I
A noite invernosa não passava de um prolongamento de uma tarde fria e chuvosa de mais um dia no apogeu do Inverno. Se fosse possível encontrar algum ponto agradável naquele serão, só a ausência da chuva merecia alguma congratulação, pois as nuvens pareciam ter esgotado as reservas durante a manhã e a tarde.
Junto ao Centro Cultural de Belém, em Lisboa, um casal caminhava tranquilamente pelo passeio frontal ao Mosteiro dos Jerónimos, poucos metros mais à frente do lugar onde haviam deixado o automóvel estacionado. Ela protegia-se do frio, envolta num casaco de pele robusto, dando passadas ao ritmo do companheiro, mantendo o seu braço enroscado no dele. Era alta, esguia e os seus pés moviam-se com a graciosidade de uma garça-real. O cabelo caia-lhe comprido pelos ombros, tão escuro como o casaco preto, e envolvidos na cabeça por um barrete quente que fazia conjunto com o casaco. Rosto expressivo com um sorriso fácil e um olhar imponente cheio de confiança, onde o nariz singelo contrastava na sua brancura com as faces rosadas pelo efeito do frio. O seu nome era Adriana Cavaleri, tinha vinte e quatro anos e era bailarina na Companhia Nacional de Bailado.
Com ela vinha um homem de vinte e oito anos, mais alto, igualmente esguio e de porte forte. Não parecia tão afectado pelo frio quanto ela, talvez mais por uma expressão de masculinidade do que por realmente não sentir o frio. Vestia uma camisola de lã castanho-escura e umas calças pretas, encarando o frio com um casaco comprido preto que lhe chegava abaixo dos joelhos, mas que teimosamente não apertara. O seu amigo chamava-se Leonardo Velasques.
Adriana e Leonardo conheciam-se havia quatro anos e eram grandes amigos. Eram mesmo amigos bem próximos, íntimos. Partilhavam uma amizade colorida sem tabus. Só se afastavam para uma amizade convencional, quando um deles iniciava uma relação com terceiros. Adriana era assumidamente bissexual e as suas duas relações amorosas sérias foram ambas com mulheres. Infelizmente, não duraram muito tempo, uma seis meses e a outra menos de dois anos. Por isso, Adriana era uma mulher desiludida com o amor. Com o sexo oposto nunca tivera nada para além do momento sexual, o que para si era quase contranatura, porém via-o como a sua pequena perversão, o seu saciar daquele cantinho de si que adorava ter um homem dentro dela. E a quase totalidade das vezes que cedera à tentação de ir para a cama com um homem fora com Leonardo.
O bom da relação deles era não haver cobrança. Sempre que ele entrava num namoro mais sério ligava a Adriana a contar como estava feliz e isso servia de aviso que a amizade tinha de regressar ao preto e branco. O mesmo acontecera com ela, pois deixara de se encontrar com ele nas duas vezes que entrara nas relações sérias.
Naquela noite, estavam ambos descomprometidos.
Adriana estivera quase um mês em Nova Iorque em audições na Broadway, um sonho antigo. Fizera provas excepcionais, mas fora preterida em todas, perdendo para concorrentes mais novas. A temporada na Companhia Nacional de Bailado ia começar, daí que não valeria a pena prolongar a estadia na Big Apple.
Nessa tarde, Leonardo ligara-lhe com o convite para assistir a um concerto de música clássica no grande auditório do Centro Cultural de Belém. Como bailarina de ballet clássico, aquele era um género musical que Adriana se habituara a ouvir desde os seus quatro anos e jamais deixaria de o apreciar.
Contudo, ela sabia que o convite seria mais que uma ida ao concerto. Estivera fora um mês e regressara no dia anterior. Leonardo tinha tantas saudades dela, quanto Adriana tinha dele. Seria uma saída para o concerto e o regresso seria para casa dela, onde passariam a noite juntos na cama a fazer sexo. E apesar de preferir o sexo com outra mulher, não podia dizer que não tivesse com vontade de o fazer com ele. Leonardo era um amante gratificante e se fosse mulher, Adriana poderia deixar-se levar ao altar. Sendo homem, era apenas um saciar perverso da sua líbido.
O trajecto deles levou-os a atravessar a rua e entrar na área do grande centro cultural. Passaram a fachada e encaminharam-se para as bilheteiras onde Leonardo iria levantar os bilhetes reservados. E ele não fizera por menos, comprando ingressos para um camarote com vista privilegiada para o palco.
— Tu és demais. — constatou Adriana em tom de elogio.
Leonardo sorriu e desvalorizou.
O casal seguiu para as portas de entrada do auditório. Ainda tiveram de aguardar alguns minutos até poderem entrar. E naquele espaço já se encontravam muitas pessoas para assistir ao concerto.
Assim que os funcionários abriram as portas, Leonardo mostrou os bilhetes e eles seguiram as indicações até ao seu camarote. O espaço privado ficava no primeiro andar e era a segunda varanda a contar do palco.
— Melhor, só sentado no palco. — disse Leonardo com humor.
Adriana despiu o casaco de pele e o barrete, ajeitando o cabelo longo. Todo o seu corpo parecia uma obra de arte, onde as linhas corporais haviam sido esculpidas pelo treino do bailado. O vestido azul‑turquesa era justo e tinha um decote humilde, pouco revelando da cova entre os seus seios pequenos. Um dia, ela confidenciara a Leonardo que se orgulhava do seu corpo, excepto dos seios que a actividade física esbatera. Em compensação tinha umas pernas longas e coxas bem trabalhadas, daí que não se importasse que o vestido as revelasse quando se sentou. Outro pormenor que lhe dava ainda mais imponência eram as botas de cano comprido.
— Está muita gente. — assinalou Leonardo, sentando-se a seu lado. — Dizem que as pessoas não apreciam música clássica e depois enchem-se salas.
— Neste país diz-se muita coisa. O problema é que são os incultos que têm mais tempo de antena.
As pessoas espalhavam-se pelas cadeiras na plateia. Adriana e Leonardo olhavam-nas de forma distraída. Ele colocou a mão sobre a dela e sorriu-lhe. Ela retribuiu o sorriso e ofereceu-lhe um beijo nos lábios, dizendo:
— Obrigado!
— Eu é que agradeço, Adriana. É sempre maravilhoso partilhar a tua companhia.
— É recíproco, Leo. Tu sabes.
Ele assentiu com a cabeça.
O semblante de Adriana alterou-se, ficando triste e disse:
— Lamento que o teu namoro com aquela rapariga tenha acabado.
— Deixa… Já passaram duas semanas.
— Desculpa, não ter estado presente para te apoiar.
— Apoiaste à distância. — lembrou ele, sorrindo para atenuar o lamento. — Não me esqueço que, por minha culpa, não dormiste nessa noite.
— Jamais te desligaria o telefone, estando tu a precisar de um ombro amigo.
— Foi duro, eu estava muito apaixonado por ela. — confessou com infelicidade. — Cheguei a convencer-me que desta iria assentar.
— Lamento…
— Esquece. Já passou.
Adriana abriu o sorriso e deu-lhe uma palmadinha de conforto na mão. A seguir, voltaram a trocar um beijo nos lábios e ela perguntou:
— Dormes comigo esta noite?
— Estou a contar com isso. — respondeu ele com naturalidade.
Ela sorriu-lhe de forma condenatória como se a sua resposta tivesse sido demasiado convencida. Depois, modificou para um sorriso agradado e retorquiu:
— Tenho saudades tuas. Já não estamos um com o outro há…
— Oito meses. — completou. — Foi o tempo que durou.
— Sabes que em todo esse tempo eu nunca estive com outro homem.
— Não precisas de te justificar.
— Não me estou a justificar. É só para que percebas como te desejo neste momento.
— Tem calma, senão ainda o fazemos aqui. — pediu bem‑humorado. A sua mão passou pela coxa dela. — Como está o teu coração?
— Fechado para balanço. — informou como se fosse irrelevante. — Conheci uma bailarina em Nova Iorque. Passámos algum tempo juntas, dormimos juntas, mas… Foi só isso. Nunca foi pensado para ser mais que uns momentos de prazer.
Nesse instante, atrás da enorme cortina do palco, começou a ouvir-se a afinação dos instrumentos da orquestra que iria tocar.
— Estão a aquecer.
Leonardo concordou e adicionou:
— Gosto particularmente dos instrumentos de sopro. Principalmente se forem tocados por mulheres. — Sorriu em provocação. — Quem melhor para trabalhos de sopro?!
Adriana percebeu o segundo sentido das suas palavras e retorquiu:
— Vocês, homens, gostam muito de mulheres a fazer trabalhos de sopro. — Lançou-lhe um olhar lânguido. — Eu sou bailarina, mas logo posso soprar na tua “flauta”.
— Já fizeste solos bem melodiosos com a minha “flauta”. — recordou Leonardo.
— Então, estamos combinados. — atalhou ela, voltando a olhar para a chegada de espectadores.
Leonardo não se pronunciou, mas não acreditou que isso viesse a acontecer. Adriana abominava o odor e o paladar, daí que só fizesse sexo oral com preservativos de sabor. Não lhe parecia que ela os tivesse em casa e também não era algo com que ele viesse para a rua.
As pessoas continuavam a entrar e a serem conduzidas por jovens vestidos de forma formal aos seus lugares. Nos minutos que se seguiram, eles observaram a plateia, comentando uma ou outra anónima que ia entrando, pois sempre conversavam sobre mulheres com o mesmo interesse e atracção.
O ambiente era agradável e a temperatura do espaço era amena, roçando o quente. Porém, sabia bem após o frio da rua.
— Como tem corrido o trabalho? — inquiriu Adriana, trocando a posição das pernas.
— Bem. — Leonardo era repórter de imagem de uma cadeia de televisão e acompanhava colegas jornalistas na captação de imagens para as notícias. — Isto tem andado calmo. Ultimamente, tenho acompanhado a correspondente da Assembleia da República.
— O país continua…
— …mergulhado na mesma merda de governantes. — concluiu ele. — Só vão parar quando nos afundarem de vez.
— Se o país for ao fundo, fugimos os dois para o estrangeiro. Que dizes?
Leonardo retribuiu o sorriso dela e respondeu:
— Parece-me bem.
Um grupo grande avançou por um dos corredores, uma família completa com pais, avós, filhos e netos.
— E tu? Que planos profissionais tens, depois de Nova Iorque?
— Vou recomeçar amanhã os ensaios para o novo espectáculo da Companhia Nacional de Bailado. Falei hoje de manhã com o coreógrafo, tenho um papel secundário…
— Nem aqui te dão o valor que mereces.
— A protagonista está mais apropriada para o papel que eu. — justificou. — Além disso, estive fora um mês. Por muito talento que tenhamos, essas ausências pagam-se.
— Tu devias ser bailarina no Bolshoi.
Adriana sorriu com o elogio. Bolshoi sempre foi um sonho ainda maior que a Broadway e ainda mais inatingível.
— Se não o consegui até hoje, não é com vinte e quatro anos que vou ter essa ilusão.
— Para mim, és a melhor e mais bonita bailarina do mundo.
— Obrigada. És um querido.
O agradecimento foi acompanhado de mais um beijo, desta vez mais prolongado e profundo, sendo interrompido pelo atenuar da intensidade das luzes, sinal de que o concerto estava prestes a começar.
Adriana afastou-se e afagou o rosto de Leonardo com a mão direita. Os rostos de ambos viraram-se para as primeiras linhas da plateia.
A luz apagou-se por completo e as cortinas abriram-se para revelar o palco. Os espectadores aplaudiram a aparição dos artistas que se levantaram para um cumprimento inicial ao público. O maestro, um homem alto de cabelo branco meio despenteado, fez o agradecimento final e virou-se para os músicos para que se desse início à actuação.
Os primeiros acordes ecoaram pela sala. Adriana observou o palco, deixando-se embalar pela mistura de sons que resultam sempre da interpretação de uma orquestra sinfónica. Viu o maestro a ocupar o ponto central do palco, como é costume em qualquer orquestra. Os músicos formavam um meio círculo à sua volta, virados para um público que absorvia cada nota com delícia. À direita do maestro, os violoncelos em primeira linha e os contrabaixos atrás. De fronte para o líder, as violas em primeira linha, os clarinetes, oboés, fagotes e trompas em segunda e trompetes, trombones e tuba em terceira. Atrás de todos eles, a percussão com dois grandes bombos.
Adriana nunca fora aluna de música, nem nunca tivera especial apetência para tocar qualquer instrumento. No entanto, sempre fora apaixonada por música clássica e sabia o nome de todos os instrumentos musicais ali presentes.
Os seus olhos prosseguiram a observação do palco. À esquerda do maestro, logo a seguir aos sopros, uma harpa e um piano. Entre estes e o limite do palco, os violinos divididos como fatias em primeiros e segundos.
Nada escapava ao olhar e aos ouvidos dela, desfrutando do momento e deixando as sensações percorrerem-lhe o corpo, esforçando‑se por reter o impulso de se levantar e dançar. Um dia, pensava para si, ainda teria o prazer de assistir a um concerto de música clássica numa daquelas magnânimas salas de espectáculos na Áustria, que só conhecia dos Concertos de Ano Novo que passavam na televisão.
O repertório abriu com Strauss, passou por Verdi e Mozart. Seguiu-se um trecho de Puccini e Wagner. O público ovacionou o final de cada melodia. Quando retornou a Richard Strauss, o protagonismo centrou-se numa das raparigas dos violinos, sentada logo na primeira de duas cadeiras na fatia dos primeiros violinos.
No alto da sua varanda do camarote no primeiro piso, Adriana observou a jovem violinista, uma rapariga de cabelos ruivos encaracolados que segurava o violino com empenho e fazia as notas musicais brotarem das cordas com brilhantismo. A mão direita segurava o arco que deslizava nas cordas do violino fixo entre a sua mão esquerda e o pescoço.
Mesmo relativamente longe, Adriana conseguia discernir o rosto concentrado da artista. E ao ver a sua cara, sentiu um arrepio na espinha. Não foi uma sensação de susto, foi mais de surpresa, pois reconhecera alguém que não via desde os seus dezassete anos, alguém que tivera uma importância abismal na sua vida.
— Estás bem? — sussurrou Leonardo, apercebendo-se da posição rígida da amiga. Colocou a mão na dela e sentiu-a fria. — Estás gelada. O que se passa?
— Nada. Eu estou bem. — retorquiu, forçando um sorriso.
Leonardo não ficou convencido, mas permaneceu em silêncio.
O fim daquele trecho trouxe o intervalo. As cortinas fecharam e as luzes acenderam-se, o que provocou alguma movimentação nos espectadores na plateia.
Leonardo aproveitou o momento para insistir na questão anterior.
— Não é nada, Leo. A sério. — repetiu Adriana. — Vi uma pessoa que não via há muito tempo. Foi a surpresa…
— Onde?
— A solista.
— A do violino?
— Sim.
— Quem é ela?
— Pareces um inspector da Judiciária. — constatou Adriana, divertida, procurando fugir à questão.
— Desculpa. Fiquei curioso.
— Não faz mal.
— Não queres falar nisso?
A bailarina encolheu os ombros.
— Não há nada para falar.
Fosse o que fosse, Leonardo conhecia a amiga o suficiente para perceber que o assunto não era tão ligeiro quanto ela queria aparentar. Porém, não iria invadir o seu espaço com questões, pois quando ela entendesse saberia revelar-lhe o que houvesse para ser revelado.
As pessoas que abandonaram a sala no intervalo começaram a regressar. Desta vez já não havia necessidade de serem conduzidas aos seus lugares. E parte dos jovens que fizeram esse serviço estavam naquele instante a vender brochuras com informações do espectáculo. Um deles bateu à porta do camarote.
— Peço desculpa. — disse ele, mostrando as brochuras. — Estão interessados…
— Sim. — respondeu Adriana.
O jovem apontou-lhe uma das brochuras e Leonardo levou a mão ao bolso para tirar a carteira.
— Eu pago! — exclamou a bailarina. Sorriu. — Era o que faltava, se para além dos bilhetes ainda ias pagar a brochura.
O jovem recebeu o dinheiro e abandonou o camarote.
Aproveitando os últimos minutos do intervalo, Adriana folheou a brochura, passando as páginas, uma a uma, como quem procura algo. Ao chegar à secção de apresentação dos músicos, o folhear estagnou nos violinos, onde no topo estava a fotografia da violinista solista ruiva. Ela não tinha dúvidas, mas o nome abaixo da foto confirmava a sua certeza, o solo fora protagonizado pela outrora sua amiga, Zahra Yamanova.
— É ela? — questionou Leonardo, indicando a foto.
— Sim… — suspirou Adriana.
— Russa?
— Portuguesa. — corrigiu. — A mãe é que é russa, mas o pai é português.
As luzes voltaram a diminuir até se extinguirem e as cortinas voltaram a abrir para o concerto prosseguir.
Os músicos da orquestra pareciam estátuas. Somente o pianista se mexia para interpretar um solo de piano. O jovem que dedilhava as teclas do piano investia nos acordes com ferocidade, empregando intensidade ao som, o que transformava o seu cabelo já pouco penteado numa cabeleira emaranhada.
No alto do seu lugar, Adriana despendeu pouco mais de meio minuto a observá-lo. A sua atenção foi novamente arrebatada para a violista ruiva que olhava o chão, aguardando o momento de voltar a tocar. Tal como todos os membros da orquestra, ela vestia de escuro e no seu caso um vestido preto que começava abaixo das axilas e descia até aos pés.
Entre notas de piano que variavam entre carícias auditivas e investidas bombásticas, a mente de Adriana perdeu-se em recordações…
Adriana conheceu Zahra no primeiro dia de aulas do 7º ano de escolaridade. O Outono já entrara no calendário, mas o dia apresentava-se como se fosse uma manhã de Agosto.
Com treze anos, Adriana era já uma rapariga que respirava confiança. Naquela manhã, iria encarar uma nova escola, uma nova turma, novos professores, tudo novo. E fora um dia de tal forma marcante que ela recordava todos os pormenores, até a forma como se vestira de t-shirt preta por baixo do seu muito usado blusão de ganga e da saia curta axadrezada, pois com aquela idade Adriana já era muito orgulhosa das suas pernas. E os quase dez anos de ballet faziam-na sobressair ao caminhar nas suas sandálias.
A escola não era muito diferente da anterior, apenas os alunos eram mais e mais velhos. Em certos casos, sentia-se uma criança ao lado dos matulões dos últimos anos. Matulões a quem desde cedo despertara paixões, mas a quem nunca dera qualquer hipótese.
A primeira aula foi de Português, uma aula sem matéria que serviu apenas para a primeira apresentação. Aliás, aquele dia serviria só para isso, para apresentações.
A sua turma dividia-se quase no mesmo número de rapazes e raparigas. Na altura, Adriana ainda não tinha uma sexualidade definida nem se preocupara com isso. No entanto, recordando o momento, percebeu que observou mais as raparigas que os rapazes.
Na fisionomia das colegas havia um pouco de tudo. Sentada na última fila como sempre gostava de ficar, quando o seu nome não a obrigava a sentar-se na primeira fila, Adriana olhava-as sem interesse até ver entrar uma jovem de caracóis acobreados de rosto sério que vestia camisa de algodão, calças e casaco de ganga preta. Como fora das últimas a chegar, sentou-se na primeira cadeira vazia, logo na primeira fila, tentando não dar nas vistas.
A professora de Português iniciou a chamada. E sempre que havia um nome fora do comum, os olhos dos miúdos centravam-se no portador do nome. Assim aconteceu com a menina Cavaleri e com a menina Yamanova.
Adriana sempre fora muito sociável e por entre as apresentações já conversava com dois ou três colegas. A aula de apresentação era informal e não havia grande preocupação com a disciplina na sala.
Quando tocou para sair, a maior parte dos alunos precipitou-se para o exterior. Adriana segurou o único caderno que trouxera para qualquer apontamento que fosse necessário e também abandonou a sala.
Ao chegar ao corredor, Adriana encontrou Zahra sozinha encostada à parede, esperando já a aula seguinte. O impulso levou Adriana a dizer:
— Olá! És a Zahra, não és?
A outra assentiu com a cabeça, meio surpresa por aquela miúda desconhecida estar a falar com ela.
— Yamanova, não é? — continuou Adriana. Zahra não disse uma palavra. — És russa?
— Não.
Adriana estendeu-lhe a mão e apresentou-se:
— Adriana Cavaleri. Somos colegas de turma.
Zahra retribuiu o cumprimento e interrogou:
— És italiana?
— Não. — negou, abrindo ainda mais o sorriso simpático. — O meu bisavô é que era.
— A minha mãe é russa. — explicou Zahra, sentindo-se mais à vontade para falar. — O meu pai é português e eu nasci em Portugal.
Enquanto ouvia, Adriana reparou que a outra rapariga tinha, para além do caderno, um livro de música com um violino na capa.
— Gostas de música clássica?
Zahra percebeu que ela vira o livro e respondeu:
— Eu toco violino. Trouxe o livro porque tenho lições de violino a seguir às aulas.
— Que fixe! — exclamou Adriana. — Eu adoro música clássica. E faço ballet.
O gosto pelas artes da música e da dança criou uma grande empatia entre elas, o que levou à amizade. Na aula seguinte, já se sentaram ao lado uma da outra.
Zahra era um ano mais velha que Adriana. No entanto, a bailarina parecia ser a mais velha. Adriana era divertida, extrovertida, impulsiva, sociável e cativante. Zahra era tímida, recatada, hesitante, pouco sociável e cativante à sua maneira, conseguindo ser divertida com a amiga.
A amizade delas ia para além da escola, tornando-se frequente a presença de uma em casa da outra. A família de Zahra gostava muito de Adriana e a família de Adriana considerava Zahra encantadora e uma óptima companhia para a filha. A relação era tão boa que se tornara usual dormirem na casa uma da outra.
— Adriana! Adriana! — chamou Leonardo. — Estás bem?
— Sim. — confirmou, meio atordoada.
— Parecias distante.
Forçando um sorriso, a bailarina reafirmou que estava bem.
No palco, o maestro esbracejou para o início de mais uma música. Desta vez, o ritmo era alegre ao ponto de o público se sentir tentado a acompanhar o som com palmas.
Contudo, o espírito de Adriana insistia em ausentar-se nos confins das suas memórias…
Tanto Adriana como Zahra eram duas raparigas estudiosas e muito empenhadas nas actividades lectivas, tal como eram no bailado e na música respectivamente. Por isso, as boas notas eram usuais no seu percurso estudantil.
Com quinze anos, Adriana não revelava o mínimo interesse em assuntos do coração e a amizade com Zahra preenchia-a por completo. No entanto, na mesma altura, Zahra com os seus dezasseis anos deparava-se com o primeiro interesse de um rapaz.
A revelação do suposto interesse do rapaz foi feita pela irmã dele que era também colega de turma de ambas. Ele era mais velho e estava um ano acima delas.
Quando soube, Zahra não se sentiu atraída ou sequer apaixonada. No entanto, considerou que na sua idade já deveria ter um namorado e decidiu aproveitar a oportunidade. Contudo, o receio de não estar à altura da situação levou-a a partilhar os seus receios com a amiga:
— Nunca beijei um rapaz, Adriana.
— E então? — interrogou a outra sem dar importância. — Há sempre uma primeira vez para tudo.
— Mas, não quero que ele pense que nunca beijei um rapaz. — continuou. — E se fica desiludido e depois já não quer mais nada comigo?
— Que queres que te diga?
— Já beijaste algum rapaz?
— Sabes bem que não, Zahra.
As duas conversavam na sala da casa da família Cavaleri, sentadas no sofá, onde assistiam a uma série juvenil. Não estava mais ninguém em casa.
Zahra levantou-se do sofá e deu continuidade à questão que tanto a perturbava:
— Tenho tanto receio que acho que vou desistir de me encontrar com ele, amanhã, na escola.
— Não sejas parva. — repreendeu Adriana. — Olha! Já sei. Porque não treinas?
— Treinar???
— Sim, Zahra.
— Como?
— Fazes assim.
No sofá, Adriana fez um círculo à volta dos lábios com o polegar e o indicador, simulando uma boca. Depois, começou a lamber os dedos.
— Que fazes tu? — interrogou Zahra.
— Treinar um linguado. — respondeu Adriana com naturalidade. — Aprendi isto num filme.
Zahra voltou a sentar-se ao lado da amiga.
— Que parvoíce. Achas que é a lamber dedos que vou saber beijar, Adriana?
A amiga encolheu os ombros.
Por momentos, ficaram a olhar para a televisão, em silêncio.
— Há outra hipótese. — sugeriu Adriana, retomando a conversa.
— Qual?
Adriana olhou para a amiga e disse:
— Tu achas que com os dedos não é real e não dá para saber se estamos a fazer bem. — Zahra assentiu. — Então, porque não nos beijarmos?
— O quê? — interrogou Zahra, chocada. — Estás parva? Beijar-te na boca?
Perante a reacção da amiga, Adriana contrapôs:
— Tu é que sabes. Estou só a tentar ajudar-te. Somos amigas, não tenho problema nenhum em dar-te um beijo na boca. Mas… Tu é que sabes.
Zahra não disse nada, ficando a pesar as alternativas, sempre com o receio de falhar perante a eventualidade de o rapaz a tentar beijar.
— Prometes que não contas a ninguém? — pediu Zahra de forma súbita.
Num tom divertido, Adriana respondeu:
— Não sei. Talvez me paguem bem pelo exclusivo numa dessas revistas cor-de-rosa.
— Não sejas, parva, Adriana. Estou a falar a sério.
— A quem é que achas que ia contar? Descansa que fica entre nós.
Zahra sorriu, pois, sabia que podia confiar plenamente na amiga.
— Podemos experimentar?
— Claro. — concordou Adriana como se aquilo fosse tão normal como beber um copo com água.
Zahra virou-se para a amiga e Adriana aproximou o seu rosto ao dela. Por instantes, ficaram a olhar-se sem saber muito bem o que fazer. Mais decidida, Adriana avançou e tocou os lábios da amiga com os seus. Ao senti-los, Zahra afastou-se.
— Então? — questionou Adriana.
— Desculpa. Foi um reflexo.
Nova tentativa. Os rostos aproximaram-se e os lábios voltaram a tocar-se. Adriana beijou, Zahra limitou-se a sentir.
— Tens de ser um pouco mais activa, Zahra. — assinalou Adriana. — Se o vais beijar assim, ele fica a pensar que está a beijar um boneco. — Aproximando-se mais, Adriana colocou um braço atrás das costas de Zahra. — Quando te beijar, deves beijar o meu beijo, ok?
Zahra assentiu.
As duas jovens voltaram a encarar o rosto uma da outra. Adriana voltou a beijar os lábios da amiga. Meio a medo, Zahra começou a retribuir e ambas trocaram beijos suaves.
— Já está melhor. — elogiou a mais nova. — Agora, o passo seguinte.
— Passo seguinte? — interrogou Zahra, assustada.
— Sim. Achas que ele vai querer beijinhos assim?
— Então?
— Tens de aprender a dar um linguado.
— Contigo?
— Estás a ver aqui mais alguém?
Zahra revelou-se perturbada com a sugestão. Estar a beijar a boca da amiga já lhe parecia bizarro, agora meter a língua na boca dela e receber a dela na sua…
— Estou a tentar ajudar, Zahra. Se quiseres, paramos por aqui.
— Tudo bem. — concordou a mais velha. — Se já chegámos até aqui, continuamos.
Novamente, as faces de ambas aproximaram-se. Adriana levou as mãos ao rosto de Zahra e conduziu-a até si, beijando-lhe os lábios e avançando com a língua. Num primeiro impulso, Zahra reprimiu a investida da língua de Adriana. Porém, a outra não desistiu avançou novamente. Em poucos instantes, aquilo que se pretendia ser um treino de beijo transformou-se em beijos prolongados, levando o treino tão a sério que as suas bocas se beijaram, lamberam e chuparam durante longos minutos.
Fora bom, fora muito bom.
Só pararam porque ouviram a mãe Cavaleri a chegar a casa.
Adriana olhava para Zahra com um semblante deliciado. Nunca imaginara que beijar a amiga fosse tão bom. E Zahra também ficara deliciada com os beijos, assustadoramente deliciada.
O resultado daquela tarde foi que o encontro com o rapaz nunca aconteceu. Zahra recusou-se a corresponder ao interesse do rapaz, pois não conseguia deixar de pensar nos beijos da amiga.
Já Adriana juntara ao grande carinho que sempre tivera por Zahra uma paixão avassaladora, sentindo-se completamente perdida de amores por ela.
No dia seguinte, quando Zahra confidenciou o porquê de não ter ido ao encontro do rapaz, Adriana confessou que estava apaixonada por ela. Zahra ficou surpresa, mas a ideia não a desagradou, apesar de ser impensável para si que alguém soubesse daquelas intimidades para além delas.
Adriana sempre tivera um caracter forte e nunca se preocupara com as opiniões das outras pessoas. E, talvez por isso, nunca se interessara em namoros, pois os rapazes não lhe despertavam interesse. Quando descobriu os prazeres dos beijos com outra mulher, Adriana percebeu o que realmente queria.
No entanto, Zahra já não era assim. Facilmente sucumbia a pressões e preocupava-se muito com o que os outros pensavam ou diziam. Mesmo que isso condicionasse aquilo que lhe dava prazer.
Assim, para todas as pessoas que as rodeavam, nada se alterara. Contudo, quando estavam sozinhas, Adriana e Zahra namoravam às escondidas.
Nos primeiros tempos, aquele namoro secreto não passou dos beijos.
Certa noite em que, tal como tantas vezes acontecia, Zahra foi dormir a casa de Adriana, a relação foi mais longe.
Adriana entrou no seu quarto para se deitar. Zahra estendera no chão o saco-cama que sempre trazia e aguardou pela amiga, sentada em cima da cama com as pernas cruzadas, já pronta para se deitar, vestindo apenas as cuecas e uma camisola interior larga com o desenho de uma banda rock. Adriana sorriu-lhe e despiu as calças do pijama, ficando também só com a camisola interior de um rosa desbotado e as cuecas.
— Tens sono? — perguntou Zahra.
— Porquê?
Zahra olhou-a com provocação.
— Queres curtir um bocado?
— Não podemos fazer barulho. — lembrou Adriana, sentando-se na cama na mesma posição que a amiga. — Os meus pais podem ouvir.
— Nós temos cuidado. — disse Zahra, colocando as pernas à volta da cintura de Adriana.
Nos momentos que se seguiram, trocaram beijos apaixonados. A temperatura aumentou muito entre elas e o desejo tornou-se tão arrebatador que quase perderam a noção dos cuidados que tinham de ter.
— Espera! — pediu Adriana, receando terem sido ouvidas.
Quando confirmou que não havia perigo, levou as mãos à camisola e despiu-a. A seguir, pegou na mão de Zahra e pressionou-a contra o seu seio direito, enquanto a mão esquerda a puxou pelo pescoço e a arrebatou para mais um beijo profundo.
Zahra tinha tanto prazer quanto Adriana, mas fazia tudo a medo e sempre com a autocondenarão por se deixar cair naquela tentação. Viu Adriana despir-lhe a camisola e apalpar-lhe os seios sem pudor.
A paixão entre elas, naquela noite, entrou numa espiral de acontecimentos em que nada ficou por experimentar.
Com Zahra, Adriana aprendeu que adorava beijar uma mulher, apalpar o corpo feminino, saborear a intimidade da amiga, bem como o contrário. Não se importava nada de ser lésbica, se o resultado era um prazer tão avassalador.
Com Adriana, Zahra descobriu que algo nela estava errado. Não era normal ter tanto prazer com outra mulher. Não podia ser assim, ela não podia ser lésbica.
Talvez por isso, apesar de o namoro secreto delas ter durado algum tempo, enquanto Adriana era apaixonada, Zahra nunca revelou a mesma entrega naquela relação.
Os aplausos voltaram a trazer a atenção de Adriana para o espectáculo que decorria no grande auditório do Centro Cultural de Belém. Estivera o tempo todo a olhar para o palco, mas a sua consciência estava bem longe dali.
Quando os aplausos findaram, o maestro fez sinal para nova melodia, uma entrada de cordas e sopros que se silenciaram para abrir caminho a mais um solo de violino de Yamanova.
Desta vez, a melodia era triste. A violinista fazia os sons brotar das cordas do violino como se estas chorassem. O público ouvia aquela soberba interpretação, mas a música atirou Adriana para uma das recordações mais dolorosas de que tinha memória…
Faltavam pouco dias para o décimo oitavo aniversário de Zahra. Adriana, que fizera dezassete anos algumas semanas antes, planeava uma festa sem precedentes para a namorada, numa data tão importante como era alcançar a maioridade. Nunca dissera a ninguém, mas Adriana alimentava o sonho de que quando ambas fossem maiores de idade iriam assumir a sua relação e já ninguém as poderia impedir de viver o seu amor. Claro que na sua ingenuidade, Adriana nunca pensou que a primeira a deitar o sonho por terra seria a sua amada.
A tarde era de Verão, as férias já tinham começado e ambas haviam terminado o ano escolar com notas brilhantes. Para além disso, Adriana tornara-se uma jovem bailarina destacada com potencial para entrar na Companhia Nacional de Bailado e Zahra fazia provas para incorporar a Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Nessa tarde, Adriana aguardava a chegada de Zahra a sua casa, aproveitando a ausência da família da bailarina para fazerem amor, como costume.
De súbito, o telefone de casa tocou. Adriana atendeu.
— Não vou aí, Adriana! — disse Zahra num tom cortante.
Surpresa, Adriana perguntou:
— Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceram muitas coisas que não deveriam ter acontecido.
— De que estás a falar?
— Estou a falar de nós.
Como um raio, Adriana foi atingida pela percepção do rumo que a conversa levaria. As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto.
— Eu não sou lésbica, Adriana! E sinto-me sufocada por ti, a quereres fazer de mim aquilo que tu és e que, pelos vistos, tens orgulho em ser.
— Como podes dizer isso? — soluçou a bailarina. — Tu apreciaste cada momento que tivemos juntas, tanto quanto eu.
— Eu não quero isto para mim.
— “Isto”? O que é “isto”, Zahra?
— Esta nossa relação doentia, esta farsa de paixão.
— Como podes ser tão cruel a falar do amor que partilhamos?
— Amor? — interrogou Zahra, fazendo ecoar duas gargalhadas de escárnio no outro lado da linha. — Não sejas ridícula.
Adriana não disfarçou o choro e a mágoa.
— Porque estás a fazer isto, agora?
— Porque quero ter uma vida normal, uma relação normal. E tu, Adriana, não tens lugar no futuro que quero para mim.
Zahra era tão cruel nas palavras, tão violenta no desprezo, que Adriana nem conseguiu dizer mais nada. Foi Zahra quem terminou o telefonema, dizendo:
— Vamos afastar-nos, Adriana. Cada uma deve seguir a sua vida longe da outra. Espero que respeites a minha vontade.
Adriana sofreu muito com aquele desfecho. Passou umas férias de Verão completamente isolada em casa, o que causou estranheza para os seus pais. Nenhuma das famílias encontrara explicação para o súbito afastamento das duas raparigas, mas Zahra inventara que estava chateada com Adriana porque ela gostava do mesmo rapaz que ela. E isso foi razão suficiente para justificar a zanga, pois calculavam que mais tarde ou mais cedo o interesse no rapaz seria esquecido e a amizade recuperada.
Só que a relação entre elas fracturara-se por completo.
No último ano em que partilharam a mesma escola, Adriana e Zahra nem se falavam. Zahra parecia não ter dificuldade em ignorá-la. Já Adriana olhava para a ex-amiga com a mágoa de sentir o coração em ruínas por sua causa.
Nesse ano, Zahra pediu transferência de turma. E no ano seguinte, pediu mesmo para ser transferida para outra escola.
Quando Adriana, na altura quase a fazer dezoito anos, viu Zahra sair da escola pela última vez, nunca mais a voltou a ver até àquela noite no Centro Cultural de Belém.
II
Os músicos da orquestra estavam todos de pé, fazendo vénias de agradecimento à tremenda ovação do público na plateia e camarotes. Leonardo e Adriana não fugiam à regra e aplaudiram com agrado o maravilhoso desempenho.
De pé, ao lado do amigo, Adriana aplaudia com os olhos na solista do violino. Zahra Yamanova fora talvez a pessoa que mais a magoara na vida, mas fora também a sua melhor amiga e sua amante. Talvez o sensato fosse abandonar o Centro Cultural de Belém e voltar a atirar a violinista para o baú das memórias, só que Adriana nunca fora racional e agia por impulso.
— Gostava de ir aos bastidores. — disse ela, olhando para Leonardo.
O pano desceu e os músicos desapareceram, tendo a iluminação da sala aumentado. Leonardo concordou com naturalidade.
Adriana não fazia ideia de como Zahra, que anos antes lhe pedira para se afastar dela, iria reagir a um reencontro. Porém, mesmo tendo sido maus os últimos momentos partilhados, os quatro anos de feliz convivência diária mereciam uma oportunidade de reatar a amizade.
As pessoas iam abandonando a sala, quando Adriana voltou a vestir o casaco e deu o braço a Leonardo. Deixaram o camarote e seguiram pelo corredor.
— Espero que tenhas gostado. — indagou Leonardo.
— Adorei, Leo! Foste um amor.
— Queres ir cumprimentar a tua amiga?
— Sim… — confirmou hesitante. — Não a vejo há muito tempo. Nem sei se me reconhecerá.
Adriana sabia bem que Zahra a iria reconhecer. O seu receio era que a outra se recusasse a falar-lhe.
O casal caminhou pelo edifício procurando o acesso à zona dos artistas, aos bastidores. Havia seguranças a guardar a entrada, mas não existia um aparato de segurança como se fossem vedetas internacionais. E quando Leonardo interpelou um deles e pediu se seria possível cumprimentar a solista, o outro permitiu-lhes a passagem e indicou um colega para os acompanhar.
Nos bastidores, o burburinho das vozes dos vários artistas misturava-se numa cacofonia quase imperceptivel, até porque no grupo havia artistas das mais diversas nacionalidades. O segurança que os conduziu apontou para um grupo mais ao fundo.
— Zahra! — chamou Adriana impulsiva.
Yamanova olhou para ver quem dissera o seu nome e reconheceu‑a.
— Adriana?
A bailarina assentiu e aproximou-se. Leonardo deixou-se ficar junto do segurança. As duas cumprimentaram-se, beijando a face uma da outra.
Quando o segurança se afastou, Leonardo permaneceu encostado à parede a observá-las.
Zahra Yamanova era mais baixa que Adriana e igualmente elegante com o seu vestido negro comprido. O cabelo encaracolado ruivo caia-lhe sobre os ombros nus e emolduravam um rosto pálido de feições juvenis que a fariam passar facilmente por adolescente. Fisicamente parecia demasiado magra, sobressaindo o peito dotado pela generosidade da natureza.
Donde estava, Leonardo reparou no olhar da violinista a falar com Adriana, um olhar que denotava um misto de alegria e incómodo.
— Há quanto tempo… — recordou Adriana.
— Sim. — confirmou Zahra. — Talvez uns…
— Sete anos.
Até parecia que nada tinha acontecido entre elas, nem se tinham separado de forma tão dolorosa, pelo menos, para Adriana.
— Sabias que eu ia tocar?
— Não. Foi um mero acaso. O… — Adriana fez uma pausa, procurando Leonardo com o olhar. Fez-lhe sinal para que se aproximasse. — Este é o Leonardo. Foi ele que me convidou a vir.
Zahra estendeu-lhe a mão para o cumprimentar, interrogando:
— E gostaram?
— Sim. Muito! — afirmou Adriana que não disfarçava o olhar embevecido.
Nesse instante, Zahra viu alguém a passar e chamou:
— José!
Um homem alto de fato formal, como todos os membros da orquestra, olhou para ela e modificou a sua direcção, aproximando-se.
Leonardo reconheceu-o como sendo o pianista.
— Este é o José Norton Vila. — Sorriu para Adriana. — É o meu noivo.
O “meu noivo” fora atirado a Adriana como “noivo, homem, gosto de homens, não sou lésbica”.
Adriana apertou a mão que ele lhe estendera, ouvindo Zahra apresentá-la:
— É a Adriana, uma antiga colega de escola. E o namorado.
Ser apresentada como “antiga colega de escola” magoou Adriana. Porém, não se pronunciou sobre isso. Encarou o olhar de Zahra e ripostou:
— O Leonardo é um grande amigo. Tu sabes que eu não sou de namorados, Zahra.
A frase foi entendida pelo noivo de uma forma que o fez ver Adriana como uma mulher de espírito liberal e relacionamentos ocasionais a roçar a leviandade. No entanto, Zahra percebeu o real contexto da mensagem: Não sou de namorados, sou de namoradas, continuo a ser lésbica.
— Você é o pianista, não é? — reconheceu Leonardo, ao apertar‑lhe a mão.
O outro confirmou com orgulho.
José Norton Vila tinha trinta e dois anos e era ainda mais alto que Leonardo. Não tinha uma fisionomia bonita, andava sempre com o cabelo espetado despenteado e quase parecia questionável o que veria Zahra nele, pois aparentemente não tinham nada em comum, para além da ligação à música.
— Vais casar? — retomou Adriana.
— Sim, dentro de uns seis meses. — respondeu o pianista com simpatia.
Zahra sorriu orgulhosa e deu o braço ao noivo, procurando revelar o afecto que os unia.
— E tu, Adriana? — questionou Zahra, procurando atemorizar a outra com o assunto, tentando pressioná-la a enfrentar assuntos como relações ou casamentos.
Adriana nem percebeu e a resposta foi natural:
— Eu sou bailarina.
— Bailarina? — interrogou Norton Vila com genuíno interesse.
— Sim. — confirmou Adriana. — Na Companhia Nacional de Bailado.
O pianista mostrou-se impressionado com a informação.
— Foram colegas de escola? — continuou ele. — Já não se veem há muito tempo.
— Também não somos assim tão velhas, querido. — repreendeu Zahra.
— Não quis dizer isso. — retorquiu o noivo. — Estou a pensar que devem ter muita conversa para pôr em dia.
— Sim. — confirmou Adriana.
— Nem por isso! — exclamou Zahra em simultâneo.
Norton Vila ignorou as duas e sugeriu:
— Podíamos combinar e vocês iam lá a casa jantar, uma noite destas.
O convite fora lançado a Adriana e Leonardo.
No rosto de Zahra ficou bem patente o incómodo provocado pela sugestão, mas esforçou um ar de interesse e concordou com o noivo.
Adriana percebeu a reacção de Zahra.
— Sim, depois combinamos. — A forma pouco concreta como a bailarina respondera descansou Zahra, pois denotou que isso dificilmente iria acontecer. Porém, a frase seguinte apanhou-a de surpresa. — Talvez me possas dar o teu número para eu te ligar.
— Bem pensado. — concordou o pianista, reparando noutras pessoas que haviam entrado.
A contragosto, Zahra ditou o seu número de telemóvel a Adriana. E nem poderia dar um número errado, pois o seu noivo iria ouvir e acharia estranho que ela o fizesse ou, ainda pior, emendá-la-ia perante a outra.
Adriana retribuiu, entregando-lhe um pedaço de papel com o seu.
A conversa não se prolongou mais, uma vez que José Norton Vila avisou a noiva que teriam de ir cumprimentar outras pessoas. Os quatro despediram-se com a mesma distância com que se haviam cumprimentado.
O silêncio imperou durante o percurso até ao carro.
Leonardo percebeu de imediato o ar afectado de Adriana desde que revira Zahra. E o reencontro ainda a deixara mais introspectiva. No entanto, optou por não abordar o assunto, receando que isso pudesse acentuar ainda mais o que perturbava a amiga.
Durante a viagem, Adriana falou sobre o concerto. Primeiro para repetir o agradecimento pela iniciativa dele e depois para recordar alguns momentos musicais.
O percurso pelas ruas de Lisboa até à casa de Adriana demorou pouco tempo, pois àquela hora o trânsito era quase nulo. A bailarina vivia num pequeno apartamento no último andar num prédio antigo na rua Bernardim Ribeiro. Por sorte, Leonardo conseguiu lugar a menos de trinta metros da porta, o que não era fácil, pois o estacionamento por ali era caótico.
Lado a lado, subiram os cinco pisos de escadas em absoluto silêncio, fazendo ecoar os seus passos no soalho envelhecido.
Ao abrir a porta de casa, o casal entrou logo para a humilde sala que ficava logo após a entrada. Não havia corredor ou átrio a separar aquela zona. A sala deveria ter uns dez ou doze metros quadrados e tinha dois sofás de frente um para o outro. Um estava encostado à parede exterior do apartamento, enquanto o outro tinha atrás um balcão que separava a sala da cozinha.
As paredes eram beges e contrastavam com os azulejos gastos pelo tempo da cozinha. A sala acabava por ser o núcleo da casa, pois tinha um arco de acesso à cozinha e duas portas, uma para a casa de banho e outra para o quarto. Esta era a totalidade do apartamento de Adriana.
Leonardo sentou-se num dos sofás, tendo Adriana escolhido o oposto. Suspirou, quando se deixou cair nas almofadas fofas.
— Estás bem? — indagou Leonardo. Adriana não respondeu de imediato. — Estás diferente, desde que reconheceste a tua amiga.
— Sei que sim, Leo. Mas, prefiro não falar nisso.
— Tudo bem.
Sentada no seu lugar, Adriana olhou para o amigo e abanou a cabeça com um semblante triste.
— Não estou com cabeça para o que te prometi. — lamentou.
— Que foi que me prometeste? — interrogou ele, mesmo percebendo ao que ela se referia.
— Não estou com cabeça para fazermos sexo, esta noite.
A frase confirmou a suspeita de Leonardo.
Adriana calculou como ele se deveria sentir frustrado nos planos que tinha para aquela noite. Ponderou uma qualquer promessa futura, mas seria absurdo, pois a relação deles nunca se baseara em promessas ou cobranças, apenas numa conjunção de interesses paralelos.
— Não te preocupes. — descansou Leonardo, antes que ela dissesse algo. — Seja o que for que tenha acontecido entre ti e a violinista, dá para perceber que foi importante ao ponto de te deixar assim. Por mim, não há problema.
— Obrigado por compreenderes, Leo.
Perante o estado de espírito dela, Leonardo sentiu-se obrigado a levantar a questão seguinte:
— Queres que me vá embora?
— Compreendo se o quiseres fazer. — respondeu sem perder a tristeza. — Mas, eu preferia que ficasses a fazer-me companhia.
Leonardo levantou-se do seu lugar e foi sentar-se a seu lado, abraçando-a e dizendo:
— Jamais te deixaria só, a menos que fosse essa a tua vontade.
Adriana encostou a cabeça no ombro dele.
— Lamento frustrar as tuas expectativas!
— Cala-te! — ordenou com ternura. — Tu nunca me frustras em nada. Percebo que hoje precises só de um amigo.
Adriana soltou-se do abraço e levantou-se do sofá.
— Estou cansada. Vamos dormir?
— Sim. — concordou ele. — Eu posso ficar no sofá.
— Não. — recusou ela. — Dorme comigo na cama. — Esboçou um sorriso que nada teve de provocador, apenas uma mistura de cansaço e carinho. — Sei que controlarás os teus impulsos sexuais.
Não era fácil controlar o desejo, estando deitado na mesma cama que Adriana, mas Leonardo sabia que quando a amiga estava assim deprimida, de nada serviria fazer uma investida entre os lençóis.
Enquanto Adriana foi para a casa de banho, Leonardo entrou no quarto. A casa não era muito grande e ele conhecia todos os cantos como se lá vivesse. Nem a cama lhe era estranha, pois já lá dormira com a amiga diversas vezes.
Fosse Inverno ou Verão, ele tinha por hábito dormir todo nu. Sozinho no quarto, despiu toda a roupa e enfiou-se no interior dos lençóis. Alguns minutos depois, Adriana entrou no quarto, já sem a roupa com que chegara e que substituíra pela que usava para dormir, uma camisola interior justa e as cuecas.
— Não te importas que durma nu, pois não?
— Sabes bem que não, Leo. — confirmou ela, entrando nos lençóis. Sentou-se na cama, apanhou o cabelo longo com um elástico. Deitou-se e deu um beijo nos lábios dele. — Dorme bem, Leo!
— Dorme bem, Adriana!
Com a cabeça no braço do amigo, Adriana adormeceu ainda antes dele.
Na manhã seguinte, o Sol invadiu o quarto com a sua luminosidade matinal. O brilho entrou pela janela sem contemplações, fazendo ricochete no espelho colocado sobre um armário de gavetas.
Adriana abriu os olhos, meio estremunhada pela intensidade de luz. Olhou para o lado e viu Leonardo a dormir profundamente. O sono fora tranquilo, mas o acordar trouxera-lhe novamente ao pensamento o reencontro com Zahra. Não tivera a pretensão que a ex-amiga e ex‑amante a recebesse com grande emoção, mas não esperava ser colocada ao nível de “antiga colega de escola”. Para além disso, Adriana recriminava-se por se sentir tão abalada por Zahra surgir novamente na sua vida e lamentava interiormente que o seu coração ignorasse a razão e a atormentasse com a paixão que sempre nutrira pela outra. Talvez tivesse pensado que o reencontro lhe revelasse que os sentimentos estavam ultrapassados, porém esse acontecimento só serviu para trazer ao de cima todo o desejo que sentia por ela. E vê-la sete anos mais tarde, menos rapariga e mais mulher, só serviu para deixar Adriana novamente apaixonada por Zahra.
Sem se levantar, pegou no telemóvel para ver as horas. Ainda era cedo, só que o sono já partira. Afastou o lençol com cuidado para não acordar o amigo e levantou-se da cama. Caminhou como se fosse uma pluma e abriu a porta do quarto quase sem fazer barulho. Atravessou a sala já com menos cuidado e entrou na casa de banho.
Ao fechar a porta, olhou-se ao espelho. Ponderou que se fosse homem, Zahra não resistiria aos seus sentimentos. Só que era mulher e tinha prazer e orgulho em sê-lo. O facto de gostar de mulheres não a levava a desprezar a sua feminidade.
Levantou a tampa da sanita, baixou as cuecas até aos joelhos e sentou-se. O silêncio foi interrompido pelo som do seu alívio. Ali sentada, abandonou momentaneamente a imagem de Zahra para pensar em Leonardo. Tinha consciência de como deveria ter sido difícil para ele dormir com ela sem que ela lhe saciasse o desejo. Deveria estar frustrado, mas nem por um momento tentou o que quer que fosse, nem quando ela se enroscou no corpo dele, procurando carinho.
De forma automática, puxou umas folhas do rolo de papel higiénico e limpou-se. Antes de se levantar, fez as cuecas deslizar até aos pés e desfez-se delas, atirando-as para o cesto da roupa suja. Levantou-se e rodou o botão do autoclismo, ecoando pelo espaço o ruído da descarga.
Antes de sair da casa de banho, tornou a olhar-se ao espelho. Puxou o elástico que lhe prendia o cabelo e soltou-o para que se movesse livremente.
Num ritmo decidido, atravessou de novo a sala e entrou no quarto. Leonardo permanecia em sono profundo. Encostou a porta e encurtou a distância até à cama. Sem tirar os olhos dele, puxou a camisola interior e despiu-a pela cabeça. Completamente nua, Adriana reentrou na cama e deitou-se ao lado dele.
Não fora justa com ele, dizia a si mesma, e não permitiria que o dia começasse sem corrigir a injustiça, ainda para mais, tendo ele sido tão impecável com ela.
A sua mão deslizou pelo peito dele, acariciando os músculos. O seu tronco parecia um rochedo, fruto do gosto pela actividade física e pelo treino que resulta de carregar constantemente uma câmara de filmar ao ombro.
A mão de Adriana continuou a deslizar pelo corpo de Leonardo, afagando-lhe a barriga. Aquele homem tinha um corpo magnífico e bem delineado. As carícias foram descendo e os dedos descobriram aquilo que procuravam desde o início.
Adriana não tirava os olhos do rosto adormecido de Leonardo, mas a sua concentração estava lá em baixo, na mão que acariciava o membro dele. Leonardo ameaçou acordar, mas o que reagiu nele foi a rigidez que se intensificara entre os dedos de Adriana.
Nesse momento, a bailarina rodou para cima do amigo adormecido, ficando em cima do corpo dele, consciente da erecção pressionada entre a barriga dela e a cintura dele.
Sem abrir os olhos, Leonardo sorriu.
Adriana deslizou para cima, alcançando os lábios dele com os seus. O movimento soltara o membro aprisionado.
Leonardo retribuiu o beijo e agarrou com vigor as nádegas de Adriana, puxando-a para a posição anterior. Desta vez o membro não ficou aprisionado entre eles, pois a bailarina recebeu-o dentro de si com uma sensação invulgar de prazer, aquela sensação boa que por mais prazer que lhe desse, lhe iria parecer sempre bizarra e contra a sua natureza homossexual.
Por alguns momentos, Adriana moveu-se suavemente sobre ele, olhando-o nos olhos e beijando-lhe os lábios. Não aumentou o ritmo para que cada instante fosse saboreado com calma.
— Tens preservativos? — questionou a bailarina sem alterar a cadência de movimento.
— Sim. — respondeu ele num sussurro. Andava sempre prevenido. — Na carteira.
Adriana parou e pressionou-se contra ele, provocando-o. A seguir, sorriu e começou a levantar-se, dizendo:
— Vai lá buscar.
Leonardo levantou-se da cama, enquanto Adriana se estendeu de barriga para cima no lado vago do colchão. Ficou a observá-lo a caminhar pelo quarto com a erecção imponente e ir buscar o preservativo à carteira. Logo ali, rasgou a embalagem e retirou a borracha redonda que desenrolou ao longo do pénis.
Ao regressar à cama, Leonardo deitou-se sobre a bailarina, trazendo o lençol e o cobertor consigo para proteger ambos do frio que não tinham. Adriana tornou a recebê-lo dentro de si.
O primeiro ritmo foi calmo, ternurento, carinhoso. Ela sentia-o e o prazer fluía pelo seu corpo. Sem ser com ele, só duas vezes fizera sexo com homens e ambas tinham sido para esquecer. No entanto, Leonardo conseguia proporcionar-lhe sensações extasiantes.
Os movimentos tornaram-se mais intensos, as bocas chocavam ao mesmo tempo que ele entrava e quase saia. As mãos dela arranhavam-lhe as costas e apertavam-lhe as nádegas, enquanto as dele lhe amassavam os seios. Aquilo era tão bom que as suas satisfações se fizeram ouvir, gemendo um para o outro. Quando Adriana atingiu o orgasmo, a sensação repetiu-se mais duas vezes até ele se vir dentro dela.
A paz regressou aos lençóis. Leonardo voltou ao seu lugar no colchão e Adriana deitou a sua cabeça no ombro dele.
— Desculpa, ontem! — pediu ela, olhando para o vazio.
Leonardo acariciou-lhe o cabelo e respondeu:
— Não há nada a desculpar. Percebi que não estavas bem.
— A noite de ontem foi uma surpresa. — continuou Adriana. Leonardo não disse nada, não forçando perguntas. — Nunca pensei voltar a ver a Zahra.
— Ela foi tua colega de escola? — interrogou ele, recordando o que a violinista dissera ao apresentá-la ao noivo.
— Foi muito mais que isso. — A frase da bailarina ficou no ar, mas nem assim ele questionou, aguardando que ela continuasse. — Conhecemo-nos quando eu tinha treze anos. Éramos muito amigas, inseparáveis mesmo.
— Notei que ficaste muito alterada por a rever.
— Sim, é verdade.
— Foi uma amiga especial?
— Fomos namoradas durante dois anos. — confessou finalmente. — Foi com ela que descobri a minha orientação sexual e foi com ela que perdi a virgindade. Fomos totalmente íntimas, fazíamos amor às escondidas das nossas famílias que nem imaginavam que isso acontecia quando passávamos a noite em casa uma da outra.
— Que aconteceu para se terem afastado? — questionou Leonardo. — Adriana não respondeu. — Se não quiseres, não tens de falar nisso.
— Não me importo de falar. Faz-me bem desabafar. — concluiu ela. — Uma tarde, tinha eu pouco mais de dezassete anos, telefonou-me a acabar tudo e a pedir que nunca mais falasse com ela.
— Nunca mais se viram, depois disso.
— Não. Nunca mais voltei a falar com ela, até ontem.
Leonardo apertou-a nos braços, reconfortando-a. O casal assim ficou ao longo de vários minutos sem trocarem mais nenhuma palavra.
O momento só foi interrompido pelo toque de mensagem no telemóvel de Adriana. Ela foi ver o conteúdo e Leonardo abandonou o colchão.
— É a confirmar a hora do ensaio, logo.
Leonardo assentiu com a cabeça e disse:
— Vou tomar um banho. Fazes-me companhia?
— Ainda vou ficar aqui mais um pouco.
Ele pegou na roupa e saiu do quarto.
Sozinha, Adriana viu o rosto de Zahra na sua mente. Parecia um vírus do qual se havia curado, mas que novamente exposta a deixara de novo doente, doente de amor por alguém que não a queria e para quem nada mais era que uma “antiga colega de escola”.
Ao fim de dez minutos, Leonardo regressou ao quarto, já arranjado e vestido. Atirou um sorriso à amiga e disse:
— Tenho de ir. Ficas bem?
— Sim.
— Adoro-te, linda!
— Eu a ti, querido.
A porta do quarto fechou-se e Adriana ouviu a porta do apartamento bater, quando ele saiu de casa.
III
O apartamento em Algés estava escuro e num silêncio sinistro. A manhã ia a meio, mas as persianas deixadas fechadas no dia anterior mantinham a claridade do Sol lá fora.
O silêncio foi quebrado pelo som de uma chave a entrar na fechadura da porta de casa. A chave rodou duas vezes até a terceira abrir o trinco.
Zahra entrou no apartamento e fechou a porta antes de acender qualquer luz. Deixou a mala pendurada no cabide da entrada e nem despiu o casaco comprido que escondia a roupa com que andara no dia anterior.
Ao deixar-se cair no sofá da sala, o cansaço despenhou-se sobre ela, resultado de uma noite mal dormida. Após o concerto, Zahra acompanhara o noivo a sua casa e passara a noite com ele. Claro que não se livrou de fazer amor, apesar de a sua mente andar longe e transtornada por rever alguém que não desejava encarar. Conseguira em último instante fingir o orgasmo para não decepcionar o noivo. Aliás, fingir orgasmos tornara-se natural, desde a primeira vez que fizera sexo com um homem e aprendeu como eles aceitam mal o facto de a parceira não ter atingido o orgasmo.
Em consciência, Zahra sabia bem o porquê de não ter prazer, pois tudo começava mal ao não se sentir atraída por homens. Os seus relacionamentos eram um forçar constante daquilo que ela queria ser em relação ao que era. Assim, Zahra aprendeu a viver para as aparências, a construir o que idealizara para si, mesmo que tudo fosse tão sensaborão.
O seu apartamento era um open space no penúltimo andar de um prédio seminovo em Algés, às portas de Lisboa. O espaço da sala era composto por três longos sofás dispostos em U a encarar um televisor plasma. Ao fundo, um degrau permitia o acesso à zona que servia de quarto com uma cama cercada por biombos ao estilo oriental. A cozinha era lateral e destacava-se do espaço amplo pelos móveis que a separavam da zona da sala. A única divisão fechada era a casa de banho. A arquitectura do apartamento era rectangular e ao comprido com a luz natural a entrar por duas longas e altas janelas na única parede virada para a rua.
Sozinha e totalmente embrenhada nos seus pensamentos, Zahra levantou-se e despiu o casaco que deixou esquecido nas costas do sofá. Caminhou até ao quarto, puxando a camisola de lã para a retirar pela cabeça. Parou junto ao armário que continha todo o seu guarda-roupa e começou a desapertar os botões da camisa, começando junto ao pescoço. Retirados os botões das respectivas casas, puxou as fraldas da camisa para fora da saia comprida. Abriu as abas e despiu-a, revelando o peito volumoso envolvido por um soutien bege opaco. Por fim, desapertou o fecho da saia e deixou-a cair no chão sem ter a preocupação de a apanhar.
A roupa ia ficando perdida pelo chão. Zahra puxou uma gaveta e retirou um pijama que deixou sobre o móvel. A seguir, sentou-se na cama e despiu os collants de lã. Voltou a segurar o pijama e dirigiu-se para a casa de banho somente com a roupa interior.
Enquanto se despia, Zahra pensava na noite anterior, não no concerto, mas nos acontecimentos que se sucederam. Primeiro fora o reencontro com Adriana. Que raio teria passado pela cabeça da outra para a ir cumprimentar? No entanto, não conseguia negar a si própria que gostara de a rever, mesmo com o temor subjacente de que a ex‑amiga… a ex-amante revelasse a todos o seu passado homossexual. Depois, a ida para casa do noivo, um trajecto ao som da voz convencida dele em como fora extraordinário no seu piano, como o seu pai, maestro da orquestra, fora magnífico e, já agora, como ela tivera um bom desempenho. Nem por uma vez se interessou em saber quem era mulher que a viera cumprimentar. Talvez tê-la apresentado com “antiga colega de escola” tivesse sido suficiente para extinguir a curiosidade dele.
Ao chegarem a casa, não se mostrou interessado em conversa. Agarrou-a, abraçou-a, beijou-a, despiu-a, despiu-se e levou-a para a cama. E ela, como costume, deixou-se levar para aquela usual cena em que ela simula prazer e ele se vem em poucos minutos. Seria possível, interrogava-se ela, que ele fosse tão estúpido que acredita que uma mulher tenha assim orgasmos em tão pouco tempo sem o mínimo de preliminares?
Zahra encarou o espelho envergonhada por se ter tornado uma mestre em simular orgasmos. Seria frigida? Não. Era lésbica. Porém, jamais assumiria essa sua deficiência. Sim, era assim que se sentia, uma deficiente incapaz de se sentir atraída pelo sexo oposto. No entanto, isso não a iria impedir de ter uma relação convencional, casar e ter filhos.
Sem tirar os olhos do seu reflexo, levou as mãos ao fecho atrás das costas e soltou o soutien, libertando os seios grandes. Sabia que eram bonitos e acariciou-os com ternura. Depois, puxou o elástico das cuecas e despiu-as.
Movendo-se de forma automática, abriu a porta do duche e pôs a água quente a correr. Quando o ambiente se encheu de vapor, entrou e permaneceu imóvel de olhos fechados com a água a escorrer-lhe pelo corpo.
Assim nua, não era difícil perceber o encanto que aquele corpo curvilíneo provocava em Adriana, aquela figura magra de linhas bem desenhadas que faziam sobressair ainda mais o volume do peito natural. Claro que a paixão de Adriana ia além do aspecto físico, pois as duas haviam partilhado muitos sentimentos.
O cabelo ruivo tornou-se mais escuro com o efeito da água. Zahra passou a mão pela cabeça, esfregando o rosto suavemente. Ali sozinha, pôde dissertar mentalmente no que sentira ao rever Adriana. Não podia negar a si mesma que a amiga estava ainda mais bonita que na adolescência, ainda mais cativante e tão apaixonante como sempre fora. Zahra tinha noção de como era tentadora a presença dela, daí que desejasse quase em desespero que não houvesse novo reencontro.
Enquanto via a imagem de Adriana na noite anterior, a sua mente atirou-a para as memórias da adolescência, recordando a suavidade do toque da amiga no seu corpo, o sabor dos beijos, a intensidade de prazer quando a sua intimidade era saboreada pela outra. Sentiu um arrepio na espinha, só com a lembrança.
Pensar em Adriana fê-la passar as mãos pelos seios, como se tentasse replicar o toque da outra. A amiga sabia bem onde tocar e em que momentos. Lamentava que em todos os sete anos que haviam passado desde a separação, não tivesse encontrado um homem que lhe tivesse causado uma ténue sensação aproximada do prazer que Adriana lhe dera em todas as vezes que se amaram.
As mãos de Zahra escorregaram pelo corpo e avançaram por entre as pernas. Sentindo os azulejos frios, ela encostou-se à parede e deixou que o chuveiro incidisse directamente no seu peito. Afastou as pernas, uma da outra, e tocou-se. A masturbação tornara-se um refúgio recorrente para obter prazer. A única diferença daquela vez é que Zahra o faria com Adriana no pensamento.
Aquele dia seria mais um dia aborrecido sem nada para fazer. Em casa, iria descansar e tentar repor as horas de sono mal dormidas. Não havia ensaio da orquestra e o seu treino limitar-se-ia a duas ou três horas de manuseamento do violino na solidão da sua casa.
Envergando o pijama, após o longo banho quente, Zahra deitou‑se na cama e apagou a luz que acendera desde que chegara a casa, sem nunca ter tido a preocupação de abrir as persianas. O ambiente escuro era trespassado por fios de luz que passavam pelos buraquinhos das persianas, mas que pouco se notavam.
No momento em que se tapou com o lençol e o édredon, o seu telemóvel tocou. Contrariada, levantou-se para ir atender. Calculou que fosse o noivo e, se não atendesse, ainda poderia ir lá a casa para ver se ela estava bem. E Zahra não queria ver ninguém.
Ao olhar para o número no telemóvel, o instinto assaltou-a com uma possibilidade que a atemorizava. Recordando o pedaço de papel guardado no bolso do casaco, Zahra foi procurá-lo. Quando o encontrou, o aparelho deixou de tocar. Zahra leu o papel e olhou depois para o visor do telemóvel. O seu instinto estava certo, o número era de Adriana.
Adriana nem sabia o que iria dizer quando Zahra atendesse. Como sempre, agia por impulso. E, naquela tarde, o seu impulso fê-la ligar à ex-amiga. Contudo, ela não atendeu. Recusando a ideia de que a outra não quereria falar com ela, Adriana justificou a si mesma que a deveria ter apanhado a meio de um ensaio. Fosse como fosse, não havia tempo para nova tentativa, pois tinha de ir apanhar o autocarro para atravessar parte da capital até ao Teatro Camões para ir aos ensaios do seu espectáculo.
A tarde manteve o Sol, mas a temperatura estava mais baixa que o normal. Adriana saiu de casa protegida pelo casaco quente que lhe escondia as calças de ganga na totalidade. A sua passada era confiante e as botas de salto alto davam-lhe um ar altivo. Trazia o cabelo preso num rabo-de-cavalo e o olhar escondia-se atrás das lentes dos óculos escuros.
A sua passada apressada só findou na paragem para aguardar a chegada do autocarro. Enquanto esperava, retirou o telemóvel da mala com a secreta esperança de não ter ouvido uma chamada que Zahra tivesse feito ao ver o seu número. Logo que constatou que isso não acontecera, voltou a guardar o telemóvel no interior da bolsa.
A viagem até ao Parque das Nações implicava mais que um autocarro, ao que se seguiriam alguns minutos a pé entre a paragem e o teatro.
Adriana iria participar numa nova peça de bailado que iria estrear semanas mais tarde. Para aquele dia estava previsto a apresentação da equipa de bailarinos e restante pessoal da produção do espectáculo. A maior parte do elenco já eram rostos conhecidos de Adriana. Caras novas só um bailarino e alguns membros dos bastidores. Um mês e pouco de ausência não dava para alterar assim tanto o elenco.
Nos camarins, Adriana equipou-se com as suas colegas bailarinas, a tradicional calça de licra justa, a camisola de alças por cima do top e as sapatilhas de ballet. Durante esse tempo, as conversas sucederam-se para saciar a curiosidade das colegas em relação a sua estadia em Nova Iorque, lamentando todas com hipocrisia a sua pouca sorte em não ter sido escolhida para actuar na Broadway.
A primeira pessoa que encontrou no palco foi o coreógrafo, um antigo bailarino já perto dos cinquenta anos que trocara a representação pela encenação. O indivíduo tinha um rosto fechado e não primava pela simpatia, sendo muito exigente com os bailarinos. Era efusivo nos adjectivos e quase histérico nas reclamações.
Adriana cumprimentou-o e respondeu à mesma curiosidade das colegas. A seguir, juntou-se ao corpo de bailado que se agrupara no palco para ouvir as primeiras indicações.
A sala do Teatro Camões estava totalmente vazia e os lugares perdiam-se na escuridão, pois só as luzes do palco estavam acesas. Na terceira ou quarta fila estavam meia dúzia de pessoas que faziam parte da equipa de assistentes do coreógrafo.
A palestra demorou cerca de meia hora.
Os bailarinos tiveram o primeiro contacto com o guião e ficaram a conhecer as suas personagens. Tal como já fora informada, Adriana seria uma figura de segunda linha, participante na maior parte das cenas, mas sem grande destaque. Sabia que merecia mais, mas teria de se contentar com um sorriso nos lábios e esperar melhor sorte no próximo elenco.
Os protagonistas foram chamados junto ao coreógrafo, o qual lhes quis dar algumas indicações específicas ao seu papel. Claro que falava de forma que os restantes ouvissem.
Durante aquele tempo, Adriana reparou que o bailarino novo não tirava os olhos dela. O jovem tinha um ar imberbe e nada nele a atraía. Por isso, optou por o ignorar. E, mais tarde ou mais cedo, alguém lhe diria que a bela Adriana Cavaleri não gostava de meninos, só de meninas.
Adriana sempre passara a imagem de lésbica e não de bissexual. Independentemente disso, evitava envolvimentos com colegas de elenco. E uma das vantagens do meio artístico é a forma natural como a homossexualidade é aceite. Adriana nunca foi julgada, beneficiada ou prejudicada por ser lésbica. Para além disso, naquele grupo de bailarinos, alguns que ela já conhecia desde que entrara para a Companhia Nacional de Bailado, havia heterossexuais e homossexuais, sem que nunca alguém se tivesse desentendido por causa da sua orientação.
O coreógrafo mandou todos alinharem em frente a ele e fez sinal para o escuro para que a música se ouvisse, ao que se seguiram os primeiros exercícios de aquecimento.
Durante o aquecimento, a mente de Adriana andou longe, às voltas com as recordações de outros tempos. Rever Zahra continuava a exercer efeitos secundários e a remexer no baú das memórias que o seu cérebro encerrara nos últimos anos e donde só deixara escapar pequenos fragmentos.
As palmas do líder para finalizar o aquecimento fizeram-na despertar de todo o automatismo no seu corpo a executar aqueles exercícios. Os bailarinos foram novamente chamados a formar um círculo à volta do coreógrafo e a ouvirem as indicações.
Aqueles seriam os primeiros passos de inúmeros ensaios que haveriam de anteceder a estreia da peça. E nessa estreia, cada um deles já deveria saber ao pormenor cada passo, cada deixa, cada momento…
Ao fim de duas horas e meia de ensaio, o coreógrafo finalizou a sessão e mandou todos para os camarins.
Quando Adriana abandonou o teatro, após este primeiro dia de ensaio, o Sol já se escondia no horizonte. E quando ela chegou a casa, a noite caíra por completo e o frio aumentara.
No seu caminho de regresso a casa, Leonardo telefonara-lhe para saber se ela queria a sua companhia nessa noite.
— Hoje não. — recusou a bailarina, pois pretendia uma noite solitária. — Tive um ensaio esgotante. Acho que vou comer qualquer coisa e caio na cama.
— Se mudares de ideias... — disse ele em tom de brincadeira, consciente que isso não iria acontecer.
— Eu ligo-te. — respondeu ela, igualando o seu humor.
Adriana caminhou calmamente pelas ruas quase desertas até ao seu prédio. Ao passar a porta do edifício, cruzou-se com os seus vizinhos brasileiros que iam a sair, vestidos de mulher. Eram ambos travestis e ela sabia que era assim que ganhavam dinheiro.
Subiu as escadas com o corpo a reclamar todo o cansaço do treino. Sim, naquele momento seria bom ter Leonardo ali para lhe pegar ao colo. Ele era um amigo muito querido, doce e compreensivo. Lamentava ter recusado a sua companhia, mas precisava de descanso. E precisava também de pensar.
Ao entrar em casa, Adriana largou a bolsa no sofá e pegou no telemóvel. Pousou-o no lava-louça e espreitou o frigorífico para retirar restos do jantar de dois dias antes, os quais despejou para um prato e aqueceu no micro-ondas.
Caminhou até ao quarto e despiu-se, trocando a roupa da rua pela camisola interior com que dormia e o fato de treino com que andava por casa.
Ao ouvir o micro-ondas apitar, voltou à cozinha e desligou-o, deixando a comida lá dentro. A seguir, voltou a pegar no telemóvel, marcou o número e aguardou que atendessem, ouvindo o som de chamar no auscultador.
Sentada no sofá que encarava o televisor, Zahra mastigava os cereais com leite que preparara numa taça de plástico com bonecos desenhados. Mantinha o pijama e envolvera as pernas numa manta. Os seus olhos estavam concentrados no ecrã do plasma, vendo as notícias. Dormira mais que aquilo que queria e falhara as horas de ensaio.
Nesse instante, a seu lado, o telemóvel tocou.
Zahra pegou nele e olhou para o visor. Era o número de Adriana, sem dúvida, pois já o havia gravado na agenda para a identificar, de imediato, se ela voltasse a ligar.
A sua primeira reacção foi não atender. Porém, a hesitação só durou até ao terceiro toque. Atendeu.
— Olá, Zahra!
— Quem fala? — questionou Zahra, tentando ganhar tempo por estar perdida no que haveria de dizer.
— Sou eu, a Adriana. — informou a outra, meio triste por a amiga doutros tempos não a ter reconhecido.
— Ah… Olá.
A voz de Zahra pareceu tão desinteressada em ouvir Adriana que esta teve vontade de desligar o telefonema.
— Está tudo bem?
— Sim.
— Interrompi alguma coisa?
— Não.
— Desculpa, se estou a incomodar. — pediu Adriana cada vez mais arrependida de ter ligado, mas incapaz de desligar. — Lembrei-me de te ligar para conversarmos um pouco.
Zahra queria aparentar desinteresse, dar a entender que Adriana ter reaparecido na sua vida era irrelevante. Contudo, também não queria afastá-la.
— Não estás a incomodar. — respondeu a violinista. — Eu estava a ensaiar.
— Desculpa.
— Não faz mal. Posso fazer um intervalo.
Adriana sorriu no outro lado da linha e confessou:
— Gostei de te ouvir tocar, ontem. Continuas uma exímia violinista.
— Obrigado.
— Também gostei de te voltar a ver. — continuou, esperando uma resposta igual.
— Sim… Não estava nada à espera de te ver.
— Nem dá para acreditar que se passaram sete anos.
— Pois… O tempo passa a correr.
— Nunca me passou pela cabeça que fazias parte daquela orquestra. — prosseguiu Adriana, tentando manter o diálogo. — O meu amigo Leonardo, aquele que estava comigo ontem, é que me convidou para assistir com ele.
Zahra não dizia nada, limitando-se aos “hum, hum” esporádicos.
Só que, mesmo sentindo o frete da outra em ouvi-la, Adriana não desistiu:
— Se bem te lembras, eu adoro música clássica. E os teus solos foram divinais.
— Obrigado. — voltou a agradecer sem entoação.
A vontade de Zahra era desligar, mandar a outra para longe e exigir que se mantivesse afastada, tal como haviam estado nos últimos sete anos. Só que a voz de Adriana continuava a ter efeito nela, fazendo-a recordar aquilo que a sua razão insistia em apagar.
— Sabes, estás melhor que nunca. — elogiou Adriana. Nesse momento, temeu que o elogio fosse interpretado de outra forma. — A tocar violino, claro. Estás a tocar de forma divinal. — Mas, logo a seguir, pensou “que se lixe”. — E também estás muito bonita.
Zahra quebrou o seu silêncio:
— Tenho de voltar ao ensaio, Adriana.
— Sim, desculpa. Estou aqui a atrapalhar o teu treino.
— Não faz mal.
— É que passou tanto tempo, tenho tantas saudades de conversar contigo. Achas que podíamos combinar um café, um dia destes?
Zahra ia a responder um rotundo não, só que travou a resposta, pois isso poderia significar receio da sua parte em rever a ex-amiga. E um receio assim daria a entender que ela ainda sentia algo pela bailarina. Por isso, respondeu:
— Sim, claro.
Adriana foi invadida pela felicidade de poder voltar a partilhar momentos na companhia da sua paixão, nem que fosse para um simples café.
— Só que, agora, com os ensaios, tenho o tempo muito ocupado. — continuou Zahra. — Mas, eu depois ligo-te a combinar.
— Está bem. — concordou Adriana. — Vou ficar à espera.
E vais esperar muito, pensou Zahra, pois não tinha a mínima intensão de lhe ligar.
— Tenho de ir. — disse Zahra em tom de despedida.
— Está bem. Beijinhos. — ofereceu Adriana.
Do outro lado, só veio o som do fim do telefonema.
IV
A redação da estação de televisão era um local com pessoas sempre em movimento e em função vinte e quatro horas por dia. Poderia ser mais calmo em alguns horários, mas havia sempre alguém a trabalhar ali.
Naquela tarde, a redação estava em pleno funcionamento com os jornalistas em actividade. As secretárias abarrotavam de papéis, os computadores tinham os teclados fustigados e as impressoras debitavam folhas impressas. A maior parte das pessoas estava sentada e só umas quantas andavam de um lado para o outro, trocando ideias ou procurando opiniões junto dos colegas.
Aquele enorme espaço não tinha paredes interiores, apenas mesas e móveis que pareciam amontoados ao acaso, mas que permitiam um carreiro entre a entrada e a porta do director de informação. Foi por essa porta que saiu Matilde Leão.
Na redação todos a conheciam. Contudo, a sua figura era tão deslumbrante que deixava sempre homens e mulheres a olhá-la, uns com desejo, outros com inveja.
Matilde Leão era jornalista e tinha trinta e quatro anos. O rosto condizia com o nome, pois tinha sempre um semblante felino. Olhos azuis grandes, boca bem delineada e um nariz ligeiramente empinado, tudo emoldurado pelos longos cabelos louros que nunca surgiam sem estarem cuidadosamente penteados de uma forma natural.
O caminhar dela era poderoso, capaz de abalroar quem não se desviasse. E se, como acontecia naquele instante, estivesse zangada, então levaria meio mundo na sua frente.
Raramente se lhe via um sorriso e quando ele aparecia vinha associado a escárnio, ironia, hipocrisia ou desprezo. Matilde não cultivava simpatias, mas tinha o respeito de todos. Era uma mulher que se amava ou odiava. E ela tinha tendência para levar as pessoas para a segunda.
Matilde atravessou a redação com toda a fúria empregue nas passadas. A sua imagem não variava muito, sempre com calças de ganga que lhe fizessem justiça às pernas e casaco formal, estilo blazer, o qual revelava parcialmente as camisolas ou camisas que usava por baixo. A forma como toda a roupa lhe caía bem era irritante e provocava muita inveja no sector feminino da estação.
Qual leoa a avançar pela savana, Matilde arrastou papéis das secretárias mais próximas, devido à deslocação do ar da sua passagem. A sua fúria devia-se ao facto de lhe ter sido atribuída a missão de entrevistar um economista americano, candidato ao prémio Nobel de Economia.
Matilde já trabalhava na estação desde os seus vinte e seis anos. A sua ambição tinha o lugar de apresentadora das notícias das oito da noite como objectivo. Já fora pivot do noticiário naqueles horários que quase ninguém vê e acabava atirada para reportagens de rua ou entrevistas.
Ela não tinha dúvidas, a culpa pelo congelamento da sua ascensão era da responsabilidade da mulher do director, também ela funcionária do canal televisivo na apresentação de programas, a qual achava que sempre que ele dava uma oportunidade a Matilde era com o objectivo de a levar para a cama. Assim, para evitar aborrecimentos em casa, Matilde era relegada para trabalhos de menor importância.
Quando Matilde desapareceu da redação, batendo com a porta, todos os olhares se voltaram a concentrar no trabalho. Possessa, desceu as escadas a pensar como detestava aquele tipo de entrevistas, pois não tinha o mínimo interesse em Economia e tinha de pensar em perguntas a um velho que provavelmente iria olhar para ela a babar-se e a tentar ser sedutor. Para acentuar a sua raiva, Matilde estava atrasada para a hora marcada no hotel onde o senhor ficara hospedado nesta sua visita a Portugal e o operador de imagem que habitualmente a acompanhava estava doente, pelo que ainda tinha de procurar substituto para filmar a entrevista.
A tarde tinha Sol, só que não fazia grande efeito a atenuar o frio na rua. Não era agradável estar no exterior, mas Leonardo teve que se aguentar para saciar o seu vício de tabaco.
Fumando tranquilamente um cigarro à porta do emprego, Leonardo pensava em Adriana, com quem não voltara a falar nos últimos dias. A amiga estava estranha, desde aquele concerto de música clássica, quando reencontrou uma antiga paixão dos tempos de escola. Ali sozinho com os seus pensamentos, ele sentiu ciúmes daquela violinista que tivera um lugar tão importante no coração de Adriana, um lugar que ele nunca conseguira, apesar da grande amizade sem barreiras que partilhava com a bailarina. E ao que parecia, continuava a ter, pois Adriana não voltara a estar com ele desde aquela noite do concerto, o que não era habitual após uma separação longa como fora a ida dela a Nova Iorque.
Os pensamentos dele foram interrompidos por uma voz de mulher:
— Você é que é o Leonardo Velasques?
Leonardo olhou para trás e reconheceu Matilde Leão.
— Sim. — confirmou, espantado por ela lhe dirigir a palavra pela primeira vez em vários anos a trabalhar na mesma empresa.
— Venha! Preciso de um operador de imagem. Traga o carro!
O suceder de ordens irritou Leonardo. Porém, manteve a calma e deu uma última baforada no cigarro.
— Veja se se despacha, sim?!
Leonardo olhou-a com frieza, o que ela desprezou.
— Vamos tirar alguém da forca? — interrogou ele, deitado o cigarro fora.
A pergunta não obteve resposta.
O carro estava estacionado no parque do canal televisivo, logo ao lado do edifício. Leonardo confirmou que tinha o equipamento para as filmagens no porta-bagagem e entrou para o lugar do condutor.
Ao arrancar, o porteiro levantou a cancela do parque e ele virou à direita para parar dez metros à frente, à porta do prédio, onde Matilde o esperava impaciente.
Assim que se sentou a seu lado, Matilde fechou a porta e ordenou a Leonardo:
— Siga para o hotel Alif!
— Você deve pensar que isto é um táxi. — ripostou Leonardo, perdendo a paciência com ela.
— Olhe! Estamos atrasados, percebe?
— E os paizinhos não a ensinaram a pedir “por favor”? — questionou ele, arrancando com o automóvel.
— Poupe-me. — exigiu ela, abrindo a mala e retirando um bloco. — Não estou com paciência para discutir regras de etiqueta.
Leonardo optou por não dizer mais nada e conduziu pelas ruas de Lisboa com o hotel como destino.
A seu lado, Matilde escrevinhava no bloco, fazendo apontamentos das perguntas para a entrevista.
O silêncio entre eles era tão incomodativo que Leonardo aumentou o volume do rádio que mal se ouvia.
— Importa-se? — questionou Matilde, apontando para o rádio. — Quero concentrar-me e o som do rádio está a incomodar-me.
— Você saiu-me cá uma prima-dona…
— Olhe…
Leonardo olhou para ela e levantou o dedo, travando-lhe as palavras.
— É melhor concentrar-se nas perguntas.
Matilde fulminou-o com o olhar, mas não disse mais nada. E Leonardo voltou a baixar o volume do rádio.
A viagem demorou cerca de vinte minutos. Encontrar um lugar para estacionar é que se revelou mais complicado. E a jornalista estava cada vez mais impaciente, vendo os minutos a passar.
— Pare ali! — ordenou, apontado para a frente. — Eu vou andando. Quando você conseguir arrumar o carro, vai lá ter.
Nesse instante, um senhor aproximou-se de um automóvel estacionado uns metros mais à frente.
— Tenha lá calma que já temos ali lugar.
Assim que Leonardo desligou a ignição, Matilde saiu do carro com a mala debaixo do braço. Ele abandonou o seu lugar e foi à traseira do automóvel buscar o equipamento de filmagem.
O céu ficara cinzento e a ameaça de chuva pairava no ar. Nos jardins à volta do Campo Pequeno as árvores abanavam ao sabor do vento, por entre as quais algumas pessoas caminham. O som dos automóveis e das buzinas polvilhavam o ambiente poluído num misto de som e ar. No lado oposto da avenida, na esquina entre aquela e a João XXI, erguia-se o edifício do Hotel Alif.
Matilde caminhava com pressa, indiferente ao colega. Leonardo, carregando a camara de filmar numa mão e o tripé na outra, não a deixava afastar, mas também não se preocupava em seguir ao ritmo dela.
Contornaram a esquina e entraram pela porta do hotel. Leonardo deixou para a jornalista a tarefa de se dirigir à recepção e pedir para ser anunciada ao visado. Enquanto ela o fez, ele ficou no átrio a observá-la e a pensar que ela tinha tanto de bela como de antipática.
O recepcionista telefonou para o quarto de hotel respectivo. Informou o hóspede da presença da jornalista e recebeu a autorização para que eles subissem. Matilde voltou-se para Leonardo e fez-lhe sinal com o dedo para que ele a seguisse. Ele voltou a pegar no equipamento e entrou com ela no elevador.
O transporte subiu do piso 0 ao piso 7. Nem a jornalista, nem o operador de imagem abriram a boca durante a subida, deixando que o som da música ambiente fosse o único audível ali.
As portas abriram-se e Matilde saiu imponente, caminhando com a mesma pressa anterior e procurando com os olhos o número do quarto que lhe haviam indicado. Ao encontrá-lo, parou junto à porta e bateu.
Leonardo parou a seu lado e viu um individuo de feições e tez indianas abrir a porta. O homem na casa dos quarenta anos apresentou‑se como sendo agente do economista e convidou-os a entrar. Falava inglês com sotaque.
Matilde e Leonardo atravessaram o pequeno corredor e encontraram um outro homem, talvez na casa dos sessenta anos, sentado na poltrona do amplo quarto de hotel. Ao vê-los, levantou-se e cumprimentou-os com um aperto de mão.
— Vai montando isso aí! — ordenou Matilde a Leonardo, falando como se ele fosse um inexperiente operador.
Leonardo respirou fundo para não lhe responder, evitando assim uma cena à frente do entrevistado.
Matilde sentou-se no sofá colocado perpendicularmente à poltrona. Enquanto Leonardo preparava o equipamento para filmar, Matilde falava um inglês perfeito com o americano, expondo as linhas gerais da entrevista.
Quando a câmara ficou montada no tripé, Leonardo testou o ângulo de filmagem e enquadrou um plano em que se via o americano de frente e Matilde de lado, quase de costas para o aparelho. Depois, chamou:
— Ó jornalista! Já podemos gravar.
Matilde olhou-o zangada, mas foi a vez de ela não dizer nada. Tornou a olhar para o entrevistado e iniciou aquilo que a trouxera ali.
A orquestra onde Zahra tocava terminara mais um ensaio. Os vários músicos levantaram-se dos seus lugares e dispersaram. A maior parte levava consigo os instrumentos.
José Norton Vila abandonou o piano e aproximou-se de Zahra que guardava o seu violino no estojo.
— Queres ir jantar lá a casa, hoje? — convidou ele.
— Podemos deixar para outro dia? Estou com uma dor de cabeça…
O pianista sorriu e concordou. A seguir, um outro assunto surgiu na sua mente:
— A tua amiga já te ligou?
— Que amiga?
— Aquela colega de escola que te veio cumprimentar depois do concerto, na outra noite.
Zahra recordou-se do convite para jantarem todos, o qual ficara no ar nesse indesejável reencontro.
— Não, não me chegou a ligar.
— Então talvez fosse melhor ligares tu.
Zahra encolheu os ombros e disse:
— Se ela não ligou, lá terá as suas razões. Já fizemos o convite, agora esperamos.
— Não me pareces muito interessada nesse convívio. — notou ele.
Mais uma vez, Zahra encolheu os ombros, desvalorizando a questão.
— É uma antiga colega de escola, nada mais. Se ela está ou não interessada num jantar, é irrelevante para mim.
Observando-a a arrumar tudo, Norton Vila concluiu:
— Talvez não devesse ter feito o convite.
Zahra encarou-o com um sorriso e retorquiu:
— Talvez não o devesses ter feito, mas também não fizeste mal em o fazer. Não penses mais nisso, se ela quiser, ela telefona.
Nesse instante, o maestro Rudolph Norton Vila aproximou-se de ambos.
— Excelente! — elogiou. — Vocês estão maravilhosos nas vossas prestações.
José sorriu com agrado.
— Obrigado, maestro! — agradeceu Zahra, meio envergonhada.
— Vocês têm uma sintonia perfeita. — continuou o maestro, procurando com aquela frase subentender uma sintonia paralela no campo amoroso.
— Sim, pai, nós nascemos um para o outro. — confirmou José, olhando para a noiva.
Zahra sorriu num jeito inocente, não conseguindo evitar que na sua mente passasse a recordação dos orgasmos simulados.
— No próximo fim-de-semana, vocês podiam ir lá almoçar. — convidou Rudolph, olhando para o filho. — A tua mãe iria gostar muito.
Tanto José como Zahra concordaram com a sugestão.
O maestro olhou para o relógio, despediu-se do filho e da futura nora e desapareceu para os bastidores do palco.
— Zahra!
— Sim?
— Não queres mesmo ir lá a casa, esta noite? Dormes lá.
— Não, querido. Estou a precisar de dormir mesmo.
Vencido, o pianista despediu-se da noiva com um beijo apaixonado e deixou-a só no palco do ensaio.
Sentada na cadeira, Zahra guardou o violino no estojo com todo o cuidado. Todo aquele processo era delicado e feito de forma automática, pois ao longo da sua carreira de violinista, Zahra já executara aquela tarefa centenas de vezes. E enquanto o fazia, pensava em Adriana e que até gostava que ela telefonasse. Porém, fora Zahra quem ficara de ligar e não pensava fazê-lo. Zahra queria tanto voltar a ver Adriana quanto desejava que a outra desaparecesse novamente do seu mundo.
Não muito longe dali, nos corredores dos bastidores, Rudolph Norton Vila caminhava devagar, pensando no alinhamento do próximo concerto. Esse pensamento foi interrompido pela visão de uma jovem que fazia também parte da orquestra, a qual falava alegremente ao telemóvel.
A jovem era Magdalena Popov, uma moldava de quinze anos que tocava flauta na orquestra. Rudolph, apesar dos seus sessenta e um anos, sentia um fascínio pela rapariga que lhe estimulava os pensamentos mais eróticos. Sim, dizia ele a si mesmo, tinha idade para ser seu avô, mas isso não impedia que a rapariga o atraísse.
Magdalena nascera na Moldávia e viera para Portugal com os pais aos três anos de idade. Estudara música desde muito nova e entrara para a orquestra cinco meses antes para um estágio. Desde que a vira pela primeira vez, Rudolph sentia aquele desejo pecaminoso de um dia a poder meter numa cama. No entanto, sempre guardou esses desejos para si.
Encostada à parede, a jovem conversava e ria, passando a mão livre pelos longos cabelos negros. Tinha uma imagem mais velha que a real idade, pois vestia sempre casaco e calças, recusando sempre vestuário mais comum às adolescentes. O rosto era inocente e sempre muito bem maquilhado. Era notório o seu esforço por parecer mais velha.
O maestro sempre controlara a atracção que sentia pela miúda. No entanto, desde que a vira na tarde anterior com o namorado, a sua revolta foi tal que o bom senso se perdeu.
Magdalena namorava com um angolano que tocava contrabaixo e pertencia igualmente à orquestra. Ele era quatro anos mais velho e entrara para lá por via de um protocolo que a direcção musical tinha com um patrocinador de Angola.
Rudolph detestava pretos e tê-los na orquestra era, segundo as suas palavras, como uma nódoa num tecido de luxo. Por sua vontade não permitiria “gente de cor” na sua imaculada orquestra, mas o peso do dinheiro falava mais alto e a vontade dos patrocinadores tinha de ser respeitada.
Na verdade, preto ou branco, o jovem angolano tinha qualidade suficiente para ser membro daquele grupo de músicos. Para além disso, era simpático e cordial, ao ponto de todos os colegas gostarem dele. E Magdalena deixou-se encantar ainda mais.
Ao passar pela rapariga, Rudolph parou e fez-lhe sinal que precisava de falar com ela. Magdalena despediu-se do telefonema e acompanhou o maestro ao seu gabinete.
— Então, Magdalena, tem gostado deste seu estágio? — interrogou ele.
— Sim. — respondeu ela, denotando o ligeiro sotaque que nunca perdera. — Gosto muito, senhor. E espero que estejam a gostar de mim também.
Rudolph olhou para a rapariga parada a meio do gabinete que o olhava de forma ingénua. Era tão excitante que até doía.
— Sim, sim. — confidenciou num tom distante. — O seu estágio é de…
— Seis meses. — completou ela a deixa.
— Quer dizer que em breve teremos de decidir se a contratamos.
Magdalena sorriu confiante, esperançada num bom veredicto.
Rudolph deu alguns passos até ela, ficando diante da jovem.
— Sabe, Magdalena, isto está muito complicado. — começou ele, mirando-a da cabeça aos pés. — Temos tido cortes nos subsídios, há patrocinadores a querer cortar os apoios… Enfim. Por vezes, a qualidade do artista não chega para conseguir o lugar.
— Compreendo, senhor Norton Vila. — suspirou, revelando alguma tristeza.
— Confesso que teria muita pena em não a contratar. — prosseguiu o maestro, colocando a sua mão no ombro da rapariga.
Magdalena voltou a sorrir e disse:
— Tenho a certeza que fará os possíveis para que eu fique.
— Sim, farei. — confirmou. — Mas, tenho de ter garantias… Ao empenhar-me tanto em manter alguém, acabo por ficar em risco se alguma coisa correr mal.
— Tudo farei para não o desiludir. — prometeu Magdalena.
Rudolph levou a mão do ombro para o rosto dela e questionou:
— Tudo, Magdalena?
O olhar da flautista encarava o do maestro com inocência, o que o levou a duvidar se ela perceberia os reais intentos dele.
— Empenhar-me-ei para que nunca se desiluda comigo.
Rudolph sorriu satisfeito com as suas palavras e por ela não se ter retraído quando lhe tocou o rosto.
— Ser membro de uma orquestra exige muito de um músico. A Magdalena ainda é muito nova…
— Eu quero muito continuar aqui! — afirmou ela. O olhar perdera alguma inocência e pareceu mais perspicaz que o esperado. — Pode pôr-me à prova.
Rudolph deixou a mão descer até ao pescoço. Magdalena nem se mexia, nem tirava os olhos dos dele.
— Não sei se estará a perceber ao ponto a que terá de chegar o empenho. — insistiu Rudolph, deixando a mão cair para o primeiro botão da camisa. Desapertou-o, tentando não revelar a excitação e a surpresa por ela não perder a postura e aceitar tudo com normalidade.
— Sim. Já percebi, senhor Norton Vila. — confirmou ela num tom que misturava rudeza com provocação.
— Por favor, trate-me por Rudolph. — pediu ele, desapertando os primeiros botões da camisa dela. — Pelo menos, a sós, pode chamar‑me Rudolph.
Na sua suposta inocência de quinze anos, Magdalena fora astuta ao perceber o que ele pretendia e a melhor forma de jogar com isso. Quando sentiu a mão do maestro acariciar-lhe o peito, ela esboçou um gemido e avisou:
— Sou virgem e pretendo continuar a sê-lo até casar.
O maestro sentiu as palavras como uma recusa. No entanto, Magdalena desapertou os restantes botões da camisa e completou:
— Mas, penso que nos podemos entender sem colocar em causa minha virgindade.
Nesse instante, o som do telemóvel do maestro ecoou pelo gabinete. A mão dele abandonou o peito da jovem moldava e apressou-se a atender. Magdalena aproveitou para voltar a apertar os botões e compor a camisa dentro das calças.
— Só um momento. — pediu ele a quem o chamara ao telemóvel. Tapou o microfone do aparelho e olhou para ela. — Tenho de atender esta chamada. Falaremos depois.
Magdalena assentiu e abandonou o gabinete.
A tarde em Lisboa continuava fria e começava a dar lugar à noite.
No Hotel Alif, a entrevista durara cerca de duas horas, as quais se traduziriam em pouco menos de trinta minutos na emissão do canal televisivo.
Matilde e Leonardo abandonaram o quarto de hotel sem trocar uma silaba. E foi só no elevador que ela disse:
— Você, quando voltar a dirigir-me a palavra, seja mais educado.
— Está a falar de quê? — questionou Leonardo.
— “Ó jornalista”. — citou ela, recordando-lhe a forma como ele a chamara antes de começar a filmar.
— Você não é jornalista? — interrogou ele, meio divertido.
— Sou! — afirmou Matilde com dureza. — Mas, não é forma de me dirigir a palavra, ainda para mais à frente de um entrevistado. — Leonardo ia a dizer algo, mas ela não deixou. — D. Matilde ou…
— Colega?
— Colegas são as putas. — ripostou ela, irritada.
— Acha que a vou tratar por D. Matilde?
— Sou mais velha que você e tenho um estatuto superior ao seu.
A arrogância dela enervou Leonardo que se preparava para responder à letra, quando o elevador parou e as portas abriram.
Ao atravessarem o átrio, Leonardo disse:
— Há putas mais educadas que você.
— Você lá deve saber, se frequenta o meio. — redarguiu Matilde com desdém.
— Não, não frequento o meio. — continuou ele. — Mas, você se continua assim, ainda um dia lá pode ir parar.
Matilde travou junto da porta do hotel e encarou-lhe o olhar irritada.
— Que quer isso dizer?
— Quer dizer que arrogante e prepotente como você é, se um dia a vida lhe corre mal…
— Esteja calado! — ordenou ela. — Só diz disparates. É por isso que você não passa de um operador de câmara.
— Nem vou perder mais tempo a falar consigo. — ripostou ele, virando-lhe as costas e seguindo pelo passeio com o equipamento de filmar em ambas as mãos.
O silêncio manteve-se durante quase toda a viagem de carro, no regresso à estação, onde Matilde teria de editar as imagens da entrevista para serem passadas na hora agendada. Esse silêncio foi interrompido pela reacção da jornalista a uma notícia que se ouviu no rádio, acerca das pretensões ao direito à adopção de crianças por casais homossexuais.
— Este mundo está perdido! — afirmou sem se dirigir a Leonardo. — Onde já se viu, fufas e paneleiros a adoptar crianças?
— Têm tanto direito como os heterossexuais. — argumentou ele.
— Deixam de ter direitos, quando se tornam aberrações. — insistiu ela. — Se eu mandasse, encostava-os todos a uma parede.
— Você é surpreendente! — exclamou Leonardo com ironia. — Tem uma mentalidade do século passado. Só falta dizer que a homossexualidade é uma doença.
— Não. Não é uma doença. É uma deficiência. — contrapôs.
Leonardo abanou a cabeça, incrédulo.
— Você tem muitos defeitos, mas confesso que não a imaginava homofóbica.
— E você deve ter amigos panascas para se sentir tão ofendido com a minha opinião.
— Tenho amigos homossexuais que são excelentes pessoas, simpáticas e tão normais quanto eu e você.
— Se você também for, é natural que se compare. Agora, não me compare a mim.
— Não sou, mas se fosse não tinha problema em o assumir, mesmo tendo de enfrentar gente obtusa como você.
A chegada ao parque da estação de televisão findou o diálogo. Mal o carro foi estacionado, Matilde saiu e ordenou a Leonardo que se apressasse a deixar a filmagem no departamento de edição para ela poder completar o trabalho.
Leonardo não lhe respondeu. E enquanto a via a afastar-se, pensava em como ela era tão estúpida por ter uma opinião tão retrograda.
V
A chuva caía com abundância pelas ruas da capital. No Parque das Nações, junto ao Teatro Camões, Adriana saiu do edifício empunhando o guarda-chuva. Tivera mais uma tarde de ensaios para a peça de bailado e tudo corria como previsto para uma boa estreia dentro de algumas semanas.
Ali junto ao rio, algumas pessoas enfrentavam o mau tempo por necessidade, mas outras havia que não abdicavam da sua corrida de fim de tarde pela zona ribeirinha.
Adriana caminhou sem dar grande atenção ao percurso, pois a sua mente perdia-se na imagem de Zahra e no facto de a outra ainda não lhe ter ligado conforme disse que faria. E por muita vontade que tivesse, Adriana não iria insistir. Pelo menos, por enquanto.
Na sua passada deslizada, quase como se não tocasse o chão, a bailarina passou em frente ao Oceanário, tendo depois desviado para o Pavilhão de Portugal, atravessando a gigante pala que lhe deu cobertura da chuva por alguns metros. Naquele fim de tarde, ela decidira ir até ao Centro Comercial Vasco da Gama ver as montras, antes de apanhar o transporte para casa.
A chuva pareceu abrandar, quando Adriana atravessou a rua mesmo em frente ao Casino Lisboa e seguiu pelas arcadas até à entrada do Centro Comercial.
Gente entrava e gente saía pelas portas de vidro do espaço comercial. Havia sempre muitas pessoas por ali, o que não representava o volume de negócios para as lojas condizente, pois a crise continuava a refrear o espírito consumista dos portugueses.
Adriana entrou e abrandou o passo, virando à esquerda para as lojas de vestuário. Parou na primeira montra e entrou na primeira loja. Estava com tempo, sem stress, sem obrigatoriedade de estar a determinada hora em determinado sítio.
Nas três primeiras lojas não encontrou nada que quisesse experimentar. E quando se preparava para entrar na quarta, os seus olhos captaram algo que a paralisou.
No lado oposto daquele corredor de lojas, Adriana reconheceu Zahra a observar uma montra. Impulsiva como sempre, a bailarina atravessou os metros que a separavam.
— Olá, Zahra! — cumprimentou.
Zahra quase deu um pulo ao ouvir o seu nome e os seus olhos não esconderam a surpresa por a ver.
— Olá, Adriana! — retribuiu num tom neutro.
A bailarina ofereceu-lhe dois beijos no rosto e disse:
— Por aqui? Que bela surpresa. Andas às compras?
— Sim. E tu?
— Eu vim passear um pouco, depois do ensaio. — relatou animada.
— Estás a ensaiar?
— Sim. Vamos estrear um bailado novo, daqui a algumas semanas. — Abriu ainda mais o sorriso. — Espero que me venhas ver.
Zahra assentiu, consciente que depois de Adriana se afastar já não se lembraria mais disso.
— Queres tomar um café? — convidou Adriana. Zahra ia a inventar uma desculpa, mas não teve tempo. — Anda.
— Não posso demorar, fiquei de ir jantar com o meu noivo. — avisou, deixando-se levar para as escadas rolantes.
Chegadas ao último piso, as duas caminharam até um balcão que servia cafés. Adriana pediu dois. Assim que o empregado entregou as chávenas, ela segurou ambas e levou-as para uma mesa livre.
Sentadas frente a frente, Adriana prosseguiu a conversa:
— Gostei muito de te ver no outro dia. Continuas a tocar violino divinalmente. — Zahra deu um golo no café e encolheu os ombros, fazendo um ar de modéstia. — Há tanto tempo que não nos víamos.
— Sim. Alguns anos.
— Eu continuo a dançar. — respondeu Adriana sem que a outra tivesse perguntado. Fora mais uma maneira de manter a conversa com alguém que não falava muito. — Na Companhia Nacional de Bailado.
Zahra percebia o olhar fascinado da outra a encará-la. E isso não lhe era indiferente, apesar de se manter distante.
Antes de terminarem o café, o telemóvel de Zahra tocou. Ela atendeu:
— Olá, amor! Sim… A sério? Pois… Sim… Eu sei. Não, não fico triste. Sim… Estou no Vasco da Gama. Deixa lá. Sim… Eu também te amo. Beijos… Até amanhã.
— Está tudo bem? — perguntou Adriana, quando Zahra desligou.
— Sim. Era o José. Não pode vir jantar comigo.
Mal acabou a frase, Zahra arrependeu-se, pois a sua mente adivinhou as palavras que Adriana proferiu:
— Eu posso jantar contigo.
— Não quero estar a incomodar-te.
— Não sejas parva. Não é incómodo nenhum. E sempre temos mais tempo para conversar.
Zahra não queria aceitar, não queria aceitar a companhia para o jantar, nem o facto de que a companhia de Adriana ainda mexia com ela e fazia-a temer uma recaída ao que as unira na adolescência. Contudo, seria antipático e sem sentido insistir na recusa, por isso, acabou por aceitar.
O local escolhido para o jantar foi um restaurante italiano no último piso com vista para o Pavilhão Atlântico, para a imensidão do Parque, para o rio e para os primeiros andares da grande torre habitacional que ladeava o centro comercial. Aliás, do restaurante era possível ver o interior dos primeiros pisos que ainda não tivessem corrido os cortinados.
A empregada que as recebera oferecera-lhes uma das mesas junto ao vidro. Sendo um dia a meio da semana e uma hora de menor afluência para jantares, isso fazia com que não houvesse muitos clientes.
— Não chegaste a ligar. — lembrou Adriana, olhando para as hipóteses que a ementa apresentava.
— Tenho andado muito ocupada. — justificou Zahra sem intensão de alongar a justificação.
— Não faz mal. — desvalorizou a bailarina num tom animado. — Temos este jantar para pôr a conversa em dia.
A funcionária do restaurante aproximou-se assim que elas pousaram as ementas na mesa. Com simpatia, recolheu os pedidos de ambas.
— Que tens feito? — perguntou Adriana, sempre com a preocupação de quebrar os silêncios.
Zahra observou o exterior escuro e depois olhou para a bailarina, dizendo:
— Nada de especial. A orquestra ocupa-me muito tempo.
— Já tocas lá há muito?
— Faz quatro anos no Verão.
— Foi lá que conheceste o teu noivo?
— Sim.
— Já namoram há quanto tempo?
— Dois anos.
Zahra não parecia querer falar mais que o necessário e Adriana parecia uma advogada a questionar o réu.
O parco diálogo foi suspenso pela chegada das bebidas.
— Tenho pena que nos tivéssemos afastado. — lamentou Adriana.
— As nossas vidas seguiram rumos diferentes, é normal.
Até poderia ser normal, mas na cabeça de Adriana ainda estava bem presente a recordação da forma fria como a outra a afastara da sua vida.
— Mesmo assim, podíamos ter mantido o contacto. Nunca mais tive uma amiga como tu.
Zahra olhou para os olhos da outra e retorquiu:
— Ambas sabemos que não era possível continuarmos a ser amigas como éramos, uma vez que… — Interrompeu-se, procurando a melhor forma de se expressar.
Adriana deu uma ajuda, completando:
— Uma vez que não gostavas de mim como eu de ti.
A frase não obteve resposta imediata, pois a chegada dos pratos aconteceu nesse momento. Assim que a funcionária se afastou, Zahra disse:
— Sei que não nos afastámos da melhor forma. Sei que talvez não tenha agido da maneira mais correcta contigo. Mas, naquela altura, sentia-me cercada por ti. E a cada dia sentia que…
— Sim…
— Aqueles nossos momentos eram bons. Mas, não era aquilo que eu queria para o futuro. — Baixou o tom de voz, receosa de ser ouvida por terceiros. — Eu não sou lésbica, Adriana.
— Se tu o dizes… — suspirou a outra, pouco convicta.
— A sério, Adriana. — insistiu num tom fraternal. — Se tinha dúvidas acerca disso, quando perdi a virgindade com um homem, eu deixei de me questionar e passei a ter certeza da minha orientação sexual.
E de facto, Zahra não estava a mentir, pois após a sua primeira relação sexual com um homem, ela percebeu que aquilo não lhe dava o mínimo prazer. Inconscientemente, Zahra sempre soube que era homossexual, mas só quando fez sexo pela primeira é que o assumiu a si própria. Claro que isso não impediu de continuar a escondê-lo dos outros e insistir em ter uma vida heterossexual, mesmo que isso não a realizasse minimamente.
— Eu não tenho problemas em assumir que sou. — afirmou Adriana orgulhosa. — Lamento que também não sejas, pois podíamos ter sido muito felizes.
Zahra riu como se a ideia fosse ridícula.
— Desculpa! — pediu, consciente que a outra poderia ficar magoada. — Não quis ofender-te.
— Não ofendeste, Zahra. Além disso, não tenho vergonha de confessar que acreditei que o nosso futuro seria vivido juntas.
— Sim, eu sei. Talvez por isso é que eu fui tão… rude. Não havia maneira de terminar a nossa relação sem feridas. Acho que foi melhor assim, um golpe duro, mas ambas sobrevivemos.
— Se te interessa saber, eu tive mais dificuldade em sobreviver. — lamentou Adriana. — Tu quiseste que eu me afastasse e nunca mais falaste comigo. Passámos um ano a vermo-nos na escola e sem trocar uma palavra. Era preciso tanto?
— Não. — respondeu Zahra, prontamente. — Não havia necessidade de ser tão intransigente. Erros da juventude. Desculpa, ter-te magoado. E tenho a certeza que tudo isso já pertence ao passado.
Para Adriana, o assunto não estava assim tão terminado. A mágoa ainda residia no seu coração, já para não falar na paixão que ainda nutria por Zahra. Contudo, assentiu com a cabeça.
Terminado o prato principal, a funcionária solícita indagou se pretendiam sobremesa. Ambas declinaram e pediram a conta.
Quando saíram do restaurante, fizeram juntas a descida até ao piso térreo do centro comercial. Pararam a poucos metros das portas de vidro. Lá fora, a chuva caía com força.
— Onde tens o carro? — perguntou Zahra.
— Eu não tenho carro. — informou Adriana. — Ando sempre de transportes públicos. Vou apanhar o autocarro para casa.
— Vives muito longe?
— Mais ou menos. Pelo menos, não vivo fora de Lisboa. Aí sim, seria uma viagem mais cansativa para chegar a casa.
— Eu tenho carro, Adriana. Se quiseres, posso deixar-te em casa.
— Se não te der muito trabalho, aceito.
— Está a chover imenso. — constatou Zahra. — Não deve ser um desvio muito grande que justifique ires molhar-te toda.
Adriana e Zahra já não saíram para a rua e desviaram o seu rumo para o parque de estacionamento subterrâneo do centro comercial, onde a segunda deixara o seu carro.
O trânsito em Lisboa estava caótico com a chuva que caía sem parar. Adriana explicou a Zahra onde ficava a sua casa. A violinista sabia o caminho sem precisar de grandes indicações.
A viagem durou quase uma hora. Zahra quase se arrependera de se ter oferecido para levar Adriana a casa, pois conduzir até ao centro da capital revelou-se um pandemónio.
Ao entrar na rua, Adriana indicou o seu prédio. Zahra parou em frente à porta.
— Queres subir? — convidou Adriana.
Zahra recusou, abanando a cabeça.
— Vá lá, faço-te um café ou um chá. — insistiu a bailarina. — Só um bocadinho para deixares o trânsito desanuviar um pouco.
— Fica para a próx…
— Olha! — apontou Adriana, interrompendo-a. — Até tens ali um lugar para estacionar. E olha que estacionar aqui é de loucos.
Zahra hesitou.
— Não ganhas nada em ir para o meio do trânsito agora. — continuou a insistir. — Vens conhecer a minha casa, faço-te um café ou um chá e depois vais. Verás que apanhas menos carros na estrada.
Zahra acabou por concordou e estacionou o carro no lugar vago.
Habituada a um nível de vida com alguns luxos, Zahra ficou chocada com a pequenez e antiguidade do apartamento da bailarina.
Adriana convidou-a a sentar no sofá e ofereceu-se para lhe fazer um café.
— Se tiveres, prefiro chá. — disse Zahra para a cozinha.
Na sua pequena cozinha, Adriana preparou o chá com genuína alegria por ter a ex-namorada ali em sua casa.
Zahra despiu o casaco e colocou-o ao lado do casaco de Adriana, onde também ficara a mala. Observava tudo em seu redor, questionando‑se como era possível viver ali.
Passados alguns minutos, Adriana surgiu da cozinha com um tabuleiro que continha um bule e duas chávenas. Sentou-se ao lado da amiga e colocou o tabuleiro entre elas.
— Desculpa, não tenho uma mesinha aqui na sala.
— Não faz mal, assim está bem.
Adriana serviu-lhe uma chávena e, a seguir, serviu a outra para si.
— Já vives aqui há muito tempo?
— Vim para cá morar, quando decidi viver sozinha.
Zahra bebeu um pouco de chá, com cuidado para não queimar os lábios, e indagou:
— O teu amigo não vive contigo?
— Quem? O Leonardo? Não. — Deu um golo no chá. — Eu vivo sozinha. E tu?
— Eu também, mas isso em breve vai mudar.
— O casamento.
— Sim.
Adriana olhou para as paredes que as rodeavam e confidenciou:
— Não sei se conseguiria partilhar o meu espaço. Já vivo sozinha há tanto tempo que acho que iria estranhar ter alguém aqui.
— Não é “ter alguém aqui”, é casares. — Zahra sorriu meio trocista. — Sim, tu também podes casar. A lei já o permite.
— Sim, eu sei. — respondeu a outra com naturalidade. — Mas, não é algo que esteja nos meus planos.
— Não tens ninguém? — perguntou Zahra sem pensar, apressando-se a emendar arrependida. — Desculpa, não tenho nada com isso.
— Não tem problema nenhum teres perguntado. Não, não tenho ninguém. Não sou um coração fácil.
— Mas, és boa rapariga. Tenho a certeza que encontrarás alguém.
Adriana não se manifestou. Preferiu não tecer nenhum comentário de circunstância, pois a única coisa que tinha vontade de dizer é que esse alguém só poderia ser Zahra. Apesar de impulsiva, dessa vez retraiu-se.
— Posso fazer-te uma pergunta? — questionou Zahra, pousando a chávena vazia no tabuleiro. — Uma pergunta pessoal, íntima.
— Sim, claro. — concordou Adriana sem problemas.
— Já tiveste relações sexuais com homens?
A pergunta desencadeou uma gargalhada em Adriana. No entanto, antes que Zahra corrigisse ou já não quisesse a resposta, ela disse:
— Sei o que estás a pensar, Zahra. Estás a pensar se sou lésbica porque nunca tive relações sexuais com homens.
Não era bem isso, mas também não interessava a Zahra revelar o verdadeiro motivo da questão. Zahra pretendia saber se, tal como ela, Adriana também não tinha qualquer prazer com homens.
— Sim, já tive relações sexuais. Por isso, não é por não ter experimentado com homens que gosto de mulheres.
— E foi bom?
Na sede de saber, Zahra nem se preocupou com a curiosidade descarada.
— A primeira vez não. A primeira vez aconteceu naquele ano em que nos afastámos. — relatou Adriana. — Não me sentia atraída pelo sexo oposto, mas caí nesse mar de dúvidas em relação à minha sexualidade e decidi experimentar. — Deu mais um golo no chá, indicando que iria continuar o relato. — Lembraste daquele puto do surf que tinha a mania que era bom? — Zahra confirmou que sim. — Soube que estava interessado em mim, mas só lhe dei bola quando as aulas acabaram. Fui com ele à praia, curtimos e aconteceu. — Adriana sorriu com a recordação ridícula. — Foi uma merda, Zahra. Ele não tinha jeito nenhum, preliminares nem vê-los e veio-se em dois minutos. Aliás, quase que se veio a pôr o preservativo.
Zahra partilhou o sorriso, contente por não ser só ela a não ter prazer com homens. Porém, Adriana continuou:
— Mais tarde, voltei a fazer. Não com ele, claro. Dessa vez foi com um homem mais velho, talvez uns dez anos. Sabes como é, aquela ideia que os homens mais velhos sabem fazer melhor as coisas… Nãããã… Não foi tão mau como na primeira, mas não deixou grandes recordações.
— Mas, sentias-te atraída por eles?
Adriana encolheu os ombros.
— Naquela altura, foi curiosidade. Não havia atracção. Mas, depois…
— Depois? — questionou Zahra, percebendo que a outra hesitara no relato.
— Não sei se te deva contar isto, vais achar-me uma… sei lá.
— Agora estou curiosa.
— Quando conheci o Leonardo, surgiu uma grande empatia entre nós. Somos muito amigos, ele é um homem excelente. É um confidente, está sempre presente para me aturar. Enfim… Para além disto tudo, um dia senti-me atraída por ele e… aconteceu.
— Ahh… Então vocês…
— Não, não é nada disso que estás a pensar. — apressou-se Adriana a explicar. — É uma espécie de perversão minha. Eu adoro mulheres. Não me sinto atraída por homens, apenas pelo Leo. E só pelo prazer que partilhamos no sexo. Não é amor, não é uma relação onde se pretenda construir um futuro. É sexo pelo sexo. Aliás, tanto ele como eu já estivemos comprometidos e nunca nos envolvemos nessas alturas.
O rosto confuso de Zahra era revelador de quão estranho era aquele tipo de relação entre duas pessoas.
— E tu? — interrogou Adriana. — Como foi a tua primeira vez com os homens?
A pergunta apanhou Zahra de surpresa. Contudo, não se podia furtar à resposta depois de ela própria ter tido aquela curiosidade.
Uma merda, pensou. E respondeu:
— Fenomenal.
— A sério? — duvidou Adriana. — Dizem que a primeira nunca é grande coisa. Mesmo para mulheres heterossexuais.
— Para mim foi muito bom. — continuou a mentir. Olhou para a outra bem nos olhos e estabeleceu uma comparação que não deixaria dúvidas. — Os nossos momentos foram agradáveis, mas nada se compara a sexo com um homem.
— Eu continuo a preferir com mulheres. — atalhou Adriana. — Mas, não somos todas iguais. E, infelizmente, ao que parece nesse campo, somos completamente opostas.
— Sim, concordo contigo. — disse Zahra sem remorsos pela mentira e com uma sensação de vitória por falar daquilo como se fosse verdade.
Adriana continuou:
— E acredita que lamento muito isso, pois nunca mais existiu ninguém na minha vida como tu.
— Acredito. — concordou Zahra com indiferença e num tom a roçar o arrogante. — O José diz-me isso constantemente.
Mesmo consciente que a mulher que estava perante si nada tinha em comum com a adolescente com que namorara, Adriana atirou uma última questão:
— Não sentes saudades?
— De quê?
— Daqueles nossos momentos íntimos.
— Não. — voltou a mentir.
A resposta foi tão fria que não deixava qualquer dúvida. Mesmo assim, Zahra foi mais longe:
— Se pudesse, até os apagava da minha memória. Acho que, tal como deve acontecer a muitas raparigas, andava confusa com a minha sexualidade. Aconteceu. Se pudesse voltar atrás, não teria acontecido.
— Compreendo. — sussurrou Adriana, procurando esconder o quanto aquelas palavras a magoavam.
Zahra tomou consciência que o seu empenho de construir uma mentira credível poderia ter magoado a outra sem necessidade.
— Mas, não me arrependo da amizade que partilhámos. — disse ela como se fosse um curativo para as feridas que provocara. — Sempre foste uma grande amiga. E tenho a certeza que se não nos tivéssemos envolvido para além da amizade, nunca teríamos deixado de o ser.
— Ainda estamos a tempo de voltar a ser amigas. — sugeriu Adriana.
Zahra olhou para o relógio e, ignorando a sugestão, lembrou:
— Tenho de ir.
As duas levantaram-se do sofá. Adriana olhou para Zahra, encarando-lhe o olhar que a outra teve dificuldade em aguentar.
— Gostava de te voltar a ver, Zahra. Gostava que voltássemos a ser amigas.
A violinista desviou o olhar para se escudar, receosa que o seu olhar pudesse dizer mais que as palavras que dissesse.
— Não quero que isso te crie ilusões.
— Porque me haveria de criar ilusões? — questionou Adriana. — Já percebi que não és lésbica. Porque haveria de criar ilusões?
— Não sei, Adriana. Só não quero que te magoes por teres expectativas acerca de mim.
— Só quero a minha amiga! Aquela amiga que conheci quando tinha treze anos.
— Nós já não somos umas rapariguinhas na escola.
— Afinal, do que tens medo? — interrogou Adriana, quase perdendo a paciência. — Cada tentativa minha de aproximação, cada tentativa sem nenhuma segunda intensão obtém de ti sempre um muro de reticências. Eu sei que já não somos nenhumas rapariguinhas ingénuas no 7º ano. Somos duas mulheres perfeitamente conscientes das suas orientações. Isso será impeditivo de sermos amigas? Ou será que tens problemas em ter uma amiga lésbica?
— Que disparate. — insurgiu-se Zahra. — Sabes bem que não sou homofóbica.
— Então?
— Não quero que a minha presença te faça sofrer por aquilo que já houve entre nós.
— Isso não vai acontecer.
— Então não vejo nada que nos impeça de ser amigas.
Adriana sorriu, feliz por voltar a ter Zahra na sua vida como amiga.
Olhando de novo para o relógio, Zahra reafirmou que tinha mesmo de ir. As duas despediram-se com dois beijos na face e a violinista abandonou o apartamento da bailarina.