Gabriel,

Sou a Íris. Não sei se ainda se lembra de mim... A minha mãe disse‑me que falou consigo para me ajudar na minha estadia em Montreal. Quero agradecer-lhe a disponibilidade em me ajudar. Tomei a liberdade de fazer alguma pesquisa no Google sobre si. Vi que está relacionado com o desporto e maioritariamente com os clubes de Toronto, pelo que deduzo que seja aí que vive. Não conheço muito ou mesmo nada do Canadá, para além das coisas que se podem ler na Internet e alguma geografia. Sei que Toronto não é já ali, mas, para um país com a dimensão do Canadá, não deve ser muito longe, nem uma realidade muito diferente. Por isso, tenho esperança que me possa dar algumas dicas sobre a cidade para onde me irei mudar em breve. Vou estudar para a McGill no curso de Microbiologia e Imunologia. Fico a aguardar notícias suas. E mais uma vez obrigado. Íris"

 

Gabriel leu o texto visualizando a menina de nove anos a dizer aquelas coisas. Não tinha outra imagem de Íris que não fosse a menina doce, fofa, redondinha e divertida. Não se deu ao trabalho de imaginar como seria ela agora. O tratamento formal também o levou de regresso àquela característica do português de Portugal, em que as pessoas se tratam por "tu" ou por "você", algo que não se encontrava no idioma inglês e ao qual ele se desabituara completamente. Não sabia se ela usara a formalidade para manter alguma distância do homem que fora namorado da mãe, enquanto os pais estavam separados, ou por estar a falar com alguém com quem não tinha proximidade.

Francis apareceu à porta, indicando que se ia embora. Gabriel acenou-lhe um “adeus” distante.

Novamente com a atenção no ecrã do computador, decidiu responder à pequena que já não era uma criança de nove anos.

 

"Olá Arco-íris,

Começo por te pedir que não me trates por "você", faz-me sentir velho. Como já percebeste, eu lembro-me bem de ti, Arco-íris. Era assim que te chamava, quando tinhas oito, nove anos. Lembras-te? Antes de mais, quero dar-te os parabéns, não é qualquer um que entra na McGill, ainda para mais vindo do estrangeiro. Para além disso, é corajoso da tua parte, vires sozinha para um país novo e estranho. E acredita que sei o que isso é, fiz o mesmo há quinze anos. Não te preocupes, tenho a certeza de que vais gostar. Eu conheço Montreal, posso dar-te algumas dicas, mediante o que precisares de saber. Não vivo em Montreal, tu não estás errada e foste muito perspicaz ao concluir que vivo de facto em Toronto. Quando pensas vir? Tens onde ficar em Montreal? Já pesquisaste alguma coisa? Naquilo que te puder ajudar, conta comigo. Gabriel"

 

Clicou no enviar. Sentiu um arrependimento súbito pela disponibilidade que demonstrava para com a filha da mulher que o traíra, que o magoara e o ferira de tal forma que comprometera a sua vida daí em diante. Porém, Íris não tinha culpa disso. A seguir, foi acometido pelo remorso de a tratar pela alcunha que lhe chamava em menina, "Arco-íris". Que iria ela achar disso? Possivelmente, tomá-lo-ia por um velho parvo. Bolas, não era velho, estava quase com cinquenta anos, mas não era velho. Pois... Mas, comparado com ela, era... velho.

Aguardou algum tempo, como se ela estivesse diante do computador, lá do outro lado do Atlântico, à espera do email dele e fosse logo responder. Gabriel olhou para o relógio, em Portugal era meia-noite. Talvez só lhe respondesse no dia seguinte ou quando precisasse efectivamente de lhe perguntar alguma coisa.

Antes de regressar a casa, Gabriel passou pelo sector de refeições, na zona comercial por baixo do edifício, comprando um jantar simples num qualquer restaurante de comida típica indiana para levar.

Ao entrar em casa, a notificação do smartphone alertou-o para uma nova mensagem. Ele largou o jantar sobre o balcão que separava a cozinha da sala e sentou-se num dos bancos, pegando no aparelho e desbloqueando o ecrã. Tinha uma mensagem de email nova. Remetente? Íris.

 

"Olá Gabriel,

Ou deverei dizer Gabi? Sim, eu lembro-me. Fizeste-me dar uma gargalhada enorme, quando abri o teu email — como vês, estou a tratar-te por "tu" — Foi uma gargalhada de saudade. Tu és a única pessoa que me chamava Arco-íris. E eu gostava disso. Para uma menina de oito anos, ser um arco-íris é tão bom. Tive pena quando foste embora. Desculpa estar a tocar no assunto, mas não quero que existam "elefantes na sala" nas nossas conversas. Percebes o que quero dizer? Seja como for, é assunto que não me diz respeito. Quero só que saibas que lamento. Agora, a minha viagem para o Canadá. Não tenho nada planeado, ainda. Pensei em reservar um quarto num hotel barato de Montreal até encontrar um lugar para arrendar e viver enquanto estiver a estudar lá. Podes dar-me uma dica sobre isso? Mas, olha, não quero de forma nenhuma ser um incómodo ou estar a maçar-te. Se não puderes ajudar, não levarei a mal, jamais. Já é espectacular da tua parte que estejas disponível para ajudar. Fico a aguardar a tua resposta. Um beijinho muito grande para ti, Gabi. P.S.: Se não gostares que te chame Gabi, diz. Afinal, eu já não tenho oito anos. A mim, podes continuar a chamar-me Arco-íris. As meninas de vinte e quatro anos também acham que é muito bom ser um arco-íris :) :) :)"

 

Gabriel ficou a olhar para o ecrã com uma expressão neutra. Adorara a mensagem, mas não queria gostar daquilo mais que o aceitável para alguém que dispensava pessoas extratrabalho na sua vida.

Comeu com o olhar vago na escuridão e nas luzinhas tímidas do exterior. Estupidamente, no seu conceito de ver as coisas, sentia-se tentado a responder ao email dela, como se quisesse manter a conversa e temendo que mais que meia dúzia de horas sem se corresponderem levasse a que ela desaparecesse. E se desaparecesse? Que diferença faria? Era uma criança, uma menina que ele não via há quinze anos. Seria bem melhor que não desse grande desenvolvimento àquilo, nem deveria voltar a responder, esperando que ela perguntasse algo quando quisesse, sem que o facto de o fazer ou não tivesse qualquer importância.

Dormiu bem melhor nessa noite. Talvez porque tivesse garantido a si mesmo que não responderia ao email. Adormeceu com essa certeza e acordou com o desejo de lhe escrever qualquer coisa. Que merda. Parecia um puto a querer falar com a coleguinha de escola. Não, não o faria. E talvez até desejasse que ela não precisasse nada dele e não voltasse a escrever-lhe. Não precisava de pessoas na sua vida. Não precisava! Não precisava! Não precisava! Não precisava! Não precisava! Não precisava! Não precisava! Não...

O smartphone tocou. Ele ainda estava na cama. Eram seis e meia da manhã, meia hora para o meio-dia em Portugal. Pegou no aparelho para ver a causa. Tinha três mensagens novas, duas de trabalho e uma de... Íris.

 

"Olá,

Cá estou a maçar-te. Desculpa. Deves estar a pensar que miúda tão chata. Espero que não, a sério. Não gosto de me sentir um incómodo. Estava a fazer uma pesquisa de voos, tenho de começar a agendar a marcação da viagem. Tive uma ideia. Se calhar vais achar parva. Pensei em voar para Toronto, em vez de ir directa a Montreal. Que achas? Não quero atrapalhar a tua vida, calculo que sejas um homem muito ocupado. Enfim, foi só uma ideia. Beijinhos. Íris"

 

A ideia de ela o vir visitar agradava-lhe, gostaria de a rever, ver em que mulher se transformara a menina de nove anos. Porém, isso seria abrir a porta a que mantivessem uma proximidade que ele não queria... Não era uma questão de querer, não devia. Podia apegar-se àquela amizade e depois ela estaria longe em Montreal e mais tarde regressaria a Portugal e não quereria saber mais dele. Não precisava de desilusões, já tivera a sua quota parte na vida. Contudo, não lhe pareceu correcto sugerir que fosse directa a Montreal ou dizer que tinha uma vida muito ocupada para lhe ceder tempo na sua passagem por Toronto. Não sabia o que fazer e manteve o silêncio na resposta aos emails dela.

Optou por responder ao seu primeiro pedido, um hotel barato onde ficar em Montreal. Não tinha esse conhecimento, uma vez que os hotéis por onde se movia eram demasiado caros e, possivelmente, inalcançáveis para a carteira dela.

No escritório, pediu a Francis que lhe obtivesse essa informação e, já agora, hotéis em Toronto também. Ele conseguiu-lhe uma lista de hotéis em ambas as cidades e juntou-lhes alguns hostels que eram bem mais baratos.

Tal como era habitual, o dia fora atarefado. A baliza calendarizada para as transacções de jogadores aproximava-se do fim e os clubes não o largavam para a apresentação de propostas ou consumação de contratos.

Nessa noite, chegou a casa mais tarde que o costume. Nem sequer jantou. Só queria tomar um duche e enfiar-se na cama. Porém, não foi capaz de o fazer, sem antes escrever a Íris.

 

"Olá Arco-íris,

Vamos fazer um acordo? Tu paras de dizer que és chata e eu dir‑te‑ei que estás a ser, caso isso aconteça. E podes chamar-me Gabi, apesar que prefiro Gabriel. Admiro a tua frontalidade, demonstras muita maturidade na forma como escreves. A história entre mim e a tua mãe é passado. Não é assunto que goste de abordar, aliás nem quero abordar. Não te preocupes, nada tem a ver contigo. Não será um "elefante na sala" entre nós, mas não quero que voltes a tocar no assunto, por favor. Consegui-te uma lista de hotéis, não sei se será muito diferente daquilo que já possas ter pesquisado nos websites do género. Confesso que não conheço nenhum deles, mas têm boas referências e preços aceitáveis. Toronto vale bem uma visita, é bem mais bonita que Montreal, mas a minha opinião é suspeita. A lista também tem hotéis em Toronto, caso queiras optar por fazer cá escala. Tu não vais atrapalhar a minha vida, mas não sei quanto disponível estarei de tempo para te acompanhar, por isso, não decidas nada a pensar em mim. Beijinho para ti, Arco-íris"

 

Leu o texto várias vezes. Pensou em apagar "Tu não vais atrapalhar a minha vida", deixando ficar só a partir de "não sei quanto disponível estarei de tempo para te acompanhar". Seria uma forma de se revelar indisponível para ela.

A razão preferia que Íris fosse directa a Montreal. Outra coisa qualquer que o deixava confuso, preferia que ela viesse a Toronto.

Acabou por não alterar nada e enviou.

Para surpresa de Gabriel, e alguma decepção, não houve qualquer resposta nos dois dias que se seguiram. Calculou que ela pegara na lista, optara por excluir Toronto da viagem e estaria já a planear tudo, relegando-o para um plano a que só voltaria quando tornasse a precisar de alguma informação ou favor.

Recusou-se a aceitar que isso o afectava, apesar de notar que a angústia aumentara e a solidão ficara mais pesada.

Íris escreveu ao terceiro dia.

 

"Olá Gabriel,

Afinal, as coisas não vão ser como eu planeei. Queria ir algum tempo antes de começarem as aulas para me ambientar e conseguir um bom alojamento sem pressas. Também queria ir a Toronto visitar-te, mais não fosse só para um olá e agradecer-te pessoalmente a ajuda. Infelizmente, aconteceram uns problemas que implicaram despesas não planeadas. A viagem também vai ser mais cara que aquilo que esperava porque deixei passar demasiado tempo para as reservar. Enfim, de um momento para o outro, o universo parece conspirar contra mim. Assim, em princípio, irei só três ou quatro dias antes do começo do semestre. Vai ser tudo a correr. Estou triste. Desculpa, estares a levar com isto, mas precisava de desabafar. A minha mãe também ficou muito em baixo com estas contrariedades e eu não quero sobrecarregá-la com as minhas tretas. Tu também não tens de levar comigo. Mas, como temos um acordo de que me dirás se eu for chata.... Obrigado pelo que tens feito. Não irei a Toronto, mas gostava que pudéssemos manter o contacto por aqui e, eventualmente, por telefone quando eu arranjar um número no Canadá. Hoje sou um arco-íris em tons de cinza, mas como não desisto, tenho a certeza de que as minhas cores voltarão amanhã. Entretanto, se conheceres alguém que tenha um quarto para alugar em Montreal, lembra-te de mim. Beijinhos. Íris (para ti, Arco-íris)."

 

Gabriel sentiu um enorme vazio. Subitamente, percebeu que lamentava profundamente que ela não viesse a Toronto. Felizmente, era um homem que nunca agia por impulso, a menos que fosse nos negócios, em decisões rápidas que tinham de se tomar na hora e que valiam milhões. No resto, na sua vida pessoal, tudo era bem pensado para evitar que se magoasse. Daí que fosse inexplicável que tivesse clicado em "responder" e escrito:

 

"Olá Arco-íris,

Podes desabafar comigo, sempre que quiseres. É para isso que servem os amigos. No outro dia, disseste que estavas a ter uma ideia parva. Acho que hoje é minha vez. A minha vez de ter uma ideia. Se é parva, tu me dirás. Infelizmente, não conheço ninguém que tenha um quarto ou um apartamento para arrendar em Montreal. Mas, irei ajudar-te a procurar. Concordo contigo, vens muito em cima do tempo para poderes fazer uma boa escolha e encontrar algo que te satisfaça. É aqui que surge a ideia que pode ser parva. Se quiseres vir a Toronto, podes ficar em minha casa. Podes ficar lá o tempo que quiseres e fazer a tua pesquisa de Montreal a partir daqui. Claro que não é o mesmo que estar em Montreal, mas será certamente mais cómodo que tentar alugar algo a milhares de quilómetros de distância. A decisão é tua. Depois diz-me o que achas. Beijinho grande, Arco-íris. Gabriel"

 

Leu, arrependeu-se, pensou em apagar tudo e enviou sem respirar.

— Que foste tu fazer, Gabriel? — interrogou-se para os enormes vidros com vista para o lago Ontário.

O som do telemóvel a tocar quebrou-lhe os pensamentos. Olhou para o ecrã e viu o nome de Rachel. Atendeu.

— Se não for eu a ligar...

— Olá, Rachel!

— Olá, Gabriel!

— Desculpa.... Devia ter-te ligado de volta, mas...

— Não precisas de te justificar. Eu compreendo.

— Já sabes que sou um gajo complicado.

— Que não quer que desista dele. — completou ela. — Ainda continuas a querer isso?

Gabriel suspirou.

— Sim.

Ouviu-a sorrir no outro lado da linha.

— Eu continuo a querer ser tua amiga, Gabriel. — Interrompeu-se, respirando pausadamente. — Não é uma cobrança e estou disposta a esperar. Só que isto da amizade... Não posso ser só eu a remar, percebes?

— Nunca te escondi aquilo que penso das amizades, Rachel. Amizades e outras coisas. Não preciso disso na minha vida.

— Gabriel...

— Espera! Deixa-me terminar. — pediu, falando num tom pausado. — Sou um solitário por opção.

— Eu também sou uma solitária.

— Ouve! Não espero que me compreendas. Eu próprio tenho dificuldade em me compreender. Só quero que saibas uma coisa. E isto que te vou dizer, é sincero, apesar daquilo que as minhas atitudes ou ausência delas possa deixar transparecer. Eu não quero que saias da minha vida. Posso ter dificuldade em deixar-te entrar, mas não quero que te afastes. Digamos que estás no vestíbulo da minha vida, enquanto o resto da Humanidade está lá fora.

Rachel riu-se com a alegoria.

— Não me vou afastar.

— Ainda estás em Seattle? — questionou com a necessidade de mudar de assunto.

— Não. Regressei a Washington para finalizar o acordo do Lewis. Mais uma vez, obrigado por isso. Quando voltar a Toronto, pago-te um jantar.

— Combinado. — concordou ele sem intenção de ver a promessa cumprida.

— Depois, volto a Seattle. — continuou Rachel. — Sabes que a cidade vai ter uma equipa na NHL?

— Sei. Eles ganharam a vaga para a expansão da liga. Eu teria preferido que a escolha tivesse caído para o Quebec.

— Sabes bem que o peso dos dólares americanos é superior aos dólares canadianos.

— Sim, é verdade. Mas, uma liga profissional de hóquei sem uma equipa de uma das cidades mais tradicionais na modalidade...

— Seja como for. — prosseguiu entusiasmada. — Os proprietários da nova equipa convidaram-me a integrar o grupo de trabalho que está a estruturar tudo. Querem que seja parte activa na contratação de jogadores. Não vai ser um exclusivo, mas irei ficar mais dedicada a eles e poderei parar um pouco de andar a viajar de um lado para o outro. Acho que me vai fazer bem e, quem sabe, fazer algo por mim. Percebes?

— Fico feliz por ti.

— E tu? Tens novidades?

— Não.

Ela percebeu que ele não tinha mais nada para dizer. Gabriel não a tentou convencer do contrário. Despediram-se e o telefonema terminou.

Sozinho em casa, sentiu a solidão a envolvê-lo devagar, a tornar‑se mais pesada. A angústia dos momentos "mortos" acentuou-se. Deveria preparar ou encomendar algo para o jantar, mas não tinha fome. Foi tomar um duche para descontrair.

Ao voltar da casa de banho do seu quarto, envolto no robe turco, reparou no piscar ténue da luzinha pequenina no ecrã do smartphone. Era uma notificação nova. Seria uma mensagem? Um email? Uma chamada não atendida? Pegou no aparelho e desbloqueou-o com a impressão digital. Tinha duas mensagens novas no email. Uma era de Íris, a outra era de Olga. Abriu a primeira.

 

"Olá Gabriel,

Estou sem palavras. Não sei que te diga. Não sei mesmo o que te diga. A minha vontade é dizer-te que sim, que aceito ficar em tua casa até me mudar para Montreal. Só que sinto que estou a abusar da tua generosidade. Não mereço tanto. Não terei como te pagar e não acho justo que assim seja. Só que, de facto, a tua oferta facilitaria muito a minha vida. Não sei se tens família, mulher e filhos. Só agora me dei conta que, de tanto falar de mim, pouco sei de ti. Não quero transtornar a tua vida familiar, mas tenho a certeza de que se assim fosse, tu não me farias esse convite. Bolas, estou tão empolgada. Tens noção que me devolveste as cores com o teu email? Vou aceitar. Como poderia não aceitar? Mas promete-me que cumprirás o nosso acordo, se estiver a ser um incómodo, tu dizes-me imediatamente. Combinado? Obrigado, Gabriel. Não imaginas o quanto te estou grata pelo que estás a fazer. Em breve, dir-te-ei quando parto. Beijinhos. Íris (para ti, Arco-íris)"

 

Gabriel sentiu-se mergulhado num misto de emoções, feliz por ela ter aceitado, transtornado por ela ter aceitado.

Passou à mensagem seguinte.

 

"Olá Gabriel,

Obrigado pelo que estás a fazer pela minha filha. Nunca te poderei agradecer. És sem dúvida um grande homem e um grande ser humano. Podes não acreditar, mas lamento que as coisas não tivessem resultado de outra forma entre nós. Gostava de saber coisas sobre ti, o que tens feito, estes anos, sei lá.... Tenho saudades de falar contigo. Quando puderes... ou quiseres. Beijinhos. Olga"

 

Não respondeu a nenhuma das mensagens.

 

 

 

 

 

VI

Parecia-lhe incrivelmente estúpido e completamente absurdo, mas o facto de saber que se aproximava o dia da chegada de Íris fizera com que a angústia e solidão que o assolavam se atenuassem. Gabriel sabia que aquilo não lhe fazia bem. Sim, seria bom ter alguém lá em casa, uma improvável amiga, mas quando ela partisse...

Íris voltou a escrever-lhe no dia seguinte com a data do voo. Pediu‑lhe a morada dele ou se teria disponibilidade de a ir buscar ao aeroporto. Seria um voo muito longo com saída de Lisboa antes das seis da manhã com destino a Paris, onde faria uma escala de quase cinco horas para apanhar o voo que ligava o Aeroporto Charles de Gaulle ao Pearson International Airport onde chegaria depois das quatro da tarde, hora de Toronto. Havia voos directos, mas eram demasiado caros e aquela era a melhor solução para a sua carteira.

Gabriel respondeu-lhe que não se preocupasse, trataria do seu transporte quando chegasse a Toronto.

Foram trocando emails ao longo dos dias que antecederam a vinda dela. Íris quis saber mais coisas sobre ele, mas Gabriel era vago nas respostas, partilhando apenas que não havia uma esposa ou filhos, uma vez que a omissão disso, depois dela ter falado no tema, poderia parecer no mínimo estranho.

Na última mensagem trocada na antevéspera da viagem, Gabriel enviou-lhe o seu número de telefone e pediu se ela poderia ir dando notícias da viagem. Íris respondeu com o seu número para o WhatsApp dele e comprometeu-se a ir dando notícias pela aplicação, uma vez que seria mais económico que telefonar ou enviar sms, pois poderia ligar-se aos WiFi dos aeroportos.

Na noite que antecedeu a viagem, Gabriel chegou a casa cedo. Seria a última noite sozinho no apartamento, por isso, escolheu um nome da lista de dez. Eram oito da noite, uma da manhã em Lisboa. Íris já deveria estar a dormir, o seu voo seria daí a pouco mais de quatro horas. A companhia contratada chegaria mais tarde, tinha tempo disponível para um banho e uma mensagem rápida. Abriu o computador portátil e ligou‑se à caixa de email.

 

"Olá Arco-íris,

Chegou o dia. Imagino como deves estar ansiosa. Não te preocupes, vai tudo correr bem. Afinal, estarás a cumprir um sonho. Para além disso, não estarás sozinha. Faz boa viagem, Arco-íris! Beijinhos"

 

Qualquer uma delas era fenomenal na cama ou em outro lugar em que decidisse possuí-las. Daquela vez, a sua companhia era uma afro‑americana lindíssima com um tom de pele azeitona, olhos escuros e um rosto de beleza angelical. Tinha uns seios fabulosos e cheirava maravilhosamente bem. Naquele instante, saltava que nem uma louca sobre ele, fazendo-o sentir-se nas nuvens e quase a rebentar todo o seu prazer dentro do preservativo. Estava quase... quase, quase... quando ouviu uma notificação do telemóvel. Como se tivessem combinado, ambos olharam para o local onde o aparelho fora deixado.

— Não pares! — ordenou ele, cheio de curiosidade. — Estou quase a vir-me.

Após o orgasmo, a mulher tombou para o lado vago da cama. Gabriel virou-se para a extremidade oposta e segurou no telemóvel. Era meia-noite e o seu WhatsApp tinha uma nova mensagem de Íris, a primeira de sempre que lhe enviava por ali.

"Se calhar já estás a dormir. Estou prestes a embarcar. Obrigado pelo teu email. Aliás, obrigado por existires. Beijinhos da Arco-Íris."

Como ele sabia que ela veria o visto de lido, respondeu "Faz boa viagem, Arco-íris. Até já"

Dormiu profundamente. Foi acordado pela prostituta já pronta para ir embora, o que não tinha memória de alguma vez ter acontecido, era sempre ele a acordar primeiro. Ela olhava-o com ternura profissional e pediu desculpa por o acordar. Estremunhado, ele saiu da cama e foi buscar o dinheiro para lhe pagar.

A mulher da lista de dez deixou-o sozinho no apartamento. Gabriel foi tomar um duche para despertar. Só quando voltou da casa de banho é que consultou o smartphone. Tinha uma mensagem recebida às quatro horas da manhã, dez horas em Paris.

"Se te acordar, bato-me :) Só para te dizer que a primeira parte correu bem. Estou no Charles De Gaulle. Agora é esperar. Beijinho e continua a dormir, sortudo :). Também queria. Estou cheia de sono."

Gabriel voltou a olhar para o relógio, eram sete e meia da manhã em Toronto. Pelas suas contas, Íris ainda não deveria ter embarcado no segundo voo.

"Bom dia, Arco-íris! Estás por aí?"

O visto tornou-se em dois e os dois ficaram azuis. Surgiu a indicação que ela estava a escrever.

"Bom dia, Gabriel! Já acordado? Que horas são aí?"

"Sete e meia. E aí?"

"Uma e meia da tarde."

"Deves estar quase a embarcar, não?"

"Daqui a cerca de uma hora."

Gabriel saiu do quarto com o robe vestido e atravessou a sala até à cozinha com o telemóvel na mão. Parou no balcão, junto à máquina do café e preparou um para si. Sentou-se num dos bancos altos virado para a paisagem exterior, dividindo a atenção entre o lago Ontário e o ecrã do aparelho. Ficaram a trocar mensagens até ela embarcar.

A manhã ia a meio, quando Gabriel chegou ao seu escritório no Bay-Adelaide Centre. Encarregou Francis de fazer uma reserva com a empresa de transporte que usavam para lhes irem buscar ou levar figuras importantes ao aeroporto ou aos hotéis, usualmente jogadores, representantes de clubes ou outros elementos ligados ao negócio desportivo. Era um serviço luxuoso que usava viaturas de gama alta e motoristas privados.

— É para ir buscar uma amiga minha ao Pearson. Quero que a vão buscar e a levem para minha casa. — explicou a Francis. — O tipo que a for buscar deve ter um cartaz com o nome dela.

Gabriel escreveu num papel "Íris (Arco-íris)" para que o funcionário transcrevesse na solicitação que iria fazer à empresa.

— Isto é o nome. — constatou Francis. Apontou para a palavra entre parêntesis. — E isto?

— É para ela reconhecer. Significa Rainbow.

Francis riu-se.

— Uma amiga chamada Rainbow? — interrogou com humor.

— Não te metas onde não és chamado. — admoestou Gabriel, sério. — Ela aterra por volta das quatro. Tens aqui o número do voo. — Escreveu a referência no mesmo papel. — Vem de Paris. Trata disso, por favor. Fico a aguardar que me confirmes.

Naquele dia, a angústia e solidão pareciam ter desaparecido da vida de Gabriel. Ao invés, a ansiedade consumia-o. Tratou de todos os assuntos que tinha a tratar. Antes de sair para uma reunião com o seu advogado Matt, Francis confirmou-lhe que estava tudo tratado. Mesmo sabendo que ela só veria a mensagem depois de aterrar, enviou-lhe logo a informação de que estaria um motorista privado à sua espera na zona de chegadas do Pearson a segurar um cartaz com "Íris (Arco-íris)".

Desde que Íris lhe dissera a data do voo e a hora a que chegaria, a agenda de Gabriel ficou ocupada para o que quer que fosse a partir das quatro da tarde.

O Sol brilhava radioso dando um brilho cativante a Toronto. A tarde amena agradável permitia um último saborear do tempo que antecedia o Outono e o regresso do frio crescente.

Gabriel conduzia ansioso pelas ruas da cidade. Regressava a casa sem conseguir afastar o nervoso miudinho pelo aproximar da hora em que a menina de nove anos voltaria a estar na sua presença. Tinha tantas saudades daquele tempo... Agora que se permitia a pensar nisso, concluía que os dois anos de relação com Olga haviam sido os mais felizes da sua vida. Nunca quisera ser um pai para Íris, mas gostava muito da menina. Doera-lhe horrores que a mãe não tivesse permitido que se despedisse dela. Fora talvez a coisa que mais o magoou, a seguir à traição de Olga.

Tinham passado quinze anos. Íris já não era uma menina de nove anos, era uma jovem mulher de vinte e quatro que se mudava para o Canadá, tal como ele fizera nessa altura, sendo a diferença entre ambos, que ela vinha a prazo e ele viera para nunca mais voltar.

Estacionou na garagem do prédio. Subiu o elevador com a calma de um condenado. Temia o desconhecido, a chegada de alguém que estivera tão presente na melhor fase da sua vida, a criança divertida, a menina feliz. Nos últimos tempos, as recordações esquecidas pelo tempo voltaram, a lembrança da empatia que havia entre eles, as brincadeiras. Trancara a saudade com tanto afinco e agora ela parecia querer explodir‑lhe do peito. Tinha medo. Receava que deixar Íris entrar, ser sua amiga, pudesse destruir todos os escudos que construíra, desde que a mãe dela o abandonara.

Entrou em casa. Consultou o telemóvel e a aplicação de mensagens. Ela ainda não lera a última, sinal que ainda não tinha aterrado. Despiu o casaco do fato Ermenegildo Zegna. Não estava habituado a estar em casa àquela hora. Caminhou até aos vidros e abriu o acesso à larga varanda. O vento soprava intenso, mas não era frio nem desagradável. O lago evidenciava um azul forte atiçado pelos raios solares. Tornou a olhar para o ecrã. Os vistos permaneciam cinzentos.

— Vou arrepender-me disto? — perguntou ao céu.

Regressou ao interior. Ligou o computador portátil sobre o balcão da cozinha e sentou-se no banco alto. Aproveitou para trabalhar mais um pouco, procurando abstrair-se da ansiedade. Leu as notícias de desporto, analisou a possível veracidade de alguns boatos de interesses de clubes e olhou mil vezes para o ecrã do telemóvel.

A notificação surgiu inesperada entre esperas.

"Já aterrei. Estou à espera que abram as portas do avião"

"A viagem foi boa?"

"Cansativa."

"Viste a mensagem? Vai estar alguém à tua espera para te trazer."

"Pensei que me viesses buscar ;) Estou a brincar."

O telefone tocou, quebrando o diálogo e raptando-o do WhatsApp. Era uma chamada de Matt. Gabriel rejeitou-a e regressou à aplicação.

"Vamos desembarcar agora. Vou para o controlo alfandegário. Já volto a falar, quando for esperar a bagagem. Até já."

Gabriel ligou a Matt. Não era nada importante, apenas a comunicação do parecer favorável a mais um contrato.

A ansiedade quase que o deixava enjoado. Queria que o tempo passasse, tanto quanto desejava que ele parasse e Íris não chegasse. Seria aquilo uma atitude desesperada de quem sofria a angústia da solidão? Seria o instinto de sobrevivência a deixar-se abrir ao mundo das pessoas? Não. O seu instinto de sobrevivência fechara-o para as pessoas.

Levantou-se do banco e caminhou novamente até aos vidros. Observou a paisagem, uma daquelas vistas que fazia aquele apartamento ter custado uma pequena fortuna, dinheiro que não lhe fazia falta. Aliás, nada lhe fazia falta.

 

Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!

 

Então para que estava a fazer aquilo? Porque não deixar Íris desenrascar-se sozinha? Para quê, convidá-la a vir a Toronto, ficar em sua casa? És uma besta, Gabriel. Vais deixar entrar alguém que um dia vai partir sem olhar para trás. Que tinha ela de especial? Era a menina divertida de nove anos que compusera o melhor período da sua vida. Estaria ele a tentar recuperar esse tempo? Definitivamente, és uma besta, Gabriel. O passado não volta. E se voltasse, seria para te repetir o sofrimento que lhe sucedeu.

Nova mensagem.

"Já me deixaram entrar ;p"

Gabriel ficou imóvel a olhar para os caracteres.

"Vou agora buscar a bagagem. Espero que não demore. Estou a cair de sono.”

Ele continuou imóvel. Foi como se estivesse a ver um precipício a aproximar-se e não tivesse reacção para evitar a queda.

Ao fim de um minuto, teve consciência que não estava a responder-lhe. Respirou fundo.

"Com sorte, não deve demorar"

Ela leu, mas não digitou nada de imediato.

Lá fora, o horizonte ganhava tonalidades mais escuras. O fim da tarde aproximava-se e o Sol não tardaria muito a começar a esconder-se atrás dos altos arranha-céus de Toronto.

Nova notificação.

"Já tenho tudo. Vou agora procurar a minha boleia :) Até já."

Gabriel olhou para o interior do apartamento, fazendo uma vistoria distante. Sabia que estava tudo limpo e arrumado, deixara indicações à empresa de limpeza para lá passar na sua ausência. Numa passada apressada, atravessou a sala para o átrio e dirigiu-se ao quarto que escolhera para a sua hóspede. Confirmou que as empregadas haviam feito a cama e deixado tudo impecável como se fosse um quarto de hotel.

Tornou a olhar para o telemóvel, vendo as horas. Imaginou-a a circular pelo aeroporto, uma mulher como tantas outras com a cara de Íris de nove anos. Calculou os tempos, dez minutos até ao motorista privado, encontrá-lo e chegar ao carro, meia hora para vir de Pearson até ali, se tivessem sorte com o trânsito... Não chegaria em menos de quarenta e cinco minutos.

O nervoso intensificava-se. Pensou em fazer um café, mas acabou a segurar um copo de whisky. Assistiu ao entardecer com o olhar vago no lago, sentado no banco alto e a ouvir a sua própria respiração.

Passaram dez minutos, depois vinte, trinta, trinta e cinco, quarenta, quarenta e um, quarenta e dois, quarenta e três, quarenta e quatro.... Seria a qualquer momento. Íris não voltou a comunicar com ele, nem ele lhe enviou qualquer mensagem. Esperou. Limitou-se a esperar. Cinquenta minutos. Cinquenta e cinco... Uma hora. Mais de uma hora.

O silêncio no apartamento foi quebrado pelo tom melodioso da campainha. Gabriel viu a realidade como um contador digital com números em contagem decrescente que se aproximavam fatalmente do zero.

Respirou fundo. Pela sonoridade da campainha, diferente de quem tocava da rua, Gabriel sabia que Íris já estava do lado de lá da porta do apartamento. Deu passos lentos, nervosos. Só naquele momento, teve real consciência do absurdo que fora convidá-la. Por vezes, pareces o teu pior inimigo, Gabriel.

Parou e colocou a mão na maçaneta da porta. Respirou fundo e rodou-a, puxando o rectângulo vertical blindado para si.