A Caminho do Teu Nome
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Já alguma vez olharam para o passado e recordaram aquele momento na vossa vida em que lhe podiam ter dado qualquer destino? Talvez não um momento exacto, mas uma época, uma idade em que o futuro era um caminho que poderia seguir qualquer direcção. Olharem para trás e pensarem que nesse tempo, ainda era possível ter feito isto ou aquilo? Poder decidir sem pensar nas responsabilidades que o avançar dos anos trazem, na falta de coragem para arriscar, nas amarras que já não temos força para soltar.
Eu tivera esse momento. Tivera essa época, apesar de não saber muito bem quando e o que mudaria ou se mudaria mesmo alguma coisa.
As ondas do mar batiam com ruído no manto de areia que se estendia ao longo da costa. O céu trouxera um aglomerado de nuvens matinais que transformaram o ambiente numa penumbra cinzenta, escondendo ao longe o horizonte numa espécie de nevoeiro.
O ambiente estava como a minha alma, turva e triste.
Sempre gostara de ir até ao areal observar o mar, sem tempo para permanecer ou partir. E preferia fazê-lo em épocas como aquela, em pleno Outono, quando não se vê quase ninguém por ali.
Estava triste, muito triste, pois perdera uma pessoa muito importante e sabia que a minha vida mudaria dali para a frente, pois nada voltaria ser como antes. O maldito cancro levara-me aquele que fora o meu melhor amigo em toda a minha existência, o meu tio, o homem que me criara.
Naquele dia, tinha eu pouco mais de vinte e dois anos, senti o vazio deixado pela sua ausência. O meu tio era irmão da minha avó materna, a qual nunca cheguei a conhecer, pois falecera ao dar à luz a minha mãe. Foram o meu tio e a minha tia quem educou a minha mãe, mas sentiam que tinham falhado por completo.
Pouco me lembro da minha mãe, apenas as fotos e os relatos que os meus tios partilhavam comigo. Tal como haviam feito com ela, também tiveram que tomar a seu cargo a minha educação, se bem que por razões diferentes.
A minha mãe não tinha juízo, acho que não se pode descrever de outra forma. Na década de setenta do século XX, em plena liberdade pós-revolucionária em Portugal, a sua juventude levou-a a todo o tipo de maluquice que envolvia drogas e sexo. À conta disso, engravidou duas vezes e duas vezes arranjou forma de fazer um aborto. Fê-los contra a vontade dos meus tios que, mesmo condenando-a por aquela vida, estavam dispostos a apoiá-la na maternidade.
Passou uns maus bocados devido aos abortos. Na altura, a interrupção voluntária de uma gravidez era crime e só se conseguia fazer ilegalmente em lugares escondidos por pessoas estranhas que ganhavam bom dinheiro com isso, indiferentes ao que pudesse acontecer às mulheres que as procuravam.
Quando a minha mãe engravidou uma terceira vez, essa foi a gota de água para o meus tios. Estavam fartos. Por isso, o meu tio disse-lhe que se ela fizesse um novo aborto a expulsava de casa. Porém, se ela tivesse a criança, eles iriam ajudar a criá-la e a educá-la. Esta é a minha primeira dívida de gratidão para com eles.
Não sei quem é o meu pai. Nem pretendo algum dia vir a saber. E com sinceridade concluo que é bem possível que nem a minha mãe soubesse.
Seja como for, eu cheguei então a este mundo num Domingo ao início da noite de um dos últimos dias de Verão daquele ano.
A razão pela qual tenho poucas ou nenhumas recordações da minha mãe foi porque ela nunca ultrapassou a depressão causada pela gravidez e pelo parto. Sentia que tudo aquilo era uma prisão, ser mãe era uma prisão. Já não podia fazer a vida desvairada habitual e vivia ressacada com a falta das drogas, uma vez que os meus tios controlavam-na de forma a que ela não tivesse acesso a elas. E por fim, a falta de sexo, o desinteresse que percebia nos homens por não quererem nada com uma mulher que tinha de apêndice um bebé nos braços.
Tal como decidira por duas vezes optar pela interrupção voluntária da gravidez, antes do meu primeiro aniversário, optou pela interrupção voluntária da própria vida. E teve sucesso.
Não vos vou dizer que os meus tios foram os pais que nunca tive. Não vos vou dizer isso porque o meu conceito de pai e mãe não fariam justiça a tudo o que o meu tio e a minha tia foram para mim ao longo dos anos.
Se não fora fácil educar a minha mãe, ter um bebé para criar quando se é quase sexagenário torna-se ainda mais complicado.
Seja como for, eles deram tudo por mim e tornaram-me na pessoa que sou. Também tive as minhas complicações, dei-lhes muitas dores de cabeça, mas soube absorver os seus conceitos, os seus princípios e sei que ambos se orgulhavam de mim.
As nossas vidas levaram um novo rombo quando eu tinha catorze anos. A minha tia tinha um histórico de problemas de coração. Chegou uma altura em que se tornou necessária uma intervenção cirúrgica. Segundo os médicos, apesar de ser uma operação delicada, não seria complicada e iria correr tudo bem. Acho que foi a partir desta data que deixei de acreditar no optimismo dos médicos.
A operação correu normalmente, mas o pós-operatório trouxe complicações. E a minha tia partiu...
O meu tio estava inconsolável por perder alguém com quem partilhara a vida ao longo de quase cinquenta anos. Foi ele quem me deu a notícia, numa postura segura, mas sem esconder que já chorara e que isso nada tinha de mal. Foi nos seus braços que eu próprio chorei a perda.
Incansável, jamais ponderou a hipótese de deixar de ser viúvo. Tomou para si a totalidade do encargo que eu representava, sempre com um sorriso nos lábios, pronto a suprir as minhas necessidades, atento a que eu não saísse da linha, intransigente a condenar-me cada vez que eu não me portava bem. O meu tio foi tio, pai, avô, irmão... Foi toda a minha família. E acima de tudo, foi amigo.
Naquela manhã, eu estava consciente que nada voltaria a ser como antes. O meu tio falecera vítima de um cancro que, apesar de operável com sucesso, os seus oitenta anos não conseguiram resistir. Estava sozinho, solitário, órfão...
O vento soprou um pouco mais forte. O mar embatia na costa arenosa, avançando e recuando. Percebi que as lágrimas me escorriam pela face. Não me importava que alguém me pudesse ver a chorar. O meu tio ensinara-me que chorar não é sinal de fraqueza, é demonstração de que temos sentimentos.
Iria regressar a casa, ao apartamento arrendado que fora o meu lar desde que nascera e o dos meus tios na maior parte da sua vida. Iria regressar a um espaço tremendamente vazio, um espaço onde somente eu passaria a viver. Já não haveria as manhãs a encontrar o meu tio na cozinha a comer as suas papas de pão e leite, não haveria uma face para dar um beijo, um sorriso a informar que o dia iria correr bem. Já não haveria a quem dizer "até logo" ao sair ou "olá" ao entrar em casa. Já não haveria conversas na sala a ver televisão, discussões saudáveis sobre futebol, relatos de mais um dia de acontecimentos supérfluos. Já não haveria nada, nem nada, nem mais nada. Nada de nada.
Duas gaivotas passaram a voar e foram aterrar no areal, a cerca de vinte metros de mim. Observavam-me como se não existisse. Naquelas ideias ridículas que usamos para tentar colmatar a perda, imaginei-as como sendo a reencarnação dos meus tios que ali andavam a voar à minha volta, continuando a velar por mim. Porém, como se adivinhassem o meu pensamento, as gaivotas indignaram-se e levantaram voo para longe.
Não sei quanto tempo permaneci ali. Sei que não se via vivalma, pois o clima não convidava a passeios na praia. Eu apenas me encontrava ali porque era um local que sempre me apaziguara nos momentos mais infelizes. Acho que aprendi isso com o meu tio, pois era por ali que me levava a passear depois de perder a minha tia, era ali que ele gostava que ficássemos a olhar o mar em silêncio. Lembro-me que certa vez me dissera "se um dia encontrares uma mulher que te ame como a tua tia me amou, vive cada segundo com ela como se fosse o último".
Para ser sincero, nunca pensei que pudesse encontrar alguém assim. O amor que os meus tios partilhavam era de tal forma forte que bastava ver como se olhavam para perceber o quanto se amavam. Mesmo casados várias décadas, sentia-se a paixão entre eles. Porém, se eu encontrasse alguém com quem partilhasse um décimo dessa paixão, já seria imensamente feliz.
Levantei-me da areia e sacudi as calças. Caminhei lentamente, regressando à estrada para regressar a casa. O autocarro ia quase vazio. Era um Sábado invernoso, pelo que aquela rota não tinha muitos passageiros. Ninguém se interessaria em ir para a praia, logo não havia gente a regressar dela. Aquele trajecto ligava a linha costeira de praias e a cidade de Almada, onde eu sempre vivera.
A paragem de autocarro ficava a cerca de trezentos metros da minha casa, um apartamento pequeno que os meus tios haviam arrendado desde que se casaram. Graças à sua antiguidade e ao facto de eu também ter vivido ali desde que nascera, tinha direito a ser o novo arrendatário com uma ligeira diferença de valor da renda. Como já trabalhava, essa despesa não trazia grande problema.
Enquanto caminhava pelo passeio, fui surpreendido por um gato. Já era adulto e tinha um pelo muito bonito tricolor em tons de amarelo, preto e cinza. Calculei que na minha passada seguinte, como qualquer gato de rua, ele desatasse a correr para longe. Porém, ao invés, ele aproximou-se mim.
Fingi que não o vi e prossegui o meu caminho. E ele gatinhou a meu lado, como se dissesse "espera aí, quero ir contigo". Notei que não deveria ser um gato de rua. Parecia bem tratado, apesar de magro. E o facto de se aproximar e quase pedir afecto, levou-me a crer que talvez tivesse sido abandonado por uma qualquer besta sem coração.
— Vai-te lá embora. Não tenho nada para ti. — disse-lhe ao alcançar a porta do meu prédio.
O gato ficou a olhar-me como se esperasse algo de mim.
Eu abri a porta e entrei, tendo o cuidado de não o deixar entrar para a escada. Fechei a porta de vidro e virei costas. Contudo, antes de alcançar o primeiro degrau, voltei a olhar para a porta. O gato sentara-se e ficara a olhar para mim. Tentei subir os degraus... mas não consegui.
Voltei atrás e abri a porta.
— Que se passa? Também ficaste sozinho?
O gato permaneceu sentado com os olhos postos em mim.
— Não sou grande companhia. No teu lugar ia procurar uma companhia melhor.
Ele limitava-se a olhar.
Eu abri mais a porta e dei espaço para que ele entrasse, dizendo:
— Anda. Queres vir comigo?
O gato levantou-se e gatinhou para dentro do prédio. Passou por mim, contornou-me e veio esfregar-se nas minhas pernas.
— Não achas um pouco cedo para demonstrações de carinho? — inquiri. — Mal nos conhecemos.
Subimos as escadas juntos, lado a lado, até à porta do apartamento. Mal a abri, ele entrou e começou a investigar tudo, todas as divisões, todos os cantos.
— Vê lá, não estragues nada.
Fui até à cozinha e preparei-lhe uma tigela de leite. Não tinha mais nada que lhe pudesse dar.
Quando viu a tigela, confirmei que estava faminto.
Enquanto ele se saciava, pensei como lhe haveria de chamar.
— Olha lá, como é que te chamas?
Ele ignorou-me, continuando a beber o leite.
— Deves ter nome. — continuei. — Mas, como te vou chamar? Não gostava que agora me começassem a chamar outro nome que não fosse Daniel. Por isso, como é que te chamas?
O gato olhou para mim e miou.
— Não. Não te vou chamar Miau.
De súbito, veio-me à cabeça aquela fantasia que tivera ao ver as gaivotas, que elas pudessem ser a reencarnação dos meus tios. Seria aquele gato a reencarnação do meu tio? Eu sei que a ideia é absurda. Porém, eu estava fragilizado pela perda e capaz de acreditar em absurdos.
— Não tenho como saber o teu nome. Mas, o que eu mais chamava aqui em casa antes... Antes do que aconteceu. O que eu mais chamava era "tio". Por isso, vou chamar-te Tio.
O gato voltou a miar.
— Não é negociável. Não te vou chamar Miau. Vou chamar-te Tio.
Quando se saciou, Tio gatinhou pela cozinha e aninhou-se a um canto, entre a parede e o móvel. Ficou a observar-me por alguns momentos, até começar a fechar os olhos. Pareceu-me que se sentia seguro e deixou-se repousar. Não faço a menor ideia do que ele deveria ter passado na rua, mas sendo um gato habituado a estar em casa, deve ter sido assustador.
Apesar de não falarmos a mesma língua, disse-lhe que ia sair para comprar algumas coisas para ele. Limitei a movimentação do gato pela casa, fechando a porta da cozinha, e saí do apartamento.
Nunca tivera um gato, aliás nunca tivera qualquer animal de estimação. Por isso, não tinha nada em casa para o Tio. Também não tinha muito dinheiro para gastar com ele.
Não havia lojas de animais por perto, mas a alguns quarteirões existia um hipermercado onde fazíamos compras periodicamente. Pela primeira vez, desde que lá ia, passei na secção para animais de estimação com atenção nas prateleiras. Comprei ração de gato, uma caixa e a areia para colocar nela.
Quando estava a regressar a casa, reparei numa clínica veterinária. Sim, talvez fosse melhor levar o Tio até lá para verificar se ele estava bem.
O gato adaptou-se ao novo espaço. Mais uma prova de que deveria ser um animal caseiro foi o facto de não ter feito nenhum xixi ou cocó enquanto eu fora às compras. Porém, mal instalei a caixa de areia na casa de banho e o chamei, ele apressou-se a aliviar-se. Escolhi uma tigela de plástico e coloquei-a no chão da cozinha, ao lado da que tivera o leite. Enchi-a com ração. No lugar onde ele se deitara, acomodei uma manta velha para lhe servir de cama.
O apartamento não era muito grande, uma cozinha, casa de banho, uma sala e dois quartos. Apenas o quarto do meu tio permanecia com a porta fechada, pois ainda era doloroso para mim lá entrar. Por isso, Tio circulava livremente por todo o lado, normalmente procurando os mesmos espaços em que eu estava.
Nessa noite, Tio ficou a miar quando não o deixei entrar no quarto. Não me agradava a ideia de ter um gato no quarto enquanto dormia. Contudo, o gato ficou a miar, não muito alto, mas suficientemente sofrido para que eu não conseguisse dormir. Levantei-me da cama e abri a porta.
— Chato! Podes entrar, mas não vais para a cama.
Mais valia ter-lhe dito para saltar para o colchão, pois ele entrou, saltou para a cama e aninhou-se ao fundo.
Naquela altura, eu tinha um horário laboral pouco comum, entrava ao serviço às três da tarde e saía à meia-noite. Por isso, as manhãs estavam sempre disponíveis para tratar de qualquer assunto que surgisse. E no primeiro dia útil após a chegada do meu convidado felino, aproveitei essa mesma manhã para o levar ao veterinário.
Como tinha receio do volume dos custos, optei por visitar a clínica primeiro, informar-me sobre os preços e disponibilidade para o gato ser observado. Os serviços funcionavam numa espécie de loja, ao nível do rés-do-chão do edifício, com o espaço bem aproveitado onde uma recepção e uma sala de espera eram os únicos espaços visíveis a quem entrava. Fui recebido por uma jovem simpática que me pôs a par do preço da consulta e dos eventuais adicionais dependendo das necessidades do bichano. Claro que quanto mais ela falava, mais eu me assustava, pensando se tinha um gato ou uma acompanhante de luxo. No fim, inquiriu-me se tinha como transportar o gato, se tinha uma caixa transportadora. Não tinha pensado nisso, nem tinha a caixa. Bastante solícita, emprestou-me uma caixa, uma espécie de jaula portátil, para que eu transportasse confortavelmente o meu novo amigo.
Cerca de uma hora depois, estava a ser recebido pelo médico veterinário no seu gabinete, um homem que aparentava ter uns quarenta anos e com apetência natural para lidar com animais.
— Está com sorte! — exclamou. — Ela está esterilizada.
— Ela?
— Sim, é uma gata.
— Pensei que fosse um gato.
— Não. Posso garantir-lhe que é uma gata. — Afastou o pelo da barriga. — E como pode ver aqui, tem a cicatriz da cirurgia de esterilização.
Bom, pelo menos não teria essa despesa de a esterilizar, conforme ele me havia recomendado antes de a observar. Porém, ainda estava um pouco estupefacto por o Tio afinal ser a Tio.
Claro que não lhe mudei o nome. Ou melhor, não mudei a forma como a chamava, já que o nome deveria ser um outro que eu jamais saberia, a menos que encontrasse os seus donos. E em relação a isso, deixei indicações para que, se alguém aparecesse a perguntar pela gata, poderiam dar o meu contacto.
Não vou fazer suspense sobre esta parte. Nunca surgiu ninguém a procurar a minha Tio. E ainda bem, pois a gata tornou-se peça fundamental no meu dia-a-dia.
A Tio dormia, como costume, no sofá, naquela manhã chuvosa. Sem qualquer compromisso que me obrigasse a sair, fiquei por casa a olhar para nenhures, vendo as gotas a embater no vidro.
Aqueles momentos eram veneno para a minha alma, pois rapidamente me deixava cair em recordações e a saudade atingia-me como uma bala perdida à qual eu fugia diariamente. Nunca ligava a televisão àquela hora e nem para me distrair o faria. Optei por sair da sala e ir ao meu quarto. Fui em busca de nada, esperançado que algo me afastasse das memórias. Olhei para a cama, para a janela, para as prateleiras com os livros que nunca gostei de ler... O som abafado das patas felinas avisaram-me que a gata acordara e viera no meu encalço, era a minha sombra.
Olhei para o velhinho computador que os meus tios me haviam comprado pouco antes de a minha tia partir.
Na adolescência, eu tinha duas grande paixões, a informática e a fotografia, sendo que a segunda surgira primeiro e me entusiasmara mais que os computadores.
O meu tio tinha uma máquina fotográfica, uma Canon AE1, que lhe fora oferecida por um amigo, antes de eu nascer, alguém que lha trouxera dos Estados Unidos. Os meus tios tinham alguns passatempos, mas a fotografia era-lhes completamente indiferente. Por isso, no meu décimo aniversário, quando me acharam com capacidade para mexer naquele aparelho, ofereceram-ma com o meu compromisso de que a estimaria. Eles não tinham noção do poder da máquina que ali tinham, e muito menos eu, na altura. A minha maior dificuldade era colocar o rolo no aparelho, o processo de puxar a ponta do rolo, prender no local especifico e enrolar ligeiramente até esticar e ficar pronta a fotografar. Foi o senhor da loja de fotografia do centro comercial em Almada que me explicou. Perante a incapacidade de me esclarecer, o meu tio levou-me lá com a máquina. O homem espantara-se por ver um miúdo tão novo com um aparelho daqueles, porém, teve a paciência de me explicar o funcionamento de forma geral. Eu aprendi depressa e à conta disso, muitas das fotos que existiam lá em casa tinham sido captadas por mim.
A informática foi diferente. Em miúdo, computadores para mim eram jogos. E no prédio onde vivíamos, habitava um rapaz alguns anos mais velho que eu, o qual tinha um famoso Spectrum 48k com muitos jogos. Apesar de ele me convidar muitas vezes para jogarmos, eu queria ter o meu próprio computador. Penitencio-me pelas muitas vezes em que aborreci os meus tios com pedidos para que me comprassem um computador igual, ao qual eles respondiam negativamente e eu amuava.
Se pudessem, eles dar-me-iam o mundo. Porém, a vida não era fácil e só um controlo orçamental muito apertado evitava que nos faltassem os bens essenciais.
Dei dois passos pelo quarto até ficar junto à mesa do computador. Aquele fora um presente do meu tio, comprado a prestações algum tempo após o falecimento da minha tia. Talvez o tivesse feito para me compensar pela perda, não como se um computador pudesse substituí-la, mas para me afastar da mágoa. Claro que, na altura, não era aquilo que eu queria. Para um puto de quase quinze anos, o computador era para jogar e aquilo não era um Spectrum...
Contudo, o meu tio fora bem claro na sua decisão, se eu queria um computador teria de ter mais utilidade que um mero aparelho de jogos. E, claro, mais uma vez ele tinha razão.
A escolha foi feita com base naquilo que o homem da loja nos vendeu, o conceito de um aparelho que me pudesse servir de apoio aos trabalhos da escola.
A Tio miou.
— Que queres?
Ela voltou a miar e saltou para cima da cama, aninhando-se nas almofadas.
Continuando... O computador, tal como a fotografia, acabaram por vir a ter um impacto decisivo na minha vida. Resisti à tentação de abrir algum dos álbuns que tinha junto dos livros que nunca li. A minha tia adorava ler e sempre tentara incutir-me esse gosto, oferecendo-me alguns livros. Fora das poucas coisas da minha educação em que não tivera sucesso.
— Sabes o que é que a minha tia me dizia? — disse em voz alta para a gata que me observava bem desperta. — Que a vida não é uma história, é um conjunto de contos onde somos personagem, contos que juntamos ao longo da vida.
Tio miou em resposta.
Sorri para a gata que me olhava como se percebesse o que eu dizia. E talvez percebesse...
Se assim era, se a vida eram conjuntos de contos, os que se seguem são alguns dos contos que compõem a minha vida...
CONTO I
O teu nome é Tânia.
E queria estar ao teu lado.
Eu era seguramente o rapaz mais desinteressante da escola. Tinha dezassete anos e estava no 11º ano. Nunca fora popular, pelo contrário, sempre fora o elo mais fraco nas turmas por onde passara, o tipo com quem todos gozam, o alvo das humilhações. Não tinha amigos e a minha única companhia era a solidão. Nunca gostei da escola e tinha vergonha que os meus tios fossem lá para falar com os professores nas reuniões de encarregados de educação. Os meus colegas tinham pais jovens ou relativamente jovens. Eu tinha um casal de tios com aspecto de avós. Sim, era injusto e estúpido da minha parte sentir vergonha de duas pessoas que me amavam incondicionalmente. Mas por alguma razão a adolescência é dos momentos mais parvos e absurdos da nossa vida.
As directoras das minhas turmas diziam sempre o mesmo sobre mim, sem nada a assinalar no comportamento, apenas muito tímido e fechado, pouco social, algo desatento e pouco interessado na escola.
Houve um momento, um curto momento, quando eu estava no 8º ano, após o falecimento da minha tia, em que pareceu existir uma trégua por parte dos "engraçadinhos" da turma. No entanto, tal como referi, fora uma trégua curta.
Quando penso em mim naqueles dezassete anos, gostaria de ter uma máquina do tempo que me permitisse viajar até essa época para contar a mim próprio que a vida tinha mais soluções e problemas que aquela vida escolar.
Porque é que estou a pegar naquela turma neste conto? Talvez porque tenha sido a mais marcante do meu calvário de estudante.
Eu vinha de um transição de ano escolar muito complicada com uma pauta de notas que me permitiu avançar mesmo no limite. Estivera quase a ficar retido no mesmo ano pela segunda vez.
Contudo, no início desse ano lectivo, soube que na minha escola secundária, uma outra turma do 11º ano, também de Humanidades, iria ter a disciplina de Informática. Bom, na época tinha um nome mais complexo que Informática, mas resumindo era isso. Como não morria de amores pela minha turma, tal como nunca morri de amores por nenhuma das anteriores desde a 1ª classe, pedi ao meu tio que concordasse com a transferência. O processo resolveu-se a tempo de eu integrar a nova turma antes do início das aulas.
A manhã apresentava-se bonita com um Sol brilhante de final de Verão. Caminhei para a escola envolto na fraca esperança que aquele ano escolar fosse diferente dos anteriores. Vestia uma t-shirt larga amarela, calças de ganga azul que pareciam ser dois números acima da minha medida e um blusão do mesmo material muito gasto. Nos pés, os velhinhos All-Stars pretos com aspecto de precisarem de reforma. Como já referi, eu era a imagem mais desinteressante que poderia existir de um rapaz de dezassete anos.
A minha roupa não era uma escolha minha. Apesar de não passarmos fome, eu e o meu tio vivíamos com muitas limitações. E comprar roupa, só a que fosse mesmo necessária. Muito do que eu vestia era trazido por uma amiga da minha falecida tia, a qual se mantinha como governanta numa casa de família muito rica. Eles deitavam fora roupa quase nova e a senhora trazia tudo o que podia para nós. Por isso, eu ir a uma loja comprar algo que gostasse estava fora de questão.
O acaso fez com que a primeira aula do primeiro dia de apresentação fosse Informática. Entrei na escola carregando aquela sensação de que todos olhavam para mim e comentavam o meu aspecto ou faziam comentários depreciativos acerca de mim. Reencontrava rostos conhecidos, muitos que preferiria esquecer, gente popular, rapazes que eram tudo o que eu desejava ser e raparigas que eu sonhava namorar.
Enquanto me dirigia para a sala marcada no horário, ecoou o toque de entrada. Constatei que em breve iria conhecer o novo antro de malvados onde teria de permanecer diariamente ao longo dos seguintes oito a nove meses.
Se já era complicado para mim inserir-me numa turma onde a maior parte dos elementos se via pela primeira vez naquele dia, entrar numa onde a quase totalidade já se conhecia do ano anterior era ainda pior. Naquela época, as novas turmas formavam-se no 1º, 5º, 7º, 9º e 10º ano. No 11º ano, a turma já se conhecia.
Eu não era o único elemento novo. Mais tarde vim a reparar que havia outro rapaz que era novo na turma e na escola. Porém, ao contrário de mim, era tão extrovertido que rapidamente se integrou.
Os olhares curiosos alvejaram-me. Quem é aquele tipo novo? Quem é o gordo? Quem é o marreco? Se estas perguntas existiram, eu não as ouvi, eram fruto da minha imaginação que sofria por antecipação. Era o tipo novo, não era gordo, mas a roupa dava essa ideia, e tinha tendência a curvar-me para a frente, resquícios do uso de mochila pesada no tempo do Ciclo Preparatório.
Naqueles tempos, já não usava mochila, limitando-me a carregar um caderno formato A5 pautado e os manuais das disciplinas que tivesse nos respectivos dias. Era suposto passar a limpo em casa tudo o que escrevesse no caderno, só que nunca o fiz.
A sala de Informática tinha as mesas dispostas em U e com vários computadores. Como deverão ter adivinhado, o número de aparelhos era inferior ao dos alunos. Estranho? Portugal, década de 90, o computador ainda é um bicho estranho.
Os alunos espalharam-se pelas mesas, agrupando-se em associações de amizade que viam os seus contratos renovados para a nova época escolar. Meio perdido, sentei-me na primeira cadeira, ficando logo na ponta do U mais próxima da porta.
Naquela época, não era comum que um adolescente tivesse computador em casa, porém já muitos miúdos e miúdas os tinham e por vezes já se ouvia alguns a falar em jogos de disquete (novidade relativamente aos jogos do Spectrum que vinham em cassetes iguais às de música). Curiosamente, aquela turma agrupou na sua quase totalidade alunos que nunca tiveram computador.
Não me recordo de todos o colegas que tive naquele ano, naquela turma. Houve personagens que se desvaneceram da minha memória da mesma forma que outros se gravaram nela para todo o sempre. O puto novo que viera doutra escola, não me recordo do nome. Só perdurou na lembrança por esse facto, ser novidade ali tal como eu.
Contudo, houve figuras inesquecíveis pelos melhores ou piores motivos. Recordo-me da Maria Inês, a crónica delegada de todas as turmas por onde passava, uma rapariga de dezasseis anos com ares de maria-rapaz, muito carismática e de personalidade muito forte. Havia quem lhe adivinhasse um futuro na política, era assertiva e defensora intransigente dos colegas nas reuniões com os professores. Nunca soube mais nada dela após a escola. Calculo que tivesse sido advogada, pois estudava afincadamente para isso e sei que entrou em Direito na Universidade de Lisboa.
A turma chegou a produzir uma deputada, a Francisca, também com dezasseis anos. Não era uma rapariga deslumbrante, cabelos negros compridos, rosto sorridente para os amigos e arrogante para a restante Humanidade, bajuladora dos professores e segura da sua inteligência. Ignorava-me a maior parte do tempo e amesquinhava-me no que sobrava. Era uma das melhores alunas da turma, sempre com excelentes notas. Participativa nas aulas, principalmente em Português e Filosofia, nunca deu sinais de vir a ter uma carreira na política. Tal como a Maria Inês, o seu objectivo era a advocacia. Mas, a Francisca de ambições políticas será um outro conto...
Em termos de notas, Alfredo rivalizava com ela. Magrinho e da minha idade, autêntico rato de biblioteca, usava óculos com lentes grossas e não era muito participativo nas aulas, preferindo deixar a sua marca para os momentos de receber testes e ouvirmos todos "muito bem, Alfredo, mais um 18". Também era um alvo fácil para os parvalhões da turma, só que ele demonstrava viver bem com isso e não lhe dava um décimo da importância que eu dava.
Por falar em parvalhões, destacavam-se o Tiago e o Dias. O primeiro era o quebra-corações das meninas. Alto, cabelo alourado pelo Sol e pela cera que usava na prancha de surf, desportista federado de trampolins, não demorou muito a fazer de mim o alvo de piadas e chacota. O seu melhor amigo, Dias, não era desportista nem surfista. Era o mais velho da turma com dezoito anos, perto dos dezanove, péssimo aluno, ar escanzelado... O que é que os unia? Os charros. Dias era uma espécie de dealer dentro da instituição. E quantas não foram as vezes em que ambos surgiam nas aulas completamente pedrados.
Para minha enorme surpresa, naquela primeira aula, percebi que fazia parte daquela turma uma rapariga chamada Tânia.
Tânia tinha a minha idade, uma rapariga de uma beleza deslumbrante. Não era a mais bonita da sala, era a mais bonita da escola. Cabelo louro comprido, olhos verdes, rosto de boneca, corpo elegante. Usualmente vestia calças de ganga ou saias compridas que acompanhava com camisas ou camisolas dependendo do clima. Tudo nela era elegância, tudo pensado para ser atraente, cativante. Sim, ela era a quebra-corações dos rapazes. Se alguém naquela sala alguma vez poderia ter hipóteses com ela, seria o Tiago. E ele tentou. Só que ela não lhe deu qualquer abertura. E se tinha namorado, ele não estudava na nossa escola.
Obviamente que eu já a conhecia de vista de anos anteriores. E vê-la no mesmo espaço que eu trazia a esperança absurda que poderia ter alguma hipótese de me aproximar dela. Claro que ela ignorava a minha presença. O máximo que obtinha de si era um riso de desdém quando eu era alvo de uma qualquer partida humilhante.
Tânia andava sempre rodeada das suas duas melhores amigas, a Raquel e a Sofia. Raquel era um ano mais nova. Baixinha, caracóis ruivos, rosto sorridente, fosse para cativar ou para desprezar, e corpo interessante. Aluna mediana, demasiado espampanante no vestuário, o que lhe valera duas chamadas de atenção por parte do Concelho Directivo por causa das saias demasiado curtas. Já a vira namorar com pelo menos meia dúzia de rapazes da escola e as línguas afiadas diziam que já não era virgem. Qualquer miúdo, incluindo eu, se babaria ao vê-la. Só que Raquel perdia muito da sua beleza devido à vulgaridade com que se apresentava. Sofia estava nos antípodas de Tânia, dezasseis anos, usava o cabelo louro escuro curto, mal penteado, o rosto redondo segurava um par de óculos castanhos e tinha excesso de peso. Não era simpática e vestia roupa que parecia ter dificuldade em segurar a sua massa corporal. Talvez estivesse errado, mas a sensação que me dava ao vê-las com Tânia era a de procurarem aproveitar o brilho desta para resplandecerem.
Como em qualquer aula inicial, a professora apresentou-se e depois fez a chamada, enunciando os nomes de todos. Tímido como era, encolhi-me instintivamente ao ouvir o meu nome.
De seguida, falou sobre a disciplina, dos objectivos e procurou conhecer os alunos e as suas capacidades informáticas.
— Algum de vocês tem algum conhecimento de computadores? Tem computador em casa?
Ninguém se manifestou até haver um otário que levantou o braço. O otário fui eu.
— Como te chamas?
— Daniel.
— Tens computador?
— Sim.
— Mas um computador de jogos ou um deste género? — questionou a professora apontando para um dos aparelhos.
— Estes também dão para jogar. — disse eu, procurando ser engraçado. Ninguém sorriu.
— Sim. — concordou ela com aborrecimento. — Mas, refiro-me a um computador onde podes escrever e imprimir, fazer contas...
— Tenho um computador deste género. — confirmei, travando a sua listagem de possibilidades que me estavam a fazer parecer um idiota.
A professora sorriu. Os meus colegas olhavam para mim com aquele desdém de quem me toma por um lambe-botas a tentar cair nas boas graças da docente.
— Talvez nos pudesses fazer uma demonstração. — sugeriu apontando para um dos computadores.
Merda, vociferei mentalmente. A última coisa que queria era ser o centro das atenções.
Nervoso, desloquei-me para o lugar que ela apontara, sentindo toda a turma a posicionar-se à minha volta. Tentei abstrair-me da sua presença e fiz uma demonstração daquilo que sabia. Claro que não era nada de especial, mas o suficiente para que a professora me valorizasse. Para quem vivia nas sombras, aquele fora um raro momento de orgulho para mim. Só Maria Inês e Alfredo é que percebiam que aquilo não era nada de mais. Ambos tinham computadores em casa, tal como eu. Só que a primeira não se deu ao trabalho de o dizer, adivinhando que a colocariam na minha posição, enquanto o segundo ficou calado, sabendo que quanto menos desse nas vistas melhor.
No que respeita à minha imagem perante os meus colegas, a maioria estava a borrifar-se para os meus conhecimentos. E Tiago aproveitou para passar a apelidar-me de "cromo".
Perante isto, o que terá acontecido para que este pedaço da minha vida se tornasse digno de ser contado?
A Informática era a minha melhor disciplina. Enquanto nas outras alternava entre 11 e 8 valores, exceptuando o 15 a Educação Física, ali eu tirara 18 valores no final do primeiro período. E a professora destacara-me a mim, à Maria Inês e ao Alfredo para dar apoio aos nossos colegas nas aulas, quando fosse necessário.
Em finais de Fevereiro, aconteceu o dia que não mudou a minha vida, apenas iniciou uma etapa que alteraria a forma como eu a encarava.
Lá fora chovia como se toda a água dos oceanos se abatesse sobre Almada. Como era habitual naquelas aulas, a turma agrupara-se em focos de dois ou três alunos junto a cada computador. Eu estava com o Alfredo, o qual encontrara em mim alguém como quem falar de programação, apesar de ele estar muito mais à frente que eu nesse campo de conhecimento.
Não vão estranhar que vos diga que os meus olhos estavam, sempre que possível, prostrados sobre a Tânia. Sim, era mais provável que passasse um porco a andar de bicicleta lá fora à chuva do que ela dirigir-me uma letra que fosse. Porém, isso não fazia com que vê-la deixasse de ser das raras motivações para que eu caminhasse para a escola diariamente.
Naquela manhã reparei no seu rosto fechado e triste, até com as amigas ela falara de forma atravessada, quando chegara. Notava-se que estava com um "humor de cão". Tânia, Raquel e Sofia juntaram-se no seu computador e ficaram a fingir que mexiam no aparelho, enquanto conversavam sobre o que provocara aquele estado de alma na amiga.
Ao aperceber-se disso, a professora chamou-as da sua secretária. Era suposto estarmos todos a criar um documento no processador de texto e elas não tinham sequer passado do início de sessão.
— Vocês ainda mal mexeram no teclado.
— Desculpe, stora! — pediu Tânia que era claramente a líder do trio.
— Só vos vejo na conversa.
Para se mostrarem mais empenhadas, viraram-se para o ecrã e começaram a manejar o rato. Não passaram dois minutos para que voltassem à tagarelice.
— Raquel! — chamou a professora, fazendo-a quase saltar da cadeira. — Vais para junto da Maria Inês e da Francisca.
Estas não ficaram nada agradadas por terem aquilo que elas consideravam ser uma "bimba" a perturbar o seu trabalho. Só que jamais o contestariam.
— Sofia! Tu vais para ali para o computador onde está o Alfredo e o Daniel.
Por momentos, pensámos que a professora iria deixar Tânia sozinha como castigo.
— Tânia! Não vejo sinais de melhoria ou vontade da tua parte em alterar o 9 que tiveste no período passado. — lembrou a docente, iniciando uma dura reprimenda à minha paixão platónica. — Quero que até ao final da aula me apresentes um texto de uma página escrita no programa que temos para o efeito (calculo que saibas a qual me refiro). O tema é à tua escolha.
Tânia fulminou a professora com o olhar. Percebi-lhe a raiva na expressão, não pela reprimenda, mas pela forma como falava com ela, como se não passasse de uma cara bonita sem cérebro.
— Sim, stora. — suspirou, desviando o olhar para o ecrã.
Não era preciso estar ao lado da rapariga para perceber que ela estava completamente às escuras sem saber onde carregar, onde escrever, o que abrir...
A professora tinha os olhos cravados nela, consciente das suas dificuldades e aguardando que Tânia se rendesse a um pedido de auxílio.
— Então, já encontraste o programa, Tânia?
A turma toda parara e observava a cena.
A rapariga deveria estar a arder de fúria, mas manteve-se forte, procurando vencer o desafio.
— Ó Daniel! — chamou-me. Os olhares viram-se todos, quase como se fosse um movimento combinado, cravando-se em mim. — Vai, por favor, para junto da tua colega e explica-lhe como é que deve fazer.
Deus existe, foi o meu primeiro pensamento. Do nada, surgia a oportunidade de me sentar junto da rapariga dos meus sonhos e interagir com ela, falar com ela... Bom, rapidamente me apercebi que talvez as coisas não fossem assim tão agradáveis. Senti o olhar ciumento de Tiago amaldiçoar-me e o semblante quase repugnado de Tânia por me ter perto.
Levantei-me do meu lugar e caminhei, qual condenado, até ao computador dela. Tânia afastou a cadeira, como se tivesse receio de ser tocada por qualquer movimento meu. Pensei o que deveria dizer-lhe, mas perante a dúvida fiquei calado. Ela nem olhou para mim. Sentei-me onde antes estivera uma das amigas. Nunca estivera tão perto de Tânia. Ela tinha um perfume adocicado, cheirava tão bem. Super nervoso, comecei a mexer no teclado.
— Daniel! — tornou a chamar a professora. — Não quero que faças as coisas, quero que lhe expliques.
Fiquei envergonhado, acho que o meu rosto ruborizou. Afastei instintivamente as mãos do teclado como se este queimasse. Desviei a cadeira e com um gesto da mão convidei Tânia a tomar o meu lugar nas teclas.
Nunca olhou para mim, desprezava-me por completo. Naquele momento, eu estava a ser uma espécie de carrasco às ordens da docente que, verdade seja dita, nunca simpatizara muito com a rapariga.
Na minha mente, a cena seria diferente. Eu levantar-me-ia e gritaria à professora que aquilo não era forma de falar com a rapariga por quem eu estava apaixonado. E a outra responderia que eu tinha razão e pediria desculpa. E Tânia olhar-me-ia apaixonada...
— O que é que eu faço? — perguntou, despertando-me dos meus delírios.
Comecei a dar-lhe indicações, esforçando-me por não denunciar como estava nervoso. Eu era tão tímido...
Ela foi seguindo as indicações e os nossos colegas perderam o interesse em nós, excepto Tiago que nos observava aos risos, fazendo comentários ao amigo Dias, gozando com o facto de eu estar ali.
— Que merda quer esta cabra que eu escreva? — interrogou Tânia, entre dentes, para ninguém.
— Escreve sobre os teus sonhos. — respondi num impulso.
Tânia sorriu como se eu tivesse dito algo absurdo.
— Sim, vou escrever sobre o que sonhei esta noite. — concordou com ironia. — Bela ideia, cromo.
Eu odiava que me chamassem "cromo". Fora Tiago o "padrinho" daquela alcunha que muitos usavam para me gozar. E talvez por odiar tanto que me apelidassem daquela forma, perdi parte do nervosismo e retorqui:
— Referia-me aos teus objectivos no futuro, aquilo que gostarias de ser.
A forma como eu o dissera, apesar de não ter sido intencional, fê-la parecer estúpida na sua ironia, pois não percebera a sugestão à primeira.
— Não me parece que venha a ser aquilo que sonhava. — ripostou com uma mágoa mal disfarçada.
Se eu tivesse pensado ou planeado o que dizer a seguir, não teria dito:
— É por isso que estás tão triste, hoje?
Foi a primeira vez que olhou para mim. Virou a cabeça na minha direcção e encarou-me com uma mistura de surpresa e desagrado.
— Tu conheces-me de algum lado para saber quando estou triste ou contente?
Não sabia como responder, nem tivera tempo, pois a professora interveio:
— Ó Daniel, não te mandei para aí para agora estares à conversa com a menina Tânia.
A nossa parca troca de palavras era feita num tom baixo, mas a docente estava de vigia e a controlar-nos, daí o aviso.
Novamente, senti-me envergonhado e ruborizado perante o olhar crítico e jocoso dos meus colegas. Tentei abstrair-me disso e sugeri:
— Escreve então sobre o que te leva a crer que não irás concretizar os teus sonhos.
O seu olhar estava outra vez no ecrã.
— Não me parece que seja algo que me apeteça partilhar contigo ou com aquela cabra.
— Tudo bem. — concordei, vencido. — Escreve sobre o que quiseres. Eu estou aqui, se precisares que te explique alguma coisa.
Tânia começou a escrever. Iniciava uma frase, apagava, voltava a teclar, apagava, nova tentativa... Por fim, escreveu:
"Ontem ressebi uma carta"
— Recebi é com "c", não com dois "s". — corrigi, recebendo em troca um bufar irritado.
— Estás a ler o que estou a escrever? — questionou.
— Queres que me vire de costas?
Ela não respondeu, mas exigiu:
— Pelo menos, evita os comentários. Eu sei que se escreve com "c", só me enganei.
Encolhi os ombros e mantive-me em silêncio, a ver a sua escrita.
"Ontem recebi uma carta que me matou. Não me matou fisicamente, mas matou-me o sonho. Sempre sonhei ser..."
Parou de escrever. Durante alguns segundos, ficou estática a olhar para o ecrã. Por fim, apagou tudo novamente, dizendo:
— Não, não vou partilhar isto convosco.
Ficámos imóveis. Eu à espera do que ela iria fazer. Ela a tentar decidir-se a escrever algo.
De súbito, levei os dedos ao teclado.
"Não sei qual é o teu sonho, mas não acredito que uma só carta o possa ter morto."
Aguardei uma reacção agressiva, uma resposta brusca, o tom de desdém, a ironia...
Para minha surpresa, Tânia substituiu-me no teclado:
"Podes acreditar. Matou."
"Ninguém mata os sonhos de uma rapariga bonita.", escrevi.
Sem a conseguir encarar, percebi a sua hesitação. Eu seria incapaz de verbalizar o que acabara de escrever. A resposta foi ponderada e os seus belos dedos de unhas pintadas de rosa voltaram a fustigar as teclas:
"É fácil matar os sonhos de uma rapariga de dezassete anos que sonha ser modelo."
Não sabia o que haveria de argumentar. Queria ter a inspiração de escrever algo que a animasse e me fizesse ganhar pontos na sua consideração. Porém, não tive tempo. A atenção de Tânia desviou-se subitamente para a outra extremidade da sala, onde a nossa professora se encaminhava na nossa direcção. Num movimento relâmpago, Tânia pressionou violentamente a tecla "delete" e apagou tudo o que havíamos escrito.
Quando alcançou o nosso computador, a docente olhou com irritação para o ecrã que apresentava um documento de processador de texto completamente vazio.
— Já era de esperar... — suspirou, agastada.
Nesse instante, ecoou por toda a escola o toque de saída.
— Vocês os dois esperam! — ordenou. — Quero falar convosco.
Toda a turma abandonou a sala, observando-nos e conjecturando o que se sucederia a seguir. Quando todos saíram, Tânia antecipou-se:
— Ó stora, eu tentei escrever alguma coisa, mas não me saiu nada de jeito. — Apontou para mim. — Ele viu.
— Sim, é verdade. — concordei, qual cachorrinho a quem só faltou abanar a cauda.
— E era sobre o quê, aquilo que tentaste escrever?
Tânia hesitou, gaguejou...
— Acho que tu não tens noção do que está aqui em causa. — prosseguiu a mais velha. — Não tens noção que assim terás negativa no final do período e no final do ano. E se tiveres mais duas negativas, chumbas o ano. — O tom tornou-se algo escarninho. — E não me parece que essa seja uma possibilidade muito remota, pois não?
Tânia não respondeu. Tal como eu, era uma aluna mediana, safava-se bem a Português, Inglês, Francês e Filosofia, mas em História e Geografia as notas estavam abaixo da linha de satisfação. E essas duas com aquela iriam certamente retê-la no 11º ano, pois não estava a ver a professora de Informática a dar-lhe nota positiva se ela não demonstrasse mesmo que a merecia.
— Tânia! Se não queres comprometer de forma decisiva a tua nota nesta disciplina, espero que na próxima semana me tragas um texto escrito num processador de texto e mo entregues gravado numa disquete.
— Mas, stora, eu não tenho computador. — lamentou-se num tom suplicante.
— Eu tenho. Posso ajudar-te. — ofereci-me, pensando que isso me atribuiria um papel heróico. Errado!
Tânia atirou-me um olhar fulminante como um raio que, se pudesse, me teria feito em pó. Ela não queria ajuda, queria uma razão para não fazer o trabalho. E eu tirara-lhe o argumento chave.
— Estás a ver? O teu colega ajuda-te. — Olhou para mim. — E espero que ajudes mesmo. Estou muito desapontada contigo, Daniel. Mandei-te para ali para ajudares a tua colega e no final, ela é que te desencaminhou.
Obrigado, stora, o que eu precisava agora era de uma reprimenda na frente da miúda mais gira da escola. Ainda para mais, fazendo-me passar de menino da professora para cachorrinho da menina bonita.
— Podem ir!
Tânia levantou-se como se a cadeira tivesse uma mola, pegou na sua mochila e abandonou a sala. Entretanto, eu fui buscar o meu caderno e os livros das disciplinas dessa manhã e também saí.
Para minha surpresa, Tânia esperava-me no corredor.
— Obrigadinho, cromo! Eu a tentar arranjar uma desculpa para não fazer o trabalho e vens tu armado em salvador com essa proposta de usar a merda do teu computador.
A professora saiu da sala e fechou a porta. Passou por nós com os olhos em Tânia e despediu-se:
— Cá espero a tua disquete para a semana.
Quando a docente se afastou, Tânia encarou-me de uma forma menos agressiva.
— Estava a pensar... Tu podias fazer tudo e depois davas-me a disquete para entregar à professora. — Lançou-me um olhar de charme. — Ia ficar-te muito agradecida.
Tive vontade de perguntar como me iria ela agradecer. E quase o fiz, não fosse ela ter insistido:
— Vá lá, cromo.
— Não! — exclamei, debatendo-me comigo próprio. — Posso ajudar-te, mas não farei o trabalho por ti.
Ela soltou um esgar de fúria.
— Que propões então?
Eu sabia o que poderia propor, mas engasguei-me todo para o verbalizar. Não tinha coragem para o dizer, receando que ela me gozasse por sugerir semelhante ideia.
— Então, cromo? Como pretendes ajudar-me? — insistiu.
— Podemos combinar em minha casa. — respondi, sem respirar. — No fim de semana?
Tânia olhou-me como se lhe tivesse acabado de propor que ela entrasse num curral para ver o porco. O seu rosto contorceu-se com tal hipótese. Virou-me as costas e caminhou furiosa pelo corredor até desaparecer.
Hoje, quando penso naquela aula, naquela troca de frases no processador de texto, pergunto-me se não teríamos sido os precursores das mensagens de telemóvel ou das conversas online que se tornariam tão comuns, anos mais tarde.
Tânia não me dirigiu a palavra no resto da semana, ignorando-me por completo. De tal forma que o assunto foi arquivado na minha mente. Não sabia como iria ela resolver o problema, talvez encontrasse um amigo que a ajudasse ou conseguisse convencer algum ostracizado como eu a fazer o trabalho por ela. Fosse como fosse, não era problema meu.
Na Sexta, após a última aula do dia, que acontecia a meio da tarde, a minha caminhada pelo corredor foi travada por uma voz a chamar:
— Ó cromo!
Sofia gritara suficientemente alto para que todos ouvissem, provocando gargalhadas em muitos dos estudantes que se movimentavam por ali. Pensei em não parar, mas sabia que isso só serviria para que ela continuasse a gritar e a envergonhar-me.
Tiago passou por mim e no seu tom jocoso habitual disse:
— Vem aí o fim de semana, crominho. Dois dias para brincar com o computadorzinho.
Ignorei-o.
Entretanto, Sofia e Raquel pararam junto a mim.
— A Tânia quer falar contigo! Espera aqui por ela! — transmitiu a primeira, falando como se eu não passasse de um escravo de sua senhoria.
Não esperaram qualquer resposta da minha parte e foram embora.
Tânia foi a última a sair da sala. Atrasara-se propositadamente para evitar ao máximo que alguém testemunhasse o facto de ela falar comigo. Talvez não o falar comigo, mas sim o assunto em questão. Quando foi ao meu encontro, o corredor estava vazio. Olhou-me com enfado, demonstrando que aquilo seria a última coisa que lhe apetecia fazer.
— Pensaste na minha proposta? — questionou, deixando-me confuso.
— Que proposta?
— Bolas, és mesmo lerdo.
Ai, Daniel, quem me dera naquela altura saber o que sei hoje. Teria barafustado com ela por me falar naquele tom, dava-lhe um beijo na boca e ia embora dizendo "desemerda-te".
Porém, eu era tímido e estava apaixonado por uma rapariga que jamais poderia alcançar.
— Desculpa, mas não me recordo da proposta que falas.
Tânia suspirou de aborrecimento.
— Tu fazes o trabalho e depois entregas-me a disquete, lembras-te? E eu ficava-te eternamente agradecida.
Sorri com tristeza.
— O que significa isso de "eternamente agradecida"?
Foi a vez de ela parecer confusa.
— Como assim?
— De que me serve a tua eterna gratidão?
Ela não soube o que responder e alterou o rumo da conversa:
— Como é? Posso contar contigo?
— Já te tinha dito que não.
A irritação dela foi crescendo, de tal forma que cheguei a recear que me fosse dar um estalo. Deu um berro que ecoou pelo corredor vazio. Uma funcionária veio espreitar.
— Eh! Meninos! Não podem estar aí.
Não era permitido permanecer nos corredores.
Tânia ignorou-a.
— Aquela puta de Informática quer lixar-me a vida. — vociferou. — E tu não és capaz de me ajudar.
— Já te disse que te ajudava a fazer o trabalho. Mas não o farei por ti.
Ela virou-me as costas. Bateu com o pé no chão. Fiquei a contemplá-la, atormentado pelo desejo, dilacerado pela certeza que ela nunca seria minha. Tornou a voltar-se, quase apanhando-me a olhar para o seu rabo.
— Parece que não me livro de ter de ir a tua casa fazer o trabalho. Onde vives? — questionou com brusquidão.
Expliquei-lhe onde era a minha casa.
— Não fica longe da minha.
— Se quiseres, podemos combinar amanhã de manhã.
— Esquece! — exclamou, abanando a cabeça. — Vou sair com as minhas amigas esta noite. A manhã é para dormir. Passo lá depois do almoço.
Não perdeu tempo com mais uma sílaba que fosse.
Recordo-me que nessa noite quase não dormi, ansioso pela visita dela na tarde seguinte. Aquilo parecia um sonho que poderia facilmente tornar-se um pesadelo. Comecei a pensar no que ela acharia da minha casa, das minhas coisas, de eu viver com o meu tio velho, no que ela poderia pegar para fazer chacota no regresso à escola. Se calhar, aquilo fora uma péssima ideia.
O "depois do almoço" de Tânia foram as quatro da tarde, altura em que todo eu estremeci ao ouvir a campainha da porta. Na rua, o Sol brilhava intensamente, enganando a sensação fria da temperatura. Saí do quarto, onde estivera a preparar o computador e caminhei para a porta como um condenado. Carreguei no botão para abrir a porta do prédio e abri a de casa. Ouvi os passos nas escadas, o som da borracha das sapatilhas a chiar no mármore.
Há coisas que nunca esquecemos. A imagem de Tânia naquela tarde perduraria para sempre na minha memória. Vestia calças de ganga e uma camisola de lã grossa escura, por baixo do blusão de cabedal. O cabelo louro vinha preso num rabo-de-cavalo na nuca e, ao contrário do que acontecia na escola, não se maquilhara. Vinha a mascar pastilha elástica.
— Olá! — cumprimentou num tom neutro.
— Ol... Olá! — retribuí, nervoso.
Ela entrou no exacto momento em que o meu tio saiu da sala. Ele sorriu e dirigiu-se-lhe:
— Olá! Deves ser a amiga do meu sobrinho. — Olhou para mim. — Não me tinhas dito que a tua amiga era tão bonita.
Obrigado, tio, se já estava acanhado, depois disso queria um buraco onde me enterrar.
Curiosamente, Tânia sorriu.
— Eu sou o tio do Daniel. — apresentou-se. — Fica à vontade. — E afastou-se para a cozinha.
Conduzi Tânia até ao meu quarto, pedindo a todos os santinhos que ela não visse nada que me pudesse envergonhar. Apontei-lhe a cadeira, em frente ao aparelho.
— Já liguei o computador. — expliquei sem necessidade.
Tânia olhava em redor, escrutinando tudo o que nos envolvia. Despiu o casaco e colocou-o nas costas da cadeira.
— O teu tio vive cá em casa? — questionou, sentando-se.
— A casa é dele. — respondi automaticamente.
— E os teus pais?
Respirei fundo, não queria tocar naquele assunto. Fingi não ter ouvido e sentei-me na cama. Ela voltou-se e esperou uma resposta.
— A minha mãe morreu quando eu tinha meses. Nunca conheci o meu pai.
Partilhei a informação quase sem respirar. Passados dezassete anos, ainda era doloroso falar daquilo.
Tânia observou-me com um semblante diferente.
Não, pensei, por amor de Deus não tenhas pena de mim.
— Foi o teu tio que te criou?
— Com a minha tia. — adicionei.
— Então vives com os teus tios?!
Anuí, rectificando:
— Com o meu tio. A minha tia faleceu há três anos.
— Lamento! — disse intensificando o semblante.
Fod... Está mesmo com pena de mim.
Sem perder tempo, voltou-se para o ecrã. Eu tinha deixado o processador de texto aberto com um documento novo, por isso, ela poderia começar quando quisesse.
— O teu tio é simpático. — elogiou, possivelmente com a intenção de apaziguar o assunto.
Murmurei uma concordância entre dentes.
— Já pensaste o que vais escrever? — perguntei para as costas dela.
— Talvez algo sobre moda.
— Não será então sobre os sonhos.
Ela não se manifestou e começou a escrever.
Percebi que era mais fácil falar para as costas dela que encarar-lhe o olhar, quase tão fácil como escrever no computador, como fizéramos na aula.
— Lamento que tenham ferido o teu sonho. — continuei. — Posso saber o que aconteceu?
— Não tens nada com isso. — foi a resposta pronta.
— Sim, tens razão. Não tenho nada com isso. Mas, pelo que pude perceber, se o teu sonho é ser modelo, deves ter recebido uma carta de alguma agência a recusar-te.
Ela voltou-se abruptamente.
— Sim, foi isso. Estás contente? Agora já podes ir para a escola espalhar a notícia. Juntas uns tantos cromos como tu e fazem piadas acerca disso.
Olhei para ela, sério.
— Lamento que me vejas assim ou que me imagines capaz de fazer isso.
Tânia percebeu que estava a ser injusta, mas longe de se achar na necessidade de pedir desculpa. Voltou-se e regressou à escrita.
— Pensa que te feriram o sonho, não o mataram.
— Sim, sim... — murmurou na esperança que me calasse.
— Todos nós temos os nossos sonhos, não podemos desistir deles na primeira contrariedade. — Dei por mim a falar como se imaginasse o diálogo com ela, como tantas vezes fizera na solidão daquele mesmo quarto. — Eu também tenho os meus sonhos e continuo a acreditar que se irão realizar. Afinal, se não acreditarmos neles, quem acreditará?
— E que sonhos são esses? — interrogou, mantendo a atenção na escrita.
— Sei lá... — respondi. Depois, vá lá saber porquê, enchi-me de coragem. — Conseguir roubar um beijo à rapariga mais bonita da escola.
Ela parou de escrever e encarou-me, sorrindo como se tivesse ouvido um enorme absurdo e atirou:
— In your dreams. Jamais, cromo.
E virou-me as costas.
Que esperava eu? Que por a estar a ajudar, isso a faria interessar-se por mim? Contudo, não sei o que me deu na cabeça e prossegui:
— Na verdade, não queria roubar-lhe um beijo. O meu sonho era que gostasse de mim.
— In your dreams. — Desta vez nem se deu ao trabalho de se voltar.
— Achas que estou a falar de ti?
— Claro que estás.
— Tens-te em muito boa conta para quem se deixa abater tão facilmente nos sonhos que tem.
Como raio é que aquela frase me saiu da boca? Jamais em tempo algum eu teria coragem de verbalizar-lhe algo semelhante. Porém, como referi, era fácil falar-lhe para as costas e estava no meu ambiente, no lugar onde tantas vezes a imaginara comigo.
A Tânia a que eu estava habituado, a Tânia da escola, desancar-me-ia pela afronta daquelas palavras. Porém, para minha surpresa, ela prosseguiu o bater no teclado.
— Sim... Talvez tenhas razão.
Fiquei em silêncio. No quarto só se ouvia o som dos seus dedos a bater nas teclas. O meu tio passou no corredor e parou junto à porta aberta.
— Querem lanchar alguma coisa?
Abanei a cabeça.
— Não, obrigado. — recusou ela com o sorriso que nunca partilhava comigo.
Passados alguns minutos, parou de escrever. Levantou-se da cadeira e olhou-me com frieza.
— Acabei. Podes gravar numa disquete?
Não me mexi, encarando-lhe o olhar frio e desdenhoso.
— Quantas agências de modelos existem? — perguntei com naturalidade.
— Muitas. — respondeu ela, impaciente.
— Quantas te recusaram?
Tânia pareceu não perceber a questão, mas acabou por dizer:
— Uma.
Sorri.
— Percebes agora porque digo que não te mataram o sonho?
Atenção, registem o momento, gravem-no nos livros de História, os relógios marcavam dezoito horas e quarenta e um minutos de um sábado de Inverno. Tânia sorriu-me pela primeira vez.
Voltando a cadeira para mim, Tânia tornou a sentar-se. Ajeitou o cabelo, esticando o rabo-de-cavalo..
— Nem sei bem porque escrevi para a agência... Bom, sei, queria ser modelo, óbvio. Mas, não tinha planeado fazê-lo agora, nem tinha ideia de quando o faria ou até se o faria. A oportunidade surgiu porque a Raquel viu um anúncio numa revista... Procuravam candidatas a modelo. As interessadas deveriam enviar uma carta de apresentação e meia dúzia de fotos. Tanto ela como a Sofia não me largavam: "És a rapariga mais bonita da escola", diziam, "Mal te vejam, vão escolher-te". Deixei-me levar... Escrevi uma ridícula apresentação numa folha do caderno de português e arranjei umas fotos que tinha das férias. — Fez uma pausa, abanando a cabeça. — No início da semana, recebi uma carta deles, a agradecer a candidatura, mas que não reunia os atributos que eles procuravam. — Sorriu um sorriso vencido e encolheu os ombros.
— Tenta novamente. — sugeri. — Tenta noutras agências. Podemos fazer a tua carta de apresentação no computador.
Tânia não pareceu muito entusiasmada.
— Não tenho mais fotos e aquelas que mandei também não eram nada de especial.
— Eu tenho máquina fotográfica, posso fazer-te as fotos.
Ela ponderou a questão.
— Não tens nada a perder. — insisti.
Olhando para o relógio, decidiu:
— Posso aproveitar o teu computador e fazer a carta de apresentação. Depois, logo se vê.
Trocámos de lugar. Arranjei-lhe uma disquete e guardei o ficheiro que ela deveria entregar à professora. A seguir, como tinha mais prática, fiquei aos comandos do computador e, juntos, escrevemos a carta de apresentação com a informação que as agências pediam e que ela decorara.
Mal terminámos, o meu tio surgiu à porta do quarto.
— Queres jantar cá connosco? — convidou.
— Obrigado. — agradeceu com uma simpatia que não lhe conhecia. — Mas os meus pais estão à minha espera para jantar.
— Vives longe? — indagou ele.
— Duas ruas abaixo.
O meu tio olhou para mim.
— Vais acompanhar a tua amiga a casa? Já é noite.
— Não é necessário — recusou ela, sempre sorridente com o meu tio. Fiquei com a clara noção que simpatizara com ele.
— Daniel, sê cavalheiro. — ordenou-me.
— Sim, claro. — concordei, procurando o meu casaco roçado.
Nesse momento, apercebi-me da carta terminada no computador.
— Eu guardo a apresentação, vou ver se te imprimo alguma cópias.
Ela anuiu.
Fizemos o trajecto pela rua deserta em silêncio. Parecia que todos os assuntos se haviam esgotado entre nós. Não sei se lhe agradara que a tivesse acompanhado ou se aceitara só para não ser inconveniente com o meu tio. Não tinha ilusões, sabia que ela não gostava de ser vista comigo. E apesar de pouco provável, poderíamos cruzar-nos com alguém da escola.
Tânia vivia numa rua de prédios baixos, não mais que três pisos. A zona era conhecida pelas casas ricas e por lá viverem pessoas de estrato social mais elevado que o meu. Soube mais tarde que a mãe dela era advogada e o pai piloto da TAP.
Quando alcançámos a porta do seu prédio, senti que infelizmente o meu momento com ela terminara.
— Chegámos. — disse ela. — Obrigado pela ajuda com o trabalho.
— Ainda bem que pude ajudar. — retorqui. — Depois entrego-te as impressões para enviares para as agências.
Ela assentiu descrente. Depois, pareceu lembrar-se de algo e pediu-me para esperar um pouco. Vi-a entrar no prédio e desaparecer na subida dos degraus. Só esperava que não fosse uma partida parva para me deixar ali especado até ter percebido que ela não voltaria.
Voltou e trazia na mão um envelope. A noite já caíra por completo, mas o candeeiro de rua defronte do prédio tinha luz suficiente para ver o que ela me queria mostrar. Trazia a folha manuscrita que enviara e as fotos que a mostravam.
— Foi isto que enviei.
Observei tudo com atenção.
— Não fiques chateada comigo, mas vou ser sincero.
— Diz.
— Estas fotos nunca te levarão a lugar nenhum. — opinei, aguardando a sua fúria. Ela permaneceu atenta. — As agências esperam receber fotos de alguém que demonstre interesse pela moda. Nestas fotos, és apenas uma miúda a divertir-se na férias.
Seria desta que iria levar um estalo?
— Talvez tenhas razão. — concordou. — Sim, pareço tudo menos alguém que pretende entrar no mundo da moda.
— Se quiseres, eu faço-te as fotos. — ofereci.
— Não achas melhor ir a um fotógrafo profissional? — interrogou, desdenhosa.
— Custa dinheiro. — lembrei.
— E então? Se queres bem feito...
— Como queiras. — cedi. — Mas, se eu as fizer e ficarem bem, poupas esse dinheiro. — Ela ponderou a hipótese. — Não precisa de ser nada do outro mundo. Podemos ir ao jardim, fazes umas poses como as que vês nas revistas de moda e pronto.
— Quando é que o poderíamos fazer?
— Não sei... Amanhã à tarde?
— Sim. Podemos encontrar-nos no jardim lá em baixo?
Assenti, entregando-lhe o envelope com a folha e as fotos.
— Está combinado. Até amanhã.
E com aquelas palavras afastou-se e desapareceu no interior do prédio sem olhar para trás.
Nunca rezei tanto na vida para que não chovesse naquele Domingo. Só que, quando me apercebi que iria estar uma tarde radiante e solarenga, atemorizei-me com a falta de confiança em mim para fazer as fotos.
O meu tio dera-me a máquina fotográfica porque nunca se interessara por aquilo. Inicialmente, quando o amigo lha oferecera, ele tentara vendê-la, uma vez que o dinheiro que ela rendesse seria certamente mais útil que o aparelho. Contudo, as lojas não se interessavam por material em segunda mão e ainda não existia Internet para publicar anúncios a vender coisas. Sim, havia os classificados dos jornais, mas custavam dinheiro. Sendo assim, a máquina acabou por ficar esquecida até se tornar num presente para mim.
Eu sempre tivera interesse por fotografia, mas só na adolescência é que esse interesse se intensificou. Enquanto os outros miúdos pediam dinheiro para banda desenhada, eu pedia revistas sobre o tema. E não eram baratas, daí que não tivesse muitas. Procurei apurar a minha técnica com o que ia lendo e com o que o senhor da loja de fotografia me explicava. Mesmo assim, cheguei a ter rolos fotográficos completos a seguir directos ao caixote do lixo. Pois, naquele tempo, não existiam máquinas digitais com pré-visualização de fotos e cartões de memória... A malta que nasceu no século XXI não faz ideia do que era viver nos idos tempos de mil novecentos e qualquer coisa.
Seria capaz de fazer fotos decentes? Estaria tão nervoso que nem o automático da máquina me safaria? Tremeria de tal forma que as fotos sairiam todas desfocadas?
Saí de casa carregado de incertezas e nervoso como nunca estivera. A juntar ao facto de raramente passear pela rua, só mesmo para ir à loja de fotografia, sabia que estava a caminho de me encontrar com a rapariga que me tirava o sono ou entrava nele. Sabia que se tudo corresse bem, talvez existisse a mínima possibilidade de Tânia me ver com outros olhos. Mas se corresse mal... Bom, não se adivinhariam dias muito alegres.
O jardim ficava a cerca de vinte minutos da minha casa, indo a pé. Não era muito grande, cercado por cedros baixos e árvores altas onde os pássaros se acomodavam a chilrear. Como não tinha flash para a máquina, as fotos teriam de ser feitas aproveitando o máximo da claridade da tarde, evitando as sombras das árvores.
Não tínhamos combinado um local específico no jardim. Optei por ficar sentado num dos bancos e aguardar que ela aparecesse. Também não tínhamos combinado a hora... Dei por mim a concluir que era péssimo a marcar encontros.
Tânia apareceu dez minutos depois. Reconheci-a logo que atravessou a rua e se dirigiu à entrada que cortava o cedros. Acenei-lhe, mas ela ignorou-me, já me tinha visto e não precisava de fazer alarido disso.
Enquanto se aproximava na minha direcção, contemplei-a. Caminhava com uma elegância natural, como se desfilasse. O cabelo solto esvoaçava ao sabor da brisa, o rosto parcialmente escondido pelos óculos escuros. Vestia o casaco de cabedal sobre uma camisola de malha bege que lhe acentuava o peito, a saia era curta e preta, as pernas protegidas por meias de lã que surgiam por baixo da saia e desapareciam dentro das botas de cano alto.
Podem imaginar como eu me sentia um maltrapilho a seu lado, envergando as gangas largas e roçadas, a camisola de lã que em tempos fora do meu tio...
— Olá! — cumprimentou num tom distante.
— Olá!
Tânia olhou à volta, não sei se para escolher um cenário ou preocupada que algum conhecido a visse comigo.
— Então, onde vai ser?
Apontei para a clareira do jardim, onde o Sol incidia com intensidade. Ela não esperou por mim e passeou pela relva até lá. Eu segui-a.
— Está bem aqui?
Assenti.
Ela despiu o casaco e pousou-o no chão. Como o vento teimava em despenteá-la, retirou um elástico do bolso e prendeu o cabelo num rabo-de-cavalo. Retirou os óculos, inquirindo:
— Alguma sugestão?
Encolhi os ombros, obtendo dela um abanar de cabeça desapontada. Acabei por sugerir que ela fizesse poses semelhantes às modelos que víamos na televisão. Ela teria certamente melhor conhecimento disso que eu.
Confesso que a cena era estranha, uma rapariga lindíssima, elegante, resplandecente, a ser fotografada por um puto deselegante, mal vestido e desajeitado. Mesmo assim, concentrei-me na minha tarefa. Nas trinta e seis fotos do rolo, fotografei-a em posturas de corpo inteiro, da cintura para cima, de perfil e de rosto. Todos os sorrisos dela eram planeados, projectados para a lente. Contudo, houve um momento raro, um momento em que uma criança a correr e a fintar a avó lhe provocou um riso natural, um semblante de pura ternura e felicidade. E eu registei-o.
— Pronto. Acabou o rolo. — informei, puxando a pequena alavanca da máquina, a qual puxava o negativo para o registo seguinte, de forma a não fotografar sobre a foto anterior. Esta prendera, indicando que o rolo chegara ao fim.
Tânia perdeu todos os sorrisos, pois já não eram necessários. Verdade seja dita, ela parecia ter nascido para aquilo, tinha uma óptima relação com a lente o que a tornava bastante fotogénica. Claro que, na altura, isso passou-me ao lado. Seria a experiência dos anos vindouros que me fariam ter essa noção.
Pegou no casaco e vestiu-o. O Sol começava a desaparecer atrás dos prédios. Desprendeu o cabelo e colocou os óculos na cabeça, segurando-o como se fosse uma bandolete.
— E agora? — questionou.
— Vou mandar revelar o rolo.
— Quando achas que estará pronto?
— Se for lá agora, talvez amanhã. — ponderei, esperançado que ela se oferecesse para me acompanhar.
Tânia assentiu:
— Então vai lá.
Despediu-se com um virar de costas sem palavras. Só que dois passos a seguir parou. Regressou ao pé de mim.
— Não quero que contes isto a ninguém! — exigiu. — Não te atrevas a dizer a alguém na escola que andaste a tirar-me fotos.
— Podes ficar descansada. — concordei, evitando encontrar-lhe o olhar e vendo-a depois afastar-se indiferente à minha existência.
Qual cachorrinho bem mandado, eu lá segui o meu trajecto até ao centro comercial. Dei por mim a questionar-me para que estava a ter todo aquele trabalho por alguém que me tratava daquela forma. Sim, pensei que a tarde anterior a tivesse feito ver-me com outros olhos, mas estava errado, ela só me dirigia a palavra para seu interesse. Só que, quando somos adolescentes e não temos confiança em nós, quando nos sentimos uma merda e temos vergonha de existir, qualquer migalha que uma deusa como ela nos atire é ouro.
A loja de fotografia ficava a poucos metros da entrada do centro comercial. Lá dentro, o espaço era o sonho dos amantes de fotografia como eu, eram as máquinas expostas, os acessórios, as fotos de mulheres bonitas e homens atraentes usadas para mostruário de molduras... Aquele era o meu mundo.
O senhor que eu conhecia não estava de serviço. Foi um rapaz, uns cinco anos mais velho que eu, que me atendeu. Entreguei-lhe o rolo para revelar. Informou-me que poderia levantar na tarde seguinte.
— Não devias andar a passear isso por aí. — alertou, apontando para a máquina. — Ainda te assaltam.
— Eu tenho cuidado.
Já fora assaltado, quando tinha doze anos, vindo da escola. Na altura só me roubaram as poucas moedas que tinha. Perder aquela máquina, seria perder o coração ou os pulmões.
Não se preocupem, regressei a casa, são e salvo.
No dia seguinte, foi o regresso à escola, a primeira vez que me cruzaria com Tânia desde que estivera em minha casa e que nos encontrámos no jardim. Para alguém solitário como eu, aquilo poderia ser já o início de uma amizade. Tentei não alimentar muitas ilusões para não me decepcionar. Não esperava uma recepção calorosa no reencontro, mas no mínimo um cumprimento, um "olá".
Avancei pelo corredor, já toda a turma esperava que o professor de Filosofia chegasse para abrir a porta da sala. Tânia estava encostada à parede, rodeada pelas amigas. Os nossos olhares encontraram-se. Sorri-lhe. Ela ignorou-me. Não foi preciso mais para perceber que nada mudara.
O dia decorreu como costume, o calvário habitual, o entrar em cada aula a contar os minutos para sair, aguardar nos intervalos contando os segundos para regressar à sala, contabilizar as disciplinas até o dia chegar ao fim e ir para casa, marcando menos um dia no calendário para a chegada das férias.
No entanto, aquele dia não terminaria de forma tão simples.
Acho que, de alguma forma, a ida de Tânia a minha casa chegara aos ouvidos de Tiago. Ele era popular, o menino querido das meninas, gostava de se armar em bom e teria com toda a certeza interesse em namorar com ela. Tânia ria-se com as palhaçadas dele, com a forma como gozava com os colegas... Mas, nunca lhe dera qualquer hipótese de ser sequer seu amigo. Por isso, sem querer, eu alcançara algo que ele nunca experienciara, ter a bela Tânia em sua casa.
O seu único neurónio, que por sinal deveria ser coxo e vesgo, achou por bem que me deveria humilhar diante dela. Assim, num dos intervalos, enquanto eu caminhava automaticamente pelo corredor, Tiago veio por trás de mim e pregou-me uma rasteira que me fez cair desamparado no chão.
— Ó cromo, és mesmo desastrado. — berrou ele para gáudio dos comparsas. Olhou para os meus livros e caderno no chão. — Tudo espalhado. E pontapeou-os para longe.
Nestas alturas, vemos o nível de solidariedade estudantil. Todos os alunos que ali circulavam, passaram por mim a rir ou a borrifar-se para o que acontecera. Tânia assistira a tudo e também passou por mim indiferente, limitando-se a abanar a cabeça, como se quem tivesse agido errado tivesse sido eu.
O corredor ficou vazio, altura em que consegui apanhar tudo sem ter que me desviar de pernas. Levantei-me do chão com uma dor nos joelhos, resultante da queda. Foi nesse instante que ouvi passos aproximarem-se e vi Tânia a regressar sozinha.
Talvez me tivesse enganado, talvez ela se preocupasse comigo.
Num tom arrogante, inquiriu:
— As fotos sempre ficam prontas hoje?
— Sim. — confirmei sem coragem para a encarar.
— Vais buscá-las?
— Sim, depois das aulas.
— Também quero ir!
Estranhei a decisão.
— Podemos ir juntos.
— Não! — recusou peremptoriamente. — Encontramo-nos lá. É no centro comercial, não é?
— Sim...
Não perdeu mais tempo e deixou-me sozinho.
Foi uma cena absurda. Aliás, quando me recordo, pergunto-me como me deixava sujeitar a isto. O centro comercial ficava a menos de vinte minutos da escola, a pé. Seria perfeitamente natural que fossemos juntos, se íamos para o mesmo sítio. Porém, ela não quis. Caímos no ridículo de ir na rua a escassos dez ou quinze metros um do outro como se fossemos dois estranhos. Pelo menos, as amigas não iam com ela para olharem para trás e gozarem-me. Acabei por me deixar ficar para trás, não fosse alguém da escola nos ver e pensar que eu a estava a seguir.
Tânia aguardou-me na porta do centro comercial, semblante irritado de quem não gostava que a fizessem esperar. Problema dela, poderíamos ter vindo juntos. Não disse nada e retomou a passada assim que me aproximei.
Entrámos na loja. Desta vez, o meu conhecido estava ao balcão.
— Olá Daniel!
— Olá! — retribuí com a timidez do costume. — Vinha levantar as fotos que deixei para revelar ontem.
O homem olhou para Tânia e cumprimentou-a da mesma forma. Ela retribuiu com a distância habitual. A seguir, procurou no molho de pacotes de fotos reveladas e encontrou a que procurava.
— Aqui tens.
Recebi o pacote e agradeci. Mal tive tempo para o sentir na minha mão, pois Tânia pegou no grosso envelope e abriu-o. Notei a surpresa no seu rosto. Estariam assim tão mal?
Afastámo-nos para um canto da loja, um espaço com uma pequena bancada onde os clientes analisavam os trabalhos. Ela foi passando foto a foto, cada vez mais encantada.
— Afinal não és assim tão burrinho. — elogiou à sua maneira.
— A modelo também ajuda.
Ela atirou-me um olhar desdenhoso.
— Tiraste umas boas fotos, cromo.
Já sabem como odiava que me chamassem "cromo" e ela também o sabia. Porém, parecia gostar de me amesquinhar.
— Podemos fazer cópias? — questionou. — Arranjei as moradas de algumas agências. Ajuda-me a escolher seis.
Eu ia para tentar opinar na escolha, mas quando abri a boca ela já separara cinco. Nem me dei ao trabalho.
— Talvez devesses fazer as cópias em tamanho maior. — sugeri. — Dava um ar mais... sei lá... profissional?
Tânia ponderou a questão e concordou.
— Como é que fazemos, agora, cromo?
Olhei-a nos olhos.
— Primeiro, começamos por parares de me chamar "cromo".
Ela sentiu o meu desagrado e nem reagiu quando lhe tirei o envelope para retirar os negativos. Depois, peguei nas fotos que ela escolhera e levei tudo até ao balcão.
— Queria fazer ampliações destas fotos. — pedi, entregando os negativos.
— Tamanho?
— Talvez vinte centímetros por trinta centímetros.
— Quanto custa o conjunto? — interrogou Tânia atrás de mim. O homem disse-lhe a quantidade de escudos que teria de pagar. — Tudo bem, quero cinco conjuntos.
Eu não teria dinheiro para pagar a conta, mas ela retirou da carteira notas de quinhentos escudos suficientes para pagar e receber troco.
— Quando estão prontas? — perguntou ao entregar o dinheiro.
— No final da semana.
— Tudo bem. — Olhou para mim. — Depois passo cá para as vir buscar.
A mensagem foi clara, trataria do resto a partir dali e não precisava mais de mim.
Ao sair da loja, Tânia parou defronte da montra ao lado. Pensei em ignorar isso e seguir para casa com o mesmo desprezo. Só que o meu coração não deixou. Ela apontou-me o envelope com as fotos.
— Escolhe três. Escolhe as três que mais gostas.
Fiquei confuso. Para quê? Mesmo assim, peguei no envelope e folheei as fotos. Escolhi uma dela de corpo inteiro, outra só de rosto e aquela que eu mais gostava, a do sorriso natural, o sorriso de ternura.
— São para ti, pelo teu trabalho. — explicou, voltando a segurar o pacote com as outras trinta e três.
— Obrigado.
— E não te esqueças. Não quero que fales disto a ninguém. — voltou a lembrar. Assenti. — Xau!
Os dias passaram-se com a normalidade habitual. Curiosamente, choveu em todos.
A minha figura desaparecera completamente da realidade que envolvia Tânia. Era como se a última semana tivesse sido apagada da memória colectiva e a aula de Informática em que estivéramos juntos, a tarde em minha casa, a sessão de fotografia no jardim e a escolha de fotos na loja nunca tivessem acontecido.
Nessa Sexta, durante a manhã, iria haver um evento na escola e não haveria aulas. Claro que o evento não me interessou para nada, já chegava ter de ir à escola quando era obrigado. Iria ficar em casa, aproveitar para ler a revista de fotografia que comprara e olhar para as fotos que me haviam sido oferecidas.
Contudo, a meio da manhã, o telefone tocou. O meu tio foi atender, pois era raro eu fazê-lo, só mesmo se estivesse sozinho e mesmo assim, muitas vezes ignorava o aparelho. Ouvi-o confirmar algo e depois chamar-me.
— Que foi, tio?
— É a tua amiga. — informou, indicando o telefone.
Quem? Amiga? Eu não tinha amigos. Seria alguma brincadeira?
Peguei no auscultador.
— Sim?
— Olá! É a Tânia.
Deveria estar a sonhar. A Tânia a ligar-me? Eu nem nunca lhe dera o meu número. Aliás, como o conseguira ela?
— Diz.
— Tens as impressões da carta que escrevemos para as agências?
— Sim. — menti. Nunca mais me lembrara disso.
— Fui buscar as fotos e quero mandar para as agências, mas preciso das cartas. — continuou. — Podes vir trazer-mas?
— Onde?
— No jardim onde me fotografaste?
— Está bem.
— Combinado. Preciso de cinco cópias. Encontramo-nos daqui a vinte minutos.
E desligou.
Corri para o computador. Felizmente, tinha impressora em casa, um arcaico aparelho de imprimir que fazia um barulho horrível e demorava imenso a executar a função.
— Está tudo bem? — perguntou o meu tio, vendo-me em tanta agitação.
— Sim, sim. Preciso só de imprimir uma cena. E depois tenho de sair.
— Vais ter com a tua amiga? — questionou com um sorriso cúmplice.
Respondi que sim, mas mal se ouviu com as estridentes agulhas a riscar o papel.
Saí de casa atrasado, levando as folhas dentro de uma pasta. Corri pelo passeio, aventurei-me a atravessar ruas fora das passadeiras, quase que choquei com algumas pessoas. Perto do jardim, travei. Recuperei a respiração e prossegui numa passada normal. Entrei no jardim.
Tânia aguardava sentada num dos bancos, perto do lugar que servira de cenário às suas fotos.
— Cá estou.
Ela olhou-me com um semblante de desagrado.
— Estás todo transpirado.
Notei-lhe o nojo no olhar. Talvez por isso, sentei-me na ponta oposta do banco. Entreguei-lhe a pasta.
— Aqui tens.
Tânia abriu a pasta e pegou nas folhas impressas. O "obrigado" ficou esquecido algures. Indiferente à minha presença, começou a distribuir fotos e carta por cada envelope A4 que preenchera previamente com as moradas das agências de modelos. Por fim, ofereceu-me inconscientemente a visão sensual da sua língua a lamber as badanas dos envelopes para os fechar. Nunca tive tanta inveja de um pedaço de papel.
— Agora, vou aos correios.
— Posso ir contigo? — pedi num impulso. Mal terminei a frase, calculei que receberia uma recusa.
— Se quiseres... — concordou com desinteresse.
Claro que queria. Apaixonado como estava, qualquer segundo na presença dela era água no deserto.
A estação dos CTT ficava a um quarteirão dali. Chegámos lá depressa, mas deparámo-nos com uma longa fila de pessoas. Era fim do mês e havia muitas pessoas de idade avançada para levantar a reforma. Por mim, podíamos ficar ali o resto da eternidade, numa fila, lado a lado.
Tânia não dizia nada, mas de tempos a tempos bufava impaciente. Com o passar dos minutos, reparei que olhava constantemente para os envelopes. Quando só cinco pessoas nos separavam do balcão, surpreendeu-me:
— Talvez isto não seja boa ideia. O melhor é estar quieta.
Fiquei sem reacção. Queria convencê-la a não desistir, só que não me vinha à cabeça qualquer argumento decente. Acabei por dizer:
— Tiveste tanto trabalho.
Ela encolheu os ombros. Estava mesmo prestes a largar a fila e a abandonar o sonho. Então, sacrifiquei-me:
— Sujeitaste-te à minha companhia, a pousar para um cromo chato, a ter de falar comigo na escola, o gajo mais... mais blhac... Para agora desistires de tudo?
— Sim. — concordou com a atenção na fila. — Seria um desperdício perante tanto sacrifício.
Por momentos, acreditei que ela estava a ser irónica: "Oh foi um grande sacrifício". Porém, percebi que falava a sério, tinha sido de facto um sacrifício interagir comigo. Isso não me magoou. Ou não me deixou mais magoado que aquilo que eu já estava.
Não demorámos muito mais a fazer os cinco envelopes seguirem o seu destino. Saímos do local em passo apressado. Na rua, Tânia largou um "xau" distante.
— Tânia! — chamei. Ela parou e olhou para mim impaciente. — Quero que saibas que vou estar a torcer por ti. Espero sinceramente que, pelo menos, uma das agências se interesse por ti. E que isto tenha sido o primeiro passo para a concretização do teu sonho.
O seu olhar curioso aterrou em mim. Deu dois passos na minha direcção. Parecia descrente.
— Não acredito que aconteça. Mas, agradeço-te as tuas palavras. — Fez uma pausa. — E também agradeço a tua ajuda. — Depois alterou o tom para uma mistura de humor e prepotência. — Olha! Se isto resultar, talvez te ajude a concretizar o teu sonho, talvez te deixe roubares-me um beijo.
Não correspondi ao tom. Ao invés, fiquei sério.
— Esse nunca foi o meu sonho. O meu sonho era que gostasses de mim.
Tânia olhou para o céu e sorriu com escárnio.
— In your dreams, boy.
— Eu sei... girl. Mas, já fico satisfeito por sermos amigos.
Olhou-me com desdém.
— Pois... Xau!
Não duvido que a espera por uma resposta a deixasse ansiosa, mesmo que não o deixasse transparecer na escola. Se alguém, para além de mim, saberia das candidaturas seriam as suas amigas, só que também elas evitavam comentar o assunto na presença dos colegas.
Na minha ingenuidade, pensei que ela partilhasse comigo qualquer novidade acerca desse assunto, fosse por receber alguma recusa ou o interesse de alguma agência. Contudo, os dias passaram-se e nada.
Claro que o dia a dia na escola não se modificara muito, continuava a ser ignorado por ela e alvejado pelos mesmos inúteis do costume que viam na minha humilhação um passatempo divertido. Hoje, quando recordo esses tempos, questiono-me no porquê de deixar que aquelas supostas brincadeiras de mau gosto me afectassem tanto, acabando por concluir que era a vergonha que me feria com mais intensidade, ser amesquinhado perante o olhar dos outros.
Eu queria saber notícias, mas não tinha coragem de me aproximar dela e perguntar. A curiosidade nunca foi superior ao receio de ser enxotado, ser ridicularizado por ela. No entanto, quis o destino e a vontade da professora de Informática que tornássemos a ficar juntos na aula. Tânia não escondeu o desconforto e o incómodo por me ter ao lado, fazendo um esgar de agonia para as amigas, numa mistura de gozo e desprezo.
Mesmo assim, aproveitei a oportunidade.
— Tiveste alguma notícia?
— Sobre? — questionou, fingindo olhar para o ecrã.
— As agências...
— Não. — atalhou agressiva. — Não houve respostas, nem me parece que venha a haver.
— Lamento. — retorqui, procurando dizer algo que a animasse.
— Sim, bem podes lamentar. — insistiu com altivez. — Se não tivesse ido atrás das tuas tretas, evitava um desgosto.
Surpreendi-me por ela me responsabilizar pelo sucedido, afinal eu não fizera mais que tentar ajudá-la a alcançar os seus desejos.
— Até custa a acreditar... — suspirei, recusando-me a aceitar que ninguém visse o potencial da beleza dela no mundo da moda.
— Estás a chamar-me mentirosa? — interrogou num tom mais alto.
Ao ouvir, a professora interveio:
— Que se passa?
— O Daniel está a chatear-me. — disse ela, irritada.
— Ai o menino... — intrometeu-se Tiago, gozando com a cena.
— Daniel, o que é que se passa? — inquiriu-me a professora.
Eu fiquei sem saber o que responder.
— Stora, posso ficar sozinha? — pediu.
Sem perceber muito bem o que se estava a passar, a docente concedeu e eu fui recambiado para o computador do Alfredo e da Sofia.
Parvo como era, dei por mim a desculpá-la, justificando a sua atitude com a tristeza por não ver as suas capacidades reconhecidas por uma qualquer agência de modelos.
Nessa tarde, depois das aulas, decidi ir ao centro comercial, à loja de fotografia. Levava comigo a foto de Tânia com o sorriso natural com laivos de ternura, uma imagem raríssima nela. Queria ampliar a foto e pendurá-la na parede do meu quarto. Tomara a decisão de o fazer, quando estava no quarto a ouvir No One Can dos Marillion, uma música que na altura ouvia várias vezes na rádio e em que me imaginava a cantar para ela. Porém, como não tinha os negativos, não sabia se seria possível fazê-lo.
O senhor da loja ponderou a hipótese, olhando para a foto. Antes de dizer outra coisa, elogiou o meu trabalho de fotógrafo.
— A tua amiga deve estar-te bastante agradecida. — Foi a minha vez de encolher os ombros. — Graças às tuas fotos, ainda vai ser uma super modelo.
— Não me parece... — discordei, recordando a ausência de respostas.
— Olha que eu acho que vai. — insistiu. E, a seguir, iniciou o relato que me deixou boquiaberto. — Ainda ontem cá veio com as amigas. Vinha toda entusiasmada. Ouvi-a comentar com as outras que duas agências lhe haviam respondido às fotos que enviara e estavam interessadas. Queriam mais fotos e ela veio fazer ampliações de mais umas quantas destas.
— Isso foi hoje? — questionei incrédulo, procurando um engano que justificasse a mentira da manhã.
— Não, foi ontem... Desculpa, não foi nada ontem. Foi anteontem.
Foi como se tivesse levado uma facada nas costas.
Não! Não foi bem isso que senti, foi mais como se tivesse uma ferida que fora atenuada por ela e, subitamente, Tânia reabrira sem complexos, indiferente aos meus sentimentos.
— Não sabias? — perguntou o senhor, vendo o meu ar aparvalhado.
— Temos tidos dias complicados na escola. — menti. — Altura de testes... Não houve oportunidade de falarmos. — Forcei um sorriso. — Fico feliz que ela tenha conseguido.
— Acho que a tua amiga está lançada. Falou em quererem mais fotos, em entrevistas... — adicionou, recordando o que ouvira na conversa delas. Depois, parou, estacionando o olhar novamente na foto. — Bom... Mas, em relação à tua questão...
— Deixe estar. — interrompi, pegando na foto e voltando a guardá-la.
Despedi-me sem mais palavras e fui embora.
Percorri o caminho de regresso a casa numa passada vagarosa, sentindo-me destroçado pela falta de consideração de Tânia. Ao longo do percurso, tombava sobre a cidade uma chuva miudinha, a qual me molhou sem que desse por isso. Porque me mentira ela? Percebia que não tivesse tido a gentileza de partilhar a boa notícia comigo, mas porquê mentir-me quando lhe perguntara directamente?
Cheguei a casa encharcado em água e tristeza. Fora tudo um logro, eu não passara de um objecto de utilidade pontual e descartável como uma folha de papel higiénico. Fiquei muito tempo, na solidão do quarto, a olhar para as três fotos que me oferecera, três fotos que julguei que me oferecera por amizade e que afinal não passavam de uma esmola, uma gorjeta foleira por um serviço que eu fizera por carinho e ela recebera como um favor que não pudera evitar.
O meu tio, que me conhecia melhor que ninguém, percebeu o meu espírito triste. Procurou inteirar-se sobre as causas, só que não teve sucesso, eu fechei-me completamente. Porém, após o jantar, abri o coração e registei tudo o que me ia na alma numa folha de papel.
Essa folha de papel foi colocada dentro de um envelope pequeno juntamente com as três fotos. Guardei-o dentro do caderno e na manhã seguinte, encarei o novo dia na escola com o objectivo de o entregar à rapariga que me ensinara que o amor poderia dilacerar tanto quanto as lâminas de uma faca afiada.
Claro que decidir escrever uma carta e planear entregá-la chocou com a falta de coragem de o fazer na realidade. Num dia inteiro de aulas, fui adiando a entrega, sempre esperando uma oportunidade melhor que a última. À entrada do penúltimo tempo, quando todos esperávamos a chegada do professor para a próxima disciplina, decidi dar-lhe uma última oportunidade:
— Então, novidades? — indaguei, sempre naquele meu ar inseguro e quase a gaguejar.
A resposta de Tânia foi uma surpresa negra, cheia de agressividade, barafustando que eu não a largava, que estava farta que lhe fizesse sempre a mesma pergunta e com enorme brusquidão quase que cuspiu o "NÃO!!!"
Tirando Raquel e Sofia, ninguém sabia o teor da pergunta, o que despoletava a imaginação dos nossos colegas, fazendo as mais estapafúrdias conjecturas.
O professor chegou e a turma começou a entrar na sala. Aproveitando o momento em que a maior parte se distraía em ocupar o seu lugar, retirei o envelope do caderno e apontei-lho.
— Toma! É para ti.
Tânia hesitou, mas acabou por o aceitar sem disfarçar a repulsa como se receasse que trouxesse algum vírus ou bactéria.
O momento não passou despercebido a Tiago que gritou:
— Ó Tânia! Deve ser um pedido de namoro do cromo.
Falando de forma a que todos ouvissem e percebessem o seu desprezo, ela retorquiu:
— Deus me livre.
Tiago soltou uma sonora gargalhada. E a turma acompanhou-o, apercebendo-se da cena.
Nas disciplinas convencionais, onde as disposições das mesas na sala era em fila, sendo que a alternância eram salas com mesas de dois ou mesas de um, eu sentava-me na fila da ponta e na quarta cadeira a contar da frente, ficando apenas com mais uma ou duas mesas atrás. Tânia sentava-se na primeira cadeira da fila contrária à minha, encostada à janela, com Raquel atrás e Sofia ao lado.
Do meu lugar, vi-a a abrir o envelope, somente o suficiente para perceber o conteúdo. Raquel espreitou sobre o seu ombro, mas não conseguiu ver nada. Sofia deve ter-lhe perguntado o que era e recebeu um abanar de cabeça como resposta. Depois, Tânia virou-se para trás, procurando-me.
Perante tudo o que acontecera nas últimas semanas, a forma como ela se comportara comigo, a forma interesseira como me usara, o desprezo que revelava por mim, aquilo que eu esperava dela quando visse as fotos que me oferecera era que se virasse para trás, encolhesse os ombros e com a postura mais indiferente que fosse capaz de adoptar fizesse aquele ar de "que significa isto?". Contudo, fui surpreendido. Tânia olhou para trás, consciente que lhe devolvera as fotos, e encarou-me com um semblante simplesmente triste e magoado.
O professor iniciou a aula e ela voltou-me as costas, guardando o envelope dentro do livro. Não prestei muita atenção à aula, pensando no que estaria a pensar Tânia. Será que viria falar comigo? Será que insistiria para que eu ficasse com as fotos? Ou iria encarar aquilo como "não as queres, quero lá saber"?
Quando tocou para o intervalo, a maior parte da turma saiu dos seus lugares como se as cadeiras queimassem. Lá fora, começava a escurecer mais tarde e os dias tornavam-se maiores. Tânia permaneceu no seu lugar e indicou às amigas que já iria ao seu encontro no pátio da escola. Enquanto saía da sala, vi-a retirar o envelope do livro e abrir a carta para a começar a ler.
Fui para o exterior, aguardar a penosa passagem dos dez minutos de intervalo, sozinho como era habitual. Fiquei a ponderar a reacção dela à carta. O arrependimento começou a fustigar-me a mente. Dei por mim a recordar o que escrevera:
"Sei que não sou o tipo de rapaz que algum dia possa despertar interesse em ti. Sei que não sou alguém com quem gostes de ser vista. Mesmo assim continuo a gostar de ti. Acreditei na minha estúpida ingenuidade que um dia poderíamos ser amigos, verdadeiros amigos e não uma pessoa que usa a outra. Julguei que o quase nada que fiz por ti me tivesse dado um grão de poeira na escala da tua consideração. Nunca fiz nada à espera que retribuísses além de um agradecimento. Sim, gosto de ti! Gosto mesmo muito de ti, dessa forma que um rapaz gosta de uma rapariga. Mas, não pensei em qualquer momento que te interessarias por mim só por te ajudar a tentar alcançar o sonho de ser modelo. Não sou assim tão estúpido. Tu és incrivelmente linda. Sim, és o meu sonho, já to disse e não tenho problemas em o admitir. Mas, gostar de ti é como gostar de um cacto, feres-me sempre que me aproximo. Fiquei feliz quando me deste estas três fotos. Feliz porque pensei que querias que ficasse com uma recordação daquela tarde que partilhámos no jardim. Um agradecimento por te ajudar. Mas, afinal, nem sei porque mas deste. A mim a quem mentiste. Sim, eu sei que tu foste contactada por agências que estão interessadas. E apesar de tudo, fico feliz por ti. Só que me interrogo porque sou tão desprezível que nem mereça que partilhes a informação comigo? Então lembrei-me. Num dos teus momentos parvos (não encontro outra definição), sugeriste que se fosses bem sucedida me retribuirias com um beijo. E agora, temendo que eu pudesse cobrar, optas por mentir. Descansa, não quero o beijo. Sim, adorava beijar-te. Quem não gostaria? Repito, és linda! Mas, tenho de ter noção que de ti só terei repulsa e desdém. Por isso, se te sentes em dívida, deixo aqui registado que não me deves o que quer que seja. E estas fotos, devolvo-tas porque são tão insignificantes quanto qualquer beijo obrigado que me pudesses dar."
Fui despertado pelo toque de entrada.
Quando regressei à sala, Tânia conversava animada com as amigas. Deveria estar a partilhar com elas o conteúdo da carta e a fazer piadas acerca disso. Nem reparou em mim.
Não sei o que esperava com aquela carta ou se esperava o que quer que fosse. Quisera somente devolver-lhe as fotos, marcar uma posição. E cheguei a recear que ela quisesse confrontar-me com o que eu escrevera, uma vez que não saberia como reagir e arriscava-me a mais uma humilhação perante os olhares da escola.
Tânia não pareceu dar a mínima importância ao assunto. Não voltei a ver o envelope, nem ela tornou a voltar-se para trás ou olhar para mim. Mesmo assim, logo que deu o toque de saída, procurei ser um dos primeiros a abandonar a sala, mas sem dar nas vistas.
Em momento algum, notei que ela tivesse tido intenção de falar comigo. As fotos eram um assunto encerrado. E ter devolvido aquelas, possivelmente, até teria sido um descanso para Tânia. Sim, o assunto estava encerrado. No dia seguinte, a vida continuaria na escola, a mesma merda de sempre.
Contudo, antes do jantar, o telefone ecoou em minha casa. Ouvi a campainha estridente, mas ignorei, mantendo a atenção na revista que estava a ler. A minha concentração foi quebrada pela voz do meu tio:
— Daniel!
— Sim? — respondi, espreitando pela porta do quarto.
— É a tua amiga Tânia. — informou, apontando para o telefone.
Por momentos, senti-me petrificado, surpreso. Não antecipara aquilo. Não queria falar com ela. Não haveria nada de bom naquilo que pudesse ouvir, se pegasse no auscultador do telefone que me aguardava sobre a mesinha no átrio do nosso pequeno apartamento.
Pensa rápido!
O meu tio olhava-me confuso.
— Agora não posso. Diz-lhe que já lhe ligo.
A confusão não largou o rosto dele, mas fez o que lhe pedi. Regressei ao local onde largara a revista e retomei a leitura, esforçando-me por não dar atenção à voz no átrio.
Passados poucos segundos, o som do auscultador a pousar na base do aparelho chegou-me aos ouvidos, ao que se seguiu a presença do meu tio à porta do quarto.
— Ela deixou o número. — informou, apontando-me o papel onde anotara os algarismos. — Calculou que não o tivesses.
— Não estou com ideias de lhe ligar. — confessei sem tirar os olhos da revista. — Por isso, podes deitar fora.
Ele estranhou:
— Está tudo bem? Ela disse que precisava de falar contigo. — Encolhi os ombros. — Que se passou? Chatearam-se?
— Não. — respondi com um sorriso sarcástico. — Sou demasiado insignificante para isso.
— Então porque te ligou ela?
— Não sei, nem quero saber.
— Não queres mesmo? — interrogou o meu tio na sua inteligência com uma longa experiência de vida.
Sorri-lhe vencido. Não tinha porque representar para com a pessoa que mais gostava de mim e que se preocupava comigo.
— Talvez queira... Mas, é melhor não saber.
— Tu gostas dela, não gostas?
Ia dizer que sim, só que...
Uma constatação surgiu na minha mente.
— Não sei se gosto dela ou da imagem que fiz dela.
O meu tio anuiu.
— Percebo o que queres dizer.
— Ela deixou bem claro que eu não existo para ela.
Ele olhou para o tecto, como se ponderasse o que diria a seguir.
— Pois... Mas, agora foi ela quem ligou. Não me parece que as miúdas giras andem a telefonar para casa de rapazes que acham que não existem.
— Tu não percebes, tio.
— Achas que sou muito velho para perceber a vossa geração?!
— No teu tempo, as coisas eram diferentes.
— Talvez...
— Não te preocupes. Amanhã falo com ela na escola. — finalizei sem a mínima intenção de fazer o que dissera.
Eu era um tipo cheio de arrependimentos. Ponderava demasiado o que haveria de fazer, escolhia uma opção e arrependia-me com a certeza que deveria ter feito o contrário. Foi o que disse a mim mesmo, constatando que o que quer que ela tivesse para me dizer, eu estaria mais protegido atrás do telefone que frente a frente com ela na escola. Só que, quando atingi esta brilhante conclusão, já era tarde para lhe telefonar.
A manhã seguinte fora o prenúncio da Primavera que se avizinhava. O Sol brilhava e a temperatura amena trazia a sensação de conforto esquecida durante o Inverno. Fui dos últimos a chegar e, no corredor, já toda a turma aguardava a chegada do professor de Português. Tânia esperava encostada à parede na companhia das amigas. Os nossos olhares cruzaram-se. Ela não disfarçou como estava chateada comigo. Pensei que me fosse insultar em frente a todos por não ter atendido o telefonema nem ter voltado a ligar. Claro que tal hipótese só caberia na minha cabeça, pois ela jamais se sujeitaria a essa cena, a admitir que telefonara para mim. Desviei o meu olhar, queria evitá-la. Se tantas vezes desejara que conversássemos, naquela manhã só a queria longe.
Tânia correspondeu àquele desejo, uma vez que me ignorou por completo o dia inteiro. O assunto morrera. Nada tínhamos a dizer um ao outro e ainda bem que assim era.
Só que assunto não morrera...
Após a última aula, peguei no meu caderno e livros, levantei-me do meu lugar e saí para o corredor. Como era normal, no fim de cada aula e ainda mais no fim do dia, a algazarra no corredor era mais que muita. Mesmo assim, consegui ouvir os risinhos irritantes de Raquel, atrás de mim. Não sei se estava relacionado comigo ou não e ignorei.
— Daniel! — chamou uma voz lá atrás. Apesar de me recusar, reconheci-a. — Daniel!!!
Virei-me. Uns dez metros atrás, vi Tânia levantar a mão, fazendo sinal para que esperasse.
Na escola, sempre me chamara "cromo" como todos os que gostavam de me insultar. Para ser sincero, só me chamavam isso porque percebiam que me perturbava. Se desde a primeira vez o tivesse desvalorizado, a coisa caía no esquecimento. Bom, mas como estava a referir, ela nunca me chamava pelo nome. Por isso, aquilo começava a ser estranho.
Tirando as amigas, ninguém reparou, estava tudo com pressa para se pôr a milhas da escola.
Qual cachorrinho, eu esperei.
Tânia parou em frente a mim, fazendo-me sentir o perfume doce que emanava dela. O semblante zangado permanecia sem lhe tirar uma gota de beleza. Segurava a mala com os livros e cadernos no ombro e tinha as mãos nos bolsos das calças. Não pareceu importar-se que a vissem a falar comigo, como acontecia habitualmente.
— Quero falar contigo! — exigiu, autoritária.
Raquel e Sofia pararam a seu lado.
Bolas, se temia o encontro com ela, isso acontecer na presença das amigas era o pior dos meus pesadelos.
Tânia olhou para as amigas.
— Até amanhã, meninas! — despediu-se.
Elas estranharam. Raquel questionou:
— Não vens?
A forma como Tânia olhou para Raquel foi resposta suficiente. Não havia qualquer dúvida, a primeira era uma líder nata, respirava confiança e o elo mais forte daquele trio. Sofia retribuiu a despedida e afastou-se, levando Raquel consigo.
Quando dei por mim, estava no corredor da escola envolto no burburinho silencioso de um espaço vazio onde só se ouvia a debandada exterior dos estudantes. Naquele longo corredor, apenas eu e Tânia.
— Não me ligaste, ontem?! — recordou de semblante fechado. — Nem me quiseste atender.
— Estava ocupado.
Ela cravou o olhar em mim.
— És um mentiroso. Não quiseste foi falar comigo.
Sentia-me a tremer, apesar do meu corpo estar completamente paralisado. Tinha dificuldade em encará-la. Não por vergonha, mas porque a beleza dela me intimidava.
Quis dizer "se há aqui um mentiroso és tu" ou "não temos nada a dizer um ao outro". Porém, o que saiu foi um tímido:
— Que queres falar?
— Porque me devolveste as fotos?
— Acho que escrevi isso.
— Quero que mo digas na cara. — retorquiu irritada. — Eu dei-te as fotos com boa intenção e tu dizes que são insignificantes.
— Boa intenção? — interroguei sem me aperceber que começava a ripostar o tom dela. — Tu deste-me as fotos como um pagamento.
— Não foi um pagamento, foi um agradecimento.
— Agradecimento? Queres agradecer-me? Que tal a tratares-me com mais respeito na escola?
Tânia soltou uma gargalhada escarninha, como se eu tivesse dito algo ridículo.
— Eu sei o que querias, sei que agradecimento queres. — insurgiu-se, esbracejando. — Podes dizer que não, mas em vez das fotos, o que querias era um beijo.
— Acredita no que quiseres. Não me interessa.
Tânia colocou-se na minha frente. Alterou a voz para um tom condescendente, qual ser superior que se dispõe a uma oferenda ao lacaio.
— Não me importo de te dar um beijo. — sugeriu. — Talvez tenha sido um pouco injusta ou até mesmo ingrata contigo. — Levou as mãos à cabeça e puxou o cabelo para trás. — Afinal foi graças às tuas fotos que vou conseguir ser agenciada. — Cruzou os braços sobre o peito e debruçou-se ligeiramente. — Vá, podes roubar-me o beijo.
Bastar-me-ia inclinar um pouco a cabeça e os meus lábios tocariam nos dela. Seria uma oportunidade única de conhecer o sabor da sua boca por mais efémero que fosse o momento. Tinha dezassete anos e nunca beijara uma rapariga. Poderia ser o receio de falhar que me petrificava os movimentos? Não.
— Tu não consegues perceber pois não?
Tânia surpreendeu-se por eu não aproveitar o momento. Recobrou a posição anterior, afastando-se e disfarçando a novidade que era para si ter sido rejeitada.
— Não percebo o quê? — inquiriu controlando a fúria. Quem pensava eu que era para desperdiçar a possibilidade de beijar os lábios da rapariga mais bonita da escola, uma futura modelo, o desejo de todos os rapazes. — Que deves ser paneleiro? Se calhar é isso, és um cromo paneleiro.
Estremeci. As suas palavras acordaram-me para a terrível certeza de que no dia seguinte toda escola saberia daquela cena e me chamaria assim. O que eu não percebi era que a sua reacção não era mais que agredir verbalmente quem tivera a coragem de não lhe sucumbir. Senti tudo a desabar à minha volta, quase tentado a implorar que ela não repetisse aquilo. Só que, em simultâneo, senti que se estava tudo perdido, então nada tinha a perder.
— Podes continuar a ofender-me, se isso te faz feliz. — disse com uma calma que não tinha. — Não consegues perceber que apesar de ser... de... de gostar de ti, tenho a noção que nunca terás interesse em mim. E estás no teu direito. Ninguém deve ser obrigado a gostar de ninguém. Mas, desperdiçar a amizade de outra pessoa só porque essa pessoa não se enquadra naquilo que é popular... Não consigo perceber, Tânia, lamento.
— Posso não ter interesse nessa amizade. — apontou, desdenhosa.
Sim, já tinha percebido, rapariga. Era daquelas verdades que eu sabia desde o início e me recusava a aceitar. Aceitara perante a descoberta da mentira, mas ouvi-lo da boca dela foi a última cacetada no espeto que ela cravara no meu coração.
— Que queres, então? — interroguei com uma ânsia desesperada em sair dali, afastar-me dela, antes que as lágrimas me atraiçoassem.
Tânia hesitou. Acho que a pergunta a apanhou de surpresa. Que queria ela afinal? Desviou o olhar, visivelmente desconfortável.
— Quero pedir-te desculpa. Não devia ter-te mentido.
— Estás desculpada.
A facilidade do perdão confundiu-a.
— É assim tão fácil para ti perdoar?
— Não. — neguei, cansado. — Neste caso, é apenas indiferente.
— Então não me perdoas.
— Não tenho nada para te perdoar. Se tivesse, teria de me perdoar primeiro a mim por ter sido tão estúpido.
A expressão do rosto dela adoptou uma postura surpresa.
— Estás a chorar? — questionou.
A vergonha inundou-me ao perceber que pelo meu rosto escorria uma lágrima. Limpei-a atabalhoadamente, negando tal possibilidade.
— Daniel! Desculpa se não tenho sido a melhor das colegas contigo. Desculpa as vezes que fui incorrecta. — Esboçou um sorriso piedoso. — Prometo-te que não volto a chamar-te "cromo" ou outra coisa que te possa ofender. E tentarei não ser indelicada quando falares comigo.
— Não faças isso. — pedi, certo de que já não disfarçaria aquela lágrima velhaca que me atraiçoara. — Não faças isso porque faria de ti uma pessoa falsa. E eu acho a falsidade repugnante. Prefiro mil vezes que me ignores como tens feito até aqui. Sim, fico grato que não te juntes a todos os jocosos que gostam de me humilhar. Mas, faz como sempre fizeste tão bem: Ignora-me!
— Se é isso que queres... — concordou com a mesma indiferença com que a perdoara.
Tomei a iniciativa de colocar um ponto final na conversa, afastando-me. Não olhei para trás e calculo que ela tenha permanecido imóvel algum tempo. Só quando alcancei as escadas é que comecei a ouvir os seus passos tranquilos a percorrer o mesmo caminho que eu. O som seguiu-me na descida das escadas, na saída do edifício, pelo pátio da escola... sempre à mesma distância. Tive desejo de olhar para trás, olhar para ela, mas resisti. Após a passagem do portão, os passos continuaram, mas o som foi ficando mais distante, uma vez que ela tomara um caminho diferente do meu, o que me trouxe ao consciente a terrível certeza de que o nosso futuro seria assim, com caminhos diferentes.
Tânia cumpriu o estabelecido naquela conversa cuja recordação ainda hoje me embaraça. Não me voltou a chamar "cromo" nem qualquer outra coisa, uma vez que não tornou a dirigir-me a palavra. Que eu soubesse, também não partilhara com ninguém a nossa conversa. Ninguém estranhou a ausência de diálogo entre nós.
As amigas também me ignoraram por completo. Desconheço se por indicação dela ou porque não se interessaram em me aborrecer. Só mesmo o anormal do Tiago insistia nisso.
Estávamos na última semana do segundo período do ano lectivo. Os últimos teste já haviam sido feitos e somente dois ainda não tinham sido entregues. Como costume, eu estava na corda bamba entre a aprovação e a reprovação. Ainda não era preocupante, pois haveria um último período para as recuperações.
Entrei na sala sentindo uma sensação de conforto por ver que o Sol ainda brilhava lá fora, em tons de laranja, trazendo tardes cada vez mais compridas e lembrando que a mudança de estação se aproximava. Sempre me deprimira o tempo frio e os fins de tarde escuros de Inverno.
O professor de História estacionou junto da sua secretária, enquanto os alunos se espalhavam pela sala, dirigindo-se aos seus lugares sem pararem de falar uns com os outros. Eu tomei o meu lugar, a quarta cadeira da linha mais próxima da porta. Nas últimas cadeiras, Tiago e Dias faziam as palhaçadas habituais, procurando ser cativantes para as meninas ridicularizando os outros. Por acaso, só mesmo por mero acaso, desta vez, eu não fora o alvo.
História era uma das minhas disciplinas preferidas e, talvez, aquela em que estivesse mais tranquilo a seguir a Informática e Educação Física. Desde o 7º ano que não tinha uma negativa num teste daquela área de conhecimento. Após alguma conversa de circunstância, dando tempo para que os mais extrovertidos acalmassem, o professor informou:
— Como o terceiro período será mais curto que o habitual, decidi que só faremos um teste de avaliação. — Ouviu-se um ridículo regozijo dos preguiçosos que contabilizaram logo menos tempo para a obrigação de estudar. — Esse teste será perto do final do período. No lugar do primeiro teste, faremos um trabalho de grupo, o qual contará para a nota como um teste de avaliação. — Na prática, o professor poupava-se à preparação de um teste e abria a porta aos menos qualificados da disciplina a unirem-se aos mais inteligentes para tirarem boa nota a reboque destes. — Devem organizar-se em grupos de dois ou de três. — Alguns começaram logo a negociar alianças. O professor travou-os. — Não, não precisam de se organizar agora. Falem entre vocês depois das aulas e na próxima, quando fizermos a auto-avaliação deste período, faremos também a organização dos grupos.
Lá na frente, indiferente ao que tinham acabado de ouvir, Raquel e Sofia combinavam agrupar-se e convidavam Tânia a completar o trio. Porém, a outra não se comprometeu.
As formações de grupos de trabalho era algo que eu dispensava. Nunca ninguém tinha muito interesse em ficar comigo e eu acabava quase sempre por ser recambiado pelos professores para um grupo qualquer. Aquela vez não seria diferente, por isso, não perdi tempo a preocupar-me em encontrar parceiros, pois na próxima aula lá iria para onde houvesse vaga. Até já visualizava a cena, o professor a perguntar quem ainda não tinha grupo, o Daniel a levantar a mão, o professor a solicitar a boa vontade de alguém em me receber com aquele ar de quem me acha um coitadinho e o Daniel a ser agrupado.
Numa última semana, em qualquer período, as aulas são uma amostra do normal, não há matéria para leccionar, os testes foram entregues... Por isso, nem me recordo muito bem o que se desenrolou até ao toque de saída.
Se quando tocava para sair da última aula eu era dos primeiros a partir, quando era o toque de saída para um intervalo entre tempos, eu demorava a abandonar o meu lugar. Como ainda havia mais uma disciplina nessa tarde, movimentei-me vagarosamente.
Maria Inês e Francisca, quais beatas atrás do padre, interpelaram o professor para mais informações acerca do trabalho de grupo. Não percebia a razão que levava alunas extremamente inteligentes a terem a necessidade de "dar graxa" aos docentes. Um pouco mais atrás, Alfredo permanecia no seu lugar, escrevendo algo no caderno.
Numa passada lenta, saí pela porta para o corredor e deparei-me com o trio de amigas a conversar, alguns metros mais à frente. Segui o meu caminho, calculando que quanto mais devagar andasse, mais tempo levaria a chegar ao pátio da escola e menos tempo lá teria de permanecer. Porém, tendo de passar defronte delas, acelerei subtilmente.
— Daniel! — chamou Tânia. Parei e olhei-a com aquele meu ar de parvo perante a surpresa de ela se me dirigir. — Já tens grupo para o trabalho de História?
Raquel e Sofia indignaram-se ao ouvir a amiga.
— Então não íamos ficar as três? — questionou Sofia.
— Ficamos sempre as três. — recordou Raquel.
Tânia olhou para elas e abriu-lhes os olhos para a realidade:
— Somos três burras a História. E precisamos da nota. Acham que vamos conseguir alguma coisa sozinhas?
Ora lá estava a menina calculista sempre interesseira. Tornou a olhar para mim.
— Então? Tens grupo? — Abanei a cabeça como os burros sem conseguir soletrar uma sílaba. — Queres fazer o trabalho comigo?
— Então e nós? — intrometeu-se Raquel, não me dando tempo de responder.
Sofia pareceu ter encontrado a solução:
— Podemos falar com o professor e pedir-lhe para nos deixar ficar os quatro.
A ideia deixava-me em pânico. Fazer um trabalho com aquelas três? Seria mais provável eu ter má nota à conta delas que elas terem boa nota à minha conta. Só que eu seria incapaz de recusar.
— O stor quer no máximo três pessoas por grupo. — lembrou Tânia.
Raquel lançou-lhe um olhar cúmplice.
— Se fores tu a pedir... O stor é capaz de deixar.
Contudo, segura de si, Tânia recusou a sugestão.
— Ok, já percebi. — argumentou Sofia irritada. — Queres ser só tu a aproveitares-te do cromo.
Raquel juntou-se à indignação:
— Rica amiga. Tu safas-te com o cromo e nós ficamos lixadas.
Nesse instante, Alfredo saiu da sala.
— Alfredo! — chamou Tânia. Este ficou quase tão surpreso quanto eu por ela falar com ele. — Já tens grupo?
— Não. Estava a pensar...
— A Raquel e a Sofia precisam de ajuda. — prosseguiu, adoptando um tom simpático. — Achas que podem fazer grupo os três?
Percebendo a oportunidade, Raquel e Sofia sorriram-lhe para o incentivar a uma resposta positiva.
Alfredo era muito melhor que eu em qualquer disciplina. Teria sido até mais vantajoso para Tânia ter-me recambiado para as amigas e ter ela ficado com ele. Porém, não o fez e vi-o aceitar confuso a formação do grupo.
— Estamos combinados. — finalizou ela. — Vocês ficam com o Alfredo. — Olhou para mim. — E eu fico contigo.
Satisfeita pela concretização dos seus desejos, afastou-se seguida por Raquel e Sofia que pareciam ainda ir a debater entre elas o que acabara de suceder.
Alfredo prosseguiu o seu percurso pelo corredor, visivelmente feliz.
Não consegui dizer uma palavra em toda aquela cena. Nem me consegui sentir feliz por voltar a ter a oportunidade de estar perto de Tânia, pois sabia como ela era interesseira, como ela me iria usar como acontecera com as fotos. E seria doloroso estar na sua companhia sabendo que nunca existiria a mínima possibilidade de ela gostar de mim como eu gostava dela. Teria preferido ficar sozinho ou fazer grupo com o Alfredo... Só que não fui capaz de a contrariar.
Para não variar, Tânia não voltou a falar comigo, retomando o nosso acordo para que me ignorasse. Nos dias que antecederam as férias da Páscoa, ela não me dirigiu uma letra que fosse, nem para combinar qualquer pormenor acerca do trabalho.
Na aula seguinte de Historia, após a auto-avaliação, houve surpresa quando se ouviu Tânia a comunicar ao professor que formaria grupo comigo. As reacções variaram entre a incredulidade e as piadas, mas ela pouco se importava com o que pudessem pensar. A surpresa foi tal que ninguém ligou ao anúncio seguinte de Alfredo a nomear o seu grupo.
Tiago, que não conseguira esconder a inveja, atirou:
— Ó Tânia! Ao que te sujeitas para não teres nega.
Ela voltou-se para trás e, sem que o professor visse, fez-lhe um gesto pouco simpático, levantando o dedo do meio.
As férias eram um tempo abençoado. Claro que eu passava o tempo todo em casa, ora no computador, ora a ver televisão. Tinha uma vida completamente sensaborona, sem amigos e sem diversão ao ar livre. O meu tio incentivava-me a sair, até sugeria que fosse com ele ao café para apanhar ar. Eu recusava, preferindo permanecer no meu casulo, na segurança do meu quarto, não fosse ter a infelicidade de me cruzar na rua com alguém da escola.
O trabalho de História era uma incógnita, Tânia não me dissera nada na escola e eu também não tivera coragem de lhe perguntar. Vi-a a ir embora com as amigas, após a última aula, sem manifestar interesse em combinar o que quer que fosse. Como também não era fã de trabalhos de escola nas férias, atirei o assunto para o esquecimento. Quando recomeçassem as aulas, lá me preocuparia com isso.
Contudo, a meio da primeira semana de férias, Tânia ligou para minha casa. Escusado será dizer que foi o meu tio quem atendeu. Do quarto, ouvi-o chamar o meu nome, o que me levou rapidamente a concluir que deveria ser ela a telefonar.
No momento em que saí para o corredor, o meu tio informou que era ela, revelando um semblante de dúvida como quem pergunta se eu iria atender.
Envolto no nervoso miudinho que sempre me acompanhava quando tinha que falar ao telefone, peguei no auscultador.
— Sim...
Ouvi a voz do outro lado.
— Olá Daniel! Não chegámos a combinar quando iríamos fazer o trabalho. — Houve uma pausa, talvez a aguardar que eu sugerisse uma data. Eu proferi pouco mais que um som. — Achas que dá para começar amanhã?
— Sim...
— Podes vir ter comigo a minha casa? Amanhã, depois do almoço?
— Sim...
Houve um novo silêncio. Tânia aguardou que eu dissesse algo mais que aquilo, que fosse mais que monossilábico nas respostas. Isso não aconteceu.
— Ok, então. Até amanhã!
— Até... — Ouvi o clique de desligar — ...amanhã.
Não sei se estava calor ou se era eu que transpirava com a ansiedade e nervosismo pelo encontro marcado em casa de Tânia. É certo que o dia primaveril trouxera um aumento da temperatura, mas o meu "real feel" estava vários graus acima.
O meu tio ficara satisfeito por me ver sair de casa e por me ir encontrar com uma rapariga, mal sabendo que ela era um demónio a atormentar a minha existência. Já estava em idade de ter uma namorada, segundo ele. Sorri descrente, não me via a namorar qualquer rapariga que fosse.
Caminhei calmamente... Caminhei, tentando fazê-lo calmamente. Procurei vestir algo que atenuasse o meu aspecto desinteressante, escolhendo as calças menos gastas, uma t-shirt não muito larga, mas não tinha como evitar o uso do blusão velho. Numa mão levava o caderno e o livro de História, a outra ia no bolso a dedilhar o porta-chaves. Penteara o cabelo e até barbeara o rosto, algo que poderia facilmente passar sem fazer durante três dias sem que se notassem os pêlos. Não usava perfume e receei ter algum odor fedorento, daí ter exagerado no desodorizante. Felizmente, esse excesso foi desaparecendo ao longo do caminho.
Alcancei a rua dela a questionar-me onde me estaria a meter. Sentia o desejo profundo de ter tido a coragem de recusar o seu convite. Preferia mil vezes estar em casa a ver televisão.
Parei defronte da porta do prédio. Toquei à campainha, pressionando o botão do segundo esquerdo. Enquanto esperava, fiquei a olhar para o chão, mais precisamente para os meus All-stars quase rotos.
O clique do trinco anunciou a abertura da porta. Empurrei e entrei, deixando que a mola se encarregasse de a voltar a fechar. Subi as escadas, ouvindo a porta do apartamento a abrir. As pernas tremiam, quase tropecei num dos degraus de pedra.
Após o último lance de escadas, deparei com a porta aberta. Ouvi a voz da rapariga dos meus sonhos dizer:
— Sim, avó! Eu já abri.
Antes do último degrau, Tânia surgiu na entrada. O meu coração bateu com mais intensidade, ao vê-la. A sua imagem era de uma beleza simples, uma rapariga de dezassete anos como tantas outras a desfrutar das férias em casa. Recordo-me que vestia uma camisa aos quadrados de mangas compridas, as quais enrolara até aos cotovelos, e calções de ganga que não eram nenhuns "Daisy Duke", mas mostravam-me os joelhos perfeitos e as pernas bem delineadas. Tal como eu, calçava umas sapatilhas All-stars em tons claros e sem buracos. O cabelo louro estava solto e caia desordenado sobre os ombros.
— Olá! — murmurei.
Tânia recebeu-me com um olhar superior, sendo que não existia nele o habitual laivo desdenhoso de quem parecia repugnar-se com a minha aproximação.
— Entra. — convidou, abrindo a passagem.
Avancei sem saber muito bem o que fazer ou onde me dirigir. A seguir ao átrio de entrada, existia um longo corredor para outras divisões. À esquerda, uma porta larga dava acesso à sala. Na porta oposta a esta, o acesso à cozinha onde vi uma senhora a arrumar algo num armário. Ao ver-me, sorriu e cumprimentou-me com um "boa tarde" acolhedor.
— É a minha avó. — apresentou Tânia.
A senhora deveria ser quase da idade do meu tio, estatura baixa, aparência cuidada e uma fisionomia frágil. O cabelo tinha uma tonalidade que fugia dos cinzas para os roxos.
— Boa tarde! — retribuí.
— Anda! — indicou Tânia para que a seguisse até à sala. Apontou uma cadeira das seis que rodeavam uma longa mesa de carvalho. — Senta-te! Vou só buscar as minhas coisas.
Despi o blusão e pendurei-o nas costas da cadeira, observando aquela divisão que deveria ter três vezes a dimensão da sala da minha casa. A minha atenção alternou para a voz de Tânia, vinda da cozinha:
— Vá lá, avó. Deixa ficar essas coisas que eu depois arrumo. Vai descansar um pouco.
Registei o tom carinhoso como ela falava com a avó. Antes de me sentar, vi-as passarem no corredor. Nem reconheci aquela rapariga sorridente abraçada à idosa.
Prossegui na observação da sala, sentando-me na cadeira. Os armários robustos apresentavam louças de aspecto caro, as paredes tinham quadros de pinturas modernas, os sofás eram austeros e os tapetes no chão abafavam os sons.
Tânia regressou, colocando o seu livro de História e um caderno sobre a mesa. Para minha surpresa, sentou-se a meu lado ao invés de escolher a lateral oposta da mesa.
Senti o nervoso miudinho aumentar por a ter tão perto, oferecendo-me o odor adocicado do seu perfume.
— A tua avó é muito simpática. — foi o que me lembrei de dizer para não estar calado.
— A minha avó é uma querida. — retorquiu, abrindo o livro sem procurar nada em especial. — Eu adoro a minha avó.
— E os teus pais? — questionei, quase a gaguejar.
— Não estão em casa. — respondeu com naturalidade. — A minha mãe só deve chegar para jantar. O meu pai está fora, só volta daqui a uns dias.
Sem mais nada que me viesse à cabeça para dizer, abri o livro em parte incerta. Foi ela quem falou:
— Pensaste no tema que vamos escolher para o trabalho?
— Ah... Uhm... Para ser sincero não pensei muito nisso.
Tânia sorriu, divertida.
— Eu também não.
— Temos de fazer um bom trabalho, vale para nota.
— Sim. E eu preciso muito desta nota. — lembrou. — Os meus pais já me avisaram que, se não passar de ano, não haverá agência de modelos para ninguém. — Encolheu os ombros. — Se quero ser modelo, tenho de estudar.
— Farei o meu melhor para te ajudar.
Não tive essa intenção, mas dissera-o como quem tentará cumprir uma obrigação e não como quem ajuda uma amiga. Ela percebeu.
— Ainda estás chateado comigo?
A pergunta apanhou-me de surpresa. Para mim, Tânia pretendia aproveitar-se dos meus conhecimentos da matéria e da minha incapacidade em a contrariar, sabendo que gostava dela. Preocupar-se se eu estava aborrecido com ela era novidade.
— Não... — neguei pouco convincente.
Tânia falava a olhar para mim. Eu era incapaz de a encarar e fincava os olhos no livro.
— A sério que não? — insistiu. Não respondi. — Ok. Já percebi.
As emoções revoltaram-se dentro de mim, aumentando a minha insegurança. Tive receio que aquele tipo de conversa me descontrolasse ao ponto de ter uma nova lágrima a atraiçoar-me. Mesmo assim, com os olhos na imagem do livro que retratava a cidade de Florença no tempo do Renascimento, confessei:
— Não estou chateado. Fiquei magoado. E sinto que estou aqui só porque precisas que te ajude com a nota de História. Caso contrário, não te interessarias sequer pela minha existência.
Não sei como tudo aquilo me saiu da boca.
Tânia não se pronunciou de imediato, talvez ponderando o que iria dizer. Foram segundos que pareceram horas e me levaram a pensar que ela explodiria numa daquelas reacções arrogantes da escola, insurgindo-se contra mim e até pondo ponto final a um trabalho que ainda nem começara.
— Achas que sou má pessoa?
A pergunta soou sincera. Olhei para Tânia e esforcei-me para não fugir aos seus olhos verdes. A resposta foi semelhante ao miar de um gatinho pontapeado.
— Para mim tens sido.
A minha resposta deixou-a triste. Tânia não era ingénua, tinha consciência que a forma como sempre me tratara na escola era má. Porém, ouvir-me dizê-lo com aquela amargura fê-la tomar consciência da intensidade da ferida que poderia ter causado. Foi a sua vez de desviar o olhar para o livro.
Apaixonado como era por ela, recriminei-me por ter causado aquela reacção.
— Isso não quer dizer que sejas má. Tenho a certeza que és excelente para as tuas amigas, que és uma pessoa divertida. — Forcei um sorriso condescendente. — Não és obrigada a gostar de toda a gente. Não és obrigada a gostar... de mim.
O seu olhar retornou ao meu. Demasiado intenso, fazendo regressar a minha atenção ao livro aberto.
— Desculpa...
— Esquece isso. — sugeri, pegando na caneta.
O que aconteceu a seguir foi surreal.
Tânia estava realmente desgostosa por perceber como fora cruel. É fácil ser altiva e desprezar os outros de forma fria, quando se é desejada, quando se é invejada, amesquinhando indiscriminadamente para elevar o estatuto e grandeza. Porém, ouvi-lo da boca de alguém que depois disso tudo ainda a ajudava...
Só pedir desculpa não chegava. Por isso, segura de si, aproximou-se de mim. A sua ideia era juntar ao pedido de desculpa um beijo fraterno no meu rosto. Contudo, ao sentir a sua aproximação, a primeira coisa que me veio à cabeça foi que ela iria fazer uma qualquer brincadeira parva, tal como soprar-me para o ouvido. Numa reacção instintiva, virei-me no exacto momento em que os seus lábios iam tocar a minha face. Resultado? Os seus lábios tocaram na extremidade da minha boca.
Ficámos aparvalhados a olhar um para o outro.
Pronto, pensei, agora é que vou levar uma valente chapada.
Não. Não levei uma chapada, mas o que se seguiu provocou-me um choque eléctrico na espinha.
Recobrando-se da surpresa, Tânia investiu para mim, sem complexos, e beijou-me intencionalmente na boca. Fiquei sem reacção. Ela beijou com ternura até se afastar perante a quase ausência de retribuição. Encarou-me o olhar e pela primeira vez vi ternura naqueles olhos verdes. Sorriu. Tinha maturidade para perceber que possivelmente eu nunca teria beijado uma rapariga antes. Sem dizer nada, acariciou-me o rosto com a mão e tornou a beijar-me, prolongando o momento o suficiente para que eu me adaptasse e começasse a beijá-la também. Foi tão intenso, tão excitante que tive receio de... sujar as calças.
Nunca imaginei que ela pudesse ser tão carinhosa. Estão a imaginar a cena do galã mulherengo que beija a donzela inexperiente e lhe ensina tudo o que há a saber na arte do beijo? Pois ali foi o inverso, eu era a donzela.
Tânia não era uma rapariga de namoros, aliás nunca ninguém lhe conhecera namorados na escola. Nesse campo era bem recatada e ao lado da sua amiga Raquel bem poderia passar por freira. Porém, ao contrário de mim, já namorara, já beijara... Não! Se estão a questionar-se sobre isso, saibam que ainda era virgem.
Não faço ideia de quanto tempo passou. Sei que dei por mim com Tânia sentada nas minhas pernas e as nossas bocas com dificuldade em se descolarem.
De súbito, ouviu-se o som de uma porta. Tânia saltou para a sua cadeira, percebendo que a sua avó se aproximava. A senhora surgiu na sala, sorrindo-nos e oferecendo-se para preparar um lanche para nós.
Tânia respondeu por ambos:
— Obrigada, avó.
Enquanto a senhora se afastava, a neta voltou-se para a mesa lançando-me um sorriso cúmplice e denotando um semblante meio encantado e envergonhado.
— É melhor começarmos o trabalho. — sugeriu.
— Sim, é melhor. — concordou, partilhando o sorriso cúmplice.
Lado a lado, folheámos o livro. Tânia aproximou mais a sua cadeira e encostou a perna à minha.
Com o dedo indicador, apontei para o quarto capítulo, sugerindo o tema para o trabalho.
— Que achas?
Ela tinha o cotovelo sobre a mesa e a cabeça apoiada nesse braço. Desviou os olhos do livro para mim. Havia uma paz que nunca vira naquele verde.
— Então? — insisti. — O que achas?
Ela sussurrou:
— Acho que gosto de ti.
O nosso trabalho de grupo não se desenvolveu muito nas férias, para não dizer que não se desenvolveu nada. Claro que optarmos por ir para o jardim trocar beijos ao invés de nos dedicarmos à tarefa contribuiu para isso, mas essa não foi a única razão.
Eu estava super feliz. Não conseguiria escondê-lo de ninguém, muito menos do meu tio a quem acabei por contar o que acontecera. Não com pormenores, somente que tinha começado a namorar com a amiga que ele conhecera. No entanto, a minha felicidade durou dois dias, dois dias de namoro juvenil no banco de jardim, perto do local das fotos que a haviam levado ao agenciamento e entrada no mundo da moda. Ao fim desses dois dias, Tânia foi convidada a participar num evento no Algarve, o seu primeiro trabalho como modelo.
Não foi o fim do namoro ou pelo menos era o que eu repetia a mim mesmo. Para ser sincero, nem sabia se namorávamos ou se eu estava a ser apenas um passatempo de férias. Tânia não era apaixonada por mim, gostava de mim, era carinhosa e parecia adorar o facto de me ensinar a trocar beijos cada vez mais intensos e profundos.
A mãe acompanhou-a ao sul do país. Na despedida, comprometera-se a telefonar-me sempre que fosse possível. É preciso não esquecer que naquela época os telemóveis eram raros e não era assim tão simples ter um telefone fixo disponível. Lembro-me que ligou três dias depois de ter chegado para partilhar comigo todo o entusiasmo do momento que estava a viver. Foi honesta em não fingir que a distância a estava a perturbar. E voltou a ligar na véspera do regresso com novo relato de como tudo era maravilhoso no universo elitista da beleza.
Sendo assim, as férias da Páscoa foram a sensaboria do costume. Computador, televisão e uma mente carregada de saudade e paixão.
Tânia regressou a Almada na véspera do reinício das aulas. Ligou-me nessa noite num telefonema curto para dizer que chegara e que estava cansada. Não se referiu a nós, não houve qualquer manifestação de afecto.
Dormi mal nessa noite. Iria reencontrá-la na escola sem fazer a mínima ideia do ponto em que estávamos. Éramos namorados? Éramos amigos? Ou tudo aquilo fora um sonho real que se esfumara tão depressa quanto surgira?
Na manhã seguinte, fui para a escola numa mistura de sentimentos, ansioso por a rever e receoso por não saber o que me esperava. Entrei no edifício, subi as escadas no meio da cacofonia de vozes dos alunos, desde os mais novos aos mais velhos. Segui pelo corredor, passando pelos diversos grupos, turmas junto às respectivas salas aguardando a chegada dos professores para abrirem a porta e entrarem.
A minha sala, nesse primeiro tempo da manhã, seria quase no fim do corredor. Conforme me aproximei, fui reconhecendo as vozes de alguns colegas. Olhei a medo, tentando perceber se ela já tinha chegado. Não tinha.
Passei pelos meus colegas em silêncio, como sempre fazia, e encostei-me à parede, aguardando um futuro incerto.
Tiago berrou:
— Ó cromo! As férias foram boas? Brincaste muito com o computador?
Se fosse hoje, tê-lo-ia mandado para o c...alho. Porém, na altura eu nem dizia palavrões. Por isso, mantive-me em silêncio.
Os meus olhos procuravam ansiosos entre as movimentações no corredor. Vi a nossa professora a surgir entre os alunos. E alguns passos atrás, lá vinha Tânia na companhia das amigas. Os nossos olhares encontraram-se, ela sorriu-me. Suspirei. Havia esperança...
A professora alcançou a porta, cumprimentando-nos com um "bom dia" geral. Contudo, a maior parte dos olhares estacionaram em Tânia, não porque ela vinha linda e resplandecente, mas porque mantinha a passada e vinha na minha direcção.
Não é exagero, só Maria Inês e Francisca é que entraram. Eram duas alunas a quem pouco interessava qualquer acontecimento escolar que não envolvesse os estudos. Alfredo também era assim, mas naquela manhã, sentiu-se igualmente curioso com o desenlace, talvez movido pela influência nefasta das suas colegas de trabalho de grupo. Os restantes permaneceram, expectantes por uma cena onde se poderiam rir, uma qualquer partida que a miúda mais linda da escola decidira pregar ao rapaz mais desinteressante. Tiago encabeçava o grupo, sorrindo no gozo, forjando já uma frase jocosa.
Tânia parou junto a mim e abraçou-me. Senti-me como se me tivessem enrolado num cobertor depois de me tirarem de um lago gelado. Instintivamente, abracei-a. Vi os olhares embasbacados dos espectadores. Ela beijou-me a face e disse:
— Olá, Daniel! Tiveste saudades minhas?
— Claro.
Ela olhou para trás, procurando perceber se havia professores ou funcionárias por perto. Deparou-se com os olhares incrédulos dos colegas. Virou-se novamente para mim, sem abrir o abraço, e beijou-me como uma namorada beija o seu namorado.
fim do conto I
A gata adormecera na minha cama. Enroscara-se em duas almofadas e bem poderia ficar ali horas. Acariciei-lhe o pêlo e Tio ronronou, abrindo ligeiramente as pálpebras para logo as voltar a fechar.
Retirei um livro das prateleiras, nostálgico com aquela recordação. Era o livro favorito da minha tia, Os Maias de Eça de Queirós. Nunca o lera, mas nele estava contido algo que guardava com imenso carinho, uma tira de papel fotográfico com quatro fotos impressas, tiradas numa daquelas máquinas de fotos tipo passe feitas no minuto, usadas por quem precisava de tratar de qualquer documentação identificativa. Sim, eu ainda sou do tempo das máquinas de "foto num minuto" que usualmente se encontravam nas estações de metropolitano ou em lojas perto dos locais onde se tratava do Bilhete de Identidade, como acontecia em Almada. Eram quatro fotos com três centímetros por quatro. Dois rostos eram comuns a todas. Na primeira, eu e Tânia a sorrir. Na segunda, eu e Tânia a fazer palhaçada. Na terceira, o meu rosto feliz com a cabeça de Tânia, também feliz, no meu ombro. Na quarta, a partilha de um beijo apaixonado.
O nosso namoro não durou muito tempo, cerca de três meses, mais ou menos até meio do Verão. Não porque tivéssemos deixado de gostar um do outro, apenas porque os sonhos de Tânia nos tornaram incompatíveis. Foi um namoro muito recatado, confesso. Nunca passámos dos beijos e o máximo que me permitiu foi tocar-lhe o peito sobre a roupa.
Tânia era um sucesso como modelo e despertou a atenção de entidades que lhe permitiram ascender a outros voos. Quase com dezoito anos, era um diamante em bruto para ser lapidado num mundo que tinha tanto de belo como de sufocante. Foi convidada a viajar para os Estados Unidos para enriquecer a sua formação de modelo e prosseguir a sua iniciante carreira. A vantagem de ter primos em Nova Iorque facilitou as coisas, mas os seus pais não abdicaram que ela tivesse a companhia da avó naquela nova etapa da vida, de forma a evitar que se metesse em "maus caminhos".
Quando partiu, não houve um terminar do namoro. Aliás, até nos convencemos que iria sobreviver à distância. Inicialmente, o previsto seria um ano a estudar nos states, não só na formação como modelo como a terminar o equivalente ao 12º ano. Por isso, talvez resultasse. O que era um ano na vida de dois jovens de dezoito anos?
Nos primeiros tempos correspondíamo-nos por carta. Telefonar era muito caro. Só que, com o tempo, as cartas foram tendo intervalos cada vez maiores. E passados seis meses, Tânia tomou a iniciativa de nos acordar para a realidade, o namoro terminara.
Foi muito difícil para mim, ela fora o meu primeiro grande amor, a minha primeira namorada. Só mesmo o facto de já estarmos afastados é que atenuou a dor. Terminou o namoro e tudo o resto, pois o contacto findou por completo. Ela só voltou a Portugal uns três anos mais tarde e em visita. Por norma, eram os pais que a visitavam em Nova Iorque.
Sim, Tânia alcançara o seu sonho, tornara-se uma super manequim internacional. E eu fora o seu primeiro fotógrafo.
O 12º ano foi a minha última época como estudante. Consegui finalizar o secundário, mas falhei a entrada na Universidade. O meu tio ficou desgostoso com isso, pois tinha a esperança que eu me licenciasse. Existia a alternativa de entrar para uma instituição privada, mas não tínhamos dinheiro para isso. Esse último ano na escola foi tranquilo. A áurea de prestigio por ter namorado Tânia não me largou e, apesar de continuar a ser o mesmo solitário de sempre, ninguém me aborrecia, nem mesmo Tiago.
Voltei a tentar entrar na Universidade um ano depois. Não frequentara a escola e optara por arranjar o meu primeiro emprego, durante esse primeiro ano de não estudante. Impulsionado pelo meu gosto pela fotografia, consegui um part-time na loja do centro comercial. E no restante tempo, preparei-me para os exames nacionais para me recandidatar à entrada no Ensino Superior. Mais uma vez, não fui colocado e desisti em definitivo dos estudos.
O part-time também terminou e levei cerca de um ano a encontrar o emprego que tinha naquela altura. Contudo valera a espera, pois fora dos sítios mais marcantes por onde passei.
Tio levantou-se da cama e saltou para o chão. Veio dar-me uma turra na perna a pedir comer. Baixei-me e peguei-lhe ao colo, apertando-a contra mim e ouvindo o seu ronronar agradado. Fui para a cozinha e enchi a sua taça de ração.
Todos os dias, depois do almoço, certificava-me que Tio tinha água e comida, antes de sair para ir trabalhar. Apanhava o autocarro até Cacilhas e depois o barco para Lisboa, mais precisamente para o Caís do Sodré, onde por fim prosseguia em novo autocarro até à Avenida da República.
O espaço comercial, onde eu trabalhava, era uma loja gigantesca de três pisos em pleno centro de Lisboa. Tinha diversos departamentos, desde produção de cópias, impressões, revelações e computadores. Encontrara aquele lugar por mero acaso e entrara por pura curiosidade, sendo atraído pelo anúncio de que necessitavam de funcionários. Percebendo que existia um departamento de fotografia, pedi informações acerca da oferta de emprego na recepção. Para minha decepção, o local onde estavam a contratar era no piso superior, nos computadores. Farto de estar desempregado, entreguei a minha candidatura.
Duas semanas mais tarde fui contratado para assistente de computadores no departamento que alugava aparelhos para consulta de uma coisa, da qual se falava cada vez mais, chamada Internet.
CONTO II
O teu nome é Francisca.
E será que estiveste a meu lado?
O milénio aproximava-se do fim e o mês de Dezembro era a recta final para essa transição. Passara quase um mês desde que o meu tio partira, falhando por pouco esse momento inédito da viragem do 1999 para o 2000.
O dia estava cinzento sem dar sinais de chuva. Saí do autocarro recordando-me que não enchera a taça de ração de Tio. Não me preocupei, pois sabia que não passaria fome até eu regressar.
Entrei na loja cumprimentando a minha colega da recepção, uma rapariga bonitinha que nalgum momento até me interessou, mas que não passou disso mesmo. Prossegui pela loja acenando a todos os colegas. Ali, eu era uma pessoa muito diferente daquilo que fora na escola, bastante social e sabia que tinha em cada um deles um parceiro para o que precisasse no trabalho.
Ao fundo do longo espaço, atrás do comprido balcão de cópias, onde pelo menos cinco funcionários atendiam clientes para fotocópias e encadernações, ficava a máquina na qual eu tinha de passar o meu cartão de funcionário à entrada e à saída.
Adorava trabalhar ali, apesar de ter uma função algo entediante atrás de um balcão a receber e direccionar clientes para os computadores. Havia alturas em que tinha de dar algum apoio, fosse na consulta da Internet ou a explicar a alguém como mandar imprimir um documento. Porém, o ambiente era excelente.
Naquele departamento trabalhavam mais duas raparigas, uma que saía quando eu entrava e outra que fazia um turno que apanhava metade do meu.
Picado o ponto, subi para o piso superior, uma espécie de varandim quadrado repleto de computadores, talvez uns vinte, quase sempre ocupados na totalidade. Quem me visse naquele ambiente não acreditaria que era o mesmo Daniel, o ostracizado dos tempos da escola.
A primeira metade do meu turno era sempre mais movimentada, havia mais gente e ao fim da tarde a lista de espera era maior. Sim, um local público onde alugar um computador com Internet era tão raro que havia pessoas dispostas a esperar muitos minutos, senão horas, por um computador livre. Depois, eu ia comer qualquer coisa, voltava, a minha colega ia embora e eu ficava sozinho no atendimento.
A maioria das pessoas que alugavam um computador, à noite, eram cliente habituais e requisitavam o lugar para estarem muito tempo, pelo que quase não me incomodavam. E eu aproveitava esse tempo para eu próprio navegar na virtualidade.
No final do milénio, ter Internet em casa era uma realidade só para alguns, muito poucos. As mensalidades eram caras ou então os custos por consumo demasiado altos. Era um mercado a dar os primeiros passos em Portugal para uma uniformização que aconteceria mais tarde, em que a Internet está tão presente na nossa vida como o ar que respiramos.
Eu continuava a ser um solitário. Era bastante social no trabalho, mas saído dali, a minha vida resumia-se à companhia de uma gata tricolor. Contudo, tinha cada vez mais amigos online.
Naquela época, as conversas virtuais eram o mais comum. Coisas como o mIRC, o ICQ, salas de chat (conversa) tornaram-se espaços virtuais cada vez mais frequentados. Eu era assíduo das últimas, principalmente as de um local virtual chamado Blá Blá, onde se entrava em salas nomeadas por temas e interesses. Estes variavam muito, mas todos sabemos que a grande maioria de internautas ia à procura de uma única coisa: relacionamentos.
Aquela noite tornou-se um marco inesquecível na minha vida. Perceberão mais tarde porquê. Como costume, eu estava sentado atrás do balcão com os olhos no computador, concentrado nas conversas online e atento à chegada de qualquer cliente ou solicitação de apoio. O processo de entrar numa sala de chat era simples, escolhíamos a sala (eu começava sempre pela geral), escrevíamos a nossa alcunha (raramente alguém usava o seu próprio nome ao início) e clicava em "entrar". Deparava-me sempre com muitos cibernautas, por vezes a salas esgotavam a lotação e tínhamos de procurar outra sala para tentar meter conversa com alguém. Havia vezes em que encontrava alguém com quem já falara, outras vezes procurava novos interlocutores.
A minha alcunha era "AnjoDelta". Usava sempre a mesma para que rapidamente me identificasse a quem já falara comigo. Raramente falava com o sexo masculino, mas por vezes era difícil perceber pelo nickname se era um rapaz ou uma rapariga. Desde que entrara naquele mundo, já conversara com dezenas de pessoas. Na maior parte dos casos foram conversas esporádicas, mas em muitos outros mantínhamos o contacto, as conversas online nas salas e a trocas de mensagens por email.
Estávamos numa época em que os cibernautas resumiam as informações ao mínimo, os nomes eram falsos, não havia fotos e a informação pessoal era escassa. Quando conseguíamos encetar diálogo com alguém, a primeira pergunta era sempre "donde teclas?" para saber onde estava a pessoa. A resposta era sempre uma região ou cidade, ninguém diria "estou na Avenida da República, número...". A seguir seria "és m ou f?" para saber se era um cibernauta masculino ou feminino. Se fosse rapaz, eu permanecia sem dizer nada e o outro ia à sua vida. A partir daqui, se fosse rapariga, a conversa prosseguia e entre um ou outro assunto as coisas iam avançando. E, modéstia à parte, eu era um conversador nato.
Assim, naquela noite, segui o procedimento habitual de entrar na sala geral. As linhas de mensagens sucediam-se umas atrás das outras, quase dificultando a leitura de alguma que fosse direccionada a mim. O sistema permitia que seleccionássemos o interlocutor que queríamos e falássemos directamente para ele, isso fazia com que a nossa frase no seu ecrã surgisse com uma cor diferente, chamando a sua atenção.
Escrevi o "boa noite" para o mundo.
As mensagens sucederam-se infinitamente sem que ninguém parecesse interessar-se por mim. Insisti com "alguém quer teclar?". A ausência de respostas permaneceu.
De súbito, surgiu no ecrã uma frase de cor diferente:
"Olá AnjoDelta, donde teclas?"
Olhei para a alcunha que precedia a frase e li "Jewel".
"Lisboa. E tu?"
"Figueira da Foz."
"És M ou F?"
"Isso é importante?"
É. Não me apetece falar com gajos, foi o que me veio à cabeça. Acabei por mentir:
"Não."
"Pensei que o meu nick respondesse a essa questão."
Sim, Jewel era Jóia em inglês. Dificilmente algum rapaz usaria aquela alcunha. Mesmo assim, ela não deixou dúvidas:
"Sou F."
"Eu sou M."
"Já tinha percebido... anjo."
Respondi-lhe com o símbolo de um sorriso.
"És mesmo um anjo?"
"Sem asas."
Foi a vez de ela enviar um sorriso.
"E tu? És uma jóia?"
"Sou.", respondeu com muitos smiles.
"Que idade tens?"
"17"
Jewel tinha menos cinco anos que eu. Sem que ela o questionasse, eu antecipei-me e escrevi a minha idade. E confesso que o escrevi na esperança que a diferença a levasse a desinteressar-se. Cinco anos, ainda para mais sendo ela menor, não me entusiasmava nada.
"Que fazes?"
"Trabalho com computadores. E tu?"
"Estudo."
Ela não se desinteressou e a conversa foi avançando. Dei por mim a imaginá-la com a imagem de Tânia nos seus dezassete anos. Sem que eu quisesse saber, Jewel prosseguiu:
"Estou no 12º ano. Espero conseguir entrar na Faculdade de Medicina. Quero ser Pediatra."
Estranhamente, o nosso diálogo durou algum tempo. Eu expliquei-lhe que estava a trabalhar naquele momento e que poderia ter de interromper algumas vezes. Ela compreendeu, não haveria problema e esperaria nas minhas pausas. Não me recordo bem de tudo o que falámos. Jewel revelara-se inteligente e a troca de frases foi fluindo. O ambiente estava calmo, os computadores quase todos ocupados e raramente apareceu alguém a interromper-nos.
A certa altura, vi um homem subir as escadas, uma figura bem constituída e passada confiante. Deveria ter trinta e tal anos. Usava barba e cabelo ruivos bem aparados, olhos claros e um rosto que parecia desenhado por um Da Vinci. Vestia um blusão de motociclista e calças de ganga com muitos bolsos. Trazia o capacete pendurado num braço e calçava botas de biqueira pontiaguda.
Eu não era apreciador de homens, mas aquele indivíduo deveria arrebatar muitos corações femininos... e alguns masculinos.
— Boa noite! — cumprimentou com uma voz que bem poderia ser de locutor de rádio. — Tem computadores disponíveis?
Confirmei que sim e iniciei o preenchimento da ficha que o deveria acompanhar.
— Nome?
— Peter Pereira.
Por momentos, pensei que fosse dizer Peter Pan. Consegui conter o sorriso. Entreguei-lhe a folha com a hora de entrada e apontei-lhe o computador número treze.
Quando regressei ao ecrã, vi que Jewel escrevera:
"Tenho de ir."
"Ok."
"Tens email?"
Respondi afirmativamente e digitei o meu endereço de email.
"Obrigado. Vou enviar-te uma mensagem para ficares com o meu."
Antes de ficar offline, tentei saber mais sobre ela:
"Posso saber o teu nome?"
"Mafalda."
"O meu é Daniel."
"Gostei de falar contigo, Daniel."
O diálogo terminou ali. Menos de dez minutos mais tarde, recebi uma mensagem no meu email. Mafalda escrevia a repetir que gostara de falar comigo e que esperava que nos voltássemos a encontrar online ou trocar mensagens por email.
Não sei se isso iria acontecer ou não. Também não tive muito tempo para pensar no caso, uma vez que o utente do computador treze me acenava para que eu fosse lá.
Encontrei-o a navegar numa página de material fotográfico. Precisava de ajuda para imprimir as características de um determinado modelo.
— Gosta de fotografia? — questionei, indicando-lhe onde clicar para enviar o documento para a impressora.
— Sou fotógrafo profissional.
— Também gostava. — confidenciei. — Sempre gostei muito de fotografia.
Peter mostrou-se muito afável, percebendo o meu entusiasmo com o tema, e partilhou comigo a sua intenção de adquirir o último grito de tecnologia da Canon, cujo a foto se destacava no ecrã.
— Tenho uma velhinha AE1.
— Foi uma grande máquina, rapaz. — disse ele, conhecendo bem ao que me referia. — Mas, tens de evoluir, hoje em dia há máquinas muito melhores.
Pois havia, eu sabia. Continuava a absorver tudo o que eram notícias de equipamentos fotográficos. Só que essas "melhores" eram também demasiado dispendiosas para a minha parca carteira.
Expliquei-lhe que as impressões iriam sair na impressora junto ao meu balcão e que ele poderia recolhê-las quando quisesse.
Peter tornou-se uma presença assídua na loja para usar os computadores. Aparecia sempre à noite e gostava de ficar a conversar algum tempo comigo sobre fotografia. Confesso que tinha grande admiração por ele, pois protagonizava aquilo que eu adoraria ser, extremamente bem parecido e fotógrafo profissional.
O milénio velho deu lugar ao novo. O tão badalado bug do milénio não fora mais que uma lenda. Criara-se o receio de que todos os computadores teriam um colapso informático quando o algarismo "1" desse lugar ao "2". Nada aconteceu, o ano virou com a normalidade de todos os anteriores.
A minha vida também se foi desenrolando com normalidade, os dias sucediam-se como um padrão. Só mesmo os fins de semana me custavam mais a atravessar, uma vez que os passava em casa sozinho com a minha gata. Chegara a ponderar investir na aquisição de um aparelho para ter Internet em casa, mas concluí que o meu velhinho computador não tinha capacidade para tal.
Em vez disso, comprei o meu primeiro telemóvel, um modelo novo da Samsung que fugia ao aspecto "tijolo" que estes aparelhos tinham desde a sua invenção. Este era pequeno, cabia no bolso e protegia as teclas com uma fina placa do mesmo material.
Nas noites de trabalho, as conversas na Internet continuavam. Tinha já um pequeno lote de contactos com quem falava regularmente.
Jewel não aparecia muito online. Mantinha o contacto através de email, principalmente a enviar-me postais virtuais. Era uma moda da época, uns sítios na Internet onde se podiam preencher postais animados que depois se enviavam para o endereço de email do destinatário. Havia-os de todos os géneros e feitios para os mais diversos objectivos. Claro que também mandava as mensagens normais, relatando algo que sucedera. Por vezes, lançava a hipótese de nos conhecermos pessoalmente, só que isso seria altamente improvável, uma vez que o máximo que ela se deslocava era a Coimbra e eu circulava somente entre Lisboa e Almada.
Houve uma noite de Fevereiro, em mais uma conversa virtual, que Jewel me pediu uma foto. Não era incomum receber esses pedidos, mas raramente o fazia, pois só me interessava revelar a minha imagem se do outro lado estivesse uma rapariga interessante.
"Se te enviar uma minha, tu mandas-me uma tua?", questionei igualmente curioso por a ver.
"Não tenho em formato de ficheiro para te enviar. Mas vou tentar arranjar."
Sentir-me-ia mal se lhe respondesse que quando ela a tivesse lhe enviaria a minha. Afinal, já conversávamos havia umas semanas e ela era uma parceira de assuntos interessantes. Acabei por quebrar a minha regra e enviei-lhe por email uma foto minha, meio corpo, um ficheiro que tinha preparado sempre que me quisesse revelar.
"Já recebi.", escreveu passados dois minutos.
Não escrevi nada, aguardando uma opinião.
"És diferente daquilo que imaginava."
"Isso é bom ou é mau?"
"Não é bom nem é mau."
"Como é que me imaginavas?"
A resposta demorou mais que o habitual.
"Com uma túnica branca e uma auréola na cabeça.", foi a resposta à qual adicionou vários sorrisos.
Sorri para ninguém.
"E sem asas..."
"Sim, sei que és um anjo que não voa. Senão, poderias voar até aqui para nos conhecermos."
Ela voltava a pegar na hipótese de existirmos na vida real um do outro.
Curiosamente, nunca me encontrara com nenhuma das minhas parceiras de conversa virtual. Discutia-se essa hipótese casualmente, mas nunca se avançava mais que um "temos que combinar isso". Se nunca acontecera com quem vivia na mesma região que eu, dificilmente aconteceria com alguém que estava a mais de duzentos quilómetros.
"Fico a aguardar a tua foto."
Para ser sincero, não acreditei que ela enviasse uma fotografia sua. E honestamente, talvez tivesse preferido que não o tivesse feito.
A virtualidade permite-nos adoptar a personagem que quisermos, estamos escondidos no anonimato, podemos levar os outros a imaginar-nos como queremos e não como somos. Contudo, existe o reverso da medalha, imaginarmos quem está do outro lado como desejaríamos e não como a pessoa realmente é.
Duas noites mais tarde, recebi um email com o assunto "o prometido é devido". A mensagem era de Jewel, explicando que não poderia comparecer nas salas virtuais e que enviava em anexo uma foto sua, a qual eu deveria dar algum descontou pois já tinha uns anitos. Apesar de nunca ter tido muito interesse nela para além das agradáveis conversas, dei por mim ansioso em ver a foto. Como já referi, eu imaginava Jewel como uma gémea de Tânia.
Ao ver a foto, a melhor descrição que posso fazer do que senti é que foi semelhante a quando nos dão um presente muito grande e lá dentro está um par de meias. A fotografia parecia retirada de um documento de identificação, mostrava o rosto de uma rapariga que não parecia ter mais de doze ou treze anos. O rosto redondo, quase bolachudo, ar sério, cabelos ruivos encaracolados e olhos que não dava para perceber se eram verdes, azuis ou castanhos. Uma decepção.
Por breves momentos, fiquei estático, pensativo. Depois, concluí que era melhor assim, se ela fosse deslumbrante seria complicado não a poder conhecer pessoalmente. Eu gostava bastante de falar com ela, por isso, não iria ser uma foto que me afastaria.
Observei o amplo espaço pelo qual eu era responsável. A noite a meio da semana representava menor afluência de clientes. Mesmo assim, mais de metade dos computadores estavam ocupados. Abandonei a minha cadeira alta e fui até ao corrimão que cercava todo o quadrado de computadores. Olhei para baixo e fiquei a analisar a movimentação de clientes junto ao balcão das cópias. As pessoas não teriam nada melhor para fazer à noite que ir tirar fotocópias?
No lado oposto donde eu estava, vi um cliente acenar-me. Caminhei vagarosamente para lá, pois já conhecia o indivíduo que tinha tendência a ser um chato. Queria saber se eu conhecia algum sítio na Internet onde se pudesse saber informações sobre migrações de pinguins. Recomendei-lhe que usasse um motor de busca que o informaria bem melhor que eu.
No meu percurso de regresso ao balcão, reparei que uma mulher aguardava para ser atendida. Estava de costa e espreitava como se julgasse que eu estava escondido. Tinha uma silhueta elegante, vestia um fato formal escuro e o cabelo preto liso caía perfeitamente alinhado nas suas costas.
Acelerei o passo para não a fazer esperar. Passei por trás dela e contornei o balcão, dizendo:
— Boa noite!
Ela não respondeu e olhou-me curiosa. Eu encarei-lhe o rosto, o qual não me era estranho, mas sem o identificar de imediato. Aquele olhar penetrante, postura altiva e laivos de arrogância traziam-me qualquer coisa à memória.
Antes de dizer a primeira palavra, olhou para o cartão que eu trazia preso no peito com o nome.
— Bem me parecia que te estava a conhecer.
Nesse instante, fez-se luz na minha cabeça.
Perante mim estava Francisca.
Lembram-se da Francisca? A minha colega que com a Maria Inês fazia a dupla das mentes brilhantes da turma? Pois ali estava ela. Diferente da estudante, apresentava um ar mais maduro, muito mais preocupada com a aparência, revelando uma beleza austera que não lhe conhecia. É certo que na escola, uma rapariga como Tânia abafava as colegas, mas Francisca não era desinteressante na altura, eu é que só tinha olhos para a miúda mais gira da escola.
— Francisca?
— Olá, Daniel.
Enquanto colegas, raramente falámos e nas poucas vezes que isso aconteceu, Francisca não fora nada simpática. Porém, volvidos aqueles anos, a sua postura era diferente. Continuava altiva, mas não se revelou a antipática bajuladora de professores de outrora.
— Trabalhas aqui?
— Sim.
— Estás diferente. — constatou com um sorriso que não me permitiu perceber se a diferença era boa ou má.
— Tu também estás diferente.
Francisca encolheu os ombros.
— Talvez mais formal. — corrigiu, olhando-se. — Ossos do ofício.
— Que fazes?
— Neste momento estou a estagiar num escritório de advogados.
— Sempre conseguiste seguir advocacia. — constatei.
Ela anuiu e adicionou:
— E não só. Também tenho apostado na vida política.
— Não me digas que és deputada?!
— Ainda não, mas espero vir a ser. — relatou. — Para já, estou só como assistente no Parlamento.
— Muito bem. — congratulei, ainda com dificuldade em acreditar que era a Francisca da escola que ali estava. — Em que posso ajudar-te?
— Preciso de um computador com Internet e Word.
Peguei na folha e escrevi o seu nome e hora de entrada.
— Computador dezanove. É aquele ali ao fundo que está vazio. Se precisares de alguma coisa, é só acenar.
Francisca recebeu a folha e afastou-se para o lugar indicado.
Pela hora que preenchi no final, ela esteve cerca de noventa minutos no aparelho. Passado esse tempo, recolheu as folhas que trazia na pasta, pegou no papel de registo e caminhou por trás dos outros utilizadores, deitando uma espreitadela ao que cada um fazia, até alcançar o local onde eu estava.
— Isto é concorrido. — disse, entregando-me a folha. — Mas, é calmo.
Eu olhei para o relógio e escrevi a hora de saída na folha.
— Agora, é só entregar lá em baixo na caixa.
— É lá que pago?
— Sim.
Francisca ficou hesitante, permanecendo em frente a mim com o longo balcão pelo meio.
— Trabalhas aqui há muito tempo?
— Algum.
— E gostas?
— Sim.
Os seus olhos percorreram o espaço como se fosse uma avaliadora imobiliária.
— Nunca te imaginaria atrás de um balcão a atender ao público. — confidenciou. — Eras tão tímido na escola. Mal falavas...
— Outros tempos. — retorqui, recordando uma memória que preferia esquecer.
— Caladinho, caladinho... Mas foi contigo que a Tânia namorou. — lembrou ela, sorrindo divertida. — Voltaste a vê-la? — Abanei a cabeça. — Eu vi-a há tempos numa reportagem na RTP, num desfile... Acho que estava em Milão.
Eu evitava notícias de Tânia, custava-me sempre vê-la, rever a rapariga que fora a minha única namorada.
— Está a ter o sucesso que merece.
Francisca pareceu concordar.
— Sim. Acho que, melhor ou pior, todos nos fomos safando.
Senti que estava a referir-se a mim como fazendo parte do grupo que se safou pior.
— Desde o fim da escola, não voltei a ter notícias de ninguém.
— Também não sei muito mais. A Maria Inês estudou comigo na Faculdade de Direito, o Alfredo acho que se formou em História... Ah. E o teu "amigo" trabalha num café.
— Amigo?
Ela sorriu novamente.
— Estou a ser irónica, Daniel. Refiro-me ao Tiago.
Não manifestei qualquer interesse por aquela informação.
Desviando a atenção para o pulso, despediu-se:
— Até à próxima, Daniel. Gostei de te ver.
E desceu as escadas para se ir embora.
As tardes primaveris chegaram antecipadamente. Atrás do balcão onde eu atendia os cliente, existia uma ampla janela envidraçada que nos permitia ver para a avenida. Claro que o contrário também era possível, quem passasse na rua conseguia ver-nos, principalmente à noite.
Ao fim de algumas semanas de ausência, Peter apareceu na loja. Gostava dele, um tipo porreiro, bom conversador e que me ia dando umas dicas de fotografia. Trazia na mão uma revista que colocou sobre o balcão para eu ver.
— Trouxe para te mostrar o meu último trabalho.
Olhei para a capa, uma conhecida revista masculina, vendo uma bela mulher em biquíni. Ele folheou algumas páginas e abriu a revista a meio, num dos ensaios fotográficos. Analisei as fotos de meia dúzia de raparigas em biquínis minúsculos.
— Sortudo... — proferi, encantado com as páginas.
Peter sorriu.
— Vou contar-te uma coisa, Daniel. — Pensei que me fosse confidenciar que estivera envolvido com algumas delas, senão mesmo com todas. — Eu gosto do mesmo que elas.
A princípio não percebi, mas depois não consegui esconder o rosto de espanto. Ele estava a dizer-me que era homossexual. Como era possível? Como poderia um homem daqueles, uma figura tão sedutora, ser... gay?
— Chocado?
— Surpreso. — corrigi. — Não fazia ideia.
— Ninguém faz.
Notei que aquela pequena confidencia servia para me demonstrar que não era só o cliente que falava com o funcionário, era uma expressão de amizade, uma revelação que não se faz a qualquer um. De súbito, fiquei a pensar se haveria uma segunda intenção naquela confissão.
— Eu sei que é um choque para as pessoas. Estão habituadas ao estereótipo de homens com "tiques", trejeitos afeminados... Não sou assim, mas isso não altera os meus gostos.
— És um tipo porreiro, Peter. É-me indiferente a tua orientação sexual.
— Ainda bem, Daniel. Também és porreiro e gosto de conversar contigo. Não quereria que isto nos impedisse de sermos amigos.
— Claro que não.
Peter empurrou a revista para mim.
— Trouxe-a para ti.
— Obrigado.
— De nada. Arranjas-me um computador?
Preenchi a folha de registo e indiquei-lhe o seu posto de utilizador.
Guardei a revista que me oferecera, antes que outro cliente a visse, uma vez que não seria muito ético ter uma publicação daquelas ali no meu posto de trabalho. Ainda me custava a acreditar naquela revelação.
— Dá Deus nozes a que não tem dentes. — murmurei. — Ou melhor, a quem não as quer comer...
Invejava Peter pelo seu trabalho, por poder fotografar mulheres lindíssimas, viver num mundo em que elas o rodeavam... Sentei-me na minha cadeira alta, atrás do balcão e a minha atenção passou para o ecrã do computador. Digitei os meus dados para entrar numa sala de conversa virtual. Como habitualmente, as mensagens sucederam-se, os diálogos dos muitos cibernautas que navegavam por ali. Ia a escrever um "olá" na altura em que um cliente se aproximou a pedir auxílio. Saí do meu lugar e acompanhei-o ao seu computador para o ajudar.
Ao terminar a explicação, reparei que alguém me aguardava no balcão. Percorrendo o caminho de retorno, a mulher virou-se e reconheci Francisca. Sorri-lhe com afabilidade, ao qual ela correspondeu de forma protocolar. Tal como da outra vez, a indumentária era formal. Pediu um computador com Internet e afastou-se, mal lhe indiquei o número do aparelho.
Aproveitando a fase calma e sem clientes a importunar, retomei a minha presença na conversa virtual. Percebi que ninguém ligara ao meu primeiro "olá". Até tinha sido bom, pois não teria podido responder, ausente. Ia repetir a saudação no momento em que surgiu uma frase de cor diferente, sinónimo que era dirigida a mim.
"Olá AnjoDelta."
Olhei para o nome do interlocutor. Tinha uma alcunha aleatória, algo tipo utilizador159, algo que o sistema atribui automaticamente a quem não definiu o nickname à entrada.
"Olá. És M ou F?"
Esperei a resposta.
"As duas, sou Mulher e Feminina."
Percebi o tom brincalhão nas palavras.
"O M é masculino, não é mulher.", corrigi só para aborrecer.
"Eu sei. Estava a meter-me contigo."
"Donde teclas?"
"De perto."
Calculei que não quereria revelar a sua localização.
"Como podes dizer que é perto se não sabes onde estou?"
"Eu sei onde estás."
A resposta surpreendeu-me. Ponderei a hipótese que fosse alguém com quem tivesse falado anteriormente. Contudo, eu nunca dissera a ninguém o sítio exacto onde estava.
"Estás perto de Lisboa, é isso?"
"Estou em Lisboa. E diria que estou a uns trinta metros de ti."
Fiquei perplexo. O pior que poderia acontecer era ser descoberto por alguém que eu não fazia a mínima ideia de quem era. Temi que fosse alguma daquelas raparigas com quem falara uma vez e que não tinha a mínima intenção de repetir a experiência.
No ecrã surgiu:
"Já sabes onde estou?"
Trinta metros. Seria na rua? Não, não havia nenhum outro lugar com computadores tão perto. Só se fosse alguma empresa ali na avenida, mas àquela hora... Olhei para os computadores à minha frente e para as pessoas totalmente concentradas neles. Só podia ser alguém ali.
"Onde estás?"
"Computador 17."
Era o computador de Francisca. Olhei para lá e vi a sua cabeça surgir atrás do cubo que servia de ecrã, atirando-me um sorriso divertido.
"Como sabias quem eu era?", escrevi.
"Espreitei para o teu computador, enquanto esperava e vi o teu nick."
Suspirei de alívio, temendo outra coisa. Voltei a olhar para o fundo da sala. Francisca estava coberta pelo enorme bloco parecido com um televisor. Equacionei o que escrever, só que nova mensagem apareceu:
"Vou deixar-te em paz. Foi só para me meter contigo."
Retorqui com um "ok" e não trocámos mais mensagens.
A noite foi pacífica e enfadonha. Não apareceu mais nenhum cliente no meu departamento para usar um computador e os que lá estavam foram saindo aos poucos. Na Internet nem uma conversa de jeito, fazendo-me desistir da presença nas salas de chat muito antes do fim do meu turno. Peter foi dos últimos a sair e, ao receber a folha com o registo do tempo a pagar, inquiriu:
— Ainda chocado?
— Nadinha. — neguei com um sorriso amistoso. — Obrigado pela revista.
Ele fez um aceno a desvalorizar e afastou-se para as escadas.
Ficaram só três pessoas nos computadores, a dez minutos do fim do meu horário laboral. Uma delas era Francisca.
Todas as noites havia sempre pessoas que estavam tão fixadas na Internet e nas conversas ou outras coisas virtuais que se esqueciam que o espaço fechava. Por isso, não passava uma noite em que eu não tivesse que me deslocar a esses utilizadores e alertá-los para esse facto. A maior parte tomava consciência da hora e rapidamente se ia embora. Outros precisavam de mais que um aviso ou o incentivo de ter um corte de corrente no aparelho. Nessa noite foi tudo tranquilo. Avisei os dois primeiros, que rapidamente se despacharam, e parei junto de Francisca que estava mais longe.
— Vamos fechar.
Francisca não se apercebeu da minha aproximação. Olhou para o relógio.
— Xiii... Nem dei pelas horas.
Espreitei o ecrã, pensando encontrar uma janela de conversação, mas deparei com sítios de notícias e informações.
Regressei ao balcão, onde os outros dois me esperavam para registar os tempos de consumo. Francisca aproximou-se no momento em que eles desciam as escadas.
Ao escrever a hora na sua ficha, ouvi Francisca perguntar:
— A que horas sais?
— Meia-noite. — informei, entregando-lhe o papel. Ela ficou a olhar para mim, não estava hesitante nem expectante. Parecia mais provocadora. Fiquei sem saber muito bem o que esperava de mim. Uma despedida? — Até à próxima.
Francisca olhou para o papel e novamente para mim. Iria reclamar o tempo que eu escrevera? Fez um movimento de quem se ia embora, mas travou.
— Queres ir beber um copo? — convidou.
Apanhou-me completamente de surpresa.
— Um copo? — repeti para ganhar tempo.
— Uma bebida, um café, um chá. — adicionou. A seguir, lançou um sorriso desafiador. — Ou um copinho de leite.
— Está bem. — concordei. — Tenho só de desligar tudo.
Francisca assentiu, dizendo:
— Vou pagar. Espero-te lá em baixo.
O convite confundira-me. Nunca tivera a mínima empatia com Francisca na escola e ali vira-a duas vezes. Não nego que era uma mulher interessante, mais não fosse pela personalidade carismática. Talvez quisesse somente recordar os tempos de estudante, passar um bocado a conversar... Enfim, não fazia a mínima ideia porque me convidara para uma bebida ao início da madrugada.
Desliguei os computadores e arrumei o necessário. Era Sexta e no fim de semana o departamento era assegurado por dois rapazes que faziam aquele serviço em part-time e com quem raramente me cruzava. Peguei no casaco, desci as escadas e fui passar o cartão na máquina de ponto. Despedi-me dos colegas que ainda por ali andavam e saí para a rua.
A avenida era o paradoxo do seu aspecto habitual, sempre ruidosa e assoberbada de trânsito. Àquela hora poucos carros passavam e o som mais estridente foi um autocarro que nem parou nas paragens.
Francisca aguardava no passeio, em frente à montra da loja, com os braços cruzados no peito, a mala pendurada no ombro e o olhar perdido na ausência de veículos a circular.
— Vamos? — disse eu, despertando-a.
Ela aproximou-se de mim.
— Sim. Onde queres ir?
— Não sei. Não posso ir muito longe, o último barco para a margem sul parte às duas da manhã.
A informação foi-lhe irrelevante. Fez-me sinal para a acompanhar. Atravessámos a via exterior da Avenida da República em direcção aos carros arrumados à esquerda, em espinha. Apontou-me a porta direita de um Citroen Saxo verde garrafa e entrou para o lugar do condutor. Sentei-me a seu lado.
A viagem foi curta, subimos a avenida, contornámos a Praça Duque de Saldanha e voltámos a entrar na avenida em sentido inverso. Cerca de cem metros após a rotunda, Francisca viu um lugar e voltou a estacionar.
— Vamos ao Galeto. — sugeriu.
Concordei, pensando que poderíamos ter vindo a pé. Porém, compreendi que ela não estaria muito interessada em percorrer a avenida deserta sozinha até perto donde o carro estava anteriormente.
O Galeto era um bar restaurante bem conhecido e muito frequentado da Avenida da República. Passava da meia-noite e ainda se via muita clientela à volta do balcão que contornava todo o espaço. No interior do balcão, os funcionários atarefavam-se no atendimento, enquanto os clientes se sentavam na parte exterior desse mesmo balcão. Francisca parecia conhecer bem o local e movimentou-se com perícia até encontrar o local desejado, sentando-se num dos bancos altos e convidando-me a sentar noutro. Pediu um copo de espumante e eu fiz-lhe companhia com uma cerveja.
— Nunca vim aqui. — disse eu, fazendo conversa.
— Já cá tenho vindo com colegas do escritório.
— Trabalhas aqui perto?
— Na Fontes Pereira de Melo, num escritório de advogados, onde estou a estagiar. — Deu um golo na bebida. — Está quase a terminar e já me fizeram uma proposta para ficar lá.
— Isso é bom.
Francisca anuiu.
— E tu, Daniel? Planos para o futuro.
Encolhi os ombros.
— Manter o emprego para poder pagar as contas.
— O ordenado é bom? — questionou, recriminando-se de seguida. — Desculpa, não tenho nada com isso.
— Não me importo de dizer. Ganho noventa e cinco contos limpos por mês. — Obtive um franzir de rosto dela. — Não é nada de especial, mas vai dando para as despesas. — Não tive a deselegância de lhe perguntar quanto ganhava no estágio ou quanto iria ganhar quando ficasse empregada lá. — Ainda vives em Almada?
Mais um golo no espumante e um abanar da cabeça.
— Não, estou a viver em Lisboa. Os meus pais ajudam-me a pagar a renda de um apartamento em Moscavide até eu começar a receber como advogada.
Olhei para o meu copo, vendo as bolhas da cerveja a subir. Bebi um pouco, o ambiente estava quente ali dentro.
— E quais são os teus planos para o futuro? — questionei sem especial interesse, apenas para manter a conversa e retribuindo a curiosidade dela.
— Consolidar-me como advogada e depois investir mais na minha actividade política e tentar chegar a deputada.
Aquilo foi só o princípio, Francisca iniciou um monólogo de como gostava do ambiente parlamentar, do seu trabalho num dos maiores partidos do país, o objectivo de ser deputada com pretensões a evoluir o máximo que conseguisse. O céu era o limite e o seu céu era a Presidência da República.
— Queres ser a primeira mulher presidente de Portugal. — constatei algo entediado. Ela assentiu com orgulho. Eu olhei para o relógio. — Bom, é melhor ir andando, não quero perder o barco.
Francisca pareceu surpreendida por eu sugerir o fim daquele convívio. Porém, concordou. Intransigente, não permitiu que eu pagasse ou partilhasse a despesa. Acho que se sentiu desiludida, talvez esperasse que a venerasse pelas suas ambições. A verdade é que tudo aquilo me parecia estranho, não existia empatia entre nós, revelávamo-nos dois seres de dois mundos totalmente diferentes.
Deixámos os nossos lugares. Francisca nem esperou por mim, assumindo que eu viria atrás dela.
Ao sair do estabelecimento, parei no passeio, vendo que ela se dirigia para o carro, o qual estava na direcção contrária ao meu destino que era a paragem de autocarro na Praça Duque de Saldanha.
— Tenho de apanhar o autocarro ali. — informei, apontando para a praça.
Ela olhou para lá, como se procurasse o autocarro.
— Vais para o Cais do Sodré? — Confirmei que sim. — Anda, eu deixo-te lá. — Esbocei uma recusa para não a incomodar. — Não me custa nada, eu levo-te lá.
Francisca conduziu com pleno conhecimento do caminho, virando aqui e ali até dar a volta que nos colocasse de novo rumo a sul da cidade. O percurso foi feito sem troca de palavras, apenas ao som da rádio. Sim, tinha a certeza que ficara desapontada comigo. No entanto, também não sei que esperava ela de mim.
Parámos perto do acesso dos carros ao barco. O cais fluvial estava deserto, não se vislumbrando passageiros a aguardar a partida da última embarcação, o qual iria acontecer daí a vinte minutos. Francisca olhou para mim em silêncio. Mais uma vez, fiquei a pensar que esperava algo de mim. Ponderei como me haveria de despedir: um simples "adeus" ou tentaria arriscar um beijo na face?
— Gostei deste bocadinho. — disse ela, inexpressiva.
— Eu também. — retribuí por cortesia.
Houve uma hesitação. Não, não se justificava um beijo na face, mal nos conhecíamos. Fiz um movimento para o puxador da porta.
— Estás ocupado no fim de semana? — interrogou num tom rápido e seguro.
Quando não estava a trabalhar, nada ocupava a minha vida, a não ser uma gata, a televisão e alguma tarefa caseira.
— Não.
— Queres ir ao cinema, amanhã?
— Sim, pode ser... — concordei, meio aparvalhado.
— Encontramo-nos amanhã à tarde, por volta das quatro, no Cinema São Jorge. Está bem para ti?
— Sim.
— Combinado.
Prossegui com o movimento para o puxador. Abri a porta e saí.
— Até amanhã, então.
— Até amanhã, Daniel!
Logo que fechei a porta, Francisca olhou para a estrada, meteu a primeira velocidade e afastou-se de regresso ao parco trânsito citadino daquela hora.
A travessia de barco foi feita na companhia de mais quatro passageiros e com a cabeça envolta em pensamentos. Confuso com mais um convite, tentei perceber o que poderia aquilo significar. Estaria Francisca interessada em mim? Analisei a possibilidade, pensando nela com outros olhos. Era uma mulher interessante, atraente, segura, bonita... Dei por mim a ver com agrado um envolvimento entre nós. Ao mesmo tempo, senti-me inseguro. Só tivera uma namorada e já tinham passado vários anos desde que isso acontecera. Ia a caminho dos vinte e três anos e nunca estivera sexualmente com uma mulher. Receei falhar se aquela ida ao cinema evoluísse para algo mais intenso.
Fosse como fosse, na tarde seguinte, lá estava eu ao cimo da escadaria da entrada do Cinema São Jorge, na Avenida da Liberdade, aguardando a sua chegada. Tive atenção a todos os detalhes para ser cativante. Barbeara-me, perfumara-me e vestira uma camisola azul a acompanhar as calças de ganga preta que faziam conjunto com o blusão. Já não era o rapaz desinteressante dos tempos de escola, mas tinha noção que não era uma imagem que despertasse a atenção do sexo oposto.
Francisca apareceu cinco minutos mais tarde. Surgiu diferente, pois abandonara o estilo formal, o qual trocara por uma imagem mais desportiva. Vestia calças de ganga azuis claras ajustadas ao seu corpo, uma camisa bege e um casaco escuro à medida. Calçava sapatilhas e caminhava com uma elegância descontraída. Trazia o cabelo preto penteado e preso na nuca.
Sim, seria muito fácil deixar-me atrair por ela.
— Olá! — cumprimentou com um sorriso simples.
Por sua sugestão, o filme escolhido foi Capitães de Abril, a reconstituição histórica do 25 de Abril de 1974. Comprámos os bilhetes e dirigimo-nos para a sala principal do cinema. No início do século XXI, aquele ainda era um dos maiores e mais tradicionais cinemas de Lisboa. Procurámos os nossos lugares e sentámo-nos, alguns minutos antes de começar a sessão.
Os espectadores foram entrando, espalhando-se por um espaço ainda muito iluminado. Francisca divergiu a sua atenção para o telemóvel, um modelo bem mais moderno que o meu, e respondeu a uma mensagem escrita.
— Tens telemóvel? — inquiriu.
— Sim.
— Dá-me o teu número.
Soletrei os algarismos, vendo-a a pressionar as respectivas teclas. A seguir, carregou no botão verde e o meu telemóvel tocou. Ela carregou no vermelho, dizendo:
— Esse é o meu número.
Apesar de ter alguma prática com os computadores, os telemóveis ainda eram um "bicho" estranho. Serviam-me para telefonar e mais nada. As mensagens escritas nunca tinham funcionado. Partilhei essa ignorância com ela, enquanto esperávamos. Francisca pediu para ver o meu telemóvel e começou a carregar nas teclas, abrindo menus. Vi-a fazer uma configuração e devolver-me o aparelho.
— Não tinhas o número do servidor de mensagens definido. — explicou. — Experimenta. Manda uma mensagem para mim.
Escrevi "teste" e enviei para o número dela. Ouviu-se um apito. Ela abriu a "sms" e virou o ecrã para mim.
— Estás a ver? Funciona.
As luzes da sala diminuíram de intensidade e no enorme ecrã começaram a aparecer as primeiras publicidades, ao que se seguiram apresentações de futuras estreias. Por fim, as luzes apagaram-se por completo e o filme começou.
Confesso que não gostei do filme. Nada contra a história, os actores ou a realização. Apenas tinha alguma dificuldade em ver filmes representativos de uma época que me lembrava a minha mãe, uma época de liberdades desmedidas que permitiram que a minha progenitora fosse tão tresloucada. Contudo, Francisca vinha encantada e adorara cada minuto.
Quando saímos do cinema, equacionei onde iríamos a seguir. Desta vez, queria antecipar-me, fazer uma sugestão antes dela. Podíamos ir tomar um café, depois jantar... Um sítio barato, claro, pois o meu orçamento era limitado. Talvez aquele encontro nos pudesse elevar a outro nível, um nível em que vincássemos a nossa vontade de continuar a sair juntos.
Seguindo um passo atrás, dei por mim a observá-la, a perceber que ela era mesmo muito interessante. Acho que estava a começar a gostar dela.
Francisca voltou-se.
— Queres que te deixe nalgum lado? — perguntou.
Fiquei desapontado, mas esforcei-me para não o deixar transparecer. Antes de conseguir dar uma resposta, ela prosseguiu:
— Tenho um jantar combinado com uns amigos, mas posso deixar-te no Cais do Sodré, se fores regressar.
— Não é preciso. — consegui dizer. — Ainda vou dar uma volta por aí.
— Ok. Xau!
E afastou-se indiferente, subindo a avenida até ao local onde tivesse deixado o automóvel.
Qual fora o propósito daquilo? A questão acompanhou-me ao longo de todo o regresso a casa. Todos os filmes que fizera na minha cabeça se tinham esfumado como cinzas atiradas ao mar. Ponderara desde o simples jantar e combinação de novo encontro até à ida a casa dela e uma noite juntos onde ela se tornaria a primeira mulher com quem faria amor.
— És um romântico. — condenei-me, ao chegar a casa.
Tio miou-me, quase como se adivinhasse os meus pensamentos e perguntasse o que fazia de regresso tão cedo. Peguei-lhe ao colo e sentei-a nas minhas pernas, ao aterrar no sofá da sala. Liguei a televisão, mas não prestei atenção às imagens. A gata adormeceu. Francisca não me saiu da cabeça. Julgara que estava interessada em mim, mas afinal não fora mais que uma solução para a acompanhar a ver um filme que, possivelmente, não interessava a nenhum dos amigos.
Jewel era a pessoa com quem mais conversava e, por isso, acabámos por nos tornar confidentes um do outro. Não tínhamos problemas em abordar qualquer assunto, talvez porque no nosso íntimo sabíamos que jamais a nossa amizade sairia do virtual para o real. Mesmo assim, havia coisas que me envergonhavam e não partilhava com ela. Ser virgem era uma dessas coisas. Partilhei com ela os acontecimentos do fim de semana com Francisca. Sem que eu o referisse, ela percebeu que existia um interesse meu na futura advogada. Não sei se esperava que ela me descodificasse a atitude de Francisca. Talvez por ela também ser mulher conseguisse descortinar algo que eu não visse. Porém, Jewel não o fez. Ao invés, incentivou-me a conquistá-la.
Todas as noites, no meu posto de trabalho, sempre que ouvia movimento a aproximar-se, olhava para as escadas, expectante no reaparecimento de Francisca. Isso não aconteceu durante umas três semanas. Eu tinha o número dela, mas nunca tive coragem de a contactar. Ia ligar-lhe e dizer o quê? Convidá-la para sair? Tinha receio de levar uma "nega".
Francisca retornou à loja a meio de uma semana de Maio. A chuva caía com abundância na noite exterior. Vi-a no seu traje formal a subir os degraus com o olhar cravado em mim. Permaneceu séria e parou junto ao balcão.
— Olá Daniel! — cumprimentou de rosto fechado.
— Olá Francisca! — retribuí com um nervoso miudinho que chegara sem avisar.
— Tens computadores livres? — questionou, olhando para o espaço amplo.
— Sim. — confirmei, começando a preencher a ficha.
Ela aguardou, séria, impenetrável. Recebeu a folha.
— Computador 14.
Pareceu nem ouvir o que eu dissera e virou-me as costas. Fiquei a vê-la caminhar por trás dos outros clientes, dirigindo-se ao aparelho indicado e sentar-se, momento em que ficou quase totalmente escondida atrás do ecrã.
Nessa noite não me sentia interessado na Internet. Jewel não iria estar online, devido a um evento familiar e eu não estava com paciência para conversas ocasionais. Fiquei a folhear a revista de fotografia que comprara antes de ir trabalhar.
A minha leitura foi interrompida por um toque seco do meu telemóvel. Não reconheci, uma vez que nunca ouvira aquele sinal. Peguei no aparelho e deparei-me com uma novidade, um sinal a piscar no pequeno ecrã monocromático de fundo verde, o sinal de mensagem de texto. Para minha surpresa, a mensagem era de Francisca. Abri.
"Não estás no chat?"
Procurei onde se carregava para responder, digitei "não" e enviei.
"Podes ir?", foi a mensagem que chegou a seguir.
Não queria continuar com aquilo muito mais tempo, uma vez que apesar de o toque não ser muito sonoro, o ambiente silencioso daquele espaço permitia que os clientes ouvissem. Escrevi:
"Vou entrar."
Virei-me para o computador e abri o navegador no sítio das salas de conversação. Ia para escrever os meus dados, quando o telemóvel voltou a apitar.
"Sala privada. Nome: Francis."
Abortei o início de sessão. A plataforma permitia-nos configurar uma sala privada com um nome definido por nós. Só quem soubesse o nome da sala é que a encontraria e poderia entrar. A sala "Francis" tinha um utilizador de nome "Francisca". Digitei o meu "AnjoDelta" e entrei, espreitando lá para o fundo, tentando vê-la. Ela mantinha-se escondida pelo aparelho e não deu sinais de querer espreitar-me do seu lugar.
"Cá estou."
"Nunca mais disseste nada."
Que esperava ela que eu lhe tivesse dito? A resposta surgiu na frase seguinte:
"Dei-te o meu número, podias ter ligado."
Ela também podia ter ligado. E eu ia ligar-lhe para dizer o quê? Ponderei o que escrever, não queria que alguma palavra a afastasse.
"Não quis incomodar-te."
"Se me incomodasses, não te teria dado o meu número."
"Sim, tens razão.", concordei só para não a contrariar.
"Não te interessou, pois não?"
"O quê?"
"Voltar a sair comigo."
"Porque dizes isso?"
"Porque te dei o meu número e tu não retribuíste o meu convite."
Pronto, fizera-se luz na minha cabeça. O convite para o cinema fora feito por ela. Logo, se houvesse interesse em repetir, deveria ter sido eu a fazer o novo convite. Espreitei para o ponto onde ela estava, tentando perceber alguma expressão facial dela, só que Francisca permanecia coberta pelo monitor. Antes de escrever, e uma vez que eu demorava na resposta, uma nova frase surgiu no meu ecrã:
"A menos que não gostes da minha companhia."
"Não é nada disso. Eu gosto da tua companhia."
"Então não percebo."
Apesar de querer jogar pelo seguro, evitar a denúncia do meu interesse antes de saber qual seria o dela, acabei por desabafar:
"Fiquei com a sensação de que tu não gostaste muito da nossa ida ao cinema."
Houve uma demora, o que me levou a nova espreitadela lá para o fundo da sala sem sucesso.
"Por que sentiste isso? Eu gostei.", digitou Francisca.
"Foste logo embora."
"Tinha coisas combinadas."
Sim, eu sabia que ela tinha coisas combinadas. Não tinha o direito de a recriminar por isso, afinal só tínhamos combinado uma ida ao cinema. Tudo além disso só foi fruto da minha imaginação.
"Foi por causa disso que não me ligaste?"
Ia a escrever algo, mas o som de um telemóvel a tocar travou-me. Procurei pelo amplo espaço a proveniência do som e percebi que era o de Francisca. Pelos movimentos, foi perceptível que ela atendeu, esforçando-se para falar baixinho de forma a não perturbar os outros utilizadores. Nesse espaço de tempo, um cliente abandonou o seu lugar e dirigiu-se ao balcão com a folha de registo. Apontei a hora de saída e devolvi-lhe o papel. Quando regressei ao computador, constatei que Francisca abandonara a sala virtual, vislumbrando-a em simultâneo a levantar-se e a vir na minha direcção.
Francisca parou junto ao balcão com o mesmo rosto fechado com que chegara. Sorri, mas ela não correspondeu.
— Já vais?
— Tenho de ir. — confirmou, apontando-me o registo de tempo.
Escrevi a hora, lamentando:
— Desculpa não ter ligado.
Ela recolheu a folha, abanando ligeiramente a cabeça, desvalorizando o assunto. Manteve o semblante carregado e afastou-se apressada sem dizer mais nada.
A confusão adensou-se na minha cabeça. Porém, não voltaria a ser acusado de não retribuir convites. Peguei no telemóvel e escrevi-lhe uma mensagem a repetir o pedido de desculpa e que gostaria de voltar a sair com ela. Não tive resposta.
Duas noites mais tarde, Francisca reapareceu na loja. Desta feita, vinha acompanhada por um rapaz que envergava a mesma indumentária formal que ela. Pararam em frente a mim e ouvi-a solicitar:
— Precisamos de um computador com word.
Foi a minha vez de manter o rosto fechado e ser frio. Escrevi a hora de entrada e apontei-lhe o número do aparelho.
Não tinha esse direito, mas senti ciúmes. Donde estava, conseguia vê-los na perfeição. Trabalhavam em algo, ele escrevia num bloco e ela teclava. Notei que se davam bem, Francisca sorria frequentemente e ele observava-a com uma admiração suspeita. Já foste, murmurei para o meus botões.
Procurei ignorá-los. Eram de outro mundo, uma classe superior à minha, um produto das Universidades, gente de um mercado de trabalho muito mais elevado que o meu. Senti-me pequeno, imbecil por ter pensado que ela poderia ter tido algum interesse em mim.
O som da impressora despertou-me. Comecei a ver sair várias folhas de texto. Saí do meu banco alto e fui recolher o monte de papel que a máquina cuspira. Ao voltar-me, deparei-me com o acompanhante de Francisca.
— São nossas. — disse-me, como se tivesse receio que as deitasse no lixo.
Contei-as e entreguei-lhas.
Estiveram lá até quase ao fim do meu turno. Dez minutos antes da meia-noite, arrumaram tudo e levantaram-se das cadeiras. Deram meia dúzia de passos e pararam, olhando-se com interesse. Demasiado longe, não consegui ouvir o que diziam. Ele dissera algo que a fez sorrir, depois adicionou algo fazendo um gesto a apontar para um sitio abstracto. Francisca abanou a cabeça, talvez numa recusa. Ele encolheu os ombros e retomaram o andar até às escadas. Aí, voltaram a parar. Trocaram dois beijos na face em jeito de despedida. Por fim, ele desceu as escadas e ela completou o espaço até mim.
Recebi a folha de registo com a mesma frieza com que a atendera antes. Tinha vontade de lhe perguntar porque não respondera à minha "sms", mas faltou-me a coragem. Preenchi a hora e o número de páginas impressas.
— Queres ir beber qualquer coisa ao Galeto? — convidou com um sorriso neutro.
Quis recusar para ripostar a forma confusa como ela se comportava comigo. No entanto, não fui estúpido ao ponto de o fazer.
As idas ao Galeto tornaram-se regulares nas semanas que se seguiram. Francisca aparecia na loja todas as Sextas a seguir ao jantar, alugava um computador e ficava a trabalhar até à hora de eu sair. Não falávamos pela Internet nesse espaço de tempo, uma vez que ela aproveitava esse período para a sua vida profissional. As poucas palavras que trocávamos aconteciam quando ela ia buscar as impressões que tinha enviado para a impressora. No fim, pertinho da hora do fecho, ia pagar e ficava à minha espera no passeio, perto da porta da loja. Os nossos encontros resumiam-se a essas idas ao restaurante bar. Nos restantes dias da semana, o contacto entre nós era inexistente.
Confesso que adorava aquele momento semanal, cerca de uma hora ou hora e meia, eu com uma cerveja e ela com a sua flute de espumante, a conversar sobre os desenvolvimentos da nossa actividade profissional ou momentos da actualidade. Apreciávamos a companhia um do outro e fomos desenvolvendo uma amizade genuína, mesmo que houvesse momentos em que parecia existir uma barreira invisível entre nós.
A minha confidente virtual, Jewel, escrevera-me certa vez que aquela amizade ainda iria dar em namoro. Achei totalmente improvável, uma vez que Francisca se revelava simpática e afável, mas sem permitir que existisse qualquer toque entre nós. Em todos aqueles encontros, nem um beijo na face trocámos.
Na minha tentativa de descodificar Francisca, acabei por concluir que ela procurava em mim um amigo, alguém fora do seu círculo social para conversar. Não me importava.
A rotina de encontros foi quebrada em finais de Junho. Na véspera, recebi uma mensagem dela a informar que tinha um compromisso e que não iria aparecer na loja, como costume. Aquilo deixou-me triste, sentia saudades dela, uma saudade que atenuava todas as Sextas ao início da madrugada, e que teria de suportar mais uma semana. Assim, ao invés de seguir com Francisca para o Galeto, nessa noite repeti o ritual das outras noites após o trabalho e fui esperar o autocarro na paragem. Nunca aguardava mais que uns cinco minutos. O trajecto até ao Cais do Sodré foi feito com o olhar perdido na paisagem nocturna repleta de luzes urbanas. Não consegui evitar a sensação de vazio. Seguiu-se a travessia do Tejo, o cacilheiro quase vazio, a ondulação ténue que me embalava a imagem da parceira que se ausentara. Desembarquei em Cacilhas e caminhei até ao local donde partiria o autocarro que me levaria até casa.
Tio esfregou-se nas minhas pernas, mal entrei no apartamento, era a sua forma de me cumprimentar. Roçava-se em mim, como que dizendo "chegaste" e depois voltava para a sua cama, enroscando-se na sua manta. Eu nunca tinha sono ao chegar, pelo que estacionava no sofá e ligava a televisão, procurando qualquer coisa de interesse entre quatro canais.
O telemóvel apitou, fazendo Tio abrir os olhos e miar um protesto por a terem acordado outra vez. Peguei no aparelho e vi o sinal de nova mensagem enviada do número de Francisca. Abri curioso.
"Estás acordado?"
Carreguei para responder e escrevi:
"Sim. Está tudo bem?"
Menos de trinta segundos depois, o telemóvel voltou a apitar e Tio tornou a reclamar. Eu li a mensagem:
"Posso ligar-te?"
"Sim."
Fiquei com o aparelho na mão para atender. Só o deixei tocar uma vez para que Tio não voltasse a protestar.
— Desculpa estar a incomodar-te tão tarde, Daniel.
— Não faz mal, cheguei há cinco minutos.
— Precisava de conversar com alguém.
— Aconteceu alguma coisa?
Houve uma pausa do outro lado. Dava para ouvir a sua respiração.
— Fiz merda.
A resposta foi uma surpresa. Não imaginava uma mulher como ela a fazer coisas erradas. A voz soou cansada, algo vencida.
— Estás bem? — tentei saber. Um suspiro. Insisti. — Queres contar-me o que aconteceu?
A hesitação foi notória, um silêncio prolongado. Dei-lhe o tempo necessário a que começasse.
— Esta noite fui jantar com um ex-colega da faculdade. — começou no mesmo tom arrastado. — Encontrámo-nos esta semana numa sessão do tribunal, não nos víamos deste o tempo em que estávamos a estudar. Tomámos um café, conversámos e ele acabou por me convidar para jantar. — Por isso é que ela cancelara o nosso encontro habitual. — Depois do jantar, convidou-me a ir a casa dele. A noite estava a ser agradável, a conversa boa, o que seria um último copo em casa dele? — Nova pausa. Seria para que comentasse? Permaneci ouvinte. — Surgiu um clima, aconteceu um beijo... Deixei-me levar. — Eu sabia onde aquilo ia dar, mas não a interrompi. — Quando dei por mim, estávamos na cama. — Tornou a parar. Desta vez prolongou o silêncio. Queria que eu dissesse algo. — Deves estar a achar-me uma vadia...
Estava desapontado. Estava com inveja do tipo que não conhecia. Pensava que ela estava blindada a relacionamentos, incapaz de cenas de sexo pontual. Tudo aquilo era surpreendente. Não sabia muito bem o que dizer.
— Não estou a julgar-te, Francisca.
— Não te levaria a mal por isso. Eu própria me sinto mal comigo. — Suspirou. — Não imaginas como me senti no fim. Peguei na roupa, vesti-me apressadamente e saí sem lhe dar tempo de perceber o que me ia na alma.
— Quando se voltarem a ver, conversam sobre isso. — sugeri para apaziguar amargura dela.
Francisca riu sem vontade.
— Isso não vai acontecer, Daniel. Ambos sabíamos ao que íamos. Foi uma... — Barafustou para si na procura do melhor eufemismo. — Foi sexo pelo sexo. Não foi o início de nada.
— Não sejas tão dura contigo. Aconteceu e pronto. Não foi nada de grave. Com certeza que usaram todas as precauções. — Adicionei um tom humorado à minha voz. — Não vais ter surpresas daqui a nove meses.
— Não, não! — exclamou com veemência. — Deus me livre. Não, nisso pelo menos houve bom senso... e preservativos.
— Então esquece isso.
— Sinto-me tão envergonhada. — confessou. — Aliás, agora sinto-me envergonhada contigo. Por te ter contado...
— Não há razão para que te sintas assim.
Francisca perdeu alguma mágoa na voz, a qual deu lugar a um tom afectuoso.
— Sê sincero comigo, Daniel. Diz-me o que pensas de mim, depois disto.
— Penso que preferia que tivesses vindo sair comigo, como é habitual nestas noites.
— Podes não acreditar, mas eu também preferia.
— Deixa lá, saímos para a semana, se quiseres.
Não houve uma resposta pronta, uma confirmação imediata, uma vontade que retomássemos esses encontros.
— Daniel... Não sei se consigo. Não sei se tenho cara para te encarar, depois de te ter contado isto. — Silêncio. Respiração suspirada. — Precisava de falar com alguém e só me lembrei de ti. Mas, agora que penso nisso, acho que foi um tiro no pé.
— Não tens que te sentir envergonhada.
— É fácil falar.
Pressenti que a poderia estar a perder. E não queria. Gostava dela, era uma amiga em construção, não queria ver tudo a desmoronar-se.
— Se te contar algo que me envergonha, ficamos em igualdade?
— Como assim?
— Se te contar algo que me faça sentir envergonhado perante ti, achas que consegues ultrapassar isso?
Francisca pareceu ponderar a questão.
— Talvez...
Respirei fundo e partilhei com ela a revelação que me inundava de vergonha:
— Sou virgem.
— E então? Eu sou Capricórnio. — respondeu prontamente. Depois... Depois a realidade despertou-a. — A sério?
— Sim.
— Não acredito. Tu e a Tânia...
— Tínhamos dezassete anos, Francisca.
— E então?
— Não aconteceu.
O silêncio voltou, alguns segundos que pareceram minutos.
— Estou envergonhado, Francisca. — retomei. — Espero que tenha valido a pena. Encontramo-nos na próxima Sexta?
Ela permaneceu calada. Aguardei até que a voz dela surgisse na linha.
— Queres ir à praia no Domingo?
O Verão surgira em força naquele Domingo, o Sol brilhava com intensidade e a temperatura era alta. Ao início da tarde, aguardava ansioso com o olhar cravado na rua, espreitando pela janela da sala. Explicara a Francisca a minha morada, mas receava que ela não a encontrasse, daí que permanecesse com o telemóvel na mão para o caso de ela telefonar a pedir mais indicações. Não foi preciso, pouco depois da hora marcada, o carro dela apareceu lá em baixo, parando perto do candeeiro.
Envergando uma camisola de alças e uns calções compridos, peguei no guarda-sol e na toalha, despedindo-me de Tio, que me ignorou. Achinelando escada abaixo, coloquei os óculos escuros no rosto e saí do prédio.
Francisca estava fora do carro, olhando para os prédios. Trazia um vestido florido de alças em tons laranja quase até aos pés enfiados num par de havaianas. O cabelo escuro solto caia-lhe sobre os ombros e o rosto encobria-se parcialmente pelos óculos escuros de lentes grandes.
Ao vê-la, percebi que a observava como a um pássaro ferido, já não era a Francisca imaculada, a rapariga atinada, a estudante perfeita, a profissional exigente e formal. Tornara-se normal, afinal também tinha os seus defeitos, as suas fraquezas. Recebeu-me com um sorriso largo que, com a minha aproximação, se intimidou. Ter-se-á sentido subitamente atingida pelo sentimento de vergonha pela confissão? Sorri-lhe com naturalidade, parando defronte dela. Francisca subiu os óculos para a cabeça e revelou-me um olhar diferente, quase poderia ver afecto nele.
— Olá! — cumprimentei, parando em frente a ela.
— Olá, Daniel!
Percebi que a vergonha também me atingia. Seria aquele olhar algo do género "ainda é virgem que querido"? Evitei tirar os meus óculos para não me denunciar. Coloquei o guarda-sol no banco traseiro e entrámos no carro, rumo ao nosso destino.
O percurso fora feito entre silêncio e comentários insignificantes. Procurávamos a normalidade, retornar ao tempo anterior às confissões.
A praia era a mesma onde tantas vezes passeara com os meus tios. O mesmo local onde me encontrava de olhar no horizonte cinzento, após o falecimento do meu tio. Porém, naquela tarde, o areal estava repleto de banhistas. Caminhámos pela areia até encontrar um local para assentar as toalhas. Segurei o cabo do guarda-sol e comecei a enterrá-lo de forma consistente. Enquanto o fazia, Francisca olhava o mar calmo com as mãos nos ombros, fazendo as alças resvalar para que o vestido caísse. Ao abrir o guarda-sol, não pude evitar observá-la em biquíni.
Nunca a vira com tão pouca roupa. O biquíni eram duas peças singelas, um top de dois triângulos sobre os seios, presos por fios que se cruzavam atrás do pescoço e das costas, e uma tanga que lhe cobria as nádegas. Nem me apercebi que parara a analisá-la. A natureza não fora generosa com o seu peito pouco volumoso, as ancas eram largas, ancas de parideira como diria a minha tia, barriga lisa, rabo curvilíneo, pernas bem definidas, costas direitas, braços longos... Fui surpreendido pelo seu olhar, percebendo que a observava. Para disfarçar, despi a camisola de alças, revelando-me mais barrigudo que aquilo que gostaria.
Francisca puxou a toalha para a sombra do guarda-sol e sentou-se, convidando-me a estender a minha toalha ao lado dela.
— Como te sentes? — questionei, repescando o nosso assunto.
— Melhor. — respondeu com os olhos no mar. — Tranquila. Estava a precisar de um momento destes, de descontracção. — Olhou para mim. — Não sintas vergonha.
— Vergonha?
— Sim, pelo que me contaste. — explicou, sorrindo. — Até acho querido que ainda sejas virgem.
Apeteceu-me perguntar-lhe se não queria fazer com que eu deixasse de ser. Coragem para isso era coisa que eu não tinha. Acabei por contestar:
— Não é motivo de orgulho.
— Mas também não te deves sentir envergonhado com isso.
Não me manifestei.
Uma criança passou a correr, brincando com outra na areia. Uma mãe levantou-se para as chamar. Dois homens jogavam à bola. Pessoas iam à agua, pessoas vinham da água.
— Não te quero magoar. — disse ela, quebrando a pausa que se prolongara no nosso diálogo. Olhei-a confuso. — Gosto de ti, gosto da tua companhia, gosto de sair contigo... — Desviou o olhar para o lado oposto. — Não pretendo que isto seja mais que uma amizade. Por isso, sinto que devo esclarecer isto contigo.
— Porquê? O que te leva a crer que tenho outras ideias?
Talvez a forma lânguida como eu a observara a despir-se?
— Nada. Só não quero mal-entendidos. — justificou. — Neste momento, nem quero pensar sequer em envolver-me com quem quer que seja. — Voltou a encarar-me. — Mas, gosto dos momentos contigo e não quero que qualquer frustração que surgisse por não corresponder a alguma intenção tua pudesse pôr esta amizade em perigo. Por isso sinto-me na obrigação de falar nisto.
— Não te preocupes, não tinha qualquer intenção para além da amizade. — Mentiroso. — Também gosto da tua companhia e de sair contigo.
— Ainda bem que esclarecemos isto.
— Sim... — concordei, decepcionado. — Vou dar um mergulho. Queres vir?
Francisca preferiu permanecer na toalha. Eu fui até ao mar mergulhar, dar umas braçadas e refrescar-me. No regresso, encontrei-a estendida na toalha de barriga para cima e olhos cerrados. Era complicado vê-la e não sentir desejo. Sentei-me na minha toalha.
— A água está boa? — perguntou sem se mexer ou abrir os olhos.
— Sim. Custa a entrar, mas depois está uma maravilha.
A brisa ligeira junto à costa atenuava a elevada temperatura. Deitei-me com o corpo molhado, partilhando a sombra do chapéu. Permaneci em silêncio, percebendo que ela aproveitara para repousar, desfrutar daquela tarde para aliviar todo o stress da semana de trabalho, todos os problemas. Minutos mais tarde, voltou-se, ficando de costas para o céu. Tão tranquila, quase parecia ter adormecido. Fiquei a observá-la. Gostava de a poder abraçar, dar-lhe um beijo no cabelo e apertá-la com ternura, demonstrar-lhe que nutria por ela um carinho especial.
Aquela tarde foi o maior período que estivemos juntos. Antes, os nossos encontros resumiam-se ao Galeto quando eu saía do trabalho. Porém, deve ter sido também aquele em que menos conversámos, exceptuando a ida ao cinema.
Abandonámos a praia ainda com o Sol forte. Francisca queria evitar o trânsito intenso do final do dia no regresso a Lisboa. Conduziu animada e dançando ao som do rádio até parar no mesmo local onde me fora buscar.
A tarde passara depressa, demasiado depressa. Custava-me deixá-la, queria estar mais tempo com ela.
— Queres subir? Posso oferecer-te uma água? — convidei.
— Estou cheia de areia. — recusou.
— Se quiseres, podes tomar um banho em minha casa. — sugeri, certo que ela repetiria a recusa. — Regressas mais fresca.
Francisca ponderou.
— Sou bem capaz de aceitar a tua sugestão.
— Tens ali um lugar para estacionar. — apontei.
Quando entrámos em minha casa, Tio surgiu com o mesmo ar curioso de sempre, sabendo que só poderia ser eu. No entanto, ao ver Francisca, parou e sentou-se no chão, observando intrigada.
— Esta é a Tio, a minha gata.
— Olá, Tio!
A resposta de Tio foi levantar-se e desaparecer no meu quarto.
— Acho que não gosta muito de mim.
— Não é isso. Ela é tímida como o dono. — justifiquei.
Francisca sorriu sem se pronunciar.
A minha casa estava sempre arrumada e organizada. Mesmo assim, não planeara aquela visita e receava que houvesse alguma coisa que me pudesse depreciar aos olhos dela. Encaminhei-a pelo corredor até à casa de banho, acendi a luz e disse:
— Tens ali toalhas lavadas. Fica à vontade.
Ela agradeceu com um sorriso.
— A porta tem chave. — informei. — Podes trancá-la para te sentires mais à vontade.
— Não me parece que viesses espreitar-me durante o banho. — afirmou, entrando na divisão. Segurou a porta e lançou-me um olhar provocador. — Além disso, se quiseres ver algo que ainda não tenhas visto, basta dizeres. — E fechou a porta.
Fiquei estarrecido com o que ouvira. Recompus-me, consciente que não fora mais que uma brincadeira. Segui para a sala, ouvindo o som do chuveiro e o esquentador a funcionar.
Algum tempo mais tarde, Francisca surgiu na sala, visivelmente agradada por ter tido a oportunidade de tomar um banho. Trazia o cabelo num desalinho, molhado e despenteado. A mão segurava as duas peças do biquíni. Senti a excitação de constatar que ela estava nua por baixo do vestido.
— Tenho secador, se quiseres... — ofereci, disfarçando.
— Deixa estar. — recusou com um sorriso terno. — Estou bem assim.
Atravessou a sala até mim e parou na minha frente. Fiz um esforço sobre-humano para não olhar para o tecido onde o contorno dos mamilos despontavam. Sem que o esperasse, deu-me um beijo na face.
— Obrigado, Daniel! Gostei muito de ter passado a tarde contigo.
Antes que a distância fosse demasiada, espetei-lhe um beijo no rosto, quase chocando com a sua face.
— Também gostei muito, Francisca.
Ela abriu mais o sorriso, observando-me com carinho. Hesitou na despedida, como se não quisesse ir embora.
— Tu és um amigo especial. — confessou num tom sério. A seguir, soltou uma risada. — Especial, Daniel. Não é colorido, ok?
— Sim, eu percebi.
Percebi com desapontamento. Colorido era o gajo que a levara para a cama duas noites antes. Eu também queria ser um amigo colorido, mas teria de me contentar com o especial, fosse lá o que isso quisesse dizer. Acompanhei-a até à porta de casa sem vontade que partisse. Combinámos ir falando e agendámos o encontro habitual das Sextas, antes de ela se afastar escada abaixo.
Combinámos ir falando, mas isso não aconteceu. Nem telefonemas, nem mensagens. Nessa semana, as noites no trabalho foram todas a conversar com a minha amiga Jewel. Partilhou comigo que terminara o 12º ano com uma média acima de dezanove valores e que a entrada na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra era cada vez mais uma realidade. Fiquei muito feliz por saber que ela prosseguia com sucesso a sua caminhada rumo aos objectivos que traçara para a sua vida. Peter também aparecera pela loja, numa das vezes só para conversar comigo sobre fotografia. Ouvi-lo era um verdadeiro curso de máquinas fotográficas.
Francisca não dera notícias ao longo da semana, mas na noite de Sexta, meia hora antes de eu sair, apareceu no meu local de trabalho no seu típico traje formal. Sorriu assim que os nossos olhares se cruzaram. Parou no lado oposto ao meu e debruçou-se sobre o balcão para que trocássemos dois beijos, algo que se tornou comum após a despedida em minha casa. Esperou que eu terminasse todas as minhas tarefas e saímos juntos da loja.
A rotina daqueles encontros aconteceu sem interrupções, ela não voltara a cancelar nenhuma noite de Sexta. A hora a que chegava dependia se vinha somente esperar-me ou para trabalhar num dos computadores.
A meio de Agosto, durante mais uma bebida no bar, Francisca deu mais um passo para a consolidação da nossa amizade:
— Queres ir almoçar a minha casa, amanhã?
O convite apanhara-me de surpresa. Francisca continuava muito reservada em relação à sua vida privada. Tirando aquelas noites, raramente falávamos, uma mensagem ou outra e nenhum telefonema. Entrar no seu porto de abrigo seria uma novidade.
— Sim, claro. Gostava muito.
Como uma verdadeira manhã de Agosto, a daquele Sábado estava quente e solarenga. Desembarquei do cacilheiro ansioso, queria aproveitar aquele dia ao máximo, desejando que ela não tivesse nada mais agendado para depois do almoço, como acontecera na ida ao cinema. Caminhei lentamente pelo Cais do Sodré até às paragens de autocarros, não querendo transpirar a camisa fresca que vestira para a ocasião. Entrei no autocarro com o número 44 e a designação de destino "Moscavide". Era dali que ele partia, por isso, aguardava a hora de sair. Retirei das calças de ganga o cartão da Carris, com a minha foto e o passe daquele mês, e mostrei-o ao motorista que mal olhou para mim.
A viagem foi cansativa, o veículo era antigo e não tinha ar condicionado. Fiz quase todo o percurso da linha 44, saindo duas paragens antes da última, onde ele daria a volta para regressar ao cais. Felizmente, não recolheu muitos passageiros, caso contrário teria sido uma sauna.
Com a morada e as indicações que me dera, circulei pelos passeios de Moscavide, encontrando com alguma facilidade o prédio onde morava. Toquei à campainha do seu apartamento e aguardei que a porta do prédio se abrisse. Subi as escadas. Com a ansiedade, nem me lembrei de, como um bom convidado, ter trazido algo para oferecer à anfitriã.
Francisca recebeu-me no patamar da escada, defronte da porta do seu apartamento. A sua imagem irradiava uma sensualidade caseira, envergando leggings pretas e uma camisola de alças de tecido elástico cor de rosa, ambas parcialmente cobertas por um avental azul com desenhos de utensílios de cozinha. O longo cabelo escuro fora preso num rabo-de-cavalo e o rosto tinha uma maquilhagem singela, quase para nem se notar. O seu sorriso caloroso ofereceu-me dois beijos nas faces barbeadas, seguindo-se o convite para entrar.
O apartamento era parecido com o meu, uma sala, menos um quarto, uma cozinha e uma casa de banho. Conduziu-me para a sala, ofereceu-me uma bebida fresca e voltou para a cozinha, recusando a minha ajuda para qualquer auxílio.
Sentei-me no sofá, observando a sala, um espaço com boa exposição solar, atenuada pelas persianas ligeiramente corridas para cortar parte da intensidade do Sol. A mesa estava já pronta para receber duas pessoas, a televisão desligada e o sistema de áudio a debitar um CD de Christina Aguilera.
Francisca apareceu com um tabuleiro de lasanha que depositou sobre a mesa. Tirou o avental e abriu uma garrafa de vinho tinto, questionando se eu queria outra coisa para beber. Não, o vinho estava bem.
O almoço estava saboroso, tanto quanto se pode esperar de comida confeccionada antecipadamente que se compra para aquecer no forno. A conversa foi rica em trivialidades, regada com o tinto do Douro. No fim, ajudei-a a levar tudo para a cozinha.
Chegara o momento temido, o fim do almoço e o receio que se seguisse uma despida. Para meu descanso, logo que colocou a louça na máquina de lavar, perguntou-me se queria ir dar um passeio ou ficarmos por ali a ver um filme. Estava muito calor na rua e seria bem mais agradável a segunda hipótese.
Novamente no sofá, vi Francisca colocar um DVD no leitor abaixo da televisão e vir sentar-se a meu lado sem complexos em ficar encostada a mim. A escolha do filme fora responsabilidade dela, A Cidade dos Anjos com a Meg Ryan e o Nicolas Cage. Confesso que nunca fui fã da actriz e do actor preferia títulos como Rochedo ou Con Air ou até mesmo A Outra Face. Aquele, enfim... Valia pela companhia. Acho que para estar ali com ela até via um filme de Manoel de Oliveira.
Vimos o filme em silêncio, encostados um no outro, indiferentes ao calor. No final, os créditos puseram fim ao martírio daquele drama. Olhei para Francisca e vi uma lágrima a escorrer pelo rosto.
— Estás bem? — perguntei, surpreso.
Francisca sorriu e limpou a face com os dedos.
— Este filme emociona-me sempre. Mas gosto muito de o ver. — Não me pronunciei. — Desculpa, se calhar não gostaste...
— Foi bom. — menti. — Mas o melhor de tudo foi estar aqui contigo.
Ela sorriu e lançou-me um olhar carinhoso.
— A Tânia era a rapariga mais esperta da nossa turma! — afirmou do nada, deixando-me confuso.
— Tu e a Maria Inês eram as que tiravam sempre as melhores notas. — recordei, contrapondo a sua afirmação.
— Não me refiro a notas. Refiro-me a saber ver para além daquilo que observamos. — Fiquei sem saber o que dizer. Onde queria ela chegar? Endireitou-se no sofá, encarando-me. — Nós víamos um miúdo tímido, introvertido, desinteressante. Ela viu quem tu eras e conquistou-te. — Continuei mudo, sorrindo nervoso. Tocou-me o peito. — Tens um coração enorme, percebo porque te chamas anjodelta. — Olhou-me nos olhos com uma profundidade inédita e deveria estar a sentir o meu batimento cardíaco a aumentar. — Se fosses um anjo e te apaixonasses, seria capaz de abdicar da imortalidade por amor, tal como o anjo do filme?
— Talvez... — foi a única coisa que consegui murmurar.
O rosto de Francisca avançou para o meu, vi-a fechar os olhos e beijar-me os lábios com ternura. Retribuí-lhe o beijo, sentindo o seu hálito doce, quando as nossas línguas dançaram no sabor da paixão. Apesar de tudo, o resto do meu corpo petrificara.
O beijo foi suspenso por ela, voltando a olhar-me nos olhos e sorrindo. Levantou-se do sofá e estendeu-me a mão.
— Vem.
Segurei a mão dela e deixei que me conduzisse pelo apartamento. Levou-me para o quarto, uma divisão envolta na penumbra das persianas corridas, uma cama de solteira com uma cabeceira comprida e uma cómoda eram as únicas peças de mobiliário para além do roupeiro encastrado na parede. Largou a minha mão e fechou porta. A seguir, caminhou pelo quarto e parou junto da cama. Levou as mãos à cintura e puxou as leggings para baixo, sentando-se no colchão. Eu observava, estático, nervoso, incrédulo que aquilo pudesse estar a acontecer.
Francisca sorriu-me divertida e exclamou num tom sensual:
— Despe-te!
Como um soldado que executa uma ordem, comecei a desapertar os botões da camisa, a qual despi sem dar por isso. Levei os dedos aos botões das calças, visualizando Francisca a segurar a bainha da camisola rosa e puxá-la para cima, despindo-a pela cabeça e revelando-me os seus seios singelos.
Somente usando pequenas cuecas, Francisca pôs-se de novo em pé e de frente para mim, quase como se me oferecesse um momento para a analisar. Depois, avançou e ajudou-me a tirar as calças, deixando-me também com as últimas cuecas que eu escolheria para um encontro íntimo.
— Estás nervoso? — sussurrou-me ao ouvido.
— Eu nunca... — gaguejei.
— Eu sei. — lembrou, tocando-me onde jamais mulher alguma me havia tocado. — Não estejas. — Despiu-me com cuidado, baixando-se e retirando a última peça. Voltou a subir, passando as duas mãos entre as minhas pernas. O seu toque era suave. — Respira fundo.
Convidou-me a deitar na cama. Eu acatei, estendendo-me ao comprido, envergonhado ao tomar consciência da dimensão da minha excitação indefesa ao olhar dela. Francisca despiu as suas cuecas com o olhar cravado no meu. Fê-lo com enorme sensualidade. Sempre com um sorriso terno no rosto, subiu para o colchão e sentou-se sobre as minhas pernas com cada uma das suas a ladear o meu corpo.
O meu coração batia como se fosse explodir do peito. Receava que a festa terminasse antes de começar, tal era a excitação que percorria todo meu ser. Francisca acariciou-me a barriga e as suas mãos subiram pelo meu peito. Depois, debruçou-se para a lateral da cabeceira e retirou algo de uma gaveta. Vi uma embalagem quadrada prateada entre os seus dedos.
— Estás bem? — perguntou, rasgando a prata.
Proferi um som gutural de confirmação.
As suas mãos voltaram a tocar-me, sempre com muita ternura. Procurou deixar-me relaxado, atenuar o nervosismo que ela sabia que eu estava a sentir. Colocou a borrachinha como se fosse papel de arroz e desenrolou-a devagar. Meu Deus, chegara o momento.
Francisca levantou-se, apoiando-se nos joelhos. Soltou o cabelo.
— Dá-me as tuas mãos. — pediu.
Estendi-lhe ambas. Ela segurou-as e colocou-as sobre os seus seios, que apesar de pequenos, encaixavam bem nas minhas palmas.
Ela abriu mais o sorriso, as suas mãos desceram para as ancas, acariciou-me ligeiramente e colocou-me em posição. Por fim, desceu vagarosamente, ao seu ritmo, conduzindo-me para dentro de si.
O Sol ainda brilhava no seu sentido descendente. Francisca conduzia atenta à estrada.
Acontecera tudo muito rápido. Demasiado rápido. Tenho a certeza que não fora nada gratificante para ela. Porém, numa primeira vez ninguém é mestre. Mesmo assim, fiquei com a sensação que a decepcionara. Afastara-se em silêncio e apesar de eu ser inexperiente, tinha noção de que não lhe dera tempo sequer para aquecer. Voltou a vestir as cuecas e disse:
— Tens toalhas na casa de banho.
Levantei-me da cama, mudo. Qual cordeirinho, saí do quarto e fui lavar-me. Ao regressar, Francisca vestira um roube e ofereceu-me novo sorriso, menos intenso e menos carinhoso que os anteriores.
— Vou jantar a casa dos meus pais. — informou. — Posso deixar-te em casa.
Concordei, vendo-a sair do quarto e ir tomar banho.
Enquanto me vestia, tentava adivinhar o que lhe ia na mente. Estaria arrependida? Achara que fizera porcaria como acontecera naquela noite em que me telefonara de madrugada? Seria eu também um caso pontual? Teria a nossa relação terminado? As dúvidas metralharam-me a mente sem descanso.
Sendo assim, circulando pelo Eixo Norte-Sul em direcção à Ponte 25 de Abril, o silêncio instalara-se entre nós, não tendo havido quase diálogo desde que o fizéramos.
— Adorei fazer amor contigo! — confessei. Ela olhou para mim e riu. Senti que o dissera de forma ridícula. Que deveria ter dito? Adorei foder contigo? Não o via dessa forma. — Gostava de repetir.
Francisca desviou o olhar da estrada para mim. Sorriu com a mesma ternura de antes e disse:
— Estou a contar com isso.
O beijo que trocámos quando me deixou à porta do meu prédio não me deixou dúvidas, o sexo não fora pontual, era para continuar.
A alteração do nosso relacionamento trouxe uma nova rotina aos nossos encontros. Quando eu saía do trabalho às Sextas, Francisca ia buscar-me. Já não íamos ao Galeto, seguíamos para casa dela e dormíamos juntos. No Sábado, almoçávamos em casa dela, íamos passear à tarde e atravessávamos o Tejo para jantar em minha casa, permanecendo ela nessa noite comigo, regressando a Lisboa no Domingo. Ambos tínhamos camas de solteiro, mas nunca foram pequenas quando as partilhámos. Fizemos amor em todas essas noites. Francisca era um ano mais nova que eu, mas não tenho problemas em admitir que fora a minha professora no mundo da paixão e do prazer.
O trabalho continuou igual, a mesma monotonia tranquila que eu não trocava por nenhum outro emprego. A minha colega que partilhava comigo a primeira metade do meu turno demitira-se para abraçar um novo projecto. Lamentei isso, pois fazíamos uma boa equipa. Foi substituída por um rapaz contratado a uma empresa de trabalho temporário.
Desde que iniciara a minha relação com Francisca, afastei-me das buscas por conversas virtuais, mantendo apenas a troca de emails com quem já o fazia anteriormente. A única pessoa com quem conversava, numa sala virtual privada, era com Jewel, sem dúvida a minha melhor amiga. Jewel ficara muito feliz com a novidade, percebera a felicidade nas minhas palavra e isso, para ela, era suficiente para partilhar a satisfação. Ela também atravessava um bom momento na sua vida, pois conseguira entrar no Ensino Superior, na sua primeira opção, a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.
A minha amizade com Peter também se fortaleceu. Por motivos profissionais, esteve muito tempo afastado de Lisboa, mas mantínhamos contacto por email. Mandava-me muita informação sobre fotografia, dicas, novas máquinas... Repetia diversas vezes que eu deveria investir em mim, tirar um curso de fotografia, uma vez que gostava tanto.
Francisca estava ausente da minha vida de Segunda a Quinta, excepto se houvesse feriados a meio da semana. Eu trabalhava nos feriados (sempre ganhava mais algum), mas ela não, por isso ia dormir a casa dela nas vésperas. Talvez por estarmos afastados, os nossos reencontros eram tão intensos. Ensinou-me como gostava de ser tocada, os seus pontos mais sensíveis, as posições que lhe davam mais prazer... Bolas, ensinou-me coisas sobre o meu corpo que eu próprio desconhecia...
Esta deliciosa rotina manteve-se até ao Natal.
A Consoada desse ano foi passada em casa dos pais de Francisca. Foi também o momento em que os conheci. Viviam em Almada, não muito longe donde outrora vivera Tânia. Não sei porquê, idealizara a família de Francisca como sendo de um estrato social elevado. Desde a escola que o ar arrogante dela me fazia ter essa desconfiança. Não poderia estar mais errado.
O pai de Francisca era um senhor quase com sessenta anos, bonacheirão, uma figura parecida com o Fernando Mendes, o actor do teatro de revista que aparecia nos programas de televisão com o Nicolau Breyner e mais tarde daria cara a um concurso de enorme audiência da RTP. A mãe era mais alta e mais velha que o pai, também de porte forte e muito hospitaleira, uma imagem parecida com a personagem que a Ana Bola fazia com o Vítor de Sousa no Parabéns do Herman José. Ambos me receberam com enorme simpatia.
O jantar foi delicioso. O casal não escondeu a curiosidade que tinha acerca de mim e quiseram que lhes contasse sobre a minha família, a minha vida. Apesar de ser uma ferida em cicatrização, senti-me confortável em falar sobre os meus tios, como me tinham criado, os bons momentos, como perdera um e como pouco mais de um ano antes perdera o outro. O casal ouvia-me fascinado e algo comovido com a minha história. A mãe de Francisca criticou a filha por nunca me ter levado lá a casa quando éramos colegas. Eu desculpei, justificando que éramos pessoas diferentes, muito diferentes daquelas que se apaixonaram.
Após a abertura dos presentes, brindámos com espumante e preparámo-nos para sair. Naquelas noites, Francisca costumava ficar em casa dos pais. Porém, a família ainda não se sentia preparada para ter o namorado da filha a dormir lá em casa. E Francisca avisara atempadamente a mãe que iria passar a noite em minha casa, voltando na manhã seguinte para almoçarmos juntos no dia de Natal.
Francisca estava a explodir de felicidade. Fizemos o curto percurso de carro até ao meu prédio com ela animada e partilhando comigo a noção de que os pais haviam gostado muito de mim. Entrámos em casa aos beijos, perante o olhar quase indignado de Tio. Só tive tempo de fazer duas festas no pelo da gata, sendo puxado por Francisca para o quarto. Despiu-me com sofreguidão, despiu-se cheia de tesão. Atirou-me para cima da cama... Fizemos amor várias vezes, nessa madrugada. Ela estava insaciável, louca de paixão.
No último orgasmo desse noite, ela estava deitada de barriga para baixo sobre a cama, sustendo o meu peso sobre si, mantendo-me dentro dela. Era uma das suas posições preferidas. Extasiados com os nossos suores misturados, Francisca murmurou:
— Quero que venhas viver comigo?
— O quê? — questionei surpreso.
Francisca rodou por baixo do meu corpo, voltando-se para mim e olhando-me nos olhos.
— Quero partilhar a minha vida contigo.
— Isso é um pedido de casamento? — interroguei divertido.
— Não. Não precisamos de papéis. — negou num tom sério. — Mas, se quiseres, podemos casar.
— Não faço questão.
— Vem viver comigo. Sempre ficas mais perto do trabalho. — Sorriu e lançou-me um semblante provocador. — E podemos fazer amor todas as noites.
A ideia agradava-me. Agradava-me mesmo muito. Porém, assumi alguma seriedade no assunto e lembrei:
— Tenho a Tio. Não a vou deixar aqui. Ela também vai.
Sabia que era um assunto delicado. Francisca nunca tivera muita afinidade com a gata, nem Tio parecia ter grande apreço por ela.
— Tudo bem. Traz a gata contigo.
fim do conto II
A minha vida atravessava um momento de enorme felicidade. Francisca e eu vivíamos juntos havia quase nove meses e as coisas resultavam bem. O meu horário era complicado para uma vida de casal, mas adaptámo-nos com facilidade. Pronto, vou ser honesto, não dava para a promessa de fazer amor todas as noites, uma vez que eu chegava muito tarde e ela trabalhava cedo. Mesmo assim, nos primeiros tempos, ela punha o despertador para as cinco da manhã só para o fazermos antes de se levantar. Claro que com o avançar das semanas, isso foi deixando de acontecer, mas a paixão não esmoreceu.
Apesar de ter mudado para Lisboa, não larguei a casa onde vivia. Aquele apartamento era um álbum de recordações, uma memória real da existência dos meus tios. Enquanto pudesse pagar a renda, manteria a casa.
Francisca tornou-se advogada efectiva no escritório onde estagiara, ainda antes de começarmos a viver juntos. Tinha uma vida muito atarefada, até porque não abdicava dos seus objectivos e das suas ambições políticas. Era uma das melhores advogadas da sua equipa e todos lhe auguravam um futuro brilhante.
No dia nove de Setembro daquele ano, recebi uma mensagem de Jewel. Estava prestes a iniciar o segundo ano de Medicina e informava-me que, juntamente com um grupo de colegas, viria a Lisboa para um evento na Faculdade de Medicina, perto do Hospital de Santa Maria. E queria aproveitar a oportunidade para nos conhecermos pessoalmente.
A ideia não me deixava entusiasmado. Gostava bastante de conversar com ela na Internet, coisa que continuávamos a fazer com regularidade, mas transformar a amizade virtual em algo real... Para além disso, também não me sentia a agir correctamente, indo encontrar-me com outra mulher, sendo comprometido, mesmo que fosse só um encontro com uma amiga. Porém, Jewel fazia parte da minha vida havia quase dois anos, cruzámo-nos nas salas virtuais muito antes de reencontrar Francisca. Seria deselegante recusar o seu convite. No entanto, para evitar mal-entendidos, não partilhei nada disto com Francisca.
O grupo chegava na noite de dia dez e ficaria num hotel de Lisboa. Como eu trabalhava tarde e noite, Jewel sugeriu que nos encontrássemos pela manhã de dia onze.
O dia 11 de Setembro de 2001 mudou o Mundo. E abalou o meu.
Eu só conhecia Jewel pela foto que uma vez me enviara, talvez com doze ou trezes anos, rosto sério e bolachudo. Naquela altura, ela deveria ter dezanove anos, pelo que estaria diferente. Imaginei que ela pudesse estar com uma fisionomia mais mulher e menos menina, mas seria uma rapariga forte, talvez deselegante, demasiado pesada... Compensaria certamente com a simpatia que reflectia em todas as nossas conversas.
Combinámos o encontro no Centro Comercial Vasco da Gama, no Parque das Nações, uma vez que ficava relativamente a meio caminho entre Moscavide e o hotel onde ela estava hospedada. Pedi-lhe que me enviasse uma foto actual para a reconhecer, mas não houve tempo.
"Não te preocupes. Eu consigo reconhecer-te. Em todo o caso, eu serei a rapariga de saia aos quadrados e terei um casaco de malha atado à cintura. Não sei que camisa vou vestir, mas será uma camisa clara."
Sim, eu estava praticamente igual à foto que lhe enviara. Seria fácil reconhecer-me. Imaginei-a juntando o vestuário à figura que fazia dela. Na minha mente, uma rapariga redonda, baixa, saia aos quadrados até ao pés, um casaco de malha atado em esforço à cintura larga e uma camisa incapaz de disfarçar o pneu. Um rosto bochechudo, envolto numa cabeleira arruivada desgrenhada. Esta era a imagem de Jewel na minha cabeça.
Não me importava, certo de que o mais importante, a sua simpatia e amizade, corresponderiam àquilo a que me habituara online.
Combinámos o encontro para a porta principal do centro comercial, virada para a Estação Oriente. Cheguei dez minutos antes da hora marcada e aguardei junto aos vidros, observando a avenida, tentando discernir a sua aproximação, tentando reconhecê-la. Vi uma rapariga forte de saia aos quadrados a atravessar na passadeira, mas vestia um blusão e era morena.
A manhã estava agradável, um céu limpo e ambiente luminoso.
A minha concentração foi quebrada por uma voz doce atrás de mim:
— Daniel?
Virei-me...
Virei-me e o meu mundo sofreu um abalo, qual terramoto de grau máximo numa daquelas escalas de nomes complicados. Na minha frente, uma rapariga esguia, quase da minha altura, cabelo louro arruivado cheio de caracóis penteados. O rosto perdera o ar bonacheirão, tornara-se bem delineado, os olhos grandes e azuis, observavam com uma mistura de ternura e simpatia, o nariz singelo, a boca simples de lábios carnudos. A camisa bege abria-se abaixo do pescoço, somente dois botões. Abaixo da abertura, o volume do peito intenso, apontando para mim os dois bolsos falsos do tecido. Na cintura, as mangas do casaco de malha cruzavam-se num nó que nada apertava, nem a saia aos quadrados castanhos e brancos que lhe terminava a meio das coxas de umas pernas bem delineadas que terminavam em dois pés de unhas pintadas envolvidos num par de sandálias. Os braços estavam descobertos abaixo das mangas curtas, revelando o brilho da penugem alourada na pele. As mãos finas tinham dedos elegantes de unhas pintadas da mesma cor que as dos pés.
— Sou eu, a Mafalda! — apresentou-se. Nunca ouvira a sua voz. Naquele instante, soou a uma melodia chilreada num bosque encantado. — A Jewel.
— Olá! — retribuí, ainda aparvalhado. Onde está a gorda?
A sensação de estar na presença dela foi arrebatadora.
Mafalda avançou para mim e trocámos dois beijos tímidos na face.
— Finalmente, conhecemo-nos. — disse ela com um sorriso radioso.
— Sim. — concordei com o coração a bater descompassado. Onde está a gorda? Porque não me mandaram a gorda?
Olhando em volta, Mafalda disse:
— Queres ir a algum lado? Não conheço nada aqui.
— Podemos ir tomar um café. — sugeri.
Encaminhei-a para as escadas rolantes, rumo ao piso superior. Mafalda estava mais à vontade que eu, que ainda procurava recuperar do impacto. Lembram-se de eu dizer que, antes de receber a foto dela, a imaginava como gémea de Tânia? Não lhe estava a fazer justiça.
Apesar das muitas horas que passámos no computador a conversar, nos últimos dois anos, isso não evitou que naquele momento houvesse alguma inibição entre nós. Eu era cinco anos mais velho que ela, mas Mafalda parecia adaptar-se melhor à situação que eu. Tomou as rédeas da conversa e começou a falar da razão de ter vindo a Lisboa, enquanto seguíamos para a esplanada.
Convidei-a a sentar-se numa cadeira junto a uma mesa virada para os vidros com vista para o Pavilhão Atlântico. Fui ao balcão da cafetaria mais próxima buscar dois cafés. Ao voltar, Mafalda esperava-me com o olhar na paisagem e as pernas cruzadas, revelando ainda mais as coxas.
Vá lá, por Deus, eu sou comprometido, desesperei mentalmente.
Coloquei as chávenas na mesa e sentei-me no lado oposto.
Mafalda correspondia a toda a simpatia que eu idealizara nela. Tinha uma voz doce, suave, num tom melodioso. Não sei se falava com todas as pessoas assim, mas comigo era notória a ternura em cada palavra. Parecia uma boneca, dava vontade de a abraçar. Mas, não podia, eu era comprometido.
— Então? Sou muito diferente da foto que te mandei? — questionou divertida.
— Aquela não eras tu. — reclamei, simulando um ar enganado.
— Era eu sim. — Sorriu com um travo de jovialidade. — Tinha doze anos. Era a foto do BI.
— Não tinhas nada mais... Que te fizesse mais justiça? — Assustei-me com a possibilidade de dar a entender que a achava bonita. Emendei. — Que fosse mais parecida contigo agora.
Ela bebeu o café. Distraidamente, lambeu o lábio superior. Pode alguém ser tão naturalmente sedutor?
— Tinha. — confessou. — Mas tive receio de mostrar. Ainda não confiava o suficiente em ti. Depois... Não voltámos a falar nisso. E agora preferi surpreender-te. — Voltou a sorrir. — Surpreendido?
— Um pouco.
— Espero que não estejas desapontado.
Mafalda sabia bem que eu não estava desapontado.
Eu abanei a cabeça e desvalorizei o assunto, o qual me apressei a mudar:
— Vieste em visita de estudo?
— Viemos para um evento em Santa Maria. — explicou. — Não quis perder a oportunidade de conhecer o hospital, nunca se sabe se um dia não trabalharei lá.
Eu dispensava visitas àquele hospital, o meu tio falecera lá.
— Futura médica. — recordei.
— Futura médica pediatra. — corrigiu. Cruzou os braços sobre o peito e recostou-se na cadeira. — Adoro crianças. Poder ajudá-las, tratar delas... É um objectivo de vida.
— Vais dar uma bela mãe. — profetizei, sem evitar a certeza ilusória que lhe faria todos os filhos que ela quisesse.
— Espero bem que sim. Faz parte daquilo que quero para o meu futuro. Depois de me formar e conseguir estabilidade profissional, quero casar e ter filhos, muitos filhos. — Riu com satisfação. — Muitos, enfim... A vida não está para isso. Ficarei feliz com dois, um casalinho... — Olhou-me curiosa. — E tu?
— Eu?
— Sim. Pensas ter filhos?
— Claro. — confirmei sem nunca ter pensado muito nisso.
Houve uma pausa. Por breves instantes, todos os temas de conversa pareciam ter-se evaporado. Ficámos a olhar um para o outro e, estranhamente, não sentimos necessidade de dizer nada. Olhos nos olhos, como se lêssemos a alma do outro. Sempre fôramos confidentes, pouco escondíamos nas nossas conversas, bons e maus momentos, tudo era partilhado naquela virtualidade da Internet.
— Gostava de te ter conhecido antes... — desabafei.
Mafalda não desviou o olhar, atenta. Notei uma alteração na sua expressão, a ternura mantinha-se e a jovialidade dava lugar a uma maturidade que ainda não revelara.
— Eu sei.
— Sabes?
— Sim. — confirmou, descodificando-me entre linhas. — Não aconteceu, talvez porque não tinha de acontecer.
— E tu?
— Eu? — interrogou sem esperar resposta. — Eu sinto o mesmo que tu. — Sorriu, oferecendo-me o olhar mais doce que alguma vez vira em toda a vida. — Cheguei tarde. Suspeitava que isso aconteceria, mas só teria a certeza quando me conhecesses. Não o lamentes. Não tinha de ser.
Fiquei estarrecido, dezanove anos com maturidade de quarenta.
— Eu...
— Não o digas. — cortou com afecto nas palavras. — Sei que gostas dela. Não quero ser uma fractura na tua vida. Temos uma maravilhosa amizade que hoje transformámos em algo real.
Debrucei-me sobre a mesa. O café arrefecera porque me esquecera de beber. Não conseguia deixar de encarar o azul dos seus olhos. O mundo à volta não existia.
— Vamos fazer um jogo? — sugeri.
A confusão estampou-se no seu rosto.
— Que jogo?
— Vamos dizer uma frase ao outro, algo que queiramos dizer, mas que nunca mais voltaremos a repetir. Algo que tenhamos medo de dizer, algo que pudéssemos apagar depois de o dizer.
— O que dissermos nunca mais será repetido ou lembrado? — questionou ela.
— Não, será um desabafo. — prossegui. — Algo que evite que daqui a vinte anos lamentemos não ter dito.
— E se isso tiver impacto na nossa vida?
— O acordo é esquecer, depois de sairmos daqui.
— Ok. De acordo, Daniel. Podes começar.
Houve uma nova pausa. Ponderei o que ia dizer. Não tinha dúvidas nas palavras a usar, apenas a melhor forma de o proferir.
— Sinto que me apaixonei por ti assim que te vi. Tenho a certeza que te vou amar para o resto da vida!
Mafalda sorriu. Não estava surpreendida pelas palavras. Calei-me, aguardando a sua vez. Ela correspondeu à minha intensidade e fez a sua confissão.
— Sou apaixonada por ti quase desde que nos conhecemos na Internet. Conversar contigo só me deixou cada vez mais cativada. Hoje, correspondeste a tudo o que imaginei. Saio daqui a amar-te ainda mais. — Fez uma pausa, indicando que não terminara. — Mas, tu vais regressar à tua namorada e esta conversa nunca aconteceu!
Tive o impulso de recusar isso, o impulso de cometer a loucura de largar tudo por ela. Como era possível nutrir algo tão forte por alguém que acabara de conhecer? Percebi que o meu inconsciente sempre gostara dela, desde as primeiras conversas virtuais. Vê-la, adicionar tamanha beleza a um ser humano tão extraordinário foi a gota de água para fazer transbordar toda a paixão e amor que se escondiam em mim. Só que existia Francisca... E eu jamais a trairia. E, por mais estranho que possa parecer, também estava apaixonado por ela. E jamais a abandonaria assim, por outra... Mesmo que essa outra fosse possivelmente o amor da minha vida. Mafalda estava ser mais madura que eu, revelava uma maturidade que só me deixava ainda mais estarrecido.
Anuí, cumprindo o que fora previamente estabelecido.
Mafalda olhou para o relógio.
— Tenho de ir.
Levantámo-nos em simultâneo. Ela encurtou a distância para se despedir. Trocámos dois beijos na face, tal como fizéramos antes, exalando o seu perfume, a inesquecível fragrância a morango. Ela partiria talvez para nunca mais a ver.
— Achas que isto vai afectar a nossa relação? — questionei.
— Só se deixarmos que afecte. — contrapôs. — Não pretendo deixar de trocar emails contigo ou conversar na nossa sala virtual privada.
Sorri, descansado.
— Aconteça o que acontecer, nunca sairemos da vida um do outro!
— Espero que não. — desejei.
Aquele encontro teve um impacto muito forte na minha vida. Tão forte que as imagens que os telejornais passaram em directo nessa hora de almoço não foram tão chocantes. Os atentados em Nova Iorque foram horríveis, mas a minha mente estava a leste.
Francisca nunca soube de nada. E a nossa relação não foi abalada pelo evento, uma vez que eu tivera o discernimento de colocar a cabeça no lugar. Nem o meu amor por ela diminuíra, continuava a amar Francisca como antes. A única diferença foi que, escondido no meu coração, estava um sentimento intenso que eu adormeci. Sim, confesso, sentimentalmente eu traíra-a.
Houve uma breve pausa nas conversas virtuais, motivada pela permanência do grupo de Mafalda em Lisboa. Porém, no regresso a Coimbra, Jewel reapareceu. Tacitamente, acordámos em não falar sobre o encontro real. Ela relatou os acontecimentos da visita, passando depois a dissertar sobre os trágicos acontecimentos nos Estados Unidos. Aos poucos, com o passar dos dias, a nossa amizade voltou à normalidade anterior.
O ano seguinte foi o do fim do Escudo e do surgimento do Euro. Para mim, foi o ano da falência do meu local de trabalho e queda no desemprego. Em sentido inverso, a carreira de Francisca ia de vento em poupa, uma advogada brilhante com possibilidades de vir a integrar a lista de candidatos a deputados nas eleições legislativas seguintes. A nossa relação continuava forte, mas a paixão esmorecera.
Nessa Primavera, Jewel começou a namorar um rapaz da faculdade, um namoro que se revelou ser bastante sério e com perspectivas de futuro. Partilhou a informação como um teste à nossa amizade. A minha resposta foi "espero que ele te faça muito feliz, tu mereces". Mesmo assim, as nossas conversas online diminuíram drasticamente e quase só trocávamos mensagens por email.
Mesmo desempregado, consegui manter a renda da minha casa com o subsidio de desemprego. Tentei voltar ao mercado de trabalho, mas não tive sucesso. Durante o Verão, aceitei o convite de Peter para integrar a turma do curso de fotografia que ele leccionava.
Não sei explicar bem porquê, mas com o passar dos meses, senti o chamamento da paternidade. Não sei se era o facto de estar desocupado no apartamento, acabando por tomar a cargo a lida da casa, ou se por me cruzar com alguma mãe a empurrar um carrinho de bebé na rua.
Abordei o assunto com Francisca, após o momento semanal em que fazíamos amor.
— Fora de questão. — recusou intransigente. — Talvez daqui a uns dez anos...
— Daqui a dez anos, eu tenho trinta e seis anos e tu trinta e cinco. — recordei.
— Ainda vamos muito a tempo! — exclamou, virando-se na cama de costas para mim. — A minha vida profissional actual não é compatível com a maternidade.
O assunto foi suspenso, mas tornou-se uma fissura na nossa relação, uma fissura que foi abrindo aos poucos.
CONTO III
O teu nome é Kátya.
E coloquei-te a meu lado.
O país vivia a onda de entusiasmo pela organização do Campeonato da Europa de Futebol, o EURO2004. Eu continuava desempregado e sem perspectivas de arranjar emprego, agravando o facto de que o período de subsídio de desemprego estava a chegar ao fim.
No último ano, talvez desde as nossas posições contrárias em relação a ter filhos, o relacionamento com Francisca esfriara para níveis preocupantes. Ela passava cada vez menos tempo em casa, raramente fazíamos qualquer actividade juntos, como passear ou ir ao cinema, e na cama... Bom, parecia quase um congelador, comparado com o calor da paixão de outrora.
Para piorar isto, também não tinha com quem desabafar. Nunca partilhara com ninguém pormenores da minha vida íntima, mas gostava de pelo menos ter com quem conversar um pouco. A minha maior parceira de conversa, Jewel, vivia uma fase de pura felicidade com o namorado e os estudos, sobrando tempo para pouco mais que uma troca de emails comigo. Mesmo assim, não podia recriminá-la por ser feliz com outro que não eu.
A minha vida era entediante, talvez tivesse sido das fases mais desinteressantes da minha existência, desde os tempos da escola. Nem o facto de ter computador com ligação à Internet atenuava isso, uma vez que já não tinha paciência para conversas com desconhecidas.
Comecei a abrir o leque de opções de empregos, tinha de voltar ao mercado de trabalho, não só pela necessidade de ordenado, como para evitar dar em louco sozinho em casa. Cheguei a ir a entrevistas para ser consultor imobiliário, algo para o qual não tinha o mínimo jeito. Nunca fui contratado, mas após uma dessas entrevistas, passei por uma exposição de fotografia.
Peter estava lá, quase como uma estátua a observar os quadros na parede. Não dera pela minha aproximação até estar a dois passos dele. Recebeu-me com um largo sorriso e apertou-me a mão. Nunca perdêramos o contacto, mas haviam passado já alguns meses desde a última mensagem que trocáramos.
— Que tens feito?
— Procurado emprego. — informei, olhando para uma tela que retratava uma paisagem vulcânica registada a preto e branco. — Mas, está muito complicado.
— E a fotografia?
— Continua a ser um passatempo. Infelizmente, não consigo que seja mais que isso. Quem me dera ter a oportunidade de viver disso como tu fazes.
— Não é fácil. — recordou, deslocando-se para a fotografia seguinte. — Tive que lutar muito para isso.
Circulámos pela área da exposição, vendo e comentando os trabalhos expostos. Peter adicionava a cada análise a sua perspectiva e explicava-me as técnicas usadas, enriquecendo os meus conhecimentos.
No final, ao sairmos para a rua, informou-me que iria fazer um trabalho no dia seguinte, uma sessão de moda, fotografar vários modelos para um catálogo de venda de roupa por catálogo.
— Queres vir? — convidou. — Não te posso contratar para meu assistente. Não vais ganhar dinheiro, mas podes aprender mais alguma coisa.
Só se fosse um completo idiota é que desperdiçaria tal oportunidade.
O evento durou o dia todo e aconteceu em Lisboa, junto ao rio Tejo, uma zona de armazéns, onde um deles fora escolhido para estúdio. O ambiente era bastante profissional, diversos assistentes para a mais diversas áreas, desde os maquilhadores, aos responsáveis de guarda-roupa até aos modelos. Estes últimos eram seis, três rapazes e três raparigas, os quais deveriam ter entre dezoito e vinte e um anos. Também estavam presentes representantes da marca de roupa como observadores para darem alguma indicação. Havia também pessoal técnico para a parte eléctrica e a equipa que fora encarregue do transporte de todo o material.
Quando cheguei, Peter apresentou-me de forma geral, informando que seria o seu assistente de equipamento. O mínimo que posso dizer é que foi espectacular, poder mexer em máquinas e acessórios que só podia ver nas montras das lojas, e a interacção com o restante pessoal... Pequenas pausas para a troca de roupa permitiam que Peter discutisse comigo alguns pormenores, sempre um explicador paciente. Aquelas horas acabaram por ser muito mais ricas que o curso que fizera numa turma dele, no ano anterior.
Na parte da tarde, após o almoço que não passou de uma refeição simples servida a todos os elementos presentes, Peter começou a desafiar-me para opinar acerca das fotos. Como colocaria os modelos, poses que destacassem as roupas que se pretendia publicitar, entre outras coisas. Eu fui falando naturalmente, muitas vezes recordando as sugestões que dera a Tânia naquela que fora a sua primeira sessão fotográfica. Peter escutava-me com um semblante interessado.
— Alguma vez fotografaste modelos? — questionou no final da sessão.
Sorri com a pergunta que me retomou as recordações.
— Não vais acreditar...
Peter aguardou, curioso:
— Conheces a Tânia, a supermodelo portuguesa?
— Sim.
— Foi minha colega na escola. — informei perante o seu olhar de "e?" — Fui eu que lhe fiz as primeiras fotos, as que ela enviou para as agências.
Peter pareceu duvidar:
— A sério? — Anuí. — Eu trabalhava para uma das agências que recebeu as fotos. Infelizmente, não conseguimos antecipar-nos aos tipos que a passaram a agenciar. Recordo-me que estava um trabalho bastante bom, parecia feito por um profissional. Foste mesmo tu? — Descrevi-lhe as fotos. — Caramba...
— Achas que posso pôr isso no meu currículo? — questionei num tom de gozo. De que serviria aquela informação num currículo para concorrer a um mísero emprego de ordenado mínimo.
Contudo, Peter não correspondeu ao tom brincalhão e disse:
— Deves colocar isso e o dia de hoje como assistente. Aliás, hei de escrever-te um certificado da tua presença a ajudar-me para o comprovar.
De que me serviria aquilo? Alguma vez chegaria a fotógrafo profissional? Devia ser, eu com a velhinha Canon AE1... Bom, mas valia a intenção e ninguém sabe o futuro.
— Daniel, se surgirem novas oportunidades, convido-te a vires assistir-me outra vez. Caso queiras, claro.
Infelizmente, essas oportunidades não aconteceram.
Aquele ano, para além do entusiasmo com o EURO2004, trazia também uma grande expectativa para os interessados em política, pois era ano de eleições para o Parlamento Europeu.
Estávamos em final de Março. Francisca chegou a casa depois de jantar, uma vez que tivera mais uma reunião do partido que se prolongara. A sua ausência às refeições começava a tornar-se regra e não excepção.
— Precisamos de falar. — disse num tom sério, ao mesmo tempo que me beijava os lábios num cumprimento fugido.
Aguardei, observando-a no seu habitual traje formal. Sem que tivesse planeado, à minha cabeça chegou o filme de uma memorável tarde, uns dois anos antes, em que ela usara aquele fato numa brincadeira nossa, daquelas brincadeiras sexuais que já não aconteciam quase desde essa altura. Eu simulava que estava preso e que ela era a advogada para me defender em tribunal, mas eu não tinha dinheiro e ela sugeria que se lhe desse prazer me poderia livrar da cadeia. Eu a fazer de conta que era um presidiário, ela com aquele fato, sendo que a única diferença que por baixo das calças e do casaco não havia roupa alguma. Velhos tempos...
— Recebi um convite. — informou num tom cansado, despertando-me.
— Convite?
— Querem que faça parte da equipa do cabeça de lista do nosso partido para as Europeias. — prosseguiu, evitando o meu olhar. — Isso irá provocar alterações na nossa vida.
Vai passar ainda mais tempo ausente, foi o que eu pensei.
— Que alterações?
— Se ele for eleito, terei um lugar no Parlamento Europeu. Não como deputada, mas como integrante da equipa de trabalho. Terei de suspender a advocacia por algum tempo, mas o ordenado compensa, já para não falar no prestígio e valorização das minhas pretensões futuras na política.
Sendo o partido um dos maiores do país, a eleição do indivíduo era uma certeza. Por isso, a mudança de vida para França ou Bélgica avizinhava-se.
— Para te ser sincero, viver em Estrasburgo ou em Bruxelas não me atrai minimamente. — confessei, procurando contrariá-la sem a magoar. — Quando é que tens de decidir?
— Já decidi! — afirmou com austeridade. — Já aceitei.
— Sem me consultar? — questionei, ofendido.
— Não houve tempo. — mentiu.
— Não houve tempo? — repeti, irritado. — Nem para pegares na merda do telefone e perguntar o que eu achava disso?
Francisca encarou-me com dureza.
— Seria irrelevante.
Fiquei chocado com a resposta.
— Eu não quero mudar-me para fora do país. — recusei, esperando que isso atrapalhasse a suas certezas.
Vi-a dar alguns passos pela sala, suspirando. Não era o aspecto de alguém que estava a ser contrariada, era mais a imagem de alguém que queria libertar-se de um fardo e procurava a forma mais explícita de o comunicar.
— Não tens de o fazer.
— Não tenho de o fazer? Então eu fico e tu vais? Passamos a ter uma relação à distância?
Para ser sincero, pouco faltava para a relação que tínhamos.
Francisca voltou a suspirar e concluiu:
— Acho que estamos a precisar de dar um tempo. Talvez o afastamento seja bom.
— O quê? — interroguei incrédulo.
— Honestamente, quando aceitei não te coloquei na equação. Estou decidida a ir sozinha.
Atónito. Aparvalhado. Sei lá como me senti ao ouvir aquilo. Acabei por querer uma confirmação:
— Estás a terminar a nossa relação?
— A nossa relação tem estado a... tem vindo a... — Ponderou um argumento, qual advogada de causas perdidas. — Já não somos tão apaixonados.
— Só se fores tu. — redargui. — Eu continuo a gostar de ti. Lamento se tenho outras perspectivas para o nosso futuro, tipo querer filhos, enquanto tu só pensas em ti, no teu trabalho e no caralho do teu partido.
Francisca arregalou os olhos.
— Estás a ser estúpido. Talvez devesses pensar também em trabalho, ao invés de quereres ser um pai desempregado.
E com aquelas palavras, virou costas e desapareceu para o quarto.
Tio veio para junto de mim, roçar-se nas minhas pernas. Sentei-me no sofá e coloquei-a no meu colo, afagando-lhe o pêlo. Permaneci por ali mais de uma hora, observando a televisão sem prestar atenção nas imagens, repetindo mentalmente aquela conversa e as implicações futuras.
Quando fui para o quarto, encontrei a divisão envolta em escuridão. Francisca dormia no seu lado da cama. Tirei a roupa e enfiei-me entre os lençóis. Poderia ainda haver esperança para nós? Talvez tivesse sido brusco, poderia dar o primeiro passo para tentar que nos voltássemos a entender. Encostei-me a ela, tocando com o corpo o tecido do seu pijama. Rodeei-lhe a cintura com o braço e acariciei-lhe a barriga, enquanto lhe beijava a nuca.
Assim que se apercebeu da minha presença, Francisca empurrou-me o braço e afastou-se. Sem dizer uma palavra, revelou que me queria longe.
Parecia não haver dúvida. O nosso amor chegara ao fim.
Nessa noite, tive muita dificuldade em adormecer. E quando acordei de manhã, Francisca já não estava em casa.
Tudo acontecera com uma velocidade vertiginosa. No dia anterior era um homem casado oficiosamente e no dia seguinte voltara a ser solteiro. Aquilo era um rombo na vida a que me acomodara nos últimos anos, pouco mais de três. Porém, no meio do negativismo da situação, outras perspectivas se abriam...
Fui ao computador e escrevi um email a Jewel. Relatei tudo o que acontecera, como a relação com Francisca já não estava bem, que o amor acabara e que tínhamos decidido pôr fim ao nosso "casamento". Enviei com a esperança de... Com esperança de quê? Não sei bem. Não era ingénuo ao ponto de pensar que ela me escreveria a dizer que iria também terminar o seu namoro para que ficássemos juntos. Esperava talvez ler algum entusiasmo nela, um entreabrir da porta a algo...
A resposta chegou ao fim da tarde:
"Oh Daniel. Não imaginas como lamento o que aconteceu. Fiquei triste. Espero que consigam voltar a entender-se, tu mereces ser feliz, és um grande amigo. Espero do fundo do coração que tu e a Francisca voltem a ficar juntos. Mas, se isso não acontecer, não percas a fé. Tenho a certeza que encontrarás alguém que te volte a fazer feliz como antes. Ou tão feliz como eu sou com o meu namorado. Beijinhos"
Não precisam que comente, pois não?
Francisca chegou a casa com o semblante fechado e expressão fria. Não perdeu sequer tempo a trocar um beijo como sempre fazia e atirou um "boa noite" como se cumprimentasse um grupo de pessoas. Não lhe retribuí o cumprimento, substituindo por:
— Vou voltar a Almada. Amanhã, pego nas minhas coisas e vou-me embora.
Francisca assentiu sem qualquer mágoa, completando com:
— Não te esqueças da gata.
Não me esqueci de Tio, nem de nada. Na manhã seguinte, arrumei tudo o que me era importante e chamei um táxi que nos levou de volta a Almada.
O dinheiro que juntara com a indemnização da perda do emprego e o subsídio de desemprego estavam a chegar ao fim. A regressar ao apartamento onde fora criado, passei a ter mais despesas para além da renda. Não podia permanecer desempregado, sob risco de perder tudo, e tive de aceitar qualquer trabalho que aparecesse. O que consegui foi a tarefa de repositor de produtos numa grande superfície comercial a ganhar o ordenado mínimo.
Os primeiros tempos de retorno ao estado solteiro foram muito complicados. Só não dava em louco a falar para as paredes porque Tio me fazia companhia. Sem Internet em casa, também não voltei a falar com Jewel, o que não achei que lhe tivesse feito qualquer diferença. Francisca riscou-me por completo, como se tivesse passado uma borracha em todo o tempo que vivemos juntos.
Apesar de toda a euforia no país com a participação da equipa portuguesa de futebol na competição que se estava a realizar em Portugal, o acontecimento passou-me ao lado. Tinha coisas mais prementes com que me preocupar que o resultado de um jogo. Entretanto, desenrolaram-se as eleições dos deputados para o Parlamento Europeu, as quais confirmaram a esperada eleição do cabeça de lista do partido de Francisca, o que resultaria na sua mudança para o estrangeiro.
Em finais de Junho, Peter telefonou no momento em que eu colocava pacotes de detergente num expositor central que iria estar em promoção nessa semana. Rejeitei a chamada, ligando-lhe na pausa para café.
— Tenho novidades. — relatou, após a conversa inicial protocolar. — Recebi uma proposta espectacular para trabalhar com um grupo de agências internacionais. O ordenado é irrecusável. — Fez uma pausa. — Vou ser responsável pelo departamento de fotografia e serei o fotógrafo exclusivo deles. Estão sediados em Edimburgo. Vou mudar-me até ao final do Verão.
— Parabéns! Fico feliz por ti. — congratulei, pensando que ainda tinha uma pilha de azeite e duas de papel higiénico para colocar em prateleiras.
— Obrigado. Mas, não estou a ligar só para te contar. — explicou com entusiasmo. — Vou precisar de um assistente de fotografia. Estás interessado? — O convite deixou-me sem reacção. Peter, adivinhando a minha estupefacção, continuou. — O ordenado é excelente e podes começar a trabalhar em fotografia. Eu sei que é só como meu assistente, mas tens de começar por algum lado.
A minha cabeça começou a ponderar os prós e os contras. Estava perante uma proposta de trabalho de sonho, ainda mais quando ele converteu o "excelente" em números. Porém, os contras formaram-se como uma nuvem espessa que me cegou: Edimburgo lá tão longe? Viver num país estranho? Iria ficar ainda mais longe de Mafalda. E porquê o interesse de Peter em me contratar? Haveria segundas intenções, sendo ele homossexual?
Tomei a decisão mais estúpida da minha vida ao agradecer e recusar.
No Domingo em que o país parou, a televisão mostrava directos do autocarro da equipa nacional a circular desde a Academia de Alcochete até ao Estádio da Luz, onde nesse fim de tarde Portugal iria discutir o título europeu de futebol com a Grécia. Sem nada mais interessante para fazer, Tio e eu observávamos a loucura da escolta da população.
A campainha tocou. Não esperava visitas e fui atender com enfado, calculando que fosse publicidade ou algum propagador da palavra do Senhor que adormecera de manhã e viera prestar o serviço após o almoço. Abri a porta e ouvi passos na escada de alguém que subia. Fui surpreendido pela visita da minha ex.
Francisca surgiu informal, envergando um vestido que começava abaixo das axilas e terminava acima dos joelhos. Não lhe favorecia o peito, quase inexistente naquele formato de tecido. Calculei que tivesse ido à praia (queria lá saber com quem) e tivesse aproveitado a proximidade para me visitar ou para se despedir. Contudo, o cabelo solto estava penteado e cheiroso e não tinha sinais de exposição solar prolongada.
— Olá Daniel!
— Olá. — retribuí sem esconder a surpresa.
— Posso entrar?
Abri caminho para que passasse.
Tio miou descontente. Francisca ignorou-a e caminhou para a sala, sentando-se no sofá sem esperar convite. Cruzou as pernas, fazendo a saia escorregar para meio das coxas.
— A que devo a tua visita? — interroguei, sentando-me na poltrona.
— Vou partir para Bruxelas para a semana.
— Boa viagem! — desejei com desdém.
— Não quis partir sem voltar a ver-te. — explicou com um tom terno. — Não quero partir mal contigo.
— Podes ir descansada. — repliquei com azedume.
Francisca hesitou, optando por me encarar de uma forma que já não acontecia desde os tempos da paixão diária.
— Tenho saudades tuas.
Só podes estar a brincar, pensei.
— Só podes estar a brincar. — proferi, indignado. Levantei-me do sofá. — Talvez seja melhor ires andando.
Ela copiou o meu movimento, parecendo respeitar a minha vontade. No entanto, parou defronte de mim e beijou-me os lábios antes que eu tivesse tempo de me defender. Fiquei embasbacado. Francisca não disse nada, limitando-se a pegar-me na mão.
— Anda... — sussurrou, puxando-me atrás de si para o quarto.
Entrámos. Estacionou-me ao lado da cama e subiu para o colchão, ficando de joelhos. Levou as mãos ao topo do vestido e puxou-o até à cintura, revelando os seios de dimensão envergonhada. Eu permaneci estático. As suas mãos focaram-se no fecho das minhas calças. Os seus dedos começaram a tocar-me, vi o seu sorriso e a sua cabeça a baixar para a minha cintura, a excitação alastrou pelo meu corpo...
Nas horas que se seguiram, a separação foi como se nunca tivesse acontecido. O tempo voltara para trás e nós tornámos a embrulhar-nos no calor da paixão, na loucura sexual, nas repetições de prazer.
A noite caíra por completo. Pela janela, apenas o brilho dos candeeiros de rua na sua tonalidade alaranjada. Deitado na cama, ainda estava confuso com tudo o que acontecera, com a visita dela, com a envolvência da paixão. Já nem me lembrava a última vez que o sexo fora tão brutalmente gratificante.
Francisca levantou-se da cama em silêncio. Apanhou as cuecas penduradas na cabeceira da cama e vestiu-as. A seguir, segurou o vestido.
— Continuas uma amante brutal. — elogiei para as suas costas. Ela voltou o rosto e sorriu. De súbito, fez-se luz na minha cabeça, acerca do propósito da visita. — Está bem. Eu vou contigo.
Com o vestido de volta ao seu sítio, Francisca virou-se para mim, acariciando o meu corpo nu com os olhos, desde os pés até à cabeça.
— Não pretendo que venhas comigo, Daniel. Quero seguir a minha vida sozinha! — afirmou com segurança, usando um tom firme. Sorriu como se tivesse lido o meu pensamento. — Isto não foi sexo de reconciliação. Foi sexo de despedida. — Calçou os sapatos. — O tempo que partilhámos foi muito bom. — Contornou a cama. — Mas, acabou! Fica bem Daniel. — E saiu do quarto.
Os seus passos ecoaram pelo corredor. O som da porta a bater confirmou a sua partida. Não havia dúvidas, eu perdera Francisca para a União Europeia. E Portugal oferecera a taça aos gregos.
Os meses seguintes foram rotineiros. Talvez o facto mais relevante tenha sido a dissolução da Assembleia da República, o que levou a eleições legislativas antecipadas. Quando ouvi a notícia, questionei-me se Francisca regressaria a Portugal para tentar um lugar de deputada ou retomar a sua profissão no seu país acumulando um cargo idêntico ao que tinha no Parlamento Europeu. Não equacionei isso como uma hipótese de reatamento da nossa relação, uma vez que sabia que terminara em definitivo. Porém, se a possibilidade de regressar a Portugal esteve no seu plano, isso nunca chegou ao meu conhecimento.
Eu permanecia com o meu trabalho entediante e desmotivante. Pelo menos, conseguira ter uma boa relação com o pessoal do escritório que me permitia usar o computador durante a hora de almoço, podendo assim consultar as minhas mensagens. Não sabia muito bem o que seria o meu futuro, mas contentava-me com o facto de ter emprego e pagar as contas. Não tinha amigos, vivia desinteressado de qualquer relacionamento amoroso e passava os tempos livres em casa a ver televisão com a gata a dormir no colo.
No dia a seguir ao Natal, nesse ano, as televisões começaram a passar imagens da tragédia no Índico, onde um terramoto seguido de tsunamis viria a fazer mais de duzentos e trinta mil mortos. Nessa tarde, recebi um email de Jewel, a qual estivera quase dois meses sem dar notícias. Enviara-lhe uma mensagem só para manter o contacto e não tivera resposta. Porém, naquela tarde fria de Dezembro, após o almoço e aproveitando o resto do tempo para consultar a Internet, ao entrar na caixa de email, deparei com nova mensagem dela:
"Olá Daniel! Há quanto tempo... Desculpa andar ausente, mas a faculdade tem sido esgotante. Nesta fase já temos muitas horas no bloco, começamos a ter mais contacto com o mundo real. Tenho novidades. O meu namorado pediu-me em casamento. E eu disse sim. Estou muito feliz. Sei que parece precipitado, mas estamos muito apaixonados. Não será para já, só quando terminarmos a formação e começarmos a trabalhar. Mas, decidimos oficializar o compromisso. Sei o que estás a sentir ao ler isto, sentiria igual se fosse ao contrário. Mas não podia deixar de te contar. Serás sempre especial como espero continuar a ser para ti. Perdoa-me as longas ausências nas mensagens, não significam que não pense em ti todos os dias. Continua a escrever-me, por favor. Fazes parte de mim, da minha vida, mesmo longe, mesmo virtual... Espero que fiques feliz por mim. Beijinho grande da tua amiga que te adora. Jewel."
Parei um pouco para respirar. Não era justo que todos os dias desejasse receber uma mensagem dela a dizer que o namoro terminara. Não podia continuar com a esperança de a ter para mim. Agora já não era um namoro, era um noivado. As coisas para ela evoluíam normalmente, como devia ser, como ela merecia. Só podia congratular-me por a ver feliz. Não fora eu a causa dessa felicidade, mas não tinha o direito de lha negar por ser outro o dono do seu coração. Recuperado do impacto, escrevi:
"Olá Mafalda! Há um cantinho no meu coração que guardará para sempre todo o amor que sinto por ti. Não tenho como me desfazer dele, mas ficará ali como uma memória do que poderia ter sido. Farás sempre parte da minha vida e pretendo continuar em contacto contigo, acompanhando a tua felicidade e saboreando um travo dela ao longe. Não tenhas dúvida alguma, estou feliz por ti e desejo-te as maiores felicidades com o teu futuro marido. Beijinho ainda maior para ti. Adoro-te! Daniel."
Logo que enviei, fechei o email e regressei ao meu posto de trabalho.
Quando regressei a casa, telefonei a Peter que se encontrava em Edimburgo desde Setembro, abraçando o novo projecto. Liguei-lhe porque, entre uma lata de salsichas e um pacote de arroz, me perguntei o que fazia ainda ali.
— Olá Peter!
— Olá Daniel! Estás bom? Não me digas que estás a ligar para desejar um Feliz Natal. — Ouvi uma gargalhada no outro lado. — É bom ouvir-te, amigo.
— Desculpa estar a ligar-te tão tarde, mas queria fazer-te uma pergunta?
— Chuta.
— A proposta para ser teu assistente ainda está de pé?
Houve um silêncio no outro lado da linha. Merda, mais uma vez chegara tarde.
— Sabes porque te convidei para ser meu assistente? — questionou num tom mais sério. Respondi que não. — Para te dar uma hipótese de enriqueceres os teus conhecimentos de fotografia e ganhares oportunidades para abraçares a profissão com que sempre sonhaste. Não estou à procura de um assistente, estou a criar-te uma oportunidade.
Percebi que ainda tinha hipótese.
— E o ordenado?
— É o que te falei antes.
Um ordenado de sonho. Mesmo assim, havia um pormenor que me deixava relutante.
— Preciso de te fazer uma pergunta. Peço-te que não me leves a mal.
— Chuta, Daniel.
— Existe alguma segunda intenção atrás dessa oportunidade?
Ouvi uma gargalhada estridente do outro lado.
— Achas que estou a tentar seduzir-te?
— Desculpa estar a perguntar, Peter. — pedi quase envergonhado por colocar a questão. — Não quero mal-entendidos.
Denotando um tom bem-humorado, Peter respondeu:
— Há pessoas que acham que a homossexualidade é uma doença. Que se pode dar uns comprimidos e um gajo passa a gostar de mulheres. Podes não acreditar, mas ainda há gente a pensar assim. Achas que se pode transformar um gay em hetero?
— Não.
— Pois um hetero também não se transforma em gay, a menos que goste mesmo de homens. — argumentou. — E pelo que conheço de ti, acho que as mulheres ainda são a tua preferência. — Nova gargalhada. — Somos amigos, Daniel. Acho que tens potencialidade para este ramo. Estou só a ajudar-te.
— Obrigado, Peter! E desculpa...
— Esquece isso! — interrompeu. — Mete-te num avião e vem para cá. Ficas em minha casa, isto é grande com'ó caraças.
— Peter, não vou sozinho. Tens espaço para uma gata?
— Até para uma de duas perninhas. Mas sei que te referes à de quatro. Claro que sim.
Larguei o emprego no final do ano. Os preparativos para a mudança foram trabalhosos, principalmente no que respeita à viagem, tendo em conta que iria transportar um animal de estimação. Isso obrigou-me a contactar várias companhias aéreas, preferencialmente com voos directos entre Lisboa e Edimburgo, que me permitissem viajar com a gata a meu lado, ao invés de a transportarem no porão. Entre uma complicação e outra, lá se resolveu tudo pelo melhor.
Consegui resumir o que queria levar em duas malas. O apartamento, onde outrora os meus tios me haviam criado, ficaria fechado tal como um álbum que se guarda numa prateleira. Cobri as mobílias e corri as persianas. Desliguei o gás, a água e a luz. Fechei a porta sem fazer ideia de quando voltaria... ou se algum dia voltaria. Mesmo assim, enquanto me fosse permitido financeiramente, manteria o arrendamento. Seria uma espécie de tributo aos meus tios.
Um táxi levou-me de Almada até ao Aeroporto da Portela. Enquanto atravessávamos a Ponte Vasco da Gama, o rádio tocou o Run dos Snow Patrol, acentuando o meu sentimento de partida, despedindo-me daquilo que me prendia a Portugal, uma esperança que se esfumara, um amor perdido, um nome gravado a fogo no meu coração... Mafalda.
Nunca o consegui explicar, mas adorei Edimburgo desde o primeiro minuto, logo que pisei solo escocês. Não foi certamente pelo frio brutal de Janeiro ou pelos dias constantes de céu cinzento. Aliás, o Sol é raro na capital da Escócia, mas quando aparece... Tal como os escoceses dizem "nada bate Edimburgo num dia soalheiro".
Penso que o meu fascínio eram as pessoas. Por norma, só encontrava simpatia, afabilidade, hospitalidade. Sentia-me em casa. O meu inglês enferrujado rapidamente ganhou lubrificação e tornou-se regular. A única coisa a que nunca me consegui adaptar foi ao facto dos tipos conduzirem do lado errado da estrada.
Peter vivia no topo de um edifício da zona mais recente da cidade. O espaço era um amplo open space de dois pisos num estilo arquitectónico clássico, o qual servia de estúdio de fotografia e habitação. A zona de estúdio, piso inferior, tinha uma parede alta com vários rolos coloridos que se desenrolavam para a escolha do melhor cenário a usar nas fotos. Ao fundo, perfilavam-se diversos acessórios de apoio, máquinas fotográficas... Numa das laterais, um conjunto de biombos permitiam a privacidade dos modelos para as trocas de roupa. E na parede oposta existia uma porta para a casa de banho de trabalho. A zona de habitação era o piso superior, onde as paredes laterais eram todas envidraçadas oferecendo uma vista magnífica para o sector histórico da cidade e para as colinas. A luminosidade contrastava muito com a escuridão do andar de baixo. Também era um espaço amplo, sem paredes interiores, dividindo-se entre sala gigantesca e cozinha de serviços mínimos e bem equipada. Na ponta oposta à escada de acesso, os quatro quartos e a casa de banho privativa eram os únicos sectores com portas e completa privacidade.
Tio andou meio confusa nos primeiros tempos, era um ambiente completamente novo. Já quando nos mudáramos para casa de Francisca, ela se mostrou apática. Ali, penso que o clima acentuou, para além do desgaste da viagem. No entanto, lá se habituou. Peter gostava muito dela, um sentimento recíproco. Deixávamo-la circular à vontade pelo piso superior, mas o inferior era-lhe interdito, não fosse derrubar algum do equipamento caríssimo que ele lá tinha.
Mais que um emprego, trabalhar com Peter era um enriquecimento de conhecimento e experiência em fotografia. As sessões fotográficas variavam entre o estúdio, exteriores ou outros locais. No estúdio, recebíamos muitos modelos e aspirantes a modelos, masculinos e femininos, na sua maioria enviados pelas agências para a realização de books de apresentação. Contudo, também tínhamos sessões para campanhas de publicidade, catálogos, promoção de eventos...
Perdi a conta ao número de raparigas que despiam Peter com o olhar, cheias de desejo, não se coibindo de lhe explicitar as suas intenções. Havia outras que já sabiam das suas preferências e nem perdiam tempo. Eu nunca lhes despertei muito interesse, acho que após a recusa dele, eu não passaria de um fraco prémio de consolação. Verdade seja dita, também não estava interessado, uma vez que não queria paixões e nunca tive jeito para cenas de sexo pontual. Nem mesmo os modelos masculinos que partilhavam da sua orientação sexual tinham sorte com Peter, o qual sempre me ensinara a nunca misturar trabalho com prazer.
Os trabalhos exteriores eram mais complicados. O clima tornava-se uma lotaria e quantas vezes não tínhamos de adiar ou suspender uma sessão por causa da chuva ou do vento.
A juntar ao contrato que Peter tinha com as agências, uma vez que me tinha como assistente e sentia que poderia confiar-me a máquina, começámos a aceitar trabalhos de reportagem fotográfica de eventos, fotografia de espaços culturais e turísticos, enfim... Fazíamos todo o tio de fotografia. E à conta disso, ganhámos muito dinheiro. Já para não falar dos diversos patrocínios que Peter tinha, os quais nos forneciam o material que precisávamos, ao ponto de ele me ter oferecido um dos primeiros modelos da Canon 5D para eu treinar.
Como já referi, conduzir na Escócia era uma dor de cabeça para mim. Nem sequer tentei. Talvez por isso, deixei-me influenciar pelo gosto de Peter por motas. Ao fim de seis meses em Edimburgo, comprei a minha mota. Sempre seria mais fácil acertar com o lado correcto e em caso de dúvida ia por cima no tracejado da estrada.
As pessoas que nos rodeavam, amigos e vizinhos, conheceram Peter antes de me conhecerem a mim. Sabiam da sua orientação sexual, até porque ele nunca o escondera. Isso fez com que fossemos vistos como um casal. Nunca me senti incomodado com essa situação. Em cerca de um ano na Escócia, conheci-lhe alguns casos amorosos, mas sem grandes perspectivas de futuro. Peter também não era homem de compromissos afectivos.
Peter e eu saíamos muitas vezes à noite, juntando-nos ao habitual grupo de convívio, na sua maioria homens a jogar na equipa de Peter. Curiosamente, os gays têm sempre as amigas mais giras das festas.
Depois dos últimos tempos em Portugal, Edimburgo trouxe-me uma época de realização. Adorava o que fazia, adorava a vida que tinha. Conheci imensa gente, estive rodeado de pessoas lindas, fascinado com a beleza de mulheres lindíssimas... Apesar das oportunidades, nunca me quis envolver com ninguém, nem mesmo se fosse algo só por uma noite. Nunca quis porque aquele cantinho especial no meu coração continuava lá, guardado, suspenso, esquecido numa recordação diária.
Recordo-me que já vivia ali havia pouco mais de um ano. Nesse período, a troca de mensagens com Jewel era escassa e regular, um compromisso que nos esforçávamos por cumprir de pelo menos uma vez por semana. Basicamente, relatávamos a nova vida e congratulávamo-nos com o sucesso do outro. De tempos a tempos, ela perguntava se eu já encontrara alguém que substituísse Francisca no meu coração. Não seria difícil encontrar, o problema é que eu tinha de encontrar uma substituta para Mafalda no meu coração. E isso não me parecia possível.
Eu adorava passear pela Cidade Velha de Edimburgo, principalmente ao fim do dia. Ir jantar à Grassmarket, beber um gin na Royal Mile... Naquela noite, fui jantar a um restaurante perto do Castelo de Edimburgo, na companhia de alguns amigos. Peter estava em Milão para acompanhar um evento de moda e eu ficara a assegurar os trabalhos de estúdio, durante a semana que estivesse ausente. Há algum tempo que deixara de ser seu assistente para ser um fotógrafo parceiro.
Saí do restaurante sozinho e desci a rua. Estávamos na Primavera, mas o ar era igual a Portugal em Dezembro, não deveriam estar mais de cinco graus. Caminhei calmamente, desfrutando do passeio, seguindo pela Royal Mile, vendo as várias pessoas que circulavam por ali. O meu destino era a South Bridge, lá em baixo, onde apanharia o autocarro para casa. Ao chegar à St. Gilles Cathedral, vi uma rapariga sentada no chão, encostada à parede, pedindo esmola. Não era incomum, ver alguns sem-abrigo, à noite, a pedir e a acomodar-se a um canto. O que me chamou a atenção foi o seu aspecto, quase como se fosse uma viajante que fizera uma paragem ali para colectar umas moedas e prosseguir. A rapariga tinha cabelo escuro curto, vestia um grosso blusão estilo montanhista e embrulhava-se num edredão colorido. A seu lado, uma mochila que deveria conter os seus parcos pertences.
Sem desviar caminho, aproximei-me, ouvindo-a num inglês estranho a pedir a quem passava que lhe dessem dinheiro para poder comprar algo quente para comer. Levei a mão ao bolso para constatar que não tinha um peni que fosse. A escassos cinco metros, perante a passagem de um casal que a ignorara, ouvi-a dizer:
— Obrigadinho por nada.
Falava português?
Nem me apercebi que parara, ficando a olhar para ela. E isso chamou a sua atenção, cravando-me o olhar em jeito de desafio. Percorri a distância que nos separava e baixei-me perto dela.
— És portuguesa?
Houve um momento de surpresa no seu rosto por se confrontar com alguém que falava a sua língua nativa. Porém, recompôs-se.
— Sou. — Simulou um sorriso. — Não queres ser um bom compatriota e dar-me umas moedas para beber qualquer coisa quente?
Tirei vinte libras da carteira e dei-lhe, perante o seu olhar arregalado. Apressou-se a esconder a nota, não fosse alguém ter visto e a tentasse roubar quando estivesse a dormir.
— Que faz uma portuguesa a pedir esmola numa rua de Edimburgo?
Calculo que tivesse vontade de responder que eu não tinha nada com isso. Só que eu fora simpático, dera-lhe aquela nota.
— É uma longa história. — respondeu em jeito de "vai-te lá embora".
Sentei-me no chão a seu lado, sentindo a pedra gelada.
— Eu tenho tempo.
A rapariga olhou-me incrédula, permitindo-me ver com mais atenção os seus olhos castanhos muito escuros e notar algum cansaço neles. Abanou a cabeça, aborrecida.
— Que idade tens? — perguntei num tom simpático.
— 25.
Era cerca de três anos mais nova que eu. Insisti na curiosidade pelas causas que a levaram ali. As pessoas passavam e olhavam-nos com estranheza, questionando-se o que fazia uma pessoa "normal" sentada no chão ao lado de uma sem-abrigo.
— Estás a afugentar a clientela. — reclamou, vendo que ninguém se aproximava.
Eu propus:
— Se me contares a tua história, ofereço-te uma refeição e bebida quentes.
Ela pareceu duvidar e estendeu a mão para que eu celebrasse o acordo com o dinheiro para pagar a oferta. Recusei, explicando-lhe que teria de confiar em mim.
O relato começou aos tropeções, pensando naquilo que queria e não queria contar. Aguardei paciente, ouvindo com atenção sem interromper. Ela era natural do Algarve, onde trabalhava nos bares em Albufeira. Conhecera um escocês. Imaginei um típico britânico daqueles que proliferam pelo sul de Portugal em bares, completamente bêbados e a causar desacatos. O seu olhar pareceu perder-se nas recordações. Ele cativara-a, ela apaixonara-se por ele. Ele parecia ter dinheiro, prometia-lhe imensas coisas. Percebendo que seria uma oportunidade para uma vida melhor, ela fez-se difícil, um beijo aqui, um beijo ali e mais nada. Se ele queria mais, tinha de a levar consigo. Segundo a rapariga, o escocês mostrava-se mesmo interessado em levar aquilo a sério e fizeram planos para ficarem juntos. Ela viajou com ele para Edimburgo. Ele explicara-lhe que era de uma localidade longe da capital, por isso, ficariam num hotel na noite em que chegaram e partiriam na manhã seguinte, de comboio, para a terra dele. Uma vez na Escócia, ela baixou todas as defesas e nessa noite dormiram juntos no hotel. Recordava-se que adormecera feliz, ansiosa por conhecer a família dele. Contudo, na manhã seguinte, acordou sozinha no quarto. Ele desaparecera. Não deixara nada e ainda lhe roubara o pouco dinheiro que tinha. Despertou para a cruel realidade, onde tudo não passara de um estratagema para a... Não se importou em usar a palavra "foder". Como pudera ser tão estúpida? Gastara as suas escassas economias com a viagem, permitira que ele registasse o quarto em seu nome... Tudo porque estava apaixonada e acreditara nas suas boas intenções.
— E depois? — questionei, perante a pausa no relato.
— Tentei colocar as ideias em ordem. Estava lixada. Não tinha um peni que fosse, o filho da puta levara tudo. Vesti-me e arrumei a mochila. — Apontou para o volume a seu lado. — Consegui sair do hotel sem que dessem por mim e fugi. — Olhou para as mãos com olhar vago. — Desde essa altura que vivo na rua.
— Isso foi há quanto tempo?
— Dois meses.
Suspirei, imaginando como teria sido passar parte do Inverno escocês a dormir na rua.
— Porque não pediste ajuda no Consulado? Talvez te ajudassem a regressar a Portugal
— Regressar para quê? — interrogou com um sorriso irónico. — Não tenho lá nada. Não tenho família, larguei a casa, não tenho emprego... O mais certo seria estar a dormir na rua, tal como estou aqui. — Mudou para um tom sarcástico. — Olha! Pelo menos aqui as esmolas são melhores.
Levantei-me do chão com os ossos doridos e o rabo gelado.
— Eh! Onde vais? — perguntou. — Deves-me uma refeição e uma bebida.
Sacudi as calças e respondi:
— Eu sei. Anda comigo! — A rapariga hesitou, estranhando ou até mesmo temendo algo. — Anda! Não estás à espera que te venha trazer as coisas aqui?!
Receosa, saiu debaixo do edredão e começou a enrolá-lo. Reparei nas calças gastas sujas e nas sapatilhas esburacadas. Prendeu o rolo na mochila como se fosse um saco-cama e colocou tudo às costas.
— Vamos? — indiquei, apontando para a estrada.
Ela começou a andar, acompanhando-me na descida pela Royal Mile.
— Como te chamas? — quis saber, sentindo o seu cheiro nauseabundo. — Eu chamo-me Daniel.
— Kátya. — informou, explicando. — Kátya com "k" e "y".
Sorri com o pormenor.
Perto do primeiro restaurante, Kátya disse:
— Não sei que pensas fazer, mas não sei se me deixam entrar ali.
— Não te preocupes, não te vou levar a um restaurante. — Ela parou subitamente preocupada. — Vou levar-te para minha casa. Estarás mais à vontade. — O seu rosto adquiriu uma expressão de quase pânico. — Não te preocupes. Não te vou fazer mal. — Permaneceu petrificada. — A sério, Kátya. Não tens de ter medo.
A custo, ela lá colocou um pé à frente do outro.
A noite estava cada vez mais fria. Na South Bridge, apenas mais duas pessoas aguardavam a chegada do autocarro, o qual chegou numa altura em que começava a chover.
Por muito forte que Kátya tentasse mostrar-se, reparei que se sentia intimidada pelos olhares condenatórios, quase enojados de quatro passageiros, pela sua presença dentro do veículo. O seu receio não se atenuou durante a viagem, nem ao chegar à minha morada. Deveria estar apavorada com a incerteza se a esperava uma refeição quente ou um destino trágico, caso eu fosse um psicopata.
Ao entrarmos em casa, Tio veio receber-nos. A gata mal ouvia a porta e vinha logo às escadas.
— Esta é a Tio. — apresentei.
Kátya tentou fazer-lhe uma festa, quando a gata se aproximou curiosa, mas Tio fugiu. Encaminhei-a pelas escadas. No seu rosto estampava-se o espanto pela dimensão do lugar. Deixou-se conduzir pela sala até às porta na extremidade oposta. Pedi-lhe que largasse a mochila ali.
Tio acomodara-se na sua cama junto ao sofá e observava-nos atenta.
— Estou a ver que és um gajo cheio de papel. — comentou, mais para aliviar os nervos.
Não me pronunciei e afastei-me para o meu quarto. Fui buscar um conjunto de toalhas e entreguei-lhas.
— Aqui tens. Aproveita e toma um banho quente enquanto preparo alguma coisa para comeres.
Kátya continuava hesitante. Por isso, abri a porta da casa de banho, acendi a luz e apontei-lhe o duche.
— Vá! Fica à vontade.
Na cozinha, preparei-lhe uma sopa instantânea bem quente, ouvindo o som da água a correr no duche. O duche demorou bastante tempo, o que compreendi, uma vez que ela já não deveria tomar banho desde que vivia na rua. As suas coisas imundas despertaram a atenção de Tio que foi farejar tudo, soltando depois um miar indignado e regressando ao seu canto.
O som parou. Passado algum tempo, a porta abriu-se.
— Queres que te faça um chá ou preferes café? — ofereci, vendo-a sair para a sala.
Kátya não respondeu, avançando para a cozinha. Trazia a toalha maior enrolada à volta do corpo, cobrindo desde o peito até abaixo da cintura. Reparei que era magra, demasiado magra, fruto da vida dos últimos tempos. As pernas esguias revelavam joelhos tortos, os braços tinham duas flores tatuadas. A toalha apertava-se à volta do peito bem dotado. A cabeça fora coberta com a toalha mais pequena para secar o cabelo. Só o banho já lhe atribuía uma imagem muito mais leve e cativante.
Esperando uma resposta, vi-a parar junto à península que dividia a cozinha e a sala. Olhou para mim, séria.
— Se não te importas, prefiro que o façamos antes de comer.
A frase apanhou-me completamente de surpresa.
— De que estás a falar?
O rosto agastado forçou um sorriso escarninho.
— Sei bem para que me trouxeste para aqui. E quiseste que fosse tomar um banho. Ok, é justo.
— Achas que te trouxe para aqui para te levar para a cama? — inquiri incrédulo. — Pensas que estou a fazer isto para ter sexo contigo? — Ela assentiu. — Estás enganada. Não estou interessado.
A frase pareceu ofendê-la. Num instante, a perspectiva de ter de fazer sexo em troca de comida pareceu-lhe menos humilhante que ser rejeitada.
— Que foi? Não te agrado? — inquiriu zangada.
Adoptando uma postura séria, retorqui:
— Até podias ser a mulher mais linda do mundo. Eu jamais me aproveitaria da fragilidade de alguém para me usar dela.
Ela percebeu que me avaliara mal.
— Ok. Desculpa! Pensei...
— Não penses. — interrompi, empurrando a tigela da sopa na sua direcção. — Aproveita e come enquanto está quente.
Enquanto ela comia, desci ao estúdio. Nas sessões de fotografias para catálogos era comum que as marcas nos deixassem peças de roupa, sapatos... uma espécie de brindes. Deixavam para homem e para mulher, pois poderíamos querer oferecer a alguém. À conta disso, o estúdio tinha já um considerável guarda-roupa que nós também aproveitávamos para outras sessões. Fui buscar umas calças de ganga, uma camisola de lã, umas meias grossas, umas cuecas e um sutiã, esperançado em ter adivinhado as suas medidas.
Ao regressar, entreguei-lhe tudo, dizendo:
— Vou dar-te um saco para colocares a roupa que trazias. Vais deitar aquilo fora. Tens aqui roupa lavada para ti. Deitas fora também aquele edredão imundo.
— E como é que passo a noite na rua com este frio? — perguntou, indignada.
— Não precisas de te preocupar com isso. Esta noite ficas aqui. — Kátya ficou boquiaberta. Eu continuei. — Guarda as coisas que possam ter um significado especial para ti. O resto, enfia na mochila e vai tudo para o lixo.
Sem dizer qualquer palavra, Kátya terminou a sopa, pegou na roupa que lhe dera e regressou à casa de banho. Alguns minutos volvidos, regressou à sala com a indumentária que lhe arranjara no estúdio. Pegou no saco do lixo que lhe dei e enfiou lá a roupa velha, o edredão e a mochila com tudo o que não interessava. Ficou apenas com os documentos e uma caixa pequena. Atou o saco para que o cheiro não saísse e estacionou-o no cimo das escadas. Tio andou à volta dela e acabou por a deixar afagar-lhe o pêlo. Por fim, sentou-se no sofá com os olhos fixos em mim.
— Pronto, fiz o que me mandaste. Desculpa o cepticismo, mas tenho alguma dificuldade em acreditar que fazes tudo isto por mim sem querer nada em troca.
Observei-a de forma analítica, agora que estava lavada e arranjada percebia-se que era uma rapariga bonita.
— Já te disse que não te estou a ajudar para te levar para a cama.
— Então, diz-me o que queres de mim. — exigiu. Depois, olhou em volta. — Já sei. Recebes pessoas aqui. Queres que me prostitua para ti, é isso?
— Já pensaste em escrever histórias? Tens uma imaginação...
— Merda, pá! Deixa-te de jogos e diz logo o que queres.
Ofereci-lhe um sorriso tranquilizador.
— Lamento a tua falta de crença na Humanidade. Sei que a maioria corresponde à tua ideia, é verdade. Só que ainda há alguns exemplares perdidos que até fazem umas coisas sem quererem nada em troca. — Fiz uma pausa como se ponderasse algo. — Bom, até quero algo em troca. — Tornei a sorrir. — Um "obrigado" sabia-me bem.
Kátya permaneceu na dúvida, custava-lhe a acreditar.
— Não estás a fazer isto para obter algo? Não vou acordar amanhã sem um rim?
Não contive uma gargalhada.
Ela levantou-se do sofá e foi buscar a caixa que retirara da mochila. Abriu-a e retirou um maço de tabaco.
— Importas-te que fume?
— Importo. — impedi, travando o seu movimento de retirar o cigarro. — Não quero fumo aqui dentro. Se tens mesmo necessidade de fumar, terás de ir fazê-lo à rua.
O cigarro regressou ao maço.
— Como é que alguém que anda a pedir na rua tem dinheiro para tabaco?
— Da mesma forma que tem para a comida, ou seja, não tem. — explicou, fechando a caixa. — Não te vou mentir, eu roubei o maço.
— Só roubaste tabaco? — inquiri com um olhar inquisidor.
— Não. — respondeu sem querer dar mais pormenores. — Na rua tens de sobreviver...
Não ia fazer daquela conversa um interrogatório, mas tinha uma última questão:
— E drogas?
— Pareço-te uma drogada? — retorquiu. Eu aguardei a resposta. — Não, nunca me meti em drogas. Fumei umas cenas na adolescência, nada mais.
Tio deu uma volta na sua cama, procurando a melhor posição. Notei o seu desconforto, queria descansar e nós estávamos ali a perturbar o seu descanso.
— É melhor irmos dormir. — sugeri, olhando para as horas.
Levantámo-nos em simultâneo e indiquei-lhe o quarto onde iria dormir.
— A porta tem chave? — perguntou, observando o quarto.
— Sim. Podes trancar a porta se isso te fizer sentir mais segura.
Kátya abanou a cabeça.
— Não é isso. Leva a chave e tranca a porta por fora. Dormirás mais seguro e descansado, não vá eu roubar alguma coisa e fugir.
— Eu confio em ti. — afirmei, recusando a ideia de a trancar. — Não fumes no quarto. Se tiveres mesmo necessidade, podes abrir a janela e fumar lá fora.
Sei que foi arriscado. Ela poderia aproveitar a ocasião, roubar algumas coisas valiosas que tínhamos em casa e fugir enquanto eu dormia. Porém, não senti esse receio, Kátya era uma alma ferida a desfrutar de abrigo.
Na manhã seguinte, acordei tranquilo, recordando-me que abrigara uma conterrânea em minha casa. Saí do quarto e encontrei Tio sentada defronte da porta do quarto onde Kátya dormia, como se a esperasse.
— Não faças barulho, Tio. — sussurrei. — Deixa a rapariga descansar.
Fui tomar um banho e arranjar-me para mais um dia frio em terras caledónias. Ao voltar a sair do quarto, Tio permanecia no mesmo sítio. Avancei para a porta e, antes de bater, a gata levantou-se atenta com o focinho numa expressão de "vá lá, acorda-a". Bati suavemente na porta. Ninguém respondeu. Bati ligeiramente com mais força e chamei-a pelo nome. Novamente, não houve resposta. Teria ido embora? Levei a mão ao puxador e rodei. Abri a porta com cuidado e espreitei para o interior.
Kátya dormia profundamente, estendida na cama e recuperando das muitas noites mal dormidas ao relento. Sei que deveria ter saído imediatamente, mas não consegui evitar observar a cena. Ela dormia de barriga para cima, atirara a roupa da cama para o lado e o seu corpo nu estava completamente exposto aos meus olhos. Os olhos cerrados, a boca aberta ecoando um ressonar quase sussurrado. Tal como suspeitara, tinha seios volumosos, acentuados pelos sinais de magreza, onde os mamilos se espetavam como duas antenas. As costelas começavam a notar-se sob a pele. Um dos braços estava pendurado na cama, enquanto o outro repousava sobre a sua cabeça, revelando os pêlos nas axilas. Os meus olhos desceram para a cintura. As pernas estavam afastadas e um tufo grande de cabelo escuro sobressaia entre elas. Reparei que tinha uma cicatriz na coxa e que muitos pêlos se espalhavam dos joelhos até aos pés.
Não vou mentir, senti desejo por ela.
Silenciosamente, voltei para trás e fechei a porta.
— Nem um miau sobre isto, Tio! Ouviste? — A gata soltou o seu característico miar. — Ainda bem que entendeste.
Caminhei até à cozinha e preparei o pequeno-almoço.
Cerca de quinze minutos mais tarde, saboreava eu uma torrada ainda com o quadro da manhã no pensamento, Kátya saiu do quarto embrulhada num cobertor e com o rosto estremunhado, abrindo os olhos com dificuldade devido à forte luminosidade.
— Bom dia! — atirou. Apontou para a casa de banho. — Posso?
— Bom dia! Claro, estás à vontade.
Kátya desapareceu no seu interior. Ouvi a água a correr. Tio tornou a cirandar pelas portas dos quartos, curiosa a todos os sons, fugindo quando a minha hóspede reapareceu, escondida no cobertor e com um semblante mais desperto. Voltou ao quarto para tornar a aparecer já vestida com as roupas que lhe dera na noite anterior.
— Dormiste bem? — perguntei, quando se sentou a meu lado ao balcão.
— Não dormia assim há tanto tempo...
Na sua frente, Kátya tinha pão, chá e compota. Devorou tudo.
Fiz café para ambos.
— Quando queres que me vá embora? — perguntou timidamente após o café.
— Não te preocupes com isso agora. — descansei-a. — Tenho outros planos para hoje. — O seu olhar denunciou o receio do que estaria para vir. — Bolas, continuas com medo?
— Não fazes ideia por aquilo que já passei.
— Compreendo. Mas não precisas de ter medo. Quero ajudar-te a arranjar um trabalho e um sítio onde viver. Não quero que voltes para a rua. — Ela ficou comovida. Sorri-lhe com ternura. — Podes achar tudo isto estranho. Imagino a solidão que tenhas passado, desde que vieste parar a Edimburgo. Tenta esquecer isso. Agora tens um amigo que te vai ajudar. — Pisquei-lhe o olho. — E faço-o sem querer roubar-te um rim.
— Obrigado! — agradeceu, controlando a emoção.
O meu primeiro plano seria levá-la ao Consulado. Queria saber se a documentação dela estava toda em ordem e tratar dos requisitos necessários para conseguir arranjar um emprego na Escócia.
Descemos as escadas. Parei no piso inferior, abrindo a porta do estúdio para ir buscar um casaco para ela.
Ao entrar, Kátya surpreendeu-se com o lugar.
— És fotógrafo?
— Sim. Partilho este estúdio e a casa com outro fotógrafo português.
Ela olhou em redor e depois para mim.
— Ah... Percebo. Por isso é que me rejeitaste.
— Como assim? — questionei, entregando-lhe um dos meus blusões de cabedal.
— Tu e ele... Vocês... — Como não completei a sua frase, ela fê-lo. — És gay!
Ri-me divertido.
— Sim, é isso. Descobriste tudo. Sou gay.
Ela não pareceu convencida.
— A sério? Vá lá. Diz-me a verdade!
— Isso é importante?
— Sou curiosa.
— E vais continuar curiosa. — retorqui, voltando a fechar a porta do estúdio. — A orientação sexual é uma coisa privada.
Kátya encolheu os ombros, aborrecida. Mesmo assim não se deu por vencida e, já na rua, insistiu:
— Deves fotografar muitas mulheres naquele estúdio?!
— E homens também.
— E gostas mais de fotografar quais?
— Ambos.
Ela silenciou-se por breves instantes e concluiu:
— És bissexual.
Kátya permaneceu lá em casa mais três dias, tempo suficiente para lhe encontrar um lugar onde ficar. Havia espaço na casa de Peter, mas não queria tomar uma decisão dessas sem o seu consentimento, nem colocá-lo perante essa questão quando chegasse. Por isso, aluguei-lhe um pequeno apartamento nos arredores de Edimburgo, somente com uma sala, cozinha e WC, o suficiente para que não dormisse na rua. Ela recusou a minha proposta, não queria viver à minha custa. Argumentei que me poderia pagar tudo quando a sua vida melhorasse e ela passou a apontar o preço de tudo o que lhe dava.
Parecia que estava a sustentar a amante, pagava a renda, as despesas da casa e alguma coisa que lhe fizesse falta. Felizmente, podia fazê-lo, pois atravessava uma época fantástica de trabalho e rendimentos. Contudo, ao fim de duas semanas, Kátya conseguiu emprego a servir às mesas num restaurante na George Street e deixou de necessitar parcialmente do meu apoio.
Com o tempo, tornámo-nos muito próximos, verdadeiros amigos. Apesar de a nossa relação não ir além da amizade, sempre que nos encontrávamos, o nosso cumprimentos era um beijo nos lábios do outro. A sugestão fora dela, queria de alguma forma demonstrar que eu era especial e que me estava grata por a ter salvo da vida na rua. A nova rotina modificou-lhe a imagem para melhor, ganhara peso e deixara crescer o cabelo. Sempre que as nossas folgas coincidiam, levava-a a passear na minha mota. Outras vezes, ia buscá-la ao restaurante no final do trabalho e íamos para casa dela ver filmes ou conversar até de madrugada. Numa dessas conversas, abri o meu coração e partilhei com ela a minha história com Mafalda.
As mensagens de Jewel tornaram-se irregulares. Comecei a pensar que, mais tarde ou mais cedo, a comunicação se perderia por completo. Porém, perto do Natal, enviou-me um email a combinar que conversássemos online nessa noite. Assim, na hora marcada, lá estava eu defronte do computador.
As conversas já não aconteciam tanto nas salas virtuais, uma coisa chamada Messenger ganhara a preferência dos cibernautas, um programa parecido com o ICQ, melhorado e que nos permitia falar directamente com os nossos contactos. Claro que ainda existiam e continuariam a existir as salas de chat. E na época começava a surgir o conceito de redes sociais com sítios online onde se criavam perfis e se acumulavam amigos, como o Hi5 e o Facebook.
"Tenho uma novidade para te contar"
Li aquilo, temendo a novidade, quase como se adivinhasse.
"Marcámos a data do casamento."
"Parabéns", escrevi sem sinceridade. Seria mais um passo para o aniquilar permanente da minha esperança em relação a ela.
"Gostava que ficasses feliz por mim."
"Se estás feliz, eu estou feliz", menti.
"Vai ser um dia muito importante para mim. Talvez um dos mais importantes da minha vida."
E que tenho eu com isso? Adorava-a, mas tinha vontade de desligar. Ela esclareceu ao que vinha:
"Queria que estivesses presente. Seria muito importante para mim."
Espantei-me com o convite.
"Não me peças isso."
"Tu és meu amigo. Sei que tem sido uma amizade à distância, mas isso não te torna menos especial para mim."
"Sabes o que sinto por ti. Não é amizade, é muito mais que isso."
"Eu sei."
"Não achas que seria cruel ter de testemunhar o teu casamento com outro?"
"Gostava que não o visses dessa forma. Disseste que ficarias feliz por mim."
Não respondi logo e houve uma pausa. O icon dela permanecia online.
"Ok. Compreendo que não queiras vir. Sou forçada a aceitar que aquilo que te disse, quando nos encontrámos, afinal não passava de uma ilusão."
"Referes-te àquilo que jurámos não repetir?"
"Refiro-me à despedida, quando te disse: aconteça o que acontecer, nunca sairemos da vida um do outro."
"Achas que é uma ilusão?"
"Diz-me tu."
"O que temos, o que nos liga é real. Não te quero perder, mesmo que cases com outro. Nem vou deixar de te amar depois de casares com ele."
"Vou enviar-te o convite. Espero que aceites e compreenderei se não apareceres. Ficarei triste, se não estiveres presente. Mas não deixarei de ser tua amiga."
Prometi pensar no assunto.
Nesse Natal, Peter ausentou-se para passar a quadra com a família em Portugal. Agendara duas semanas de férias e só regressaria nos primeiros dias do novo ano. Kátya e eu não tínhamos família, por isso, combinámos partilhar a Consoada um com o outro na fria e gelada cidade de Edimburgo. O sítio escolhido foi o apartamento onde eu vivia e trabalhava.
Não havia um único motivo natalício em casa. Não deixava de ser paradoxal com o ambiente da cidade, a qual até tinha lojas só dedicadas ao Natal com uma imensidão de artigos. Desde que o meu tio falecera que a quadra tinha um significado triste, uma sensação de vazio. Daí que a encarasse com a maior naturalidade, dias como quaisquer outros.
Encomendei o jantar num take away próximo de casa. Montei mesa para dois na península da cozinha e abri uma garrafa de vinho tinto. Lá fora, a neve despenhava-se com suavidade nas ruas. Kátya chegou à hora combinada, carregando um pequeno saco com presentes e uma muda de roupa, pois passaria a noite ali. Ao entrar, trocámos o beijo só nosso. Senti-lhe o cheiro agreste do tabaco.
— Estiveste a fumar?
Ela evitou-me o olhar de culpa e confessou:
— Não queres que fume cá em casa, aproveitei para um último cigarro antes de entrar.
— Devias deixar de fumar, isso ainda te vai matar.
Kátya esbracejou, como se atirasse essa ideia para longe, subindo as escadas. Largou o sobretudo grosso nas costas do sofá e pediu para ir deixar o saco no quarto que lhe destinara para essa noite. Fiquei a observar os seus movimentos, estava cada vez melhor, mais curvilínea com o cabelo cada vez mais comprido que só lhe atribuía mais charme.
Desfrutámos do jantar ao som de música ambiente, sentados de frente um para o outro, em bancos altos, com o balcão entre nós. A meio da refeição, disse:
— Falei com a Mafalda no outro dia. — Ela encarou-me atenta sem qualquer expressão. — Marcou a data do casamento.
Houve um suspiro, os olhos desviaram para o copo.
— Sabias que esse dia ia chegar.
— Sim... — concordei, agastado. — Isso não o torna menos difícil. — Esperei que bebesse o vinho. — Ela convidou-me para o casamento.
Kátya soltou um riso incrédulo.
— O quê?
— Diz que é um dia importante e quer que todas as pessoas importantes na vida dela estejam presentes.
Vi-a abanar a cabeça, ficando depois a ponderar a situação.
— E tu? Vais?
— Seria muito doloroso vê-la casar com outro homem. — confessei. — Por outro lado, sinto que estou a dar um duro golpe na nossa amizade. — Esperei obter uma opinião sua. Kátya não se manifestou. — O que achas?
— O que eu acho? — repetiu. — Acho que não me cabe a mim tomar a decisão por ti. — Passou a mão pelo cabelo, sinal que me habituara a reconhecer como desconforto perante algo. — A única coisa que te posso dizer é que, se quiseres, eu posso ir contigo.
Sorri-lhe.
— Serias capaz de fazer isso por mim?
Os seus olhos acarinharam-me, ofereciam-me uma paz, um abrigo de emoções.
— Percebo que aches que a estás a magoar, se não fores. Também sei o quanto será difícil para ti. — A sua mão agarrou a minha. — Jamais te deixaria enfrentar isso sozinho.
— Tu és uma boa amiga.
O rosto de Kátya fez um esgar de algo parecido com decepção. Apertou a minha mão com ternura e olhou-me intensamente nos olhos.
— Poderia ser mais que uma boa amiga, se quisesses.
A confissão não foi surpresa. Desde algum tempo que a notara melosa e quase apaixonada nos momentos que partilhávamos. Fingi sempre que não reparava. Porém, naquele momento, não havia como me desviar.
Acariciei o seu pulso com os dedos, dizendo:
— Não seria justo para ti. Mereces alguém que esteja contigo de alma e coração. Não alguém que tem outra mulher na cabeça.
Kátya sorriu vencida e soprou-me um beijo.
— Desculpa se te deixei desconfortável, Daniel.
— Não. Sinto-me lisonjeado. — corrigi, vendo a mão dela afastar-se. — És uma mulher muito atraente. Tenho a certeza que encontrarás o teu príncipe. — Frase péssima para se dizer a uma mulher apaixonada. Quase lhe podia ler no rosto "o meu príncipe és tu".
O assunto terminou ali. Kátya quebrou o ambiente, relatando uma situação sem importância que acontecera no restaurante. Prolongámos a noite com conversa, sentados no sofá, mergulhados na sensação agradável de estar na companhia do outro. Tio deitara-se entre nós, encostada a ela e com uma pata sobre a minha perna. Aguardámos a meia-noite a contar os segundos como se fosse a entrada de um novo ano e trocámos presentes. Kátya ofereceu-me um livro de fotografia, o qual trazia na primeira página uma mensagem manuscrita por ela: "Obrigado por tudo o que fizeste por mim. Salvaste a minha vida. És o meu anjo. E eu sou tudo aquilo que quiseres que seja na tua vida. Beijo do meu coração no teu. K". Emocionei-me ao ler aquilo. E ela emocionou-se por eu me ter emocionado. Debrucei-me para ela e beijei-a. Eu não fui tão sentimental, oferecendo-lhe um relógio. Tio teve direito a uma manta nova e um brinquedo.
Logo que terminaram os presentes, Kátya não conteve um bocejo.
— Desculpa...
— Está na hora de irmos dormir. Já é tarde.
Levantámo-nos ao mesmo tempo, perante o protesto miado de Tio que se aquecera entre nós. Caminhámos para as portas do quarto.
— Posso fazer-te uma pergunta? — pediu, travando o passo.
— Claro.
A voz saiu-lhe hesitante:
— Há... Há quanto tempo... Há quanto tempo não...? — A principio não percebi. Ela deu a sua resposta, elucidando-me. — Eu não o faço desde aquela noite em que cheguei a Edimburgo. — Mesmo assim, fiz de conta que não percebi. — Sexo, Daniel. Há quanto tempo não fazes?
Olhei para o tecto e abanei a cabeça. A que propósito vinha agora aquela pergunta?
— Que interessa isso agora?
— Vá lá, sabes que sou curiosa.
Há demasiado tempo, pensei. Respondi:
— Há algum tempo.
Kátya percebeu que o "há algum tempo" era um "há algum muito tempo". Colocou a mão no meu peito e numa voz sussurrada, sugeriu:
— Queres descontrair um pouco comigo?
— Kátya... — suspirei, lutando contra a sua vontade e a minha.
— Daniel. Sem cobranças. — insistiu. — Só um pouco de prazer. Nós merecemos.
— Não, Kátya. — recusei da forma mais terna que consegui.
Ela assumiu a derrota, esticando-se para mim e despedindo-se com um toque da sua boca nos meus lábios.
— Até amanhã, Daniel!
— Até amanhã Kátya! — retribuí, vendo-a fechar a porta do seu quarto.
O convite para o casamento de Mafalda chegou no mês de Janeiro sem falhar a morada que eu lhe enviara por email. Também por email, confirmei-lhe a minha presença e que iria acompanhado por uma amiga de nome Kátya.
O casamento de Mafalda estava marcado para Maio na igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra, sendo a festa posterior numa quinta de eventos entre Coimbra e a Figueira da Foz.
Peter e eu estávamos cada vez com mais trabalho, por isso, tive de agendar muito bem os dias de Maio para ficar com disponibilidade para viajar até Portugal, algo que me roubaria três a quatro dias desse mês. Organizei a viagem e a estadia atempadamente. Iríamos viajar de Edimburgo para o Porto, onde alugaríamos um carro para nos deslocarmos até Coimbra. Na cidade dos estudantes, reservei um quarto num hotel. Inicialmente, quis reservar dois para cada um de nós, mas Kátya discordou alegando que podíamos ficar no mesmo quarto duplo com duas camas de solteiro e poupar algum dinheiro. Para além disto, ainda tive de comprar um fato e Kátya um vestido.
Quando queremos que o tempo passe depressa, cada minuto parece uma hora. Quando não temos pressa que um dia chegue, como era o caso, rapidamente se chegou a Maio.
Tio ficou aos cuidados de Peter, que repetiu diversas vezes que não me preocupasse, ao sair de casa com a bagagem. Apanhei um táxi e segui para o aeroporto fazendo escala para ir buscar a minha parceira.
A viagem de avião foi tranquila. Ao aterrarmos no Porto, a diferença de temperatura foi evidente, pois se na Escócia ainda parecia Inverno, ali a Primavera ia lançada. Fomos ao rent-a-car para que nos entregassem o automóvel que solicitara pela Internet, um veículo com GPS, uma vez que não conhecia nada a norte de Lisboa. E rumámos a Coimbra.
Os primeiros momentos de condução foram complicados, desabituara-me de conduzir carros e de circular pela lado certo da estrada. Ao início da noite, chegámos à recepção do hotel.
— Boa noite! Têm um quarto reservado em meu nome. — disse ao funcionário, adicionando a minha identidade.
O homem fardado com traje formal e as insígnias do hotel consultou os registos num computador e confirmou a reserva.
— Sim, um quarto com cama de casal para duas noites.
— Cama de casal? — interroguei com surpresa.
O outro olhou para mim e para Kátya, não percebendo onde estava o problema. Eu expliquei:
— Tinha pedido um quarto duplo com duas camas de solteiro.
Novo dedilhar no computador, o rosto começou a alterar-se, denotando que existira um erro.
— Peço imensa desculpa. Tem razão. Só que há um problema, estamos lotados, não temos mais nenhum quarto.
— E não podem trocar as camas? — questionei irritado.
Ele olhou para Kátya, talvez perguntando-se porque não queria eu dormir na mesma cama que ela. Adoptou um tom lamentoso e numa quase súplica, esclareceu:
— Infelizmente, não. Podemos, se calhar, colocar mais uma cama de solteiro...
Nesse momento, Kátya aproximou-se de mim e sussurrou-me que não me preocupasse, que deixasse as coisas como estavam.
— Deixe estar. Não será necessário.
O nosso quarto ficava no segundo andar, um espaço simples com uma janela, casa de banho e cama de casal. Largámos a bagagem a um canto, sentindo todo o cansaço acumulado, e pedi algo para comer ao serviço de quartos.
A cama não foi problema, só seria se o tornássemos num problema. Kátya estava perfeitamente à vontade para a partilhar comigo e existia um respeito mútuo em não invadir o espaço do parceiro.
Enquanto ela mudava de roupa na casa de banho, eu abri a cama, despi toda a roupa excepto os boxers e meti-me na cama. Kátya saiu com o seu pijama vestido, uma camisola ajustada ao corpo e calções curtos. Enfiou-se por baixo do lençol e cobertor, a meu lado, sorrindo divertida.
— Nada de ideias.
— Não sejas tola.
Trocámos um beijo cansado, virámos costas e adormecemos tranquilamente.
Pela manhã, bem cedo, estávamos prontos a sair do hotel. Eu vestia um fato cinza escuro com uma camisa preta, gravata listada em ambos os tons e sapatos pretos. Sempre detestei vestir-me com formalidade. Deslumbrante, era o mínimo que poderia dizer para caracterizar Kátya, desfilando com um vestido azul sem costas nem mangas, seguro à volta do pescoço, onde a saia terminava acima dos joelhos. Caminhava em sapatos de salto alto. A sua pele parecia polida e o rosto maquilhado intensificava a sua beleza.
Durante a viagem, Kátya colocou a questão:
— Qual queres que seja o meu papel?
— Como assim?
— Queres que me comporte como tua amiga, tua namorada, tua mulher?
— Quero que sejas aquilo que és, minha amiga. — esclareci, desviando a atenção para ela. — Não vim fazer ciúmes à Mafalda.
Com a ajuda do aparelho de navegação, encontrei o local da cerimónia. Nunca o conseguiria sem ele. A igreja ficava após umas ruas estreitas que desembocaram num largo que já se apinhara de carros de dezenas de convidados para o evento. Estacionei no primeiro espaço que encontrei.
Defronte do largo, os portões abertos davam passagem para um amplo terreno empedrado, onde os primeiros automóveis puderam estacionar. Homens de fato e mulheres de vestidos elegantes e caros aguardavam espalhados pelo espaço, perto das altas portas do edifício religioso. Notei alguns olhares curiosos acerca de quem seriamos nós.
Ao fim de algum tempo, alguém veio anunciar que começássemos a entrar, uma vez que não faltaria muito para a noiva chegar. Quase todos os convidados iniciaram a subida dos degraus e nós seguimo-los para o interior da igreja. Escolhi uma das últimas filas, no sector esquerdo sem fazer ideia se havia lados destinados aos convidados do noivo e da noiva. Sentámo-nos e esperámos.
Confesso que me sentia ansioso, nervoso pelo o momento em que revisse a mulher que roubara o meu coração, aquela que se iria casar com outro. Kátya quebrou-me os pensamentos, apontando para perto do altar, indicando um homem que concluí ser o noivo. Não o conhecia, nunca o vira e já o odiava. E acho que a minha maior raiva foi perceber que era mais bonito que eu, um tipo alto e bem parecido, cabelo castanho claro, rosto cativante barbeado, postura recta e estrutura forte. Ok, Mafalda, eu percebo.
A música começou a tocar a marcha nupcial, alertando para o momento em que a noiva iria entrar na nave. Vi uma figura feminina completamente de branco avançar por entre os bancos, de braço dado com um senhor que seria o pai. O vestido branco envolvia-a por completo e prolongava-se com uma cauda comprida que limpava o chão atrás de si. O rosto, apesar do véu, era bem visível.
Kátya aproximou os lábios da minha orelha e segredou:
— Ela é linda!
A quem o dizes...
Ao aproximar-se da linha de assentos onde eu estava, o olhar de Mafalda cruzou-se com o meu. Sorriu e piscou-me um olho, satisfeita por confirmar que eu viera.
O pai acompanhou-a até ao noivo, trocaram algumas palavras impossíveis de ouvir dali e o casal virou-se para o padre que aguardava.
A cerimónia foi entediante. Tive de suportar a lengalenga do sacerdote, proferindo frases como se fosse dono da verdade, ditando leis retrógradas, intervaladas por familiares próximos dos noivos a ler passagens bíblicas como colagem ao que deveria ser o futuro dos noivos e trechos de música angelical. Que seca...
Chegou o momento em que o padre voltou a atenção para todos os presentes e discursou as frases da ordem, desafiando todos os que tivessem algo a dizer contra aquela união que se manifestassem ou calassem para sempre. Sim, imaginei-me a fazer isso. Kátya pareceu ler o meu pensamento e segurou a minha mão, apertando-a. Olhei para ela, sorrindo, e sussurrei:
— Achas?
Ela retribuiu o sorriso e beijou-me a face.
— Ela é que perdeu.
Não Kátya, ela não perdeu. Quem perdeu fui eu, perdi-a a ela, o amor da minha vida.
O padre proferiu as últimas bênçãos e declarou-os marido e mulher.
Após algum tempo de espera, onde os recém-casados desapareceram na sacristia com o padre e algumas pessoas próximas, os convidados foram-se juntando no corredor entre os bancos. Percebi com o regresso do casal que se formava fila para os cumprimentar.
— Vamos? — perguntou Kátya.
— Vamos. — confirmei sem vontade de lá ir.
As pernas tremiam-me. Kátya caminhava de mão dada a meu lado. A escassos metros deles, ela apertou-me a mão, recordando-me que estava ali para mim, para me amparar.
Mafalda abriu um enorme sorriso quando me viu. Parei na sua frente, encadeado pela beleza do seu olhar, pela sua doçura, por tudo o que me fizera irremediavelmente apaixonado por ela no breve e único encontro que tivéramos, quase seis anos antes.
— Olá Daniel! Que bom que vieste. — disse ela, visivelmente feliz por me ver. Olhou para o marido. — Tiago, este é o Daniel, o meu amigo de Edimburgo.
Tiago? O gajo chama-se Tiago? Não poderia ser melhor, o tipo ter o nome de alguém que me infernizou a vida.
Numa postura simpática, estendeu-me a mão. Aceitei o cumprimento, ouvindo-o agradecer:
— Obrigado por terem vindo.
Dei dois beijos nas faces maquilhadas de Mafalda.
— Parabéns!
— Obrigada. — agradeceu, desviando o olhar para o meu lado.
— É a Kátya. — apresentei, enquanto ela felicitava ambos.
Mafalda sorriu-lhe com a sua afabilidade natural.
Não nos demorámos mais, pois havia mais gente para os congratular.
Enquanto saíamos da igreja, Kátya disse:
— Compreendo a tua paixão, Daniel. Ela é linda e parece ser uma pessoa maravilhosa. É cativante logo ao primeiro instante. Até eu que sou mulher, acho que era capaz de me apaixonar por ela.
Não me pronunciei, limitando-me a rir com o seu comentário.
O evento prosseguiu numa quinta localizada a alguns quilómetros em direcção à costa. Para não ter de procurar o local, aproveitei e persegui a fila de carros de outros convidados.
O local era uma propriedade enorme onde se entrava através dos portões largos e altos em cor verde. Os automóveis arrumaram-se no parque que inicialmente me parecera pequeno para tantos.
Ao entrar nos jardins, vários empregados de bandeja ofereciam petiscos e bebidas aos convidados. Tudo tinha um aspecto sumptuoso. A seguir aos jardins, erguia-se uma tenda enorme que serviria de salão à festa. Durante uma hora, a comitiva ficou pelos jardins em pequenos grupos, conversando. Eu e Kátya estacionámos por baixo de um carvalho e matámos o tempo a comentar os quadros que se explanavam defronte de nós.
Seguiu-se o momento de tirar fotos com os recém-casados. Mais uma vez se formou uma fila de gente para registar o dia para a eternidade.
— Queres ir?
— Dispenso. — recusei. Queria esquecer aquele dia.
Não houve tempo para todos os convidados serem fotografados com o casal, os restantes teriam de aguardar nova oportunidade mais tarde. Caso contrário, arriscávamo-nos a almoçar à hora do jantar.
Conforme entravam na tenda, as pessoas analisavam o mapa com o nome das mesas e os lugares atribuídos a cada convidado. O mapa tinha uma mesa rectangular no topo do salão com dez lugares, era o ponto principal, o lugar dos noivos e familiares mais próximos. Depois, várias mesas redondas com oito lugares. Nós fomos colocados numa das pontas, numa daquelas mesas para onde se atiram os convidados que não se sabe muito bem com quem emparelhar.
Kátya olhou para os nomes da nossa mesa e viu o seu.
— Cátia. — leu com indignação. — É Kátya com "k" e "y".
— Foi como eu escrevi no email.
— Pois parece que alguém não sabe ler.
Nunca percebi muito bem porquê, mas ela levava muito a sério a forma como escreviam o seu nome. E irritava-se convictamente, quando o faziam com letras erradas.
A nossa mesa era composta por mais três casais, uns tios de Mafalda que viviam na Suíça e raramente a viam, dois ex-colegas da faculdade com ar macambúzio e de poucas falas e um casal jovem muito simpático. Este casal jovem era composto por Vânia, uma grande amiga de Mafalda e o namorado.
— Ela teve muita dificuldade em distribuir os convidados. — explicou-nos a meio da refeição. — Eu ajudei-a. É aquela coisa de terem de juntar uns com outros que se dão melhor, manter afastados as pessoas que não se entendem, enfim, cenas como existem em todas as famílias. — Kátya e eu não sabíamos o que isso era. — Nós acabámos aqui.
Vânia tinha um ar exótico, muito expressiva e simpática. Falava e falava e falava. O seu ar exótico era resultante da sua ascendência goense. Os avós tinham fugido de Goa com o pai dela, após o abandono dos território pelos portugueses, refugiando-se em Moçambique. Contou-nos que não durou muito, pois com a Guerra do Ultramar vieram retornados para a metrópole. Vânia já nascera em Portugal, curiosamente no mesmo ano que a amiga, o que não dissipou em nada as suas origens. Era bonita, cabelo encaracolado a envolver um rosto afável. Trouxera um vestido rosa com decote pronunciado. Não duvidei que gostava de sobressair.
— Tu és o amigo de Edimburgo. — constatou, quando lhe disse onde vivia. — A Mafalda fala muito em ti... — Interrompeu-se, olhando para Kátya. — E o que fazes?
— Sou fotógrafo.
Não perguntei o que ela ou o namorado faziam profissionalmente. Simplesmente não me interessava. Vânia alterou o destino da conversa para os dois jovens médicos no lado oposto da mesa.
A refeição foi servida. De tempos a tempos, alguém fazia barulho e todos começavam a berrar para que o casal trocasse um beijo. Eu evitava olhar. Entre sopa, primeiro prato, segundo prato e sobremesa, devem ter passado duas horas. Eu só queria uma oportunidade para me ir embora.
Terminada a refeição, começou a festa com um indivíduo cheio de tatuagens a colocar música para os convidados e a felicitar vezes sem conta o casal, desejando que fossem felizes para sempre. Mafalda e o marido abriram a pista dançando a tradicional valsa. Dava para perceber no seu olhar como estava feliz.
Eu não queria dançar, mas Kátya insistiu. Ela gostava de dançar e não seria justo recusar isso a alguém que se dispusera a acompanhar-me àquele suplício.
Após a dança, Kátya foi ao jardim para fumar um cigarro, algo que repetiu umas cinco vezes até irmos embora. Nesse instante, aguardei sentado no meu lugar, sozinho. Vinda de trás de mim, Vânia sentou-se a meu lado.
— Está a ser uma bela festa. — disse ela, olhando em redor. — A Mafalda está muito feliz. — Proferi um som neutro em concordância. Olhou para mim. — Vocês já se conhecem há algum tempo?!
— Falamos na net há uns sete ou oito anos.
— Ela falava muito em ti. Dizia que tu devias ser uma pessoa espectacular. — Encolhi os ombros, não querendo ser juiz em causa própria. Vânia alterou a atenção para os vidros amplos da tenda. — A rapariga que veio contigo?
— Foi lá fora.
— É tua mulher? — Abanei a cabeça. — Namorada?
— É minha amiga, uma grande amiga.
Vânia franziu o rosto, duvidando. Pouco me interessava se acreditava ou não. Para quem não parava de falar, estranhei os trinta segundos que permaneceu em silêncio, altura em que indagou:
— Quando é que regressam a Edimburgo?
— Amanhã.
— Não aproveitam para ficar uns dias?
— Temos trabalho.
— Pena... — lamentou com um semblante que já não me enganava. — Se ficasses mais uns dias, talvez pudéssemos combinar beber um copo.
Encarei o seu rosto numa mistura de surpresa e diversão.
— Não me parece que o teu namorado achasse muita piada a isso.
Vânia deu uma gargalhada.
— Ele é meu amigo, um grande amigo.
Percebi que não era. A frase era apenas uma repetição sarcástica daquilo que eu dissera antes. Sabia perfeitamente que ele era namorado dela, vi-os beijarem-se várias vezes enquanto dançavam. Mesmo que não fosse, eu não estava interessado.
— Pois... — atalhei para finalizar. — Infelizmente, vou-me embora amanhã.
Ela sorriu novamente e levantou-se, colocando a mão na minha perna.
— Pode ser que tenhamos outra oportunidade no futuro.
Duvido.
Kátya regressou no momento em que Vânia se afastou. Sentou-se no seu lugar e com humor questionou:
— A fazer amigas?
Ri-me com gosto. Olhei para ela e senti um enorme carinho e fortuna por a ter na minha vida. Sem que esperasse, beijei-lhe os lábios.
— Para que foi isso? — perguntou surpresa. — Não disseste que não ias fazer ciúmes?
— Não foi para fazer ciúmes. — contrapus. — Só quero que percebam que és especial.
— Isso significa que posso beijar-te mais vezes?
— Não fiques com ideias, Kátya.
— Acho que nem toda a gente estava a olhar. — informou na brincadeira. — Talvez seja melhor repetir.
Não a impedi.
Após mais um beijo, com os narizes quase a tocarem-se, ela olhou bem no fundo dos meus olhos e segredou:
— Não te preocupes. Somos amigos, só amigos.
A noite caiu por completo. Os funcionários da empresa de eventos começaram a montar um canto no jardim iluminado por focos fortes colocados na relva. Trouxeram o bolo e chamaram todos para presenciar o corte da primeira fatia por parte dos recém-casados e a distribuição das flutes com espumante. Fez-se um brinde. Terminada a fatia de bolo e a bebida, decidi que não valia a pena continuar ali. Queria sair "à francesa", ir embora sem dizer nada a ninguém, mas Kátya impediu-me, lembrando que seria falta de educação sair sem me despedir de Mafalda.
Em todo o tempo que ali estivera, Mafalda pouca atenção me dera. Na verdade, também não tinha de dar, eu merecia tanta ou menos como qualquer outro convidado. A única altura em que trocámos algumas palavras foi quando ela e o marido circularam pelas mesas a conversar com os presentes e a agradecer a vinda.
Assim, de mão dada com Kátya, fui até à mesa central.
— Mafalda, nós vamos andando.
— Já? — interrogou, desalentada. — Fiquem mais um pouco.
Kátya interveio:
— Temos de regressar amanhã, o voo é cedo e ainda temos uma viagem de carro até ao Porto.
Mafalda compreendeu e levantou-se do seu lugar para se dirigir a mim. Deu-me dois beijos ternos no rosto e agradeceu:
— Obrigado por teres vindo. Significou muito para mim.
Forcei um sorriso.
— Espero que sejas muito feliz.
— Eu também. — disse o marido que se aproximara para se despedir.
— Se não for antes... — prosseguiu Mafalda. — ...espero ver-te no baptizado do nosso primeiro filho.
A primeira coisa que me veio à cabeça foi:
— Estás grávida?
Ambos riram.
— Ainda não, Daniel. — respondeu ela, sem disfarçar no olhar o carinho que tinha por mim.
Antes que alguém percebesse a forma apaixonada como eu olhava para Mafalda... e ela para mim, Kátya continuou com a despedida aos casados.
A viagem de regresso ao hotel foi feita em silêncio. Kátya percebia o meu estado de espírito e optou por encostar a cabeça para trás e quase deixar-se dormir. O silêncio nunca fora um incómodo entre nós. E eu sabia que ela estaria atenta, se eu quisesse desabafar.
Saímos do carro e caminhámos vagarosamente até ao hotel com os dedos entrelaçados na mão do outro. Entrámos no edifício e seguimos para o elevador. Lá dentro, olhei para ela.
— Tenho um grande carinho por ti. — confessei.
— Só carinho? — inquiriu ela, sabendo a resposta.
— Só carinho, Kátya. Tu sabes isso.
— Sim, eu sei, Daniel. — Aproximou-se de mim para mais um beijo fraternal nos meus lábios. — Só amizade.
Recolhemos ao quarto. Ela seguiu de imediato para a casa de banho. Estava cansada e queria livrar-se do vestido e da maquilhagem. Eu comecei descalçar os sapatos, despi o fato, retirei a gravata com desprezo e desfiz-me da camisa. Tirei as meias e somente com os boxers vestidos, enfiei-me na cama para descansar daquele dia penoso.
Kátya saiu da casa de banho no seu pijama pronta para se deitar, encontrando-me de olhar perdido no tecto do quarto, deitado na cama, iluminado pelo candeeiro da cabeceira. Sabia como me sentia, mas mesmo assim, entrando nos lençóis, perguntou:
— Estás triste?
— Isto passa. — respondi pouco crédulo.
Ela deu-me um beijo de boa noite, trazendo no hálito o aroma a pasta de dentes. Apaguei a luz e deitámo-nos de costas um para o outro.
No escuro, a minha cabeça repassava as imagens desse dia, o casamento, Mafalda vestida de noiva para casar com um homem que me seria impossível de rivalizar. Repetia para mim que a perdera e que tinha de a esquecer. Dei algumas voltas na cama, fustigado pela tristeza, recordando aquele momento, a esplanada do centro comercial, quando ambos confessámos o que sentíamos... Devia tê-la agarrado, largado tudo, largado Francisca... Corroía-me de remorsos.
Kátya percebeu que eu estava acordado e virou-se para mim.
— Não tens sono?
— Não. — respondi para o negrume do quarto, onde somente uma leve claridade da rua entrava pela janela. — Desculpa, se te acordei.
Ela aproximou-se e senti a sua mão acariciar-me o rosto. A seguir, os seus lábios tocaram os meus. Pensei que se tratava de um beijo como tantos outros que trocávamos, só que a sua boca não se descolou da minha, intensificando o beijo.
— Pára... — murmurei.
Kátya não parou e rodou na cama, colocando-se sobre mim. Voltei a pedir que parasse, apesar do meu corpo não acompanhar as palavras. O beijo tornou-se diferente, cheio de paixão, as línguas a saborearem-se.
— Não... Pára, Kátya... — repetia com a respiração ofegante.
Não consegui segurar a excitação. Kátya sentiu-a a tocar a sua barriga. Mordiscou-me a orelha e sussurrou:
— Xiu...
O seu corpo começou a descer pelo meu. As suas mãos puxaram-me os boxers com suavidade, libertando a vontade que eu procurava reter. Deu-me um beijo na barriga. Pelos movimentos, percebi que estava a despir a parte inferior do seu pijama. Tornei a pedir que parasse num tom pouco convincente. A sua respiração lá em baixo arrepiou-me. Por momentos, julguei que me iria envolver numa garganta funda. Não. Ao invés, retornou à posição inicial, acariciando a minha excitação com o seu corpo. A sua boca voltou à minha, um beijo que se misturava com o seu cabelo pelo meio. As suas pernas abraçaram as minhas. Já nada em mim conseguia ou queria parar. Senti-me escorregar para dentro dela.
Beijávamo-nos com o fervor da paixão, sedentos de algo a que nos afastáramos demasiado tempo. As suas ancas movimentavam-se devagar, como se me quisesse dar a conhecer, aos poucos, o conforto do seu lugar mais íntimo e sagrado. A sua respiração ofegante dançava com a minha. Parou quando isso era a última coisa que eu queria que fizesse. As suas pernas abriram-se mais e os joelhos subiram ao mesmo tempo que ela se elevava na cama, apoiando as mãos no meu peito. Sentou-se sobre mim com cuidado para que a nossa ligação não se soltasse, apertando-me o tronco com os joelhos.
Na penumbra, vi os seus braços levantarem-se para a cabeça, as mãos a envolverem o cabelo para o prenderem na nuca. Aproveitei a oportunidade para lhe enrolar a camisola do pijama o máximo que consegui, pondo-lhe a nu os seios grandes. Apertei um em cada mão, dedilhando os mamilos pontiagudos. Isso agradou-lhe e agarrou as minhas mãos com as dela, obrigando-me a apertá-los mais. Depois, retomou os movimentos das ancas. Novamente de forma lenta, aumentando aos poucos até se tornar numa espécie de amazona a cavalgar o seu garanhão. No escuro, o seu vulto oscilava para me dar e obter prazer, gemendo a cada compasso.
A torrente de desejo acumulado inundou-a. Os seus últimos gemidos resultaram do êxtase e da sensação quente que a humedecia. Lentamente, a nossa respiração foi voltando ao normal. Não dissemos nada. Kátya manteve-se sobre mim e eu dentro dela. Isso durou alguns minutos. Aguardei, acariciando-lhe as coxas. Ela baixou-se e beijou-me na boca ao mesmo tempo que a sua cintura se elevou e me fez sentir o frio da saída. Tornou a rodar na cama e levantou-se.
— Onde vais? — questionei baixinho.
— Preciso de um cigarro.
Nas sombras, observei-a a desenrolar a camisola, tornando a cobrir os seios. Foi buscar algo à malinha que levara ao casamento e retirou o maço e o isqueiro. Parou junto da janela e abriu o vidro. Uma chama surgiu no escuro, iluminando-lhe o rosto e tocando a ponta do cigarro. Desapareceu rápido, retomando a escuridão onde o desenho da baforada de fumo saía da boca de Kátya.
Aquilo soubera-me bem, muito bem mesmo. Fora intenso e maravilhoso. Porém, trazia um problema, poderia alterar a nossa relação.
— Estás bem? — quis saber perante a ausência de qualquer comentário ao que acabáramos de fazer.
Kátya soltou mais uma nuvem de fumo para a rua.
— Sim.
A resposta curta aumentava a minha confusão em relação ao que lhe iria em mente. Estaria arrependida? Esperava que aquilo fosse o passo para que nos tornássemos um casal? Estaria a aguardar uma palavra minha? Procurava ganhar tempo para me encarar?
Kátya já me dissera o que sentia por mim. Calculei que esperasse uma retribuição, depois do que acontecera. Contudo, eu gostava muito dela, mas não estava apaixonado. Seria cruel alimentar-lhe a esperança, mesmo depois de ter feito amor comigo. Procurei encontrar as melhores palavras, mas só me saiu:
— Não o devíamos ter feito.
O seu riso no escuro soou a "já estava à espera que me dissesses essa merda".
— Não gostaste?
— Claro que gostei, Kátya. — confessei sem razão para o contrário. — Mas, isto não muda nada. Não quero enganar-te.
Ela apagou o cigarro no cinzeiro e fechou a janela.
— Descansa, Daniel! Sem cobranças. — disse, procurando os calções do pijama no escuro. — Foi apenas sexo. — Vestiu-os e voltou a entrar na cama. — Não estou à espera que nos tornemos um casal depois disto. — Beijou-me os lábios em despedida. — Dorme bem. Até amanhã.
Na manhã seguinte, quando nos encarámos com a luz do dia, Kátya agiu com naturalidade, como se a noite não tivesse passado de um sonho na minha cabeça. Não falámos sobre o assunto uma única vez, seria um género de "elefante na sala" que nenhum de nós queria ver. A única diferença no seu comportamento é que fumava mais que o habitual.
Nos primeiros dias após o regresso a Edimburgo, Kátya afastou-se por um breve período, recusou que a fosse buscar ao trabalho ou que a visitasse em sua casa, justificando que precisava de descansar. Eu aproveitei para fazer algo que calculei que ela também estivesse a fazer, colocar as ideias em ordem.
Eu gostava muito de Kátya, mesmo muito. Contudo, eu não queria comprometer-me. Não por uma questão de querer ter vários casos, andar a saltar de cama em cama. Eu nunca fora assim, aliás, até àquela data, nunca tivera relações sexuais pontuais, somente com alguém com quem tinha uma relação séria. Vendo bem, Kátya fora a segunda mulher com quem o fizera. Adorei fazer amor com ela e tinha muita vontade de o repetir. Só que sabendo que ela estava apaixonada por mim, evitei sempre que se repetisse para não alimentar as suas esperanças. Na verdade, tudo se resumia a uma única questão, eu nunca consegui ultrapassar o facto de ter perdido Mafalda por estar numa relação séria com Francisca, por estar comprometido. Mesmo estando Mafalda casada, eu mantinha a esperança de que um dia pudéssemos ficar juntos. E não queria que existisse qualquer impedimento se o momento surgisse subitamente. Se não existisse Mafalda, se eu não continuasse tão apaixonado por ela, não tenho dúvidas que teria construído com Kátya uma relação ainda mais forte e duradoura. Acho que só me voltaria a comprometer, se encontrasse uma mulher que me fizesse esquecer Mafalda. E apesar de ser uma pessoa extraordinária, Kátya não o conseguiu.
Ao fim de quase uma semana afastados, a nossa relação voltou ao normal. Foi como se esses dias tivessem sido um convalescença da noite em Coimbra, tal como alguém que se constipa e precisa de uns dias para recuperar. Quando nos reencontrámos, a sua primeira atitude foi dar-me o beijo típico, o nosso toque suave nos lábios, um cumprimento quase fraternal. A normalidade durou cerca de dois meses e meio. Nas primeiras semanas após o casamento, a noite de sexo quase caíra no esquecimento, parecendo que só acontecera na minha cabeça. Kátya continuava a insinuar-se e a flirtar comigo, mas fazia tudo parecer uma brincadeira, de todas as vezes que eu recusava as suas investidas. No final de Julho, algo mudou em Kátya, irritando-se facilmente, constantemente de mau humor e algumas vezes indisposta.
Numa noite como tantas outras, fui levá-la a casa. Por norma, costumava sempre subir com ela ao seu apartamento, onde ficávamos a conversar algum tempo até eu me vir embora.
— Hoje não. — decidiu, vendo-me desmontar da mota.
— Não queres que suba? — Ela abanou a cabeça. — Algum problema?
— Cansada. — atalhou com semblante triste.
— Estás de folga, amanhã?
Kátya confirmou e esboçou um sorriso triste.
— Podemos ir passear à tarde, se quiseres.
— Boa ideia. — concordei. — Passo aqui depois de almoço para te vir buscar?
Ela concordou e abraçou-me com ternura, sussurrando:
— Tenho saudades.
Segurei-a nos meus braços, curioso.
— Saudades de quê?
Afastando-se, atirou-me um sorriso e piscou o olho.
— Parvoíces...
Deu-me um beijo fugido e afastou-se para a porta de casa.
Na hora combinada, fui buscá-la ao apartamento e fomos de mota até Carlton Hill desfrutar de uma bela tarde solarenga de Julho.
Carlton Hil é uma colina de Edimburgo com uma vista fabulosa para a cidade. O Sol brilhante, tão raro por aqueles lados, atribuía mais brilho e alegria ao ambiente, um paradoxo com o rosto de Kátya.
Subimos a colina pela escadaria de pedra envolta pela vegetação até perto do caminho que se aproximava do Dugald Stewart Monument, ficando com a Nelson Tower Monument defronte de nós. Kátya não abdicou do cigarro, mal saímos da mota. Fizemos o percurso em silêncio e passámos pelo Playfair Monument, uma espécie de Templo de Diana de Évora que se erigia no topo da colina. Escolhemos um local com vista desafogada para a capital e sentámo-nos na relva.
Mesmo estando no Verão, soprava uma brisa fresca. Por aquelas bandas não havia dias quentes, apenas amenos ou frios. Uma nuvem cinzenta avançou pelo céu, procurando perturbar o Sol. Kátya tinha o olhar vidrado na paisagem, o cabelo solto a esvoaçar para o rosto e um semblante triste que teimava em não desaparecer. Despiu o blusão que usava sempre que andava de mota comigo e colocou-o sobre o capacete estacionado na relva.
Por alguns minutos, o silêncio reinou. Kátya parecia preocupada ou ansiosa, não consegui discernir bem. Acariciei-lhe a mão e questionei:
— Está tudo bem? — Ela assentiu muda. — Pareces preocupada.
— Hoje está um dia bonito. — afirmou, mudando de assunto.
Observei-a com gosto, era uma mulher bonita. Não era um deslumbramento, daquele género de deixar todos os homens a olhar. Tinha uma sensualidade simples e sedutora, um carisma excitante. Sabia o quanto ela poderia ser apaixonada, a entrega... Permiti-me ao fruto proibido de a recordar na única noite em que fizemos amor. Sentia-me bem, perto dela, não conseguia imaginar-me sem a sua amizade.
— Tens falado com a Mafalda? — questionou, despertando-me para a realidade.
— Não. Não voltei a falar com ela.
Desde o casamento, não voltara a ter qualquer notícia de Jewel. Encarei isso como normal, deveria estar a saborear a vida de recém-casada, não esperava que se fosse lembrar de mim ou preocupar-se em escrever-me nesse período.
— Continuas apaixonado por ela?
A pergunta soou tremida, o olhar mantinha-se cravado no horizonte.
— Sim.
Kátya virou o rosto para mim. O vento fustigava-a com os próprios cabelos. Havia uma mágoa naqueles olhos, uma tristeza mal disfarçada.
— Será que algum dia vais dar oportunidade a outra mulher de te amar? — Achava que não e ia a responder, mas... — Desculpa, não é isso que quero saber. — O seu olhar tornou-se profundo, perscrutando o meu. — O que quero saber é se algum dia me darás a oportunidade de te amar.
Apesar de habituado à sua frontalidade, surpreendi-me por ela colocar a questão de forma tão directa.
— Kátya... — iniciei, procurando os melhores eufemismos ao mesmo tempo que falava.
— Sem merdas, Daniel. — pediu, levando a mão ao cabelo. — Não quero palavras bonitas, formas simpáticas de ser rejeitada. Quero saber se esse amor platónico que sentes pela Mafalda vai durar para sempre.
Suspirei. Que poderia dizer? Kátya rodou no relvado e ajoelhou-se em frente a mim. Percebi a seriedade do momento, tomei consciência que iríamos tocar nas feridas, nos pontos sensíveis. Não seria mais uma troca de piropos, jogos de sedução que não passavam de brincadeiras. Defronte de mim, estava uma mulher de defesas em baixo e coração aberto.
— Eu estou apaixonada por ti! — exclamou, encarando-me segura. — Sou louca por ti, adoro-te... — Hesitou. — Sim, porque não? Posso dizê-lo sem receio. Eu amo-te, Daniel! — Fez uma pausa. — Tu és meu amigo, adoro o que temos. Mas, já não é suficiente. Desculpa, dizer isto. Não tenho o direito de te exigir nada. Só que já não consigo lidar com estes sentimentos, lidar com o que despertas em mim, sem te dizer abertamente o que significas na minha vida. — Respirou fundo. Desviou a atenção para a nuvem que cobrira o Sol. — Sei que te disse que seria tudo o que quisesses que eu fosse na tua vida. Lamento desapontar-te. Não consigo ser tua amiga. Já não consigo estar perto de ti sem pensar em beijar-te, sem desejar que me agarres, sem ansiar por voltar a ter-te em mim. — A ausência de reacção da minha parte, exasperou-a. — Aquela noite foi a noite mais bonita da minha vida.
— Kátya... — interrompi. — Eu...
— Sem merdas, Daniel. Por favor. — exigiu com uma lágrima a brotar.
— Tu mereces alguém que te ame. — lembrei, sabendo que mais valia dar-lhe um estalo, seria menos doloroso para ela. — Não é justo para ti criar-te a ilusão de algo que não existe. Eu adoro-te! Mas, não da forma como queres. Aliás, não da forma que mereces. Mereces ser amada de corpo e alma. Eu não sou capaz de o fazer. — Tentei segurar a sua mão, mas ela afastou-a. — Lamento...
Kátya levantou-se, puxando o casaco donde retirou o maço de tabaco e o isqueiro. Colocou um cigarro na boca e acendeu-o com dificuldade devido ao vento e às mãos trémulas. Deu duas longas baforadas, enquanto eu me colocava de pé a seu lado. Num movimento ríspido, tornou a encarar-me.
— E se eu não me importar?
— Como assim?
Kátya explanou melhor a sugestão:
— Se eu não me importar que fiques comigo, mesmo que ames outra mulher?
— Importo-me eu. — retorqui com sinceridade.
— Ela está casada, Daniel! — afirmou como se eu não o soubesse. — Que esperas tu que aconteça? Que se divorcie? — Fez um esgar incrédulo. — Que amigo és tu, a desejar a infelicidade do casamento dela?
— Não desejo o fim do casamento deles. — corrigi.
— Mas esperas que aconteça?! — insistiu. Não a contrariei. — Tens noção que tanto pode ser amanhã, como pode ser daqui a vinte anos ou até nunca vir a acontecer?
— Eu sei isso, Kátya.
— E por causa de uma esperança vã, abdicas daquilo que te quero dar?
— Kátya...
— Estou a oferecer-me a ti, estou a dizer-te... foda-se... estou quase a implorar que me deixes amar-te. — Nova lágrima. — Que estou na disposição de ser tua mulher até que tu me deixes por ela.
— Eu não sou assim, Kátya. — protestei, receando perdê-la. — Seria incapaz de te usar.
— Mentiroso. — redarguiu, fumando nervosamente.
— Como?
— Tu usaste-me naquela noite, no hotel. — argumentou para minha estupefacção. — Mentira?
— Tu é que... — interrompi-me. — Como podes ver isso dessa maneira? Eu quis que parasses. Nunca te enganei.
— Eu fiz amor contigo, Daniel. — prosseguiu temperamental e irritada. — Tu fodeste-me!
— Estás a ser injusta.
Kátya fez um gesto de desprezo e virou costa, ficando a dar as últimas passas na beata que segurava entre os dedos. Eu permaneci sem dizer nada, aguardando que ela se pronunciasse. Num gesto de desdém, atirou o que restava do cigarro para o chão e apagou-o com a biqueira da sapatilha. Virou-se para mim, os olhos marejados de lágrimas, e pediu:
— Desculpa. Tens razão. Nunca me enganaste. Sempre deixaste bem claro que não gostas de mim.
— Eu gosto de ti.
— Não da mesma forma que eu gosto de ti. — retorquiu num tom zangado. — Anda, vamos embora. Não me apetece continuar aqui.
Segurámos os capacetes e fizemos o caminho inverso no mais absoluto silêncio. Não era daqueles silêncios confortáveis que por vezes aconteciam entre nós, era o silêncio de uma amizade fracturada.
Durante a viagem de mota até à casa dela, era perceptível o seu soluçar, abraçada atrás de mim. Dilacerava-me a alma vê-la tão infeliz. Contudo, seria muito mais violento, envolvê-la numa relação ilusória.
Quando parei defronte da fachada do seu prédio, Kátya saltou da mota como se o assento tivesse uma mola. Retirou o capacete da cabeça e não escondeu os olhos vermelhos de quem viera a chorar. Eu tirei o meu, pousando-o em cima do depósito, e segurei-lhe o braço, puxando-a para mim.
— Não fiques assim.
Kátya soluçou e apontou-me o capacete dela.
— Toma. Leva-o. — Ela costumava ficar com o capacete, uma vez que era a única pessoa que andava de mota comigo. — Não vou precisar dele. Acho melhor afastarmo-nos por uns tempos.
— Vá lá, Kátya, não sejas assim. — pedi, consciente que a nossa relação estava por um fio. — Não quero perder a tua amizade.
— Preciso de um tempo, Daniel. Por favor...
O pedido foi feito com um semblante que não procurou ocultar um mínimo de sentimento que fosse, não se ralava em mostrar-se chorosa. Fungou e levou a mão ao bolso, procurando novo cigarro.
— Preciso que fiques longe por uns tempos.
Com aquelas palavras, não se despediu com um beijo, apenas com um acenar pesaroso. Afastou-se para a porta e desapareceu no interior do edifício.
Respeitei o seu pedido.
Durante vários dias não a procurei, nem a tentei contactar. Sentia a falta da sua companhia e lamentava estar a fazê-la sofrer por não retribuir o que ela sentia por mim. Ao fim desse tempo, tentei ligar-lhe sem que qualquer chamada fosse atendida ou respondida. O telefone tocava, tocava, tocava até passar para o atendedor de chamadas onde uma voz neutra convidava a deixar mensagem. Mais alguns dias sem saber nada dela e passei pelo restaurante onde trabalhava. Informaram-me que se tinha demitido sem qualquer razão e de forma súbita. Fiquei seriamente preocupado. Só me restava procurá-la num último local e acabei por ir a casa dela. As surpresas não tinham terminado, uma vizinha surpreendeu-me com a notícia de que Kátya se fora embora do apartamento. Fiquei desesperado. Imaginei que tivesse voltado para a rua, se tivesse abandonado a ela própria, voltando ao mundo donde eu a retirara. Pior, dei por mim a ponderar a hipótese que o seu amor não correspondido a tivesse levado ao suicídio. Tudo me passou pela cabeça, chegando a procurá-la em hospitais e até na morgue.
Cerca de uma semana após a sua partida, recebi uma carta:
"Olá Daniel! Peço que me perdoes por ter partido sem me despedir. Não conseguiria fazê-lo se tivesse que voltar a encarar os teus olhos. Tu és a pessoa mais extraordinária que passou pela minha vida. Salvaste-me, tiraste-me da rua, evitaste que eu tivesse que ter passado por sei lá quantas agruras para conseguir sobreviver. Foste o meu anjo. Só que neste mundo nada é perfeito e a tua imperfeição é não me amares como eu te amo a ti. Não tenho o direito de te forçar a amar-me, da mesma forma que não posso continuar a magoar o meu coração a acompanhar-te sem te ter. Não quero que te preocupes, eu estou bem. Regressei a Portugal. Não, não penses que estou a viver na rua. Regressei porque consegui trabalho e tinha saudades do calor português. E precisava de me afastar daí. Nunca esquecerei Edimburgo, tal como nunca te esquecerei a ti. Amo-te na esperança que este sentimento seja efémero e se apague em breve. Sei que percebes o que quero dizer, uma vez que sofres do mesmo mal. Peço-te que, em nome daquilo que partilhámos, nunca me procures, nunca tentes voltar a ver-me. Fomos uma fase bonita na vida um do outro, mas acabou. Amo-te até conseguir deixar de o fazer. Sê feliz! Kátya"
Houve uma mistura de sentimentos ao ler aquelas linhas, tristeza por perder uma amiga, alívio por a saber bem. Kátya tinha razão, fomos uma fase bonita na vida um do outro. E ela fora um dos contos da minha vida.
fim do conto III
Por vezes, os animais surpreendem-nos, revelando-se mais humanos que os próprios humanos. Tio sentiu de imediato a minha mágoa pela partida de Kátya, tornando-se mais melosa e vindo deitar-se no meu colo, sempre que me sentava no sofá. Era quase como se dissesse "eu estou aqui e nunca te deixarei sozinho".
Peter estava a viver uma época diferente, conhecera um manequim dinamarquês quase vinte anos mais novo e vivia um tórrido romance com este. O jovem era visita assídua do apartamento e nunca me senti constrangido por os ver aos beijos ou saber que algumas vezes ele passava a noite lá.
Jewel ficou algum tempo sem dar notícias, levando-me a pensar que a nossa amizade chegara ao fim. Não estava na disposição de a perder com essa simplicidade, daí que, aproveitando o afastamento de Kátya, resolvi escrever um email a relatar-lhe o sucedido. Jewel lamentou que isso tivesse acontecido e desejava que de alguma forma a situação revertesse. A resposta demorara alguns dias, mas veio com o reactivar da nossa troca de mensagens.
Trocámos mensagens semanalmente até se tornar quase diário, como se retomássemos os primeiros tempos, quando eu trabalhava na loja e ela estudava para ser médica. Nunca havia hipótese de termos uma conversa pelo Messenger, mas através das mensagens de email íamos pondo o outro a par do dia a dia.
Perto do Outono, Jewel revelou como estava entusiasmada em engravidar. Tanto ela como o marido queriam ser pais e, apesar de serem jovens médicos, não pretendiam adiar esse objectivo. Jewel esperava dar-me a boa nova até final desse ano. O Natal chegou, mas a troca de desejos de uma quadra feliz não veio acompanhada por notícias da cegonha.
Os meses do novo ano avançaram. Em quase todas as vezes que nos correspondíamos, ela partilhava a sua preocupação por não engravidar. Na Primavera, confirmou algo que eu já suspeitava. Sem me avançar muitos pormenores, Jewel confidenciava que tinha um problema de infertilidade e que juntamente com o marido haviam tomado a decisão de iniciar um tratamento de fertilidade numa clínica especializada, em Lisboa.
Não seria difícil imaginar o quanto estaria a ser complicado para ela tudo aquilo. Desde que a conhecera que sabia o quanto ela desejava ser mãe, o quanto adorava crianças, como sonhava ter um casal de filhos. Pelo amor que lhe tinha, torcia sinceramente para que o tratamento de fertilidade fosse um sucesso.
A nossa troca de mensagens acabou também por ser um escape para ela, ter alguém com quem falar sobre o processo, sobre as esperanças, os receios, os encargos, enfim... Não era fácil. Tinha de ter esperança, paciência e disponibilidade financeira, pois era bem caro.
Entretanto, em Edimburgo, o trabalho corria sobre rodas.
Peter, como grande amigo que era, preocupava-se com a minha solidão. Desde que perdera Kátya, deixei de ter passatempos ou ocupar o tempo livre com alguma diversão. Tirando a troca de mensagens com Jewel, limitava-me a ficar por casa a ver televisão ou ler sobre material fotográfico. Só saía para resolver algum assunto ou quando era convidado para jantares com os amigos de Peter.
— Precisas de um namorada. — dizia-me ele várias vezes.
Eu mostrava-me desinteressado sem explicar que aquela que queria para namorada estava casada e vivia em Portugal.
No final do primeiro semestre do ano, Peter iria a Paris para fazer reportagem fotográfica de um evento mundial de moda. E eu fui com ele.
Aterrámos no Aeroporto Charles DeGaulle num dia quente de chuva. Carregando o equipamento connosco, entrámos num táxi e seguimos para a cidade. O trânsito em Paris estava caótico e foi desesperante chegar ao Quartier Latin e ao nosso hotel.
O evento de moda iria ter lugar no majestoso Grand Palais de Paris, um luxuoso edifício situado entre os Campos Elísios e o Rio Sena, integrante do grupo arquitectónico que englobava o Petit Palais e a Ponte Alexandre III. Era impossível não ficar abismado com a magnitude interior e os seus telhados de vidro. A organização montara um palco em forma de T que acompanhava o desenho dos tectos, pretendendo aproveitar a luz natural para o desfile. Em volta do palco, centenas de cadeiras para os convidados. Existia igualmente um sector para a comunicação social e para os fotógrafos que quase se acotovelavam para obter a melhor foto. Foram convidados estilistas de renome mundial e os modelos mais bem cotados do mercado. Era um mundo de opulência, requinte, luxo e despesismo.
Peter e eu posicionamo-nos em ângulos diferentes, de forma a obter o maior conjunto de variações fotográficas que nos fosse possível. Basicamente, ele captava o desfile numa direcção e eu na oposta. Não me dera ao trabalho de saber quem eram as figuras que iriam desfilar na passerelle, por isso, fui surpreendido por um rosto conhecido e inesquecível.
Tânia surgiu deslumbrante, ofuscando as parceiras e tirando proveito do lugar de destaque que o estilista lhe concedera, uma vez que a manequim portuguesa era uma das mais famosas. Continuava loura com o cabelo comprido pelos ombros e a franja cortada muito certinha sobre as sobrancelhas. Vestia uma criação composta por um casaco só com uma manga e umas calças só com uma perna. Meu Deus, pensei, quem é que vestiria na rua uma coisa daquelas? Caminhava como se flutuasse, mesmo que fizesse aquele movimento característico dos desfiles de moda em que todas parecem desengonçadas.
Quando a mostra de criações daquele estilista terminou, todos os homens e mulheres que desfilaram entraram em simultâneo, perfilando-se em linha para uma última passagem pelo palco. No momento em que Tânia passou perto de mim, acenei-lhe. Ela viu, mas não reagiu. Porém, três passos depois, no regresso, olhou para trás e franziu o rosto para mim num "Será possível? Serás tu?" No entanto, rapidamente retomou o sentido e ignorou quem ficara para trás.
Tivemos mais duas horas de manequins a mostrar os trabalhos dos estilistas, roupas que iam do clássico aos exemplos mais estapafúrdios que alguma vez vira alguém vestir. Tânia voltou a surgir na passerelle, mas não tornou a olhar para mim.
No final, os convidados começaram a dispersar, abandonando as suas cadeiras, deixando o espaço para os profissionais que tinham de arrumar os equipamentos. Eu era um deles, concentrado em acomodar as máquinas e acessórios nas respectivas malas.
Um homem de traje elegante e identificado como sendo da organização, aproximou-se de Peter.
— Monsieur Daniel?
Peter abanou a cabeça, dizendo algo em francês, e apontou para mim.
— Monsieur Daniel?
— Oui. — respondi com uma das únicas cinco ou seis palavras em francês que conhecia. O homem começou a debitar frases na sua língua. Fiz-lhe sinal que parasse. — In english, please.
Com forte sotaque francófono, o funcionário solicitou em inglês que o acompanhasse. Segui-o ao longo do palco, contornando um dos cantos até alcançarmos o acesso por onde os modelos entravam na passerelle. Passámos pelo acesso aos bastidores e deparei com a cacofonia de vozes de imensa gente numa azáfama confusa. O homem indicou-me que aguardasse perto do sector dos camarins e prosseguiu sozinho.
Aguardei alguns minutos até ao momento em que vi Tânia sair de um dos camarins com o indivíduo que me fora buscar. Ele apontou para mim e o olhar dela cruzou-se de imediato com o meu. Vestida com um robe escuro de seda, ela sorriu e veio ter comigo.
— És mesmo tu. — constatou com satisfação. — Olá Daniel! Que fazes aqui?
Recebi os dois beijos na face que me ofereceu e respondi:
— Sou fotógrafo. Vim fotografar o evento.
— Que bom ver-te! — exclamou entusiasmada. — A sério, gosto muito de te rever.
— Também é bom voltar a ver-te, se bem que eu tenho-te visto, acompanhado a tua carreira.
— Foste responsável por ela. — recordou.
Abanei a cabeça.
— Tu é que és responsável por teres chegado onde chegaste.
Tânia já não era a rapariga linda de dezassete anos, era uma mulher deslumbrante de trinta e um anos, recentemente considerada uma das dez top-models mais bonitas do Mundo. Recordei com saudade o tempo em que fora minha namorada, aqueles poucos meses em que fui o rapaz mais invejado da escola.
Lá atrás, no meio das pessoas que circulavam em todas as direcções, alguém a chamou. Tânia voltou-se e acenou que iria num minuto. A seguir, tornou a olhar para mim. Conseguia descodificar-lhe um genuíno agrado por me rever.
— Gostava de falar mais contigo, Daniel. Estás ocupado amanhã?
— A que horas?
— Ao fim da tarde?
— Não. Não tenho nada marcado.
— Queres jantar comigo? Podemos encontrar-nos no hotel onde estou hospedada.
— Sim, claro. — concordei, surpreendido pelo convite.
Tânia pediu um papel e uma caneta a um assistente. Escreveu nele o nome do hotel e o número do seu telemóvel privado.
— Às sete e meia, ok? — agendou. Não poderia ser muito mais tarde, pois os franceses gostam de jantar com o pôr-do-sol, mesmo no Inverno. — Quando chegares ao hotel, liga-me que eu desço.
Apesar de nunca ter andado nos transportes de Paris, o metropolitano revelou-se de fácil orientação, sendo simples ir de Saint-Michel até à Place de la Concorde. O hotel não ficava muito longe dali.
O fim de tarde estava quente, sentindo-se uma brisa leve. Caminhei pelo passeio com a banda sonora de carros e buzinadelas do trânsito parisiense. Tânia estava hospedada num dos melhores alojamentos de Paris. Só a fachada intimidava, parecendo mais uma entrada de museu que um hotel. Passei pelo porteiro, o qual me olhou com altivez. Ignorei e entrei.
O átrio era luxuoso, todo em tons dourados com um balcão comprido em pedra mármore, onde dois funcionários atendiam dois hóspedes com aspecto de quem se assoava a notas de quinhentos euros. Segui até às poltronas e sentei-me. Confesso que me senti algo pelintra no meio daquele cenário. Peguei no telemóvel, faltavam dez minutos para a hora combinada, e fiz a chamada.
Tânia pediu que aguardasse, pois iria descer. Passados cinco minutos, vi-a surgir da zona dos elevadores. A sua imagem foi como uma seta de excitação que me provocou um choque. Caminhando com elegância em sapatos de salto alto, Tânia trazia um vestido muito justo verde marinho, que começava em volta do pescoço, deixando-lhe os ombros nus, descia pelo seu corpo a contornar cada curva e terminava numa saia muito curta, revelando-lhe as fabulosas pernas. Parou junto de mim, beijou-me a face e indicou que a acompanhasse.
O jantar seria num dos restaurantes do hotel. Tânia circulou como se conhecesse cada canto e era reconhecida pelos funcionários que a tratavam com enorme formalidade. Para meu espanto, ela falava francês.
O espaço mantinha o luxo, mas a cor ambiente era diferente, uma mistura de brancos, cinzas e pretos. As paredes eram espelhadas, dando uma sensação maior ao local, as janelas grandes permitiam a entrada do crepúsculo e o tecto era iluminado por focos de luz branca. O empregado que nos recebera, conduziu-nos até uma das mesas quadradas ao canto, onde duas cadeiras pretas ao estilo de poltronas nos foram apontadas. Sentámo-nos, tendo o funcionário acomodado a cadeira de Tânia, e recebemos a ementa impressa num papel rugoso de alta qualidade com todas as letras escritas num tipo de letra desenhado, quase como se tivesse sido manuscrita em caligrafia de pintor. Observei a toalha branca de linho com os pratos de porcelana contornados a ouro, os talheres de prata e os copos de cristal.
— Sinto-me intimidado com tanta riqueza. — confidenciei, segurando a ementa.
Tânia sorriu, dizendo:
— Pensei que ias dizer que estavas intimidado por estares comigo.
— Não. — neguei, retribuindo o sorriso. — Já passei essa fase.
— Já não te intimido?
— Não.
O empregado voltou e tomou nota dos nossos pedidos.
— Estás diferente. — constatou, analisando-me.
— Sim, estou catorze anos mais velho, desde que estivemos juntos.
— Não é isso. Tornaste-te um homem mais confiante.
— Achas? Sinto-me a mesma pessoa. — Ela franziu o rosto, percebendo que estava a mentir. — Tu continuas igual. Linda!
Tânia fez um ar falsamente envergonhado.
Serviram-nos um copo de champagne para aperitivo. Fizemos um brinde e saboreamos o líquido cuja garrafa custaria algo na casa dos três dígitos.
— Nunca mais falei com ninguém dos tempos da escola. — relatou, pousando a flute. — Nem com a Raquel, nem com a Sofia. — A informação surpreendeu-me, eram as suas melhores amigas. — Naquele tempo, não era como hoje, não tínhamos a Internet. Bem viste como foi connosco, durou...
— Seis meses.
— Pois...
Sorri-lhe como quem desvaloriza o assunto.
— Não teria durado muito mais, se houvesse Internet. Tu estavas nos Estados Unidos, eu em Portugal. Mais tarde ou mais cedo, acabaria. Acho até que foste muito mais lúcida que eu, nessa altura.
— Podes não acreditar, mas custou-me.
— Eu sei que sim, Tânia. Também me custou a mim.
As entradas foram colocadas na mesa, cogumelos salteados que me pareceram mais uma amostra de produto.
— Como é que foi o resto da escola? Aquele tipo... como se chamava ele? O que passava a vida a chatear-te?
— O Tiago?
— Sim. Ele continuou?
Encolhi os ombros, negando com irrelevância.
Tânia provou um cogumelo, mastigou com uma classe trabalhada ao longo dos anos e limpou os lábios com o guardanapo de pano em tecido idêntico ao da toalha. A seguir, bebeu um pouco do vinho tinto escolhido para a refeição, um Pinot noir. Pousou o copo e olhou-me com curiosidade, perguntando:
— Quem foi a minha sucessora?
— Sucessora?
— Sim. Com quem namoraste na escola depois de acabarmos?
— Não voltei a namorar durante uns tempos. — respondi, perante o seu semblante descrente.
— Dedicaste-te aos estudos. — tentou adivinhar num tom irónico.
— Tentei, mas falhei. Não entrei na Universidade. Depois disso fui trabalhar para ajudar nas contas da casa.
Tânia pareceu recordar-se de algo.
— O teu tio? Gostava muito dele, sempre me tratou com enorme simpatia. Então, quando começámos a namorar, fazia-me sentir como se fosse da família.
Calculo que o meu rosto se tenha ensombrado.
— Faleceu há quase nove anos.
— Lamento muito, Daniel. — retorquiu, sentida.
— E a tua avó?
— Ainda é viva, felizmente. — respondeu com um brilho no olhar. — Está quase com noventa anos. Vive em Portugal com os meus pais.
Outro empregado veio recolher os pratos vazios.
— E quem foi o meu sucessor?
Tânia revelou surpresa com a questão. Sorriu divertida.
— Foi um manequim italiano, oito anos mais velho que eu. Mas, isso só aconteceu, tinha eu vinte.
— Foi ele o primeiro? — Tânia anuiu com naturalidade. — Vais rir-te quando te contar quem foi a minha primeira. — Percebi a súbita curiosidade no seu rosto. — A Francisca.
— O quê? — questionou incrédula. — Disseste que não voltaste a namorar na escola.
Chegaram os pratos principais, uma salada de camarão e muitas verduras para ela, uma amostra de bife com cheiro de arroz para mim. Nos minutos que se seguiram, relatei-lhe como reencontrara a nossa antiga colega, como nos aproximámos e a vida em comum até à separação.
— Ainda vives em Almada?
— Estou há três anos a viver em Edimburgo com o meu sócio e amigo. Foi ele quem me ajudou a tornar-me fotógrafo. Viemos ambos a Paris.
— Eu continuo a viver em Nova Iorque, apesar que é mais o tempo que estou fora que em casa. Tenho uma agenda de loucos, trabalhos atrás de trabalhos. — Suspirou, denotando cansaço. — É uma carreira curta, é quase como a de futebolista. Temos de amealhar ao máximo, enquanto estamos no auge. Amanhã à tarde viajo para Milão, onde vou desfilar, depois tenho uma sessão de fotos em fato-de-banho em Bali, a seguir vou para um evento em Moscovo, enfim... Não paro.
— Eu regresso a Edimburgo, depois de amanhã. Felizmente, também estamos com muito trabalho. Essencialmente são sessões de estúdio.
Tânia lançou-me um semblante cúmplice.
— Imagino que tenhas muito sucesso com as modelos que fotografas.
— Não esse sucesso que estás a pensar.
— Vais querer que acredite que...
— Vou porque é verdade.
Ela fingiu acreditar, terminando a última garfada. Tornou a limpar os lábios e disse:
— Eu tenho um... amigo. Um amigo fotógrafo, vive em Los Angeles. Sempre que temos oportunidade, encontramo-nos para uma sessão. Gosto muito do trabalho dele, gosto da forma como me capta. — Fez uma pausa, olhando-me de forma analítica. — Fazemos sexo, sempre que estamos juntos.
— E por isso achas que também o faço com as raparigas que fotografo... — constatei num lamento. Não era raro que tivessem aquela impressão sobre mim. Aliás, já fora assediado por algumas. Porém, tal como me ensinara Peter, nunca misturava o trabalho com prazer.
A forma como ela falou no assunto, criou-me uma suspeita que coloquei sem rodeios:
— Ele não é o teu namorado, pois não?
Tânia abanou a cabeça devagar, mordiscando o lábio, comprometida.
— Namoro com um empresário canadiano. Já dura há algum tempo, aparecemos juntos em muitos eventos. Não me admirava que me pedisse em casamento.
— E o tipo de Los Angeles, sabe?
— Claro. — confirmou. — Da mesma forma que eu sei que não sou a única que ele f... Desculpa. Tu percebeste. — Assenti, um tanto ou quanto decepcionado. — E tu? Alguém especial?
— Não. Actualmente estou sozinho. — respondi, pensando que o actualmente ia em vários anos, descontando a relação com Kátya.
— Ninguém em vista?
Sim, há uma mulher por quem sou perdidamente apaixonado que vive em Portugal e é casada. Claro que não lhe contei isto, limitando-me a dizer:
— Não.
Para finalizar, foi servida uma taça com três pedaços de fruta a cada um. Mais uma vez, no meio de tanta riqueza, o chef parecia estar a racionar a dispensa.
— Como tem sido viver em Edimburgo?
— Gosto muito. Foi amor à primeira vista, adorei desde que saí do avião.
— Curiosamente, a Escócia é dos poucos países onde nunca fui.
— Se um dia fores, espero que me faças uma visita.
O jantar terminou com um café. E no momento da conta, vendo-me pegar na carteira, Tânia travou-me:
— Tenho as despesas todas pagas pela organização, Daniel. Não te preocupes. — Olhou para a janela. — Deve estar uma bela noite. — Encarou o meu rosto. — Apetece-te caminhar?
Saímos do hotel para uma rua quase deserta. A noite estava amena e nem a brisa do fim de tarde se fazia sentir. A figura deslumbrante dela não passou despercebida a nenhuma das pessoas com quem nos cruzámos, no nosso percurso entre a edifício e a margem do rio Sena. Parámos perto do muro que se estende ao longo das margens e debruçámo-nos a observar.
Paris, a Cidade da Luz, tinha o tráfego de carros bem mais calmo àquela hora. Na nossa frente, o rio corria com tranquilidade, passando por baixo da Pont de la Concorde. Atrás de nós, oposto à ponte, o Jardin de Tuileries que se estendia bem longe até ao Louvre.
— Gosto muito de Paris. — confidenciou. — É a primeira vez que cá vens?
— É.
— Eu já lhe perdi a conta. Por ano, devo vir cá umas quatro ou cinco vezes.
Ambos olhávamos a margem oposta com o Palais Bourbon fortemente iluminado. Na margem, um dos barcos de passeio turístico ficara estacionado, já sem ninguém. Sem darmos por isso, estávamos encostados ao braço do outro.
— Tens saudades do tempo de escola? — questionou do nada.
— Não. Apenas do tempo em que namorámos.
Ela olhou para mim.
— Tens saudades de quando namorámos?
A pergunta soou a algo fora do comum.
— Claro. Parece-te estranho? Foste a minha primeira namorada.
— Não, não é estranho. — concordou, voltando a encarar o rio. — Também sinto saudades dessa época. A vida era bem mais simples.
— Não sei que dirás, se te disser que ainda guardo as fotografias que tirámos naquela máquina de foto num minuto, aquelas tipo passe.
— A sério? — inquiriu admirada, virando o rosto e revelando alguma emoção. — Isso é tão querido da tua parte. — Sorri, quase envergonhado por ter partilhado aquilo. — Tu sempre foste muito querido.
— Tu para mim eras uma preciosidade. Até me custava a acreditar que eras minha namorada, a rapariga mais linda da escola.
— Isso também era um exagero.
— Não sejas modesta. Sabes bem que eras.
Ela concordou.
— Mas, tu eras muito querido. Os teus beijos, a forma como me tocavas. — Olhou-me com uma mistura de cumplicidade e vergonha. — Se tivesses arriscado, talvez tivesse acontecido.
— O quê?
— Tu sabes, Daniel. Talvez tivéssemos feito amor.
Não consegui evitar rir com a revelação.
— Tínhamos dezassete anos, Tânia.
— E então? A Raquel perdeu a virgindade com catorze, a Sofia com dezasseis. — Fiquei sem palavras. — Tu fazias-me sentir tão segura, acho que teria acontecido, se tivesses tentado.
— Pois... — suspirei, lamentando não ter sabido aquilo catorze anos antes. — Eu tinha receio de fazer algo que te desagradasse. Se te recordas, nunca sequer nos despimos na frente um do outro.
Tânia riu divertida.
— Sim, mas lembro-me que gostavas de me apalpar as mamas, quando me beijavas.
— Sim, mas sempre com roupa pelo meio. — recordei num tom de quase reclamação, virando costas ao rio e ficando a olhar para a roda gigante na praça.
Tânia endireitou-se, virando o corpo para mim. A fragrância do seu perfume chegou-me ao nariz. Olhei para ela, deixando-me hipnotizar pelos seus olhos verdes, em silêncio, vendo-os baixar dos meus para a boca. De forma inesperada, apagou o espaço entre nós e beijou-me os lábios. Não foi um beijo fugaz, foi um encontro de bocas, um matar saudades de outros tempos. Os seus braços envolveram-me o pescoço, os meus fecharam-se na sua cintura. Saboreei o aroma da sua língua, a frescura do seu hálito.
Para ser uma réplica dos beijos de namoro, as minhas mãos teriam de subir para o peito. Só que nós já não tínhamos dezassete anos. Nem namorávamos. Éramos dois velhos conhecidos, dois trintões, dois adultos com muito mais experiência de vida, um homem e uma mulher que, de repente, se beijaram.
Tão repentina como avançara para o beijo, ela afastou-se. Encarou-me segura. Não havia culpa nem vergonha no seu rosto, aquilo fora natural. Fiquei sem saber o que dizer. Tânia fê-lo por mim:
— Para matar saudades. — Retirou o telemóvel da malinha para ver as horas. — Já é tarde. É melhor voltar ao hotel.
Confesso que fiquei perplexo com a cena. E nem sei se me choquei mais com o beijo ou com a forma natural como ela encarou aquilo, quase ao género de um beijo na boca ser tão comum como dizer "bom dia".
Percorremos o caminho inverso até ao hotel em silêncio. O trajecto pareceu-me muito mais curto. Penso que nos deixámos abater pela eminente separação que findaria aquele encontro. Numa outra realidade, numa conjuntura de vidas diferentes, acredito que nos podíamos ter amado verdadeiramente e constituído um casamento e filhos. Não duvidava que era especial para si, quase tanto quanto ela era para mim.
Diante da fachada do hotel, chegava o momento do "até um dia" que poderia acontecer daí a bem mais que catorze anos. Parámos. Tânia colocou-se na minha frente, olhos verdes nos meus olhos, a franja certinha a mover-se suavemente sobre as sobrancelhas, atiçada pelo regresso da brisa nocturna. Pensei em dizer algo que nos permitisse manter em contacto...
— Queres subir? — convidou com um sorriso terno.
— Subir? — repeti, meio confuso.
— Sim. — confirmou, acariciando-me a face. — Queres subir comigo?
Fiquei tão surpreso que questionei estupidamente:
— Para quê?
Tânia quase deu uma gargalhada.
— Para que achas que é? Ver televisão? — Adoptou um tom mais sério, sedutor. A sua mão deslizou pelo meu peito. — Queres fazer amor comigo esta noite?
Caraças! Não podia ser mais explícita. Ouvi-la dizer aquilo provocou-me um arrepio na espinha, um arrepio de excitação.
— Claro que sim.
Entrámos no edifício perante o olhar subserviente do porteiro para ela. Atravessei o átrio a seu lado, constatando os olhares dos homens com quem nos cruzávamos, deslumbrados com a imagem da manequim portuguesa que fazia furor nas passerelles um pouco por todo o mundo. Entrámos no elevador, subindo na companhia de um homem de negócios que segurava uma mala e olhava de soslaio para as pernas de Tânia. Enquanto subia, questionava-me se ela não temia que aquela noite chegasse aos ouvidos do namorado. Bom, não interessava, não era problema meu.
Segui pelo corredor, um passo atrás dela, até alcançarmos a porta do seu quarto. Tânia deslizou o cartão-chave pelo sensor e a porta abriu. Avançou para o escuro e acendeu a luz. Passei a entrada, vendo-a fechar a porta. Caminhou até mim e tornou a envolver-me o pescoço com os braços, ao que eu repliquei com os meus à volta da sua cintura. Beijámo-nos com paixão e excitação.
Tânia interrompeu o beijo. Virou-se de costas, puxou o cabelo louro para a frente e indicou-me o fecho do vestido atrás. Segurei a presilha, ao mesmo tempo que lhe beijava o pescoço, e corri-a até à cintura. Mordisquei-lhe a orelha, afastando as abas do vestido pelos ombros. O tecido caiu para a frente, pendurado na minissaia, deixando o seu tronco somente com um sutiã sem alças. Virei-a para mim, observando os seus seios ainda escondidos. Ela tornou a colar os lábios nos meus e, entre beijos, sussurrou:
— O fecho é à frente.
O meu dedo indicador e o polegar tocaram a mola, soltando a peça de lingerie que caiu desamparada no chão. Afastei-me alguns centímetros, quis observá-los com calma, descobrindo-os diferentes que aquilo que imaginara. Tânia tinha seios redondos, perfeitos, mas os mamilos eram cercados por auréolas largas e tinham um relevo mínimo. Não sei porquê, nos meus devaneios, fantasiara dois mamilos imponentes, quais chupetas de biberão.
Tânia pegou na minha mão e levou-me até à cama. Envolveu-me num novo abraço acompanhado de beijos sôfregos. Desta vez, não lhe rodeei a cintura, optando por abarcar nas minhas mãos o seu peito, o que lhe provocou um gemido rouco. Encarou-me o rosto com olhar lânguido e as suas mãos procuraram os botões da minha roupa.
Na manhã seguinte, acordei sem saber muito bem onde estava. Raramente desfrutara de um colchão tão confortável. Tânia dormia tranquila a meu lado com o lençol enrolado na cintura e o peito nu a subir e a descer ao ritmo da respiração. Rodei para o lado contrário, vendo no chão cinco preservativos usados. Na minha mente, repassaram as imagens dos êxtases partilhados noite dentro. Retornei à posição anterior, aproveitando para a observar com calma, saborear o momento em que partilhava a cama com ela... Fora uma loucura, aquela noite fora uma deliciosa loucura. Quando ao fim de seis vezes nos demos por saciados, o céu já apresentava a coloração do início do amanhecer. Estacionei a observação no seu rosto, o cabelo despenteado sobre a face, o seu ar natural sem maquilhagem, os olhos cerrados de quem descansa com enorme tranquilidade, a boca semi-aberta... Sorri sozinho, recordando porque não havia um sexto preservativo usado. Aquela boca... Meu Deus.
Tânia despertou lentamente, encontrando-me a contemplá-la.
— Bom dia! — cumprimentou estremunhada. Desviou o cabelo dos olhos e puxou o lençol para cima, numa súbita vergonha pela nudez.
— Bom dia, Tânia!
— Que fazes aí, a olhar para mim?
— Estava a saborear o teu dormir tranquilo.
— Já vais? — indagou, escondida no tecido luxuoso da cama. Não esperou resposta. — É melhor ires andando. Preciso de dormir umas horas, antes de partir.
— Ok. Importas-te que tome um banho antes?
— Claro que não. Mas não te demores, por favor.
A casa de banho não fugia em nada a todo o luxo e requinte do quarto. Tomei um duche rápido e regressei ao quarto para me vestir. Como pensei que Tânia estava a dormir, tentei sair sem fazer barulho, porém...
— Daniel! — chamou ela, por baixo dos lençóis.
— Sim...
— Sabes que isto não vai voltar a acontecer, não sabes?
Sim, eu sabia. Aquilo fora um momento de partilha, de sexo, de completar o ciclo que se suspendera nos nossos dezassete anos. Não me importaria de repetir, mas nem eu nem ela ambicionávamos um regresso do namoro ou qualquer tipo de compromisso. Aquela poderia bem ter sido a única noite de paixão, de entrega total de ambos, algo que o nascer do Sol apagaria da realidade e transformaria numa bonita recordação para mim e, quem sabe, para ela.
O meu regresso a Edimburgo coincidiu com mais uma mensagem de Jewel, dando conta do fracasso da primeira tentativa de engravidar, no seguimento do processo de tratamento de fertilidade a que ela e o marido se haviam sujeitado. Lamentei o facto e respondi-lhe com uma mensagem de esperança que na verdade não desejava.
Se Peter fora o meu professor e quem me dera a mão para entrar no mundo da fotografia e ser fotógrafo, Tânia catapultou a minha carreira. Isto porque, alguns meses depois daquela fabulosa noite, deu uma entrevista em que falou da sua carreira, como começou, quem a incentivara, quem a fotografara e como esse indivíduo, eu, era um excelente fotógrafo. Como devem calcular, ter uma das super manequins internacionais mais bem cotadas do mercado a elogiar-nos, só poderia resultar numa coisa, uma enorme procura pelos meus serviços. Choveram contactos para projectos, inúmeros pedidos de raparigas para irem ao estúdio a Edimburgo para serem fotografadas por mim, ofertas de valores exorbitantes por sessão... Peter ajudou-me, sendo quase meu agente. E eu não esqueci o quanto ele fizera por mim, não abdicando de partilhar todos os meus lucros consigo.
No final desse ano, Jewel voltou a fracassar na tentativa de engravidar. Nas mensagens que trocávamos, começou a fazer confidências acerca do casamento, como se sentia pouco apoiada pelo marido naqueles momentos. Perto da Páscoa do ano seguinte, recebi uma das melhores notícias da minha vida. Sei que é feio dizê-lo desta forma, mas é a verdade. Jewel escreveu-me um longo email a descrever como o marido se afastava progressivamente e a fazia sentir cada vez mais responsável por não engravidar. Após o terceiro fracasso, ele colocara as cartas na mesa com uma exigência muito simples, queria o divórcio.
CONTO IV
O teu nome é Mafalda.
E fizeste escala a meu lado.
Ao saber do divórcio, a minha primeira vontade era meter-me num avião e viajar para Portugal. Contudo, não seria muito responsável da minha parte, tendo em conta a minha preenchida agenda de trabalho. Para além disso, que iria eu fazer? Aparecia e dizia "boa, separaste-te, já podemos ficar juntos". Não me pareceu correcto, seria desvalorizar por completo o sofrimento dela.
Antes do final daquele semestre, o divórcio foi oficializado, pouco mais de dois anos após o casamento.
Perante a previsível consumação do divórcio, organizei a minha vida para ir a Portugal, visitá-la. Estava ansioso por a rever e expectante pelos frutos que poderiam ser colhidos num reencontro em que ambos éramos descomprometidos. No entanto, antes que pudesse partilhar a hipótese com ela, recebi uma mensagem sua no email a informar que a separação a deixara muito deprimida, queria afastar-se da realidade onde estava inserida, procurar um novo rumo, descobrir um novo significado que a realizasse. E com base nisso, decidira voluntariar-se para integrar uma missão humanitária em Moçambique, colocando ao dispor das crianças locais os seus conhecimentos na área médica em que se especializara, Pediatria.
Tive vontade de partir o computador. Agora que surgia a oportunidade para ficarmos juntos, ela ia para África dar consultas? Já para não falar em todos os perigos a que estaria sujeita, tendo em conta as notícias que se viam na televisão de ataques a missões humanitárias na Nigéria, Somália, entre outros. Pensei em escrever-lhe a pedir que não fosse, mas sabia que isso seria infrutífero e poderia aborrecê-la ao ponto de querer quebrar a nossa ligação. Ao invés, elogiei o seu espírito humanitário e pedi-lhe que nos mantivéssemos em contacto quando ela fosse para lá.
Mafalda chegou a Maputo numa tarde chuvosa de final de Julho. Passou a noite num hotel da capital e na manhã posterior, juntamente com a comitiva de voluntários, iria para uma daquelas regiões com nomes esquisitos perdidas no meio da selva. Recordo-me que me ligou desse hotel, estava eu a ouvir um CD dos Travis no estúdio, para me informar que chegara. Lembrou-me que não havia Internet para onde ia e que as comunicações iriam ser difíceis. Mesmo assim, prometeu ligar sempre que fosse possível.
Durante três dias, não soube nada dela. Comecei a ficar receoso, temendo que tivesse sido vítima de algum ataque de guerrilheiros ou simples criminosos. Não queria sequer imaginar o que um grupo de malfeitores poderia fazer a uma mulher linda como ela. Tentei ligar-lhe, mas nem sequer chegava a dar sinal de chamada, era como se o telemóvel estivesse desligado.
Para meu sossego, Mafalda telefonou ao quarto dia.
— Não fiques preocupado, Daniel. Isto é tranquilo e as pessoas são muito hospitaleiras. — informou para me descansar. — O grande problema aqui é a falta de condições, as doenças que seriam facilmente tratadas aí em Portugal.
Os telefonemas tornaram-se regulares, eu ligava-lhe todas as noites. A diferença horária era de mais duas horas lá que em Edimburgo. Por isso, eu telefonava ao fim da tarde. Eram telefonemas curtos, só para saber se estava tudo bem e para lhe mandar um beijo. Parecia quase um regressar ao tempo em que nos encontrávamos nas salas virtuais da Internet para conversar quase todas as noites, quando eu trabalhava na loja em Lisboa e ela estudava para ser médica. Era sempre eu quem ligava, por causa do custo excessivo do roaming das comunicações. Não sabia se esse custo seria excessivo para ela, mas sabia que eu o poderia suportar, daí ter-lhe referido isso ao início, que eu ligaria sempre à mesma hora.
Apesar de nunca sentir aquilo como uma obrigação, tive receio que o fosse para Mafalda. Havia vezes em que me atendia visivelmente cansada. Calculei que não tivesse coragem de me pedir para não ligar tanto. Daí que, uma noite, ao fim de um mês da sua comissão em África, optei por não fazer o telefonema. Já muito tarde, quase meia-noite em Edimburgo, recebi uma sms de Mafalda:
"Está tudo bem? Não ligaste."
"Pensei que talvez quisesses algum descanso. Andas a levar comigo todos os dias."
A resposta demorou um pouco, talvez cinco minutos, o que para troca de mensagens escritas parece uma eternidade.
"Podes ligar-me?"
Marquei o número e fiz a chamada. Ao fim do primeiro toque, a sua voz surgiu num tom cansado e firme:
— Que disparate é esse?
— Disparate?
— Sim. Que se passa? Houve alguma coisa que tivesse dito ontem que te tenha levado a pensar que não gosto que ligues?
A minha mente reviu o telefonema da noite anterior, fora normal, igual a tantos outros.
— Não. Só tive receio que estivesse a ser chato, ao ligar-te todas as noites.
— Se fosses chato, eu dizia-te. E também te dizia para não ligares tanto. — esclareceu com o carinho característico da sua voz. — Isto aqui é complicado, lidamos diariamente com o sofrimento das pessoas, com a nossa impotência. — Suspirou, revelando o cansaço acumulado. — Os teus telefonemas são uma espécie de refresco, um momento de relaxe... — Ouvi um risinho. — Se calhar, eu é que te maço todas as noites.
— Agora és tu que estás a disparatar.
— Eu sei. Tu és um querido, sempre foste.
— Tu sabes o quanto eu gosto de ti.
— Sim... — Houve uma pausa, um silêncio prolongado. Ela mudou de assunto. — És a única pessoa com quem falo regularmente. Chego a estar mais de uma semana sem ligar para a família. Então com a Vânia só falei quando cheguei, de resto, só trocamos mensagens. — Mais uma pausa. — Tu és o meu elo com a civilização.
— Sabes que estou sempre contigo, mesmo estando longe.
— Sim, eu sei.
Não me importava de ficar ao telefone com ela indefinidamente, a força do amor que sentia por ela queimava-me o espírito.
— Mafalda...
— Sim?
Eu amo-te!, surgiu no meu pensamento.
— Sim, Daniel? — insistiu perante o meu silêncio.
— Já conseguiste ultrapassar o divórcio?
A resposta não foi imediata e quando veio trazia na voz um travo de amargura:
— Não. Ainda sofro com isso. Mas, pelo menos aqui, mantenho a mente ocupada. Só mesmo quando vou dormir ainda me deixo cair na tristeza.
— Ele não merece que ainda sofras por ele.
— Não sofro por ele, Daniel. — corrigiu. — Sofro por mim, sofro pelo meu fracasso em ser mãe.
— Isso não justifica um divórcio. — argumentei, pensando que só um estúpido, uma besta quadrada, poderia abdicar do amor de uma mulher como ela.
— Apesar de tudo, não o condeno, Daniel. É um direito dele, querer ser pai.
— Havia outros caminhos, Mafalda. Sei lá, adopção...
— Ele não quis. E mais uma vez admito que está no seu direito.
— Não deves sentir isso como um fracasso teu, Mafalda.
— Mas é! — afirmou convicta. — Fui eu que falhei.
— Não o vejo dessa forma. — contestei. — No lugar dele, amar-te-ia ainda mais.
Do outro lado da linha veio um riso suave.
— És um querido por tentares fazer com que me sinta melhor. — Suspirou. — Já é tarde. Tenho de ir descansar.
— Gosto muito de ti, Mafalda!
— Eu também gosto muito de ti, Daniel!
— Posso fazer uma última pergunta?
— Desde quando precisas de autorização para fazer perguntas?
— É das difíceis.
Notei alguma apreensão no seu silêncio.
— O mais que pode acontecer é eu não responder.
— Está bem. — concordei, ganhando coragem. Respirei fundo. — Ainda gostas de mim como naquela manhã em que nos encontrámos pela primeira vez?
Novo silêncio. A resposta atrasou-se indefinidamente, alguns segundos que a minha expectativa encarou como horas.
— Não te vou responder a isso. — disse séria. — Quero apenas que saibas que gosto muito de ti. Não quero pensar em relações de afecto, relacionamentos amorosos. Estou muito magoada com o que aconteceu. E volto a dizer-te, não é culpa dele. Culpo-me a mim. Neste momento, não quero nem preciso de paixões. Preciso de amigos, preciso de um amigo, um amigo com quem tenha uma relação muito forte, a mais forte de todas, alguém que me faz sentir bem, segura e confortável. Tu és o mais próximo que tenho disso. É só isso que quero. Se puderes continuar a ser esse amigo, ficarei feliz. Mas, não te vou enganar, não quero que a nossa relação algum dia vá além do que temos hoje. — Parou para analisar a minha reacção. Eu aguardei. — Percebo que possa estar a defraudar as tuas expectativas. Compreenderei se te quiseres afastar.
— Não, Mafalda, não me vou afastar. — comprometi-me. — Desejo-te uma boa noite. Amanhã à mesma hora?
— Sim. — concordou já sem o peso na voz. — E, por favor, não voltes a pensar disparates. Se algum dia, num futuro completamente surreal e improvável, estiver cansada de falar contigo, eu digo-te.
A minha vida profissional tornou-se ainda mais atarefada ao ser contratado por uma agência londrina, o que levou a que tivesse de viajar quinzenalmente para Londres e ficar lá três dias. Não havia nada melhor que trabalhar naquilo que gostava e ser ricamente pago por isso. Mais uma vez, a oportunidade era fruto da entrevista de Tânia.
No auge do Outono, no regresso a casa vindo de Londres, Peter alertou-me para algo:
— A Tio anda muito apática e come pouco.
Olhei para a gata que, ao contrário do habitual, não viera receber-me e permanecia aconchegada na sua cama. Baixei-me junto dela e acariciei-lhe o pelo, obtendo um ronronar de agrado. Fui preparar-lhe uma latinha da sua comida preferida e coloquei num pires. Mal ouvia o som da lata, ela vinha a correr para comer. Porém, desta vez, manteve-se imóvel. Levei o pratinho para perto dela. Tio lambeu um pouco e desinteressou-se.
— Estás a ver? Tem estado assim, Daniel.
— Talvez seja melhor eu levá-la ao veterinário.
Sem perder tempo, coloquei-a com cuidado na transportadora.
O veterinário que a observava regularmente ficava a dois quarteirões da nossa casa, pelo que ia sempre a pé até lá. Ele observou-a minuciosamente com semblante apreensivo. Eu via a cena com o coração nas mãos, temendo o diagnóstico. Por fim, disse-me que ela não apresentava sinais de qualquer doença, tudo se resumia a velhice. Custava a acreditar que Tio fosse já uma gata sénior, mas quando a adoptara já era uma gata adulta e vivia comigo havia uns dez anos. Numa postura austera, o veterinário recomendou que a mantivesse o mais confortável possível e... que me preparasse para o pior.
Não me quis convencer disso, Tio não poderia estar a... Não, não queria acreditar nisso. Fosse como fosse, alterei algumas rotinas, procurando estar mais tempo com a gata. Podia recusar-me a aceitar, mas o meu inconsciente encaminhava-me para esse desfecho.
Algumas noites mais tarde, fiquei sozinho no apartamento estúdio, uma vez que Peter saíra para jantar com uns amigos e chegaria tarde ou nem sequer viria passar a noite a casa. Tal como costume, telefonei a Mafalda para mais um relato do dia, partilhando as incidências do meu e ouvindo as satisfações e frustrações que uma pediatra poderia atravessar em Moçambique.
A seguir, peguei em Tio e vim para o sofá ver televisão, deitando-a no meu colo. Ela aninhou-se nas minhas pernas e permaneceu confortável, apreciando o meu pentear com os dedos do seu pelo tricolor. Ela olhou para mim, tinha um olhar mais intenso que muitos seres humanos. Quase a julguei ver sorrir. Que disparate, os gatos não sorriem. Voltou a aninhar-se no meu colo, pressionando-me suavemente com as patitas, como se dissesse "gosto muito de ti". Quero acreditar que ela estava a agradecer-me, se bem que talvez eu tivesse mais a agradecer-lhe a ela por todos aqueles anos em que muitas vezes fôramos a única companhia um do outro.
Na televisão, distraí-me com um filme de acção que rapidamente perdeu importância em conflito com o meu sono. Estava cansado de mais um dia, começava a considerar seriamente a hipótese de tirar umas férias, daí que tenha adormecido. Acordei com outra coisa qualquer a passar no ecrã.
— Vá, Tio. Vamos dormir. — disse eu à gata, acariciando-lhe a cabeça. Ela não se mexeu. — Tio! — A minha voz não provocou qualquer efeito. — Tio? — Percebi que arrefecera e não havia sinais de que respirasse. — Tio? Tio? — Sem que me apercebesse, as lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto. — Acorda, Tio! Tio! TIO!!!
Agarrei-a com força, abanei-a como se isso a pudesse trazer de regresso à vida. Claro que os seus olhos permaneceram cerrados. Abracei-a junto ao peito com força e chorei como uma criança. Ela adormecera o sono eterno...
Naquela noite não perdi uma gata, perdi uma amiga e companheira que percorrera comigo os últimos dez anos, quase desde o triste dia em que o meu tio falecera. Fora a minha companhia na solidão, a presença alegre a cada chegada minha a casa, a cúmplice de brincadeiras, ouvinte de desabafos. Tio vivera comigo em Almada, mudara-se comigo para Moscavide, regressara comigo a Almada, viajara comigo para Edimburgo... A gata era parte de mim, parte da minha vida. Um pedaço do meu ser partia com ela. E aquela casa nunca mais seria a mesma sem a sua presença. Num momento de introspecção, com Tio nos braços apertada contra mim, pensei nos meus tios e pedi-lhes que, se os seus espíritos se cruzassem, tomassem conta dela por mim.
Mafalda propusera-se a permanecer um ano em Moçambique e cumpriu. Estivera numa região que eu imaginava ser um antro de perigos, mas que não passava de um lugar calmo com inúmeras carências de recursos para quem lá vivia. Ser médica ali fora uma lição de vida para ela. Ao regressar a Portugal, Mafalda não retomou a sua função no Hospital de Coimbra, uma vez que o ex-marido exercia funções lá e ela não queria estar a cruzar-se com ele. Ao invés, pediu transferência para outro hospital e conseguiu lugar na Pediatria do Hospital de São João no Porto. Como Vânia entretanto fora viver para Vila Nova de Gaia, Mafalda aceitou o seu convite para partilharem o apartamento.
Eu ia seguindo a sua vida à distância, conforme ela me ia relatando tudo pela Internet. Após um ano de constantes telefonemas diários, já não passávamos um dia que fosse sem falar um com o outro. Só que retomámos as conversas pelo Messenger, uma vez que era mais cómodo que falar ao telefone. Foi assim que fui ficando a par dos seus relatos.
Apesar de ela sempre ter dito que nunca seriamos mais que amigos, eu mantinha a esperança de a conquistar. E sabia que tinha de o fazer antes que outro "marido" aparecesse na sua vida. Esperei que Mafalda organizasse a sua vida no Porto, a mudança para a casa da amiga, a adaptação ao novo cargo no hospital e às consultas que começou a exercer em duas clínicas, uma no Porto e outra em Gaia. Quando senti que a sua vida encarrilara numa rotina, informei-a que tinha de ir ao Porto tratar de uns assuntos.
Mafalda ficou desconfiada.
"Vens ao Porto tratar de que assuntos?"
Um assunto chamado Mafalda.
Claro que não lhe podia dizer que ia de propósito para a ver. Iria com toda a certeza tentar demover-me de o fazer, não quereria ser foco de tal despesa ou alertar-me-ia para que não tivesse ilusões em relação a nós.
"Uma proposta de trabalho de uma agência", menti.
"Isso é bom. Espero que tenhas sucesso."
"Podemos encontrar-nos quando for aí?"
Mafalda enviou a resposta que eu calculava:
"Não sei se vai dar. Estou com muito trabalho, turnos no hospital, as clínicas."
"Só regresso a Edimburgo depois de te ver."
"Depois vemos isso. Quando vens?"
"Daqui a três dias."
Aterrei no Aeroporto Sá Carneiro numa tarde quente de início de Setembro. A cidade do Porto brilhava com um Sol forte a que já não estava habituado, quando o táxi em que segui me deixou à porta do hotel perto da Avenida dos Aliados.
Perante a evidência de que eu ia mesmo a Portugal, Mafalda acabou por concordar que nos encontrássemos. No dia seguinte à minha chegada, ela estaria de folga do hospital e não tinha consultas nas clínicas.
Almocei num restaurante perto do Coliseu, procurando abstrair-me da ansiedade por a ir reencontrar nessa tarde. Saí do estabelecimento e desci a Rua Passos Manuel fustigado pelo calor. Começava a pensar se os cincos anos a viver em Edimburgo me haviam transformado a pele ao ponto de ficar rosado como um escocês numa praia do Algarve. Virei para a Rua Sá da Bandeira, passando pelo teatro com o mesmo nome e indo desembocar à Rua 31 de Janeiro.
Nunca tinha ido ao Porto. O máximo fora a passagem por lá entre Coimbra e o Aeroporto Sá Carneiro, aquando do casamento de Mafalda. Porém, simpatizara com a cidade e com as pessoas no seu estilo próprio e muito receptivo. Não conhecia a cidade. Vira como alcançar o meu destino através do mapa no hotel e pedindo informações ao portuenses. Tive de o fazer várias vezes e em nenhuma fui tratado com antipatia ou enfado.
Atravessei a Rua da Madeira e entrei na Estação Ferroviária de São Bento por uma porta lateral, instigado pela curiosidade em ver o interior. Fiquei encantado com os painéis de azulejos em todas as paredes do átrio principal. Sem saber porquê, veio-me à cabeça a música Getting Away With It (All Messed Up) cantada pela banda James, a minha canção favorita deles. Saí pela porta principal a cantarolar "We're getting away with it all messed up. Getting away with it all messed up. That's the living". Desci a rampa onde os táxis se perfilavam a aguardar clientela e passei para o outro lado da Praça Almeida Garrett. Prossegui pela Rua Mouzinho da Silveira, na qual caminhei por largos minutos, observando tudo com noção da ansiedade crescente de quem se aproxima do destino. Cruzei a Rua da Bolsa na passadeira e entrei no Jardim do Infante Dom Henrique, circulando pelo caminho cimentado que cortava o relvado. O ponto de encontro combinado fora o Palácio da Bolsa. O edifício surgiu diante de mim após o jardim. Atravessei a Rua Ferreira Borges e dirigi-me à escadaria que dava acesso à fachada de três portas com as letras "Associação Comercial do Porto" escritas por cima.
Mafalda ainda não chegara, mas eu também estava adiantado. Não sei donde ela saiu, só a vi já no cimo da rua a subir a escadaria oposta à que eu usara. Caminhava com elegância numa passada segura a cada degrau, onde os saltos dos seus sapatos batiam com firmeza. Vestia uma camisa encarnada fresca e larga de mangas curtas e calças de ganga à sua medida. O cabelo estava mais ruivo e menos louro com os caracóis mais curtos. O rosto parcialmente tapado pelas lentes largas dos óculos escuros não esconderam o sorriso franco ao ver-me. Senti o coração palpitar com a sua aproximação, quase como se quisesse explodir-me do peito. Ela parou na minha frente e ao "olá" juntou um beijo terno na minha face. Retribuí ambos com uma vontade imensa de a abraçar.
— Já tinhas vindo ao Porto? — indagou, retirando os óculos para o topo da cabeça.
Eu ia responder que sim, no seu casamento, mas achei que referir o "casamento" não era uma boa opção.
— Não.
— E deste bem com isto?
— Como se costuma dizer, quem tem boca vai a Roma.
Mafalda sorriu, aquele sorriso cativante que me apaixonara desde o primeiro segundo em que a vira.
— Queres beber um café? — convidou. — Podemos ir até à Ribeira.
Assim que concordei, ela tornou a baixar os óculos para o rosto e avançou pela escadaria que eu subira, conduzindo-me de novo para o passeio. Na passadeira, atravessámos a Rua Infante Dom Henrique e caminhámos nela até chegar à esquina com a Rua da Alfândega por onde descemos até ao Cais da Estiva com o rio Douro a receber-nos num azul alegre e ensolarado. Escolhemos uma esplanada e sentámo-nos defronte um do outro, vendo os muitos turistas que por ali circulavam.
— Como correu a reunião, Daniel?
— Reunião? — questionei confuso.
Nesse instante, um empregado acercou-se da mesa para receber o nosso pedido.
— Dois cafés. — pediu ela. A seguir virou o rosto para mim. — Não vieste a Portugal por causa de uma reunião com uma agência ou o que era?
— Ah... Sim... Pois... — respondi, recordando-me da falsa justificação que lhe dera. — Correu bem.
Mafalda ficou séria, observando-me com a cobertura das lentes escuras.
— Não houve nenhuma reunião, pois não?
— Se te dissesse que vinha de propósito para te ver, tinhas-me dito para não vir.
Ela abanou a cabeça como se ficasse aborrecida. Depois, abriu o sorriso e disse:
— Tu és incrível. Vir de tão longe só para me visitares.
— Tinha saudades tuas.
— Falamos todos os dias, Daniel.
— Não é o mesmo que estar fisicamente contigo.
O empregado trouxe os cafés e depositou uma chávena diante de cada um. Puxei de uma nota de cinco euros e dei-lhe, dizendo:
— Fique com o troco.
— Fica um café caro. — constatou ela, após o rapaz se afastar.
— Venho com o jetlag dos preços de Edimburgo. — retorqui com humor.
Bebemos o café em silêncio. Ela evitou o meu olhar, desviando o rosto para um barco que navegava no rio. Como também estava de óculos escuros, permiti-me analisá-la. O seu rosto amadurecera, diferente da jovem que conhecera nove anos antes em Lisboa, mas mantinha toda a beleza e sensualidade. As marcas não eram mais que registos dos momentos difíceis.
— Tive dificuldade em me reabituar a isto. — afirmou, quebrando a minha análise. — Esta quantidade de gente, a confusão do trânsito, a falta de paciência das pessoas... Em Moçambique não era nada assim. — Sorriu com o semblante perdido em recordações. — A vida lá é muito mais calma.
— Tens saudades de Moçambique?
— De Moçambique propriamente não. Tenho saudades das pessoas, das crianças... Principalmente das crianças. — Fez um gesto como se fosse dizer algo absurdo. — Se pudesse, trazia-as todas. — O seu rosto ensombrou-se. — Não imaginas a falta de condições. Cá em Portugal passamos a vida a queixarmo-nos de tudo. Havias de ver como é lá. Não há quase nada e as pessoas ainda assim são gratas e percebem que fazemos o melhor que podemos.
— Pensas voltar?
Mafalda abanou a cabeça.
— Não. Foi uma fase, um propósito de fazer algo, de dar um sentido à vida. Quero continuar a ajudar as pessoas, mas irei fazê-lo aqui. Tenho falado com algumas associações e quero fazer voluntariado junto de crianças carenciadas.
— Tens um coração de ouro.
Ela encolheu os ombros.
— Acho que é uma forma de ser um bocadinho mãe. Lidar com crianças é aquilo que mais gosto de fazer. Não posso ter filhos, daí que faça o mais que posso pelos filhos dos outros. Enfim... Sei lá...
— Dá Deus nozes a quem não tem dentes. — retorqui, pensando no meu passado.
— Como assim?
— A Francisca podia ter filhos e nunca os quis ter. — recordei. — Também gostava de ser pai. — Sorri ao imaginar-me nesse papel. — Bom, a vida que levo torna a paternidade complicada, sempre de um lado para o outro. — Encarei as suas lentes escuras. — E a criança precisa de uma mãe.
— Talvez devas começar por aí. — avisou séria. — E certifica-te que ela pode ter filhos, antes de te comprometeres.
— Mafalda. — chamei com ternura. — Não sou o teu ex-marido.
Ela olhou-me surpresa e confusa.
— Que queres dizer com isso?
— Quero dizer que nunca largaria a mulher que amo só porque ela não consegue engravidar.
— Sim... — concordou denotando algum desconforto. — Mas será melhor se ela puder ter filhos.
— Porque é que fazes isso? — questionei, tirando os óculos.
— Faço o quê?
— Falas como se não soubesses quem é a mulher que eu amo.
Mafalda emudeceu, dirigindo a atenção para a chávena vazia. Eu aguardei, conhecendo-a o suficiente para perceber que ela preparava as palavras a proferir.
— Só quero o amigo, Daniel. Já te disse antes e irei repeti-lo sempre que tocares nesse assunto.
— O dia em que me disseres, olhos nos olhos, que não sentes o mesmo por mim, eu nunca mais o repito.
— Eu não te amo, Daniel!
— Se tirares os óculos e repetires isso a olhar para mim, eu acredito.
Mafalda tirou os óculos e encarou o meu olhar. Percebi que ela iria mesmo dizê-lo nos meus olhos. Quando a sua boca se abriu, temi tê-la desafiado. Só que não ouvi a repetição da frase anterior. O que ouvi, foi:
— Tu queres ser pai. Admiro isso em ti. Nunca serias feliz comigo.
— Deixa-me provar-te o contrário.
Ela renunciou à oferta.
— Podes acreditar nisso agora, mas mais tarde...
— Não sou o teu ex-marido, Mafalda.
— Pára de repetir isso. — irritou-se. — Eu sei que não és. — Suspirou, voltando a colocar as lentes no rosto. — É melhor ir andando.
— Não vás. — pedi, arrependido de ter expressado os meus sentimentos.
— Vamos dar um passeio. — sugeriu, levantando-se da cadeira.
Abandonámos a esplanada e fomos caminhar ao longo do cais.
— Desculpa! — pedi. — Não tenho o direito de te pressionar.
— Deixa. Não penses mais nisso.
No cais estavam atracados vários barcos rabelos, usados para passeios turísticos pelo rio. Na margem oposta, em Gaia, outros tantos com o mesmo objectivo. Caminhámos alguns metros em silêncio, desfrutando somente da companhia um do outro. Olhei para a Ponte Dom Luís I, a igreja da Serra do Pilar e o seu miradouro no lado de lá. Subimos a larga escadaria de madeira e parámos junto ao pilar norte da ponte, encostados ao gradeamento. O Sol forte incidia daquele lado na sua trajectória para o mar.
Ficámos a olhar para a outra margem, perfilada de diversas caves de vinhos, marcas centenárias tão conhecidas. Não me importava de ficar ali a seu lado para o resto da eternidade.
O que passava pela mente de Mafalda era uma incógnita para mim. Porém, foi ela quem retomou o diálogo:
— Não posso ser para ti aquilo que gostarias que fosse. Já tu és aquilo que preciso neste momento, um amigo. Talvez não acredites, mas estes últimos tempos acentuaram a tua importância na minha vida.
— Não tenho porque não acreditar.
Mafalda virou-se para mim.
— Vou confessar-te uma coisa. — disse ela. Voltei-me para si. — Tenho medo que te afastes por não te dar o que queres.
— Isso nunca vai acontecer.
— Não sei... — duvidou insegura.
Ia perguntar-lhe se a podia abraçar, mas arrisquei e abracei-a sem pedir. Ela deixou-se envolver e repousou a cabeça no meu ombro. Ficámos assim uns instantes até as suas mãos tocarem nas minhas ancas para que me afastasse. Abri o abraço e ela olhou para mim com um sorriso terno. O Sol iluminava-lhe o rosto e conseguia ver-lhe os olhos atrás das lentes, revelando neles os seus reais sentimentos. Sem pensar, fiz um movimento ténue da cabeça na sua direcção. Para minha surpresa, ela copiou-o. As nossas bocas aproximaram-se perigosamente. Os nossos lábios estavam a escassos centímetros quando ela murmurou:
— Não...
Aquilo soou-me a um "não" que queria dizer "sim" e apaguei mais alguns centímetros. Ansiava por aquele beijo há nove anos. Quase a beijá-la, ouvi:
— Se me amas, não o faças!
Suspirei e afastei-me tão devagar quanto me aproximara. Sorri-lhe recebendo em troca o seu sorriso meio envergonhado.
— Desculpa...
— Não tens que pedir desculpa, Mafalda. Eu compreendo.
Percorremos o trajecto inverso vagarosamente. Para atenuar qualquer ferida provocada pela rejeição, Mafalda começou a falar do trabalho, evitando que o silêncio servisse para nos martirizarmos em pensamentos. Eu ouvi-a atento, nada arrependido por ter desperdiçado a oportunidade. Pelo menos, eu marcara uma posição, assumindo claramente que a amava.
Novamente no Palácio da Bolsa, Mafalda perguntou:
— Estou de carro. Queres que te deixe no hotel?
— Não. Prefiro caminhar um pouco.
Ela encarou-me triste.
— Ficaste chateado? Por eu...
— Não. — neguei com um sorriso honesto. — E não perguntes se continuamos amigos. Sabes bem que sim. Nunca te vou deixar.
Hesitante, aproximou-se para me beijar o rosto. Recebi o seu beijo afectuoso e dei-lhe outro na sua face.
— Quando voltas?
— Amanhã.
— Ligas quando chegares, Daniel?
— Claro.
— Faz boa viagem. — desejou, afastando-se.
— Mafalda! — chamei, travando o seu andar. — Serei sempre teu amigo. Mas, nunca deixarei de te amar.
Ela sorriu.
— Eu sei, Daniel. Eu também não.
Fiquei a vê-la desaparecer para lá da esquina, pensando no significado do "eu também não".
No regresso a Edimburgo, a vida retomou o ritmo habitual. Muito trabalho, viagens a Londres, sessões no nosso estúdio... Peter e eu tínhamos uma agenda tão preenchida que se tornava raro trabalharmos em conjunto. Deixara de ser o seu discípulo e ganhara asas próprias, autonomia total para ir construindo uma carreira cada vez mais sólida. Numa conversa descontraída num fim de tarde após mais uma sessão de estúdio, Peter dissera-me como se orgulhava de mim, quase como um pai que vê o filho formar-se.
As conversas no Messenger com Mafalda também continuaram, havendo apenas uma ou outra noite em que, por compromissos meus ou dela, não aconteciam. Por vezes, eu tentava aprofundar a questão dos sentimentos, mas ela fugia sempre, respondendo de forma evasiva ou reafirmando a amizade em prol da paixão. Mesmo assim, sabia que existia um grau de intimidade exclusivo nos nossos diálogos. Fosse como fosse, sabia que nunca a conseguiria conquistar à distância, daí que tivesse tomado uma das decisões mais difíceis da minha vida.
Peter chegara a casa à noite, após uma saída para jantar com o namorado dinamarquês. Congratulava-me com o facto da sua relação durar há bastante mais tempo que aquilo que supus inicialmente. Pedi-lhe uns minutos para conversarmos.
— Peter! Decidi regressar a Portugal.
— Mais uma viagem para visitares a tua namorada? — questionou num tom brincalhão.
— Não. Estou a pensar regressar em definitivo.
Peter perdeu o sorriso. Surpreso, encostou-se ao balcão e disse:
— Tenho pena que vás. Mas compreendo a tua decisão. E faço votos para que tenhas tanto sucesso lá como tens tido aqui.
— Lamento estar a quebrar a nossa parceria.
— Não lamentes, Daniel. — contrapôs, retomando o sorriso. — Temos trabalhado de forma independente nos últimos tempos. Orgulho-me muito que tenhas ganho asas e voado sem mim. O meu lamento é apenas a tristeza pelo perda do meu parceiro aqui de casa.
— Sempre foste um bom amigo. Devo-te muito, Peter.
— Não me deves nada, Daniel. O que conseguiste foi graças ao teu talento. Eu limitei-me a ajudar-te a abrir portas.
A minha primeira acção para iniciar o processo de mudança foi vender a minha mota. A seguir, comecei a gerir a minha agenda para ter um período de pausa que me permitisse organizar em Portugal. Em todo esse tempo, não contei nada a Mafalda. Peter aconselhou-me alguns contactos no nosso país onde eu me deveria apresentar e que, perante o meu currículo de trabalhos, me contratariam.
Assim, novo ano, vida nova. E, seis anos após ter aterrado em Edimburgo pela primeira vez, partia de regresso a casa em definitivo.
Apesar de querer focar o meu trabalho a norte para estar perto de Mafalda, viajei para Lisboa e retornei à casa de Almada cuja renda nunca deixara de pagar. Foi uma sensação estranha, voltar a entrar num lugar onde crescera e que não visitava desde que emigrara. Estava tudo igual, tudo como deixara, só eu estava diferente.
Instalei-me provisoriamente, uma vez que não pretendia permanecer por ali mais tempo que o necessário. Pela Internet, comecei a procurar casa no Porto e a contactar as agências que Peter me recomendara. Para além disso, ao segundo dia em terras lusitanas, fiz a minha primeira grande despesa, uma loucura, comprei uma mota nova, uma BMW S1000 RR de 200cv.
A minha ideia era alugar um pequeno apartamento na cidade do Porto. Contudo, acabei por arrendar um em Miramar, Vila Nova de Gaia, perto da praia. Tudo foi muito rápido e não cheguei a permanecer mais de três semanas em Almada. Durante todo esse tempo, nunca contei a Mafalda que me mudara em definitivo para Portugal e para bem perto dela. Em relação ao trabalho, as coisas também evoluíram bem, pois todos os contactos que fiz mostraram receptividade em terem a minha colaboração. Assim, em meados de Fevereiro, eu estava instalado e activo.
O apartamento que Mafalda partilhava com Vânia localizava-se na zona de Coimbrões. Com a justificação de que pretendia enviar-lhe um presente pelo correio, pedi-lhe a morada. Queria fazer-lhe uma surpresa.
A tarde estava fria e o vento soprava com brusquidão, levando e trazendo nuvens que tapavam e destapavam o Sol. Apesar de ainda me estar a habituar à região, começava a ter noção das estradas e dos melhores caminhos. Porém, estudei muito bem o trajecto para não me perder. Saí de casa e montei na mota, segurando um segundo capacete no braço direito. O percurso entre Miramar e Coimbrões foi relativamente fácil, o pior foi encontrar a rua dela. Após alguns enganos, ter de perguntar a duas pessoas e falhar um cruzamento, lá consegui dar com a rua. Parei em frente ao prédio com o número da sua morada, retirei o capacete da cabeça e peguei no telemóvel, marcando o número dela.
— Olá, Daniel! — atendeu com uma voz apreensiva. — Está tudo bem?
Não era comum telefonar-lhe, raramente o fizera depois do seu regresso de Moçambique.
— Olá Mafalda! Está tudo bem. — descansei-a. — Estás em casa?
— Estou.
— Podes descer? Estou aqui em baixo.
— Estás a brincar? — interrogou, julgando-me em Edimburgo.
— A sério. Se não acreditas, vai à janela e olha para rua. Vê lá se não está lá um tipo vestido de preto em cima de uma mota cinzenta com dois capacetes.
Ouvi o som do seu movimento a andar pela casa. A seguir, proferiu incrédula:
— Só podes estar a gozar.
Desligou a chamada e fez-me esperar alguns minutos até aparecer pela porta do prédio. Saiu com um semblante fechado, algo aborrecida. Ao ver-me, sorriu feliz. Caminhou até mim, segurando as abas do casaco comprido e, antes de me alcançar, perguntou:
— Que fazes aqui?
— Vim visitar-te.
Trocámos dois beijos.
— Espero que desta vez não tenhas vindo de propósito a Portugal para me visitar.
— Não, não vim. — respondi. — Já cá estou desde o início do ano.
Mafalda franziu o rosto, confusa.
— Pensei que estivesses em Edimburgo. Ainda no outro dia me disseste que estava a chover lá.
— Pois... Tenho andado a enganar-te. — confessei com um sorriso travesso. — Vim em definitivo para cá. Decidi mudar de ares, estava farto do frio.
Ela não se deixou enganar facilmente.
— Voltaste a viver em Almada?
— Não. Aluguei casa no norte, decidi continuar a ser fotógrafo por cá.
Com "norte", Mafalda calculou todas as hipóteses do Douro para cima.
— Então agora vives onde?
— Em Miramar.
Mafalda ficou boquiaberta.
— Isso é já ali. — constatou estupefacta. — Espero que as tuas decisões não tenham sido influenciadas por mim.
Abanei a cabeça, fingindo que tal ideia era um absurdo.
— Vim convidar-te para conheceres a minha casa. — expliquei. Apontei-lhe o segundo capacete. — Toma.
— Não sei... — recusou hesitante. — Nunca gostei muito de motas.
— Não te preocupes. Eu sou cuidadoso na estrada.
Antes de segurar o capacete, Mafalda cravou o olhar em mim e num tom inquisidor, alertou:
— Espero que não estejas a preparar alguma coisa!
— És a minha melhor amiga, Mafalda. Gostava que fosses a primeira pessoa a conhecer a minha casa nova.
Ela colocou o capacete e sentou-se atrás de mim. Os seus braços envolveram a minha cintura para se segurar, apertando-se mais quando nos coloquei em movimento.
No regresso a Miramar não me enganei no caminho, evitando fazer má figura na frente dela. Estacionei a mota no passeio defronte do meu prédio e ajudei-a a saltar da mota. Tirámos os capacetes, ficando cada um com o seu.
— Viva o luxo! — exclamou ela. — Viver na praia não é para todos.
— Foi o que consegui arranjar. — desvalorizei, falando como se tivesse alugado uma barraca num pântano.
O apartamento ficava no último piso de um prédio de três. Não tinha elevador. No cimo das escadas, abri a porta e convidei-a a entrar.
Mafalda avançou com um olhar analisador. Viu o átrio pequeno e escolheu para ver primeiro a sala grande com lareira e duas portas envidraçadas de acesso ao terraço. O chão era de madeira e as paredes num tom amarelo sumido. A mobília era minimalista, só o necessário para alguém ali viver, um sofá, uma mesa, quatro cadeiras e um móvel com televisão, tudo pertença do senhorio. Na porta oposta à da sala, o acesso à cozinha, um espaço pequeno com balcões em forma de L, cada um com uma janela para os prédios circundantes, e os electrodomésticos encastrados. As paredes e o chão eram forrados a mosaicos claros para contrastar com o tom escuro dos móveis. A terceira porta do átrio dava para um corredor com duas portas de cada lado. À esquerda, um segundo acesso à sala, seguindo-se a porta de um quarto. No lado direito, a porta da casa de banho geral e a porta do segundo quarto. Acendi a luz da casa de banho para que ela visse, uma vez que não tinha janela. Era um espaço pequeno com um lavatório, sanita e polibã, toda em tons de azul. O quarto ao lado da sala não tinha casa de banho e estava sem mobília. O quarto principal, onde eu dormia, tinha uma cama de casal, um roupeiro, casa de banho privada e uma janela com vista para a rua.
Mafalda não perdeu muito tempo com os quartos, regressando rapidamente à sala. Abriu uma das grandes janelas e saiu para o terraço. Este espaço exterior não era muito extenso, parecia mais uma varanda grande que um terraço. Porém, continha a melhor virtude da casa, a vista de mar.
— É uma bela casa. — elogiou, olhando para a praia ao fundo.
— Não era o que tinha em mente, mas gostei quando a vi.
Ela sorriu e olhou para mim.
— Condiz contigo. Transmite paz.
— Eu transmito paz?
— Sim. — assentiu, retomando a observação do horizonte. — Pelo menos, a mim.
Coloquei-me a seu lado, partilhando a vista. O mar tinha uma tonalidade escura acentuada pelo céu nublado. O vento agitava os caracóis de Mafalda.
— Porque vieste para aqui? — interrogou de súbito. — Porque decidiste regressar a Portugal?
Não lhe menti.
— Quis ficar mais perto de ti. — Ela olhou para mim sem qualquer surpresa pela honestidade das minhas palavras. — Gosto de estar contigo. Independentemente dos sentimentos que tenhamos ou não um pelo outro, quero estar contigo mais tempo. Não ser uma amizade de telefonemas ou mensagens. Gostava que fizéssemos parte da vida um do outro no mundo real.
Mafalda sorriu, procurando domesticar o cabelo nervoso com o vento.
— Eu não mereço um amigo como tu. — afirmou com ternura no olhar. — E sinto que te estarei sempre a defraudar.
— Não estás, Mafalda. Todas as decisões que tomei foram conscientes da tua vontade e sentimentos.
— Não posso dizer que não esteja feliz por estares aqui. Mas...
— Mas?
— Acho demasiado para alguém que nunca será mais que uma amiga.
— Não te preocupes. Foi uma decisão minha. — insisti. — Além disso, tenho a vantagem de poder exercer a minha profissão em qualquer lugar.
— Já conseguiste trabalho cá?
Anuí, adicionando:
— E continuo a ter a colaboração com o projecto de Londres. Pelo menos, durante mais uns meses, vou ter de viajar para lá de quinze em quinze dias.
O frio intensificou-se e uma rajada de vento convenceu-nos a regressar à sala. Mafalda sentou-se no sofá. Eu puxei uma cadeira e apoiei-me nas costas.
— Queres beber alguma coisa? Tenho máquina de café...
— Não, obrigado. — Mafalda olhou para o telemóvel. — Preciso regressar.
Não tentei convencê-la a ficar mais tempo. O meu objectivo estava cumprido, contar-lhe que voltara para Portugal e levá-la a conhecer a minha casa.
A noite começava a chegar, o que complicou o meu reconhecimento do caminho para Coimbrões. Percebendo as minhas dúvidas, Mafalda foi dando indicações. Parei a mota no mesmo lugar. Ela desmontou, retirando o capacete ao mesmo tempo que eu, e entregando-mo.
— Não. Fica com ele. — pedi, travando o seu movimento. — Serve para as próximas vezes que te levar a passear.
— É melhor não. Podes precisar dele.
— Não preciso. — tornei a recusar.
— E se quiseres transportar alguém na mota?
— Isto não é um táxi. — argumentei. — Eu ando sempre sozinho de mota. Não pretendo partilhar o assento com mais ninguém, senão tu.
Mafalda ofereceu-me um sorriso terno e envolveu o capacete nos braços.
— Pronto, está bem. Eu fico com ele.
Gerou-se um impasse. Eu sentado na mota, ela em pé a meu lado. Acho que nenhum de nós se queria despedir.
— Vais achar estúpido, isto que te vou dizer. — comecei perante o seu semblante atento. — Nestes quase doze anos que nos conhecemos, estivemos juntos umas quatro vezes, certo? — Ela anuiu. — Mas, sempre que estou contigo, sinto-me como se nunca tivesse estado um dia que fosse longe de ti.
— Eu percebo-te. — retorquiu, piscando o olho.
— Quando é que posso voltar a ver-te?
— Não te quero viciado, Daniel. — alertou com falsa seriedade. — Encontrarmo-nos muitas vezes pode causar habituação.
— Estou ciente disso, senhora doutora.
Ela sorriu, abanando a cabeça.
— Ainda nem acredito que estejas aqui, que tenhas voltado em definitivo e a viver tão perto. És completamente maluco.
— Por ti. — completei.
— Pára com isso, Daniel. — pediu.
— É verdade, eu sou malu...
Mafalda calou-me, tapando a minha boca com a sua mão. Depois, beijou as costas da mão.
Afastou-se com sedução.
— Não fiques com ideias, Daniel. — avisou como um preâmbulo ao que diria a seguir. — Não te vou mentir, estou muito feliz que estejas aqui. — Soprou um beijo. — Vamos falando.
Nos dias que se seguiram, as nossas vidas estiveram tão ocupadas que mal conseguimos trocar algumas mensagens. Entretanto, eu tive de viajar até Londres e permanecer os habituais três dias. Ela iniciou a colaboração com uma associação de apoio médico em bairros carenciados do Porto, o que ainda ocupou mais o seu preenchido tempo.
No entanto, sempre que possível, encontrávamo-nos e fazíamos algo juntos, como jantar fora, ir ao cinema, passear pelo NorteShopping para ver lojas, ir até à Foz, caminhar por Gaia... Nunca estivemos mais que cinco dias sem nos vermos. E, entre eles, trocávamos mensagens por telemóvel. O que quase se extinguiu foram as conversas online.
A Primavera aproximava-se do seu fim e o Verão estava a chegar. Recordo-me que era Sábado e nem eu nem Mafalda tínhamos vontade de ir passear. Por isso, ela sugeriu passar por minha casa e passarmos a tarde juntos a ver um filme.
Mafalda chegou logo depois do almoço. Tocou à campainha e pediu que descesse, pois gostaria de ir caminhar um pouco na praia. Eu desci de imediato. Ela aguardava-me junto do seu carro, um Renault Clio escuro. Tinha o cabelo ruivo cada vez mais comprido com os caracóis a esvoaçar livremente. Vestia uma camisola de lã com gola alta e mangas compridas, a fazer conjunto com uma saia axadrezada curta e botas de cano alto até aos joelhos. O sorriso cativante despontou com a minha aproximação. Trocámos dois beijos.
Caminhámos um pouco pelo bairro até alcançarmos a Alameda do Senhor da Pedra. Fomos a conversar sobre coisas sem importância, uma notícia que surgira no telejornal, um acontecimento no hospital, o último trabalho de fotografia que eu havia feito, enfim... Diálogos que se perderam nas teias da memória. Prosseguimos pelo passadiço de madeira que entrava pelo areal. Avançámos até ao limite das tábuas, onde uma rampa dava acesso à areia. Permanecemos parados a observar o mar, silenciados pelo som das ondas que fustigavam a costa.
— Isto é muito bonito. — constatou ela. — Tiveste bom gosto em vir viver para aqui.
— Foi sorte. Não conhecia nada nestas bandas.
— Eu também nunca tinha vindo para estes lados. — partilhou, passando a mão pelos caracóis rebeldes. — Entre a Figueira e o Porto, só conhecia as praias da zona de Aveiro, a Barra, Costa Nova...
— Não conheço.
— Um dia destes, levo-te lá. — propôs sem perspectiva que isso viesse a acontecer.
Voltámos para trás, regressando ao passeio empedrado que acompanhava a estrada. O céu ficou mais enevoado e o vento acentuou a sensação de frio. Optámos por contornar o quarteirão e seguir calmamente para minha casa.
Os saltos das botas dela ecoaram na escada, durante a subida. Uma vez protegida do vento, preocupou-se em pentear o cabelo com os dedos, ajeitando os caracóis. Entrámos no apartamento e Mafalda passou para a sala, indo sentar-se no sofá.
— Queres beber alguma coisa? — ofereci, sem evitar olhar para as suas pernas cruzadas.
— Não. — recusou, colocando a mão no lugar a seu lado. — Senta aqui, ao pé de mim.
Antes de o fazer, fui buscar o comando para acender a televisão.
— Não ligues! — pediu. — Podemos conversar um bocado?
— Sim, claro. — concordei, largando o objecto onde o encontrara.
Sentei-me a seu lado. O sofá não era muito comprido, pelo que ficámos lado a lado com os braços a tocarem-se. Mafalda manteve o olhar em baixo e as suas mãos brincavam com a bainha da saia, atraindo a minha atenção para as suas coxas.
— Obrigado por estares aqui. — disse por fim.
Num tom brincalhão, retorqui:
— É a minha casa, é normal que aqui esteja.
Mafalda virou o rosto para mim numa expressão séria.
— Sabes ao que me refiro. Teres regressado a Portugal e teres vindo para perto de mim. — Esboçou um sorriso. — Têm sido muito bons os momentos que temos passado juntos.
— Sim. — concordei, colocando o braço sobre as costas do sofá, atrás dela, para ficarmos mais à vontade. Ela aproveitou para deitar a cabeça nele. — Gosto muito da tua companhia.
— Eu sei. — disse num tom meloso. — Sei como gostas de mim.
— Cada vez mais. — acentuei.
Mafalda colocou o dedo indicador nos meus lábios, proferindo um "xiu" carinhoso. A seguir, movimentou-se no sofá, chegando-se mais para mim.
— Podes não acreditar, Daniel, mas adorava poder corresponder aos teus desejos.
Sem pensar, acariciei-lhe o rosto com a mão livre. Ela não protestou e permitiu-se saborear o toque.
— Eu acredito. Tu é que não queres.
O seu rosto alterou-se para um esgar de lamento.
— Sabes bem que nunca te sentirias completo comigo.
— Tu já me fazes sentir tão bem e tão feliz só com a tua presença, Mafalda. Tudo o resto seria sempre melhor.
Ela sorriu com ternura no olhar. Os seus olhos azuis penetrantes encaravam-me com carinho. Murmurou:
— Não posso ter filhos.
— Eu sei. Não importa.
O franzir do seu rosto revelou a sua falta de crença.
— Dizes isso agora, mas mais tarde...
— Mais tarde, voltarei a dizer-te que não importa. Só tu importas. Só tu és importante para mim.
Houve um momento suspenso, como se alguém tivesse carregado no botão de "pausa" naquele filme. Percebi que a minha mão ainda estava no seu rosto, o polegar na face, o indicador abaixo da orelha e os restantes dedos repousados no pescoço. Para minha surpresa, o seu olhar baixou para a minha boca, vi os seus lábios afastarem-se. Seria um sinal? Estaria a minha intuição correcta? Deveria seguir o que o meu instinto me gritava? Só havia uma maneira de saber.
Baixei a cabeça até ela. O meu nariz passou junto do seu, qual cruzamento com a torre de controlo a avisar que a boca iria aterrar mais abaixo. Os meus lábios tocaram nos dela. Senti um arrepio de excitação, perante a aceitação do beijo. A sua respiração ofegante aumentou quando a sua língua procurou a minha para dançar ao sabor da paixão. Mafalda tinha um hálito fresco, um aroma a frutos silvestres. A mão que estivera no seu rosto desceu pelo seu braço até à saia e parou nas coxas. Ao sentir o meu toque, ela descruzou as pernas, afastando-as ligeiramente. Sem interromper o beijo sôfrego, percebi o convite e acariciei o interior, subindo devagar até ela voltar a fechá-las, aprisionando a minha mão. Um dos seus braços estava preso entre nós, mas o outro aterrou no meu peito e a mão segurava-me a cabeça, agarrando-me o cabelo. Com o braço onde ela deitara a cabeça, puxei-a mais para mim e dobrei o cotovelo, tendo a mão caído para o seu peito, procurando um dos seios. Mafalda mordiscou-me o lábio quando lhe apertei o seio esquerdo sobre o tecido da camisola. Afastou novamente as pernas, libertando a mão. Não sei se a intenção era que continuasse a subir pelas suas coxas, sei que no meio da excitação, a minha mão prosseguiu até os dedos tocarem num tecido frágil rendado.
— Pára! — sussurrou, interrompendo o beijo. Largou o meu cabelo e empurrou-me o braço para longe. — Espera um pouco. — Afastou-se no sofá, meio atordoada. Encarou-me com um sorriso cúmplice. — Dá-me cinco minutos. Depois, vem ter comigo ao teu quarto.
Fiquei aparvalhado a vê-la levantar-se e a desaparecer na porta da sala que dava para o corredor. Tudo aquilo me parecia surreal, nem queria acreditar no que estava a acontecer. Olhei para as horas no telemóvel e comecei a contar os cinco minutos, controlando a excitação e a felicidade imensa que me percorria o corpo. Foi difícil, mas cumpri os trezentos segundos que ela pedira.
Levantei-me do sofá, envergonhado por as calças realçarem o volume que ela provocara. Evitei imaginar o que me esperava no quarto, preferindo a surpresa. Avancei pelo corredor e segurei o puxador da porta, abrindo-a para encontrar Mafalda sentada na cama. Ela estava encostada à cabeceira, enfiada nos lençóis até à cintura. Vi a camisola e a saia dobradas num canto e as botas arrumadas ao lado. Ela observava-me descomplexadamente, usando somente o sutiã.
— Podes despir-te para mim? — sugeriu com a voz hesitante.
— Queres um strip-tease?
— Não. — recusou. — Só quero apreciar-te.
Dei alguns passos até à cama.
— Porque não me vens despir? Assim aprecias mais de perto.
Ela concordou com a ideia, atirando o lençol para trás. Pude contemplar toda a beleza do seu corpo esguio, uma vez que para além do sutiã só vestia umas cuecas minúsculas com rendas da cor da outra peça. Saltou do colchão e parou na minha frente. Sem se importar como o fazia, puxou-me a camisola pela cabeça ao mesmo tempo que eu empurrava os calcanhares das sapatilhas com os pés. Desapertou-me as calças e puxou-as para baixo. Atirou-me um olhar de análise, agradada com o que via.
— Podes fazer o resto. — indicou, voltando para a cama.
Despi as calças e mantive os boxers. Contornei a cama e entrei no lado contrário, sentando-me a seu lado.
Mafalda começou a rir. Depois daquilo tudo, parecia surgir um impasse. Eu também ri, desanuviando a hesitação. Depois, ficou séria e confessou:
— Não o faço desde o divórcio.
— Também não o faço há algum tempo.
— Menos que eu, certamente. — ripostou.
— Não sei. — duvidei, lembrando-me que a última vez que me envolvera sexualmente fora com Tânia e isso acontecera antes do divórcio de Mafalda. — Talvez tenha sido há mais tempo.
— Queres que acredite nisso?
— É a verdade.
Mafalda encolheu os ombros.
De um momento para o outro, a cena excitante de um casal apaixonado e louco de tesão deu lugar a um homem e uma mulher sentados numa cama como se fossem dormir. Voltava o impasse.
Tive vontade de perguntar "então, como é, fazemos isto ou não?". Porém, ela antecipou-se:
— Quero ir com calma. — Que raio quereria isso dizer? Ela olhou-me com ternura. — Podemos namorar um pouco? Não sei se me sinto preparada para o fazermos.
O facto de ela dizer "namorar um pouco" atribuía um novo conceito ao nosso relacionamento.
— Ok. Tudo bem. — concordei paciente.
Ela sorriu, satisfeita.
— Posso sentar-me no teu colo, Daniel?
— Sim, claro. — aceitei, afastando o lençol.
Mafalda levantou-se e rodou sobre as minhas pernas, sentando-se nas minhas coxas com uma perna de cada lado. A seguir, acariciou-me o rosto e beijou-me os lábios. Trocámos beijos apaixonados. As minhas mãos massajavam-lhe os flancos e as coxas, enquanto ela apoiava as suas no meu peito.
Interrompi o beijo.
— Podes tirar o sutiã? — pedi.
Ela pareceu constrangida. Porém, levou os braços atrás das costas e desapertou o fecho. As alças caíram e as bolsas de pano perderam a resistência. Mafalda tinha dois seios firmes, muito redondos de volume perfeito com mamilos pontiagudos, acicatados pela excitação.
Retornámos aos beijos. Os seus braços envolveram o meu pescoço e as minhas mãos acomodaram-se no seu peito. As nossas cinturas estavam cada vez mais próximas até as suas cuecas tocarem nos meus boxers. Ela olhou para baixo, contemplando o volume da excitação sob o tecido.
— Agora a sério, Daniel. — insistiu num tom melosamente arrastado. — Há quanto tempo?
Fiz contas rápidas de cabeça, indiferente a que pudesse errar.
— Talvez mais de dois anos. — confessei.
Mafalda arregalou os olhos.
— Não acredito.
Sorri vencido.
— Como queiras...
As suas mãos desceram pelo meu tronco até ao elástico dos boxers.
— Posso?
Anuí, desejoso que ela o fizesse. Vi-a puxar o elástico e introduzir uma mão dentro dos boxers, trazendo para o exterior toda a minha excitação. Começou a massajar-me devagar, retomando os beijos. Uma das minhas mãos permaneceu no seu seio, mas a outra desceu até às coxas. Sem ver, procurei o único tecido que ela ainda usava. Senti a humidade entre as suas pernas. Com o dedo indicador afastei as rendas e com o médio toquei os seus pontos mais íntimos, obtendo em resposta um gemido agradado.
Por entre beijos, provocámos uma explosão de prazer ao outro.
Rimos como dois malucos, extasiados. Limpei carinhosamente a sua barriga, alvejada pelo auge. Mafalda abraçou-me com força e quis ficar assim algum tempo, somente a saborear o momento, repousando e recuperando a respiração. Sentia-lhe o coração a bater no mesmo compasso que o meu.
Sem anunciar, saiu do meu colo e colocou-se de pé no soalho.
— Dá-me um minuto. — pediu, dirigindo-se à casa de banho.
Ouvi a água a correr. Voltou sem sinais do que lhe deixara na barriga e sem as cuecas, revelando-me que não tinha um único pêlo na zona escondida até então.
Eu levantei-me da cama, dizendo:
— Agora é a minha vez de pedir um minuto.
Ela concedeu com um gesto teatral de quem cede passagem.
Fui lavar-me. Não sabia o que viria a seguir, mas queria estar impecável. Larguei os boxers no cesto de roupa suja. Regressei ao quarto. Mafalda aguardava estendida na cama completamente nua. Deitei-me seu lado.
Ficámos a olhar para o tecto em silêncio. Não eram precisas palavras para mostrarmos como estávamos felizes, segurando a mão do outro sobre o colchão. Ao fim de algum tempo, ela virou-se para mim e retomámos os beijos apaixonados, excitados... Ela sentiu a minha rigidez embater nas suas coxas. Isso fê-la terminar o beijo. Voltou-se na cama, ficando de barriga para cima, mantendo os olhos em mim.
— Tens preservativos?
— Não. — respondi, lamentando o facto.
— Eu também não trouxe. — retorquiu como quem diz que se esqueceu de comprar pão. Olhou-me com cumplicidade. — Doenças não temos. E infelizmente eu não corro o risco de ficar grávida. — Evitou pensar nesse aspecto. — Vem...
Rodei na cama e coloquei-me sobre ela. As suas pernas afastaram-se. Deslizei entre elas com a excitação a escorregar pela cintura de Mafalda. Olhámos nos olhos um do outro. Nunca senti amor maior que aquele que partilhámos naquele instante.
Como qualquer casal que se ama pela primeira vez, nem tudo se acoplou na perfeição. O meu desejo procurou o seu, mas parecia perdido até ser encontrado pelas mãos gentis de Mafalda que me conduziu devagar para dentro de si.
Começámos devagar, movimentos suaves, como se nos quiséssemos dar a conhecer ao outro sem pressas. Temperávamos cada deslocação com beijos húmidos, pausados, saboreando cada milímetro. O ritmo foi aumentando, Mafalda afastou as pernas o máximo que conseguiu, convidando-me a investir cada vez com mais profundidade. Os beijos transformaram-se em invasões de língua, guerras de lábios, choques de bocas sedentas... Ouvi a minha respiração ofegante pelo meio dos gemidos de prazer dela. As suas mãos nas minhas nádegas instigavam-me a uma penetração cada vez mais pujante. Sem pudor, vociferou palavrões ao meu ouvido, repetiu "fode-me" mil vezes, desafiou-me a arrebentá-la de prazer. Gritou com o orgasmo brutal ao mesmo tempo que toda a minha paixão a inundou, aquecendo-lhe o ventre e espalhando-se dentro de si.
Fantasiei algumas vezes como seria fazer amor com Mafalda. Contudo, nunca a imaginara assim e estava completamente fascinado pelo seu comportamento. Completamente exaustos, ficámos abraçados na cama, tendo eu a preocupação de não pesar sobre ela. Olhámos nos olhos do outro.
— Eu amo-te, Mafalda!
— Eu também te amo, Daniel!
Dei-lhe mais um beijo e afastei-me para o lado.
Mafalda levantou-se da cama e perguntou:
— Importaste que tome um duche.
— Claro que não. Estás à vontade.
Ela caminhou meio trôpega para a casa de banho. Ouvi o chiar da porta do polibã e o abrir do chuveiro. Permaneci deitado até o som da água se silenciar.
— Tens toalhas no armário. — gritei para lá.
— Já vi. — respondeu.
Quando regressou ao quarto, já trazia as cuecas vestidas. Parou perto da cama e devolveu o sutiã ao seu lugar.
— Não te vais embora, pois não? — questionei, temendo a resposta.
— Queres que fique mais um pouco?
Levantei-me do colchão, dizendo:
— Claro.
Ela sorriu.
— Posso ir vasculhar a tua cozinha e preparar algo para comermos?
— Podes. — concordei. — Mas não quero que vás estar com trabalho a cozinhar. Posso encomendar alguma coisa.
— Não te preocupes, eu trato disso.
Fui tomar um duche, beliscando-me diversas vezes para ter a certeza que não estava a viver um sonho. De volta ao quarto, vi que as botas de Mafalda continuavam no mesmo sítio. Vesti-me e fui procurá-la.
Mafalda estava na cozinha, novamente vestida, descalça e a cozinhar algo que cheirava muito bem.
— Podes pôr a mesa? — sugeriu ao ver-me.
Caminhei até ela, abracei-a por trás e espreitei para o tacho. Beijei-lhe a nuca. Nunca amara tanto ninguém como a ela.
Jantámos de olhar embasbacado no outro, apaixonados e com mais fome de beijos que propriamente do que tínhamos no prato.
— É mesmo verdade o que disseste? — questionou de súbito, deixando-me confuso. — Não teres tido relações sexuais com outra mulher nos últimos dois anos.
— Sim, é verdade. — O seu rosto era descrente. — És a quarta mulher com quem fiz amor. — O seu semblante pareceu fazer contas. — Será que podes acreditar em mim?
— Não tenho razão para desconfiar. Sempre foste muito honesto. — concordou, mantendo o olhar curioso. — As outras três foram a Francisca, — Anuí. — Calculo que outra tenha sido a amiga que levaste ao meu casamento. — Tornei a anuir. — E a terceira?
— Prefiro não falar sobre isso. — pedi.
Mafalda não insistiu, confidenciando:
— Tu és o segundo homem com quem faço amor. — Sorriu. — O primeiro, não preciso de dizer que foi o meu ex-marido.
Bebemos um pouco de vinho.
— Nunca te envolveste mesmo com nenhuma modelo? — tornou a questionar. Abanei a cabeça, apagando a vez que estivera com Tânia em Paris. — Uma sessão que tenha sido mais estimulante... — Continuei a negar. Mafalda fez um gesto de desinteresse. — Desculpa, Daniel, não tenho o direito de te estar a interrogar.
— Não faz mal. Só quero que acredites em mim.
— Tenho os meus defeitos, Daniel. — disse ela, algo que me custava a acreditar. — Um deles é ser ciumenta. — Fez uma expressão de desconforto. — É o teu trabalho, terei de aprender a lidar com isso.
— Não tens razão para recear o que quer que seja. Se nunca me envolvi com ninguém antes, dessa forma, não era agora que estou com a mulher que amo que o iria fazer.
— Eu acredito em ti, Daniel.
Terminámos o jantar. Mafalda olhou para o telemóvel.
— É tarde. Tenho de ir andando.
— Fica cá esta noite. — sugeri, quase como um pedido.
— Não achas que estamos a ir muito depressa?
— Não. — neguei com ar natural. — Estou a convidar-te a dormir comigo esta noite.
Mafalda concordou, referindo que ia apenas telefonar à amiga para que não ficasse preocupada por ela não ir dormir a casa.
Passámos o serão no sofá. Liguei a televisão, mas nenhum de nós prestou atenção ao que passava no ecrã. Ela sentou-se no meu colo e nem demos pelo tempo passar, enquanto namorávamos apaixonados.
Pouco faltava para a meia-noite, quando fomos para o quarto. Entrámos de mão dada e cada um foi para o seu lado da cama. Ficámos de pé, encarando-nos com o colchão pelo meio. Ela riu feliz, constatando:
— Parece que somos casados, cada um a preparar-se para se deitar no seu lado da cama.
Correspondi ao seu sorriso. Despi as calças, vendo-a a tirar a camisola. Tirei a minha, ao mesmo tempo que ela retirava a saia.
— Podes arranjar-me uma t-shirt para dormir? — pediu ao desfazer-se do sutiã. — Sinto-me mais confortável.
Apontei-lhe uma gaveta e disse-lhe que estivesse à vontade para escolher.
— Eu costumo dormir todo nu. — avisei. — Importas-te?
Mafalda abanou a cabeça. Despi os boxers, enquanto ela cobria o tronco com a t-shirt que escolhera, uma comprida que quase lhe servia de vestido. Enfiei-me nos lençóis. Ela puxou a bainha para cima e levou as mãos à cintura, tirando as cuecas. Juntou-se a mim no conforto da cama.
Ficámos a olhar um para o outro com os rostos iluminados pela luz da cabeceira. A sua expressão era feliz, terna e apaixonada.
— Estás feliz, Daniel?
— Estou. Muito! E tu?
— Também.
Virou-se de costas para mim e encostou-se ao meu corpo, convidando-me a abraçá-la. Apaguei a luz.
— Dorme bem, querido!
— Dorme bem, meu amor!
Ela apertou o meu braço na sua cintura em sinal de afecto.
Fiquei a olhar para o escuro, respirando o odor perfumado do seu cabelo, ouvindo a sua respiração tranquila, feliz por a ter ali e sentindo-me o homem mais feliz do Universo. Queria dormir, mas não me conseguia abstrair das imagens da paixão que partilhara com ela. Fui atraiçoado por um espasmo de excitação que embateu na sua nádega. Afastei-me ligeiramente para não perturbar o seu sono, não querendo incomodá-la. Mafalda respirava suavemente adormecida, eu contava carneiros sem sucesso no chamamento do sono e sem evitar novo espasmo. Tornei a afastar-me. Porém, a minha bela adormecida moveu-se mais para mim, como se receasse que fugisse. Respirei fundo e encostei a excitação à perna dela, de forma a não a perturbar e controlando-me. Só que estava a ser difícil...
Por entre o sono, Mafalda voltou a mover-se. A sua mão acariciou-me a coxa peluda. Lamentei que a pudesse ter acordado. Novo movimento, chegando-se para cima e encostando o rabo na minha barriga. Tentei retirar o braço que lhe envolvia a cintura, mas ela agarrara a minha mão sem sinal de pretender soltá-la. Voltei a respirar fundo, tentei pensar nas coisas mais estapafúrdias que me anulassem a excitação... sem sucesso. A mão na minha coxa desceu para o foco do meu desconforto, segurando-o e acariciando-o. Toda ela parecia dormir um sono tranquilo, excepto a mão que no escuro me conduziu para o foco do meu desejo. A entrada húmida revelou que não era só eu quem ansiava por aquilo. Soltou um gemido, sussurrando:
— Oh sim...
Foi rápido, o suficiente para apaziguar o fogo e adormecermos.
Contudo, a noite não foi tranquila, foi loucamente intermitente. Acordámos três vezes, arrebatados pelo desejo, e três vezes fizemos amor.
Quando acordei de manhã... Bom, a manhã já tinha acabado e o Sol já alcançara o ponto mais alto no céu. Olhei para o lado e vi Mafalda a dormir profundamente com um sorriso nos lábios. O quarto estava envolvido numa claridade ténue, onde os cortinados travavam a entrada da luz forte da rua. Puxei o lençol para baixo, destapando-nos e sentindo o atenuar do calor. Ela permaneceu imóvel, deitada de barriga para cima, com a t-shirt subida acima do umbigo, e as pernas estendidas em direcções opostas. Desde que a vira completamente nua pela primeira vez que tinha desejo de fazer algo. Deslizei pela cama, ficando com o rosto ao nível da sua barriga. Atirei o lençol para o fundo da cama, destapando-a por completo. Ela nem notou, adormecida. Devagar, passei por cima do seu corpo sem lhe tocar e desci até ficar entre as suas pernas. Beijei-lhe a barriga com ternura, ela moveu-se sem acordar. Beijei o umbigo, ela voltou a mover-se. Prossegui os beijos, descendo aos pouco até ao descampado entre as suas pernas. Mafalda soltou um gemido, depois outro e outro. Percebi que acordara, mas mantinha uma expressão facial de quem dormia profundamente. Mais um beijo, toquei-a com a língua. Ela dobrou os joelhos e afastou as pernas o mais que conseguiu. Saboreando-a, as minhas mãos subiram por dentro da t-shirt, estacionando nos dois volumes que subiam e desciam a um ritmo cada vez maior. Os gemidos ténues deram lugar a sons guturais de prazer e gritos de êxtase.
Após o auge, subi pelo seu corpo e beijei-lhe os lábios, dizendo:
— Bom dia, amor!
— Bom dia... — retribuiu ofegante com o olhar deliciado. Antes que a voltasse a beijar, empurrou-me para o lado, fazendo-me cair no colchão. Saltou como se a cama tivesse uma super mola e despiu a t-shirt como se o tecido queimasse. — Agora é a minha vez.
Passámos o dia na cama. Conversávamos, namorávamos, fazíamos amor, repousávamos a olhar para os olhos do outro, conversávamos mais um pouco, namorávamos, fazíamos amor... Foram horas a conhecer-nos, a explorar o corpo do outro, testando posições, partilhando sem tabus o que gostávamos mais e menos. Nem nos lembrámos de comer.
Ao fim da tarde, Mafalda teve a iniciativa de sair da cama. Sem dar hipóteses a ser travada, caminhou sedutora até à casa de banho para tomar um duche. Eu substituí-a no polibã quando terminou. E ao regressar ao quarto, Mafalda já estava vestida e calçava as botas, sentada ao fundo da cama.
— Já vais?
— Tenho de ir, Daniel.
— Não queres ficar esta noite?
Mafalda sorriu.
— Preciso descansar. Ambos sabemos o que aconteceria se ficasse.
Enquanto me vestia, ela saiu do quarto. Nesse momento, passou-me uma ideia pela mente. Ansioso, fui encontrá-la na sala a procurar as chaves do carro na mala.
— Porque não vens viver comigo? — convidei quase sem respirar.
Sem esconder a surpresa, Mafalda virou-se para mim.
— Agora sim, estamos mesmo a ir depressa demais.
Mafalda recusou a ideia, queria ir com calma, não apressar as coisas. É certo que já falávamos havia doze anos, conhecíamo-nos pessoalmente há dez, mas só namorávamos desde a véspera. Viver juntos era um passo precipitado para ela. Respeitei a sua decisão.
No entanto, as visitas de Mafalda a minha casa tornaram-se frequentes e sempre que não trabalhava no dia seguinte, passava a noite comigo. Mesmo que não quisesse oficializar uma vida em comum, dei-lhe uma chave para que ela viesse sempre que quisesse sem ter que se anunciar. No Outono, Mafalda já dormia quase todas as noites comigo e a casa ganhava alguns espaços com o seu toque pessoal.
Entretanto, as minhas viagens a Londres chegaram ao fim, das quais já nem desfrutava por sentir que eram três dias longe dela.
Profissionalmente, continuava com muito trabalho. Mafalda encarava bem as minhas sessões fotográficas para agências, controlando o ciúme ao ver, por exemplo, um catálogo de fatos de banho cujo o autor das fotos era o seu namorado.
Certa tarde, em casa, Mafalda estava a usar o computador, quando eu entrei e vi no ecrã a sua página pessoal na rede social Facebook. Já ouvira falar das redes sociais e do Facebook, mas ao contrário do que teria acontecido anos antes, nunca me interessei muito por isso. Porém, ao vê-la consultar o seu perfil, pedi-lhe que me explicasse como funcionava.
— Como é que alguém como tu não tem Facebook? — questionou como se fosse um sacrilégio.
— Nunca calhou.
— Podias criar um perfil para ti. — sugeriu.
Como não mostrei muito interesse, Mafalda decidiu fazer-me a apresentação da rede social, mostrando os variados aspectos do seu perfil, o que poderia ter, como adicionar amigos, informações, colocar fotos... Pronto, para não a desiludir, acedi a que ela criasse o meu perfil no Facebook.
Sentei-me a seu lado, respondendo às informações que me pedia. Registou o meu endereço de email para criar a conta, preencheu os meus dados sem grandes pormenores, colocando primeiro e último nome, a data de nascimento, localização Vila Nova de Gaia sem grande detalhe... Para escolher a foto, como estava no meu computador, dei-lhe liberdade de pesquisar a que quisesse. Escolheu uma que ela me tirara a ver o mar. Seguiram-se inúmeros campos que ficaram em branco. Ao chegar ao "estado civil" disse:
— Eu tinha no meu Divorciada. — Alterou a janela do navegador, revelando o seu perfil. — Agora tenho "Numa Relação". Se puseres também "numa relação" e me identificares, ficará aqui que estou "numa relação" contigo.
Percebi que havia ali um desejo disfarçado de oficializar online a nossa relação. Não me importei. Por mim, queria que o mundo inteiro soubesse que namorávamos. Dei o meu aval e ela sorriu satisfeita.
O Outono passou, depois o Inverno e a Primavera. A nossa relação estava cada vez mais forte e nós muito felizes e apaixonados. Passávamos o máximo de tempo juntos, fosse para sair, jantar fora, ir ao cinema ou apenas para ficar no sofá, de mão dada a ver televisão. A fogosidade da paixão também não esmorecia, mas tanto podíamos ter momentos ternos de beijos enamorados, como passarmos horas insaciáveis a fazer amor.
Mafalda continuava a dar consultas de Pediatria no hospital e nas duas clínicas, para além do seu voluntariado com duas associações humanitárias do Porto, onde recebia pacientes carenciados de forma gratuita.
Apesar de estarmos "numa relação" desde o Verão anterior, Mafalda continuava reservada em me apresentar à família, justificando que o espírito conservador dos pais ainda não assimilariam um novo namorado com bons olhos, após o divórcio dela.
Mafalda também não era pessoa de muitas amizades, mantendo sempre algum distanciamento com as pessoas com quem convivia diariamente. A única pessoa verdadeiramente importante na sua vida, com a qual partilhava uma amizade desde a adolescência, era Vânia.
Vânia era o paradoxo de Mafalda, muito extrovertida, sempre pronta à diversão e extremamente sociável. Nunca me esquecera da forma descarada como me tentara seduzir no casamento, mas nunca o repetira ou mostrara qualquer intenção nesse sentido, desde que a reencontrara.
Recordo-me que, nesse Verão, costumávamos jantar semanalmente eu, Mafalda, Vânia e o namorado desta que já não era o indivíduo que a acompanhara no casamento.
Em finais de Agosto, após um desses jantar e um serão bem divertido em minha casa, Mafalda sentiu-se mal. Perto das despedidas, quando Vânia e o namorado se preparavam para ir embora, Mafalda ficou indisposta e teve uma tontura que só não a deitou ao chão porque eu a segurei.
— Que se passa? — quis saber Vânia, estranhando.
— Estás bem? — perguntei, apoiando-a.
Mafalda sorriu e respondeu a ambos:
— Estou bem, foi só uma tontura. É cansaço.
— Andas a trabalhar demais. — lembrei.
Vânia desvalorizou e retorquiu para mim num tom humorado:
— Ou tu andas a cansá-la muito.
A gargalhada geral desanuviou a preocupação do momento.
No entanto, as indisposições repetiram-se, bem como as tonturas.
Confesso que a minha primeira suspeita foi que, por alguma razão inexplicável ou milagre, Mafalda pudesse estar grávida. Quando partilhei essa suspeita com ela, Mafalda soltou uma gargalhada exagerada. Já a conhecia o suficiente para perceber que não era um riso divertido, mas sim nervoso. Depois, ficou séria e disse:
— Lamento, Daniel. Quem me dera estar grávida de um filho teu. Mas, isto é só cansaço.
Conjecturando, acho que, como médica, Mafalda já suspeitava que algo não estava bem. Porém, para não me preocupar, relativizava as coisas e justificava tudo com cansaço. Só que isso não aliviava a minha preocupação.
O ponto decisivo para a fazer olhar com mais seriedade para o assunto aconteceu num passeio pela praia deserta. Do nada e sem aviso, no meio de uma conversa animada entre nós, Mafalda perdeu os sentidos e desmaiou. Fiquei em pânico. Ajoelhado a seu lado, chamei-a e abanei-a para a despertar. Não sabia o que fazer, não tinha conhecimentos de primeiros socorros. A única atenuante à minha apreensão era o facto de que ela respirava normalmente. Peguei no telemóvel para ligar o 112, só que ela abriu os olhos antes de eu clicar para chamar.
— Mafalda! Mafalda! Estás bem?
O seu rosto revelava confusão, mas a sua consciência foi tendo noção do que acontecera.
— Sim, estou...
Não fiquei convencido.
— Vou levar-te ao hospital. — informei decidido.
— Não é preciso.
— É sim! — insisti, ajudando-a a levantar.
— Ouve, Daniel. Eu estou bem. Foi só um desmaio.
— Não foi só um desmaio? — reclamei. — Tu há várias semanas que não andas bem.
Para minha surpresa, Mafalda irritou-se:
— Mas afinal, aqui quem é o médico? Estou a dizer-te que estou bem.
— Tu não estás bem. — contrapus. — As tonturas, este desmaio... Isto não é normal.
Ela abanou a cabeça e atenuou o tom:
— Não vamos fazer disto a nossa primeira discussão, pois não?
— Se isso significar o teu bem, não me importo.
— Escuta, Daniel! — pediu mais afável. — Eu prometo que amanhã, no hospital, peço para fazer alguns exames. Falo com um colega da medicina geral para me observar. Pode ser? Não precisamos de ir a correr para as urgências. — Abraçou-me. — Confia em mim, amor.
Nessa noite, mal consegui dormir. Não pelas razões que outrora nos davam noites mal dormidas. Naquela, Mafalda dormia tranquilamente a meu lado, enquanto eu me consumia em preocupação, temendo o que poderia estar para vir.
No dia seguinte, Mafalda cumpriu o prometido. Depois das suas consultas, foi falar com um colega após o turno deste nas urgências e partilhou com ele os sintomas, os acontecimentos e pediu que a observasse.
Numa situação com um utente normal do Serviço Nacional de Saúde, o médico receitaria alguns exames e o utente ficaria à espera por tempo indeterminado até ser chamado para os fazer. Porém, Mafalda era uma colega do hospital, uma médica. E por mais que se insista que as coisas não funcionam assim, o que é certo é que ele a conduziu imediatamente para o Centro de Imagiologia, mais precisamente para a Neurorradiologia, onde lhe fizeram um TAC à cabeça. Esperou algum tempo pelos resultados e, ao recebê-los, o chão pareceu ter desaparecido sob os seus pés.
Eu estava em casa depois de uma tarde no Porto em reunião com uma agência de publicidade para a execução de um trabalho fotográfico. Tentei concentrar-me ao máximo na conversa com eles, mas a preocupação e a ansiedade por notícias dificultaram bastante o meu objectivo.
Mafalda chegou a casa com o rosto fechado e pálida. Ao aperceber-me que ela estivera a chorar, nem tive tempo de dizer nada, pois ela abraçou-me com força e soluçou compulsivamente. Abracei-a e confortei-a, dizendo para mim mesmo "por favor, meu Deus, que não seja nada grave".
— Tem calma. — pedi com carinho. O seu corpo tremia, o choro dilacerava-me a alma. — Que aconteceu?
Esperei que se acalmasse e só a libertei ao sentir que o seu abraço afrouxara. Deu-me um beijo ténue e afastou-se. Retirou um lenço de papel da mala para limpar o rosto. Acompanhei-a até à sala e sentámo-nos no sofá. Desliguei a televisão que emitia o telejornal e centrei toda a atenção em Mafalda.
— Fui à consulta. — começou com o lábio a tremer, encarando-me com os olhos azuis cheios de fragilidade. — O Carlos... O médico que me observou, achou melhor fazer um TAC. — Baixou o olhar para as mãos nervosas. — Fui fazer... — Soluçou e as lágrimas regressaram.
— Calma... — murmurei, segurando-lhe na mão.
Mafalda olhou para mim com os olhos marejados de lágrimas.
— É um tumor...
Fiquei sem chão. Foi como se me tivessem cravado uma faca no peito, como se me puxassem o tapete debaixo dos pés. Não era possível, não era justo... Porquê? Porquê ela? Porquê a mulher da minha vida?
Controlei-me o melhor que consegui, esforçando-me por parecer forte. Ao falar, preocupei-me em não me engasgar e dar firmeza no tom para que isso lhe transmitisse segurança.
— Que aconselhou ele a fazer?
— Tenho de fazer alguns exames. É necessário analisar melhor para fazer um diagnóstico mais preciso. Só depois se define a melhor forma de tratamento.
— Vai correr bem, vais ver. — desejei, mostrando optimismo.
— Seja como for, estou de baixa médica. — informou, tornando a limpar o rosto. — Não me considera em condições trabalhar. Os desmaios... Até é arriscado andar sozinha e nem pensar em conduzir.
— Não te preocupes. Ficas aqui. Eu cuido ti, meu amor. Estarei sempre a teu lado.
Mafalda abraçou-me e deixou-se ficar algum tempo em silêncio, a chorar baixinho.
A partir daquele dia, ela parou de trabalhar no hospital, nas clínicas e nas associações. O facto de estar parada só causava mais pressão à sua dor. Como não a queria deixar sozinha, terminei os projectos que tinha em andamento e suspendi a aceitação de novos.
Os exames seguintes só acentuaram a gravidade da situação. Na consulta em que foram analisados, assisti à sua dor ao ser informada que não poderia ser operada, pois o risco de ser uma intervenção fatal era muito elevado e arriscaria ficar incapacitada. Por isso, a decisão médica foi tratamento por radioterapia.
Tive o cuidado de ser sempre optimista e dar alento a Mafalda em todo o processo. Porém, não imaginam o quanto chorei, sempre que me afastei do seu olhar.
A doença acelerou uma questão que Mafalda viera a adiar indefinidamente, desde que estávamos juntos. Ao informar os pais do seu estado de saúde, estes vieram visitá-la a minha casa.
Estava uma tarde bonita de Outono, contrastando com o estado de espírito de todos nós. Os pais dela chegaram depois do almoço, tendo a campainha anunciado a sua chegada. Fui abrir a porta.
O pai de Mafalda era um homem sexagenário de postura altiva, envergando um fato formal caro. Usava o cabelo grisalho penteado para trás e um bigode bem cuidado, quase ao estilo queirosiano. Estendeu-me a mão com enfado. A mãe vinha atrás, igualmente altiva e formal, a mesma idade do marido, usava o cabelo de coloração escura numa armação que parecia ter acabado de vir do cabeleireiro. Nenhum me sorriu e avançaram para a sala, assim que viram a filha. A mãe foi mais expressiva, abraçando a filha. O pai mostrou alguma preocupação, mas manteve alguma distância.
— Querem beber alguma coisa? — ofereci. Ambos recusaram. Percebi que se sentiam pouco à vontade com a minha presença e li no olhar de Mafalda aquilo que ela preferia que eu fizesse. — Bom, tenho de sair. Estejam à vontade.
Fui dar um passeio pelo pontão da praia, observar o mar e sentir o vento a fustigar-me o rosto. Não se via quase ninguém por ali. Sozinho, permiti-me desanuviar as mágoas, libertar a frustração e baixar o escudo de optimismo que envergava perante o meu amor. Chorei em silêncio, impávido, com a melodia das ondas do mar. Olhei para o céu e, na minha fé cada vez mais posta em causa, perguntei a Deus se me iria levar novamente alguém importante da minha vida. Permaneci naquele lugar mais de duas horas, imóvel, olhar no horizonte, tal como tantas vezes fizera na praia onde o meu tio me levara.
Ao fim desse tempo, regressei a casa. Confesso que levava a esperança de que o casal de visitas já se tivesse ido embora. Contudo, eles ainda lá estavam quando voltei. Só que o meu regresso pareceu acelerar a saída. Vi-os a despedirem-se da filha com muita preocupação, a oferecer apoio para o que ela precisasse e a sugerir que ela deveria regressar a casa deles e fazer o tratamento em Coimbra. Mafalda recusou totalmente a última ideia.
Poucos dias antes de iniciar a radioterapia, encontrei Mafalda na casa de banho a olhar séria para o espelho. Reparei que no lavatório colocara uma tesoura e um objecto semelhante a uma máquina de barbear. Ao ver-me, disse:
— O cabelo vai começar a cair com o tratamento.
Mafalda tinha um cabelo ruivo lindíssimo que, na época, já lhe chegava a meio das costas. Sem esperar qualquer comentário, pegou na tesoura e numa madeixa de caracóis e começou a cortar. Fiquei sem reacção. O seu rosto fechado deu lugar a uma expressão de amargura. O lábio começou a tremer e as lágrimas ressurgiram nos seus olhos.
— Espera. — pedi, aproximando-me. — Eu ajudo-te. — Tirei-lhe a tesoura da mão sem que ela oferecesse resistência, talvez grata por a substituir na tarefa. — Vai correr tudo bem. — E prossegui o corte, usando o máximo de carinho em cada gesto, não lhe deixando dúvidas de quanto era amada por mim, independentemente do resto.
A máquina de cortar cabelo fora comprada por Vânia a pedido da amiga. Após os caracóis terem desaparecido despenhados no chão, Mafalda insistiu para que a usasse e eliminasse os últimos indícios ruivos. Não lho disse, nem lhe dei a transparecer, mas foi chocante vê-la com a cabeça rapada. A partir desse dia, em casa usava um lenço na cabeça e tinha uma peruca que imitava o seu cabelo antigo para as vezes que saía à rua.
Mafalda iniciou os tratamentos. Tive noção que se sentia desconfortável por a acompanhar, pois considerava-se um peso, uma condenada que me arrastava. Eu contestava isso e mantinha uma onda de esperança, à qual ela perdia a crença a cada dia que passava.
A radioterapia enfraqueceu-a, fê-la perder peso e ganhar um aspecto inchado, o rosto mais bolachudo. Nada abalou ou diminuiu o meu amor por si. Atravessei aqueles tempos de trevas a seu lado, consciente que por muito dolorosa que fosse a minha dor, a sua seria incomensuravelmente maior. No entanto, quando pensamos que nada pode piorar, as coisas pioram.
Recordo-me que chovia com abundância lá fora. Mafalda repousava no sofá, psicologicamente extenuada e com o olhar vago na televisão. A nossa relação esfriara ligeiramente, uma vez que ela se sentia cada vez mais insegura e pouco à vontade comigo. Dormíamos juntos, mas sempre que procurava ser carinhoso, ter demonstrações de afecto, Mafalda afastava-me e não queria o seu espaço invadido. Compreendi-a e respeitei-a. Afectada pelo turbilhão de emoções, incerteza do futuro, tratamentos dolorosos e medicações agressivas, só me restava tornar a vida dela o mais confortável possível.
Contudo, nessa tarde de chuva, Mafalda chamou-me.
— Precisamos de falar, Daniel.
— Que se passa? — questionei, sentando-me a seu lado.
Para disfarçar o nervosismo, Mafalda ajeitou o lenço que lhe escondia a cabeça calva.
— Estou a pensar voltar para a casa da Vânia. — informou sem conseguir encarar-me.
— Porquê? — interroguei surpreso. — Não estás bem aqui?
— Preciso de me afastar por uns tempos. — explicou, voltando a mexer no lenço, um tique que substituía o anterior de mexer nos caracóis.
— Não estou a perceber.
Ela olhou para mim com uma lágrima no rosto.
— Não estou a conseguir lidar com a doença e a nossa relação em simultâneo.
— Desculpa que te diga, mas isso é um perfeito disparate. — reclamei, sentindo que estava a perdê-la.
— Não digas isso! Tenta perceber. — Abanou a cabeça. — Tu não mereces passar por isto, Daniel. Não tenho o direito de te arrastar comigo.
— Não achas que me cabe a mim decidir isso?
— Não, não acho! — exclamou com firmeza. Tornou a encarar-me com as lágrimas a aumentarem. — Não quero fazer de ti um viúvo.
Segurei-lhe as mãos, apertando-as com ternura.
— Estou contigo para os bons e maus momentos. — recordei, controlando as lágrimas que teimavam em trair-me. — Nós vamos vencer isto!
Mafalda abanou a cabeça, não acreditava na vitória, vencida pelo pessimismo. Soltou-se das minhas mãos e levantou-se do sofá. Limpou as lágrimas com os dedos.
— Não é negociável, Daniel! — afirmou decidida. — Já liguei à Vânia para me vir buscar.
Incrédulo, confrontei-a com a mais dolorosa das questões:
— Estás a terminar a nossa relação?
— Por favor, Daniel. Isto não é o fim de nada. — retorquiu. — Só preciso de algum tempo para mim... longe de ti.
Senti que ela estava a ser injusta comigo. Magoava-me que a sua decisão para enfrentar a doença fosse afastar-me da luta. Teria certamente muitos argumentos para prosseguir o diálogo, mas arriscava-me a transformá-lo numa discussão. E isso não seria benéfico para o estado debilitado de Mafalda. Acabei por aceder ao seu pedido.
— Posso ao menos telefonar-te para saber como estás? Ou queres cortar totalmente?
Mafalda cortou a distância entre nós e abraçou-me.
— Claro que podes telefonar-me. — Beijou-me o rosto. — Continuo a amar-te, Daniel! Só peço que tenhas paciência e me dês algum espaço.
Vânia chegou meia hora mais tarde. Quando lhe abri a porta, ao ver-me, ela disse:
— Lamento, Daniel...
Abanei a cabeça, revelando que não valia a pena falar disso, e pedi:
— Cuida dela.
Vânia anuiu no momento em que Mafalda saiu do quarto, puxando a mala com as suas coisas.
— O resto pode ficar. — disse, forçando um sorriso. — Para quando eu voltar, amor.
As nossas bocas tocaram-se num beijo sofrido.
— Eu amo-te, Mafalda!
— Eu também te amo, Daniel!
Despedi-me repetindo a mim mesmo que não a estava a perder, apesar de a minha crença nisso ser limitada. Sozinho, autorizei-me à lucidez de analisar a crueldade real de que aquilo poderia significar o fim.
O nosso contacto limitou-se aos telefonemas. Apesar de contrariado, respeitei a sua vontade de me manter afastado. Para desanuviar das amarguras da solidão e da apreensão pelo estado de saúde dela, retomei o ritmo de trabalho anterior, contactando clientes e afogando-me no máximo de projectos que conseguisse.
Mafalda descrevia sempre o seu estado como estando estável, que os médicos estavam esperançosos... Contudo, não me deixei enganar, ela estava a tentar esconder-me a realidade dos factos. Permiti que me "enganasse" durante algum tempo. Porém, ao fim de duas semanas a ouvir o mesmo, declarei que a conhecia o suficiente para perceber que ela não estava a ser honesta comigo. Houve um impasse nesse telefonema. Ouvi-a respirar no outro lado da linha, aguardando até ter a coragem de falar.
— Tens razão, Daniel. Não te estou a dizer verdade. Queres a verdade?
— Claro.
— Achas que consegues lidar com a verdade?
As suas palavras eram cortantes, carregadas de uma raiva que não era dirigida a mim, mas que faziam de mim o seu alvo naquele momento.
— Diz, Mafalda.
— Os tratamentos não estão a fazer efeito.
— Mafalda... — O seu soluçar interrompeu o diálogo. — Mafalda?
— Estou a... a... a morrer, Daniel.
— Mafalda... — Foi a minha vez de soluçar. Não o consegui evitar, nem esconder-lhe que também chorava. — Vou aí ver-te.
— Não! Não venhas! Não quero!
— Mafalda...
— Por favor, Daniel. Se me amas, não venhas.
— Mafalda, não tens o direito de me afastar assim.
— Não consigo encarar-te, no estado em que estou. — confessou. — Perdoa-me, meu amor! — E desligou.
Não a forcei a uma visita minha. Nos dias que se seguiram, tentei telefonar-lhe algumas vezes, mas ela nunca me atendeu. Pronto, se era isso que ela queria, não a contrariaria. Optei por lhe mandar mensagens a perguntar como estava e a reafirmar o meu amor. Ela respondia sempre com "na mesma" e sem qualquer retribuição de afecto.
Para minha surpresa, no início de Dezembro, foi Mafalda quem me ligou. Para ser sincero, ao ouvir o telemóvel com o número dela a tocar, temi o pior. Felizmente não se confirmou o meu receio. O seu telefonema trazia novidades que envolviam uma esperança retemperada. Nos Estados Unidos surgira um tratamento inovador, ainda em fase experimental, que poderia significar uma cura. O tratamento estava numa fase muito embrionária e o médico de Mafalda desaconselhou-a a tentar, ainda para mais tendo em conta a longa viagem para alguém no seu estado. Só que ela não queria saber, pois qualquer centelha de esperança era melhor que ficar à espera da morte.
A sua voz, mesmo ferida pelo desgaste, revelava a esperança, apesar de a taxa de sucesso ser inferior ao mínimo exigível a uma verdadeira esperança. Mesmo assim, partilhei da sua expectativa.
— Eu vou contigo. — ofereci-me decidido.
— Não, Daniel. — recusou. — A Vânia vai comigo.
— Por favor, Mafalda. — pedi, quase implorei. — Deixa-me ir contigo. Quero estar perto de ti. Quero acompanhar-te...
— Não, Daniel. Por favor, não insistas. Já decidi. — Suspirou, revelando todo o cansaço. — Não há garantias de nada. Aliás, as hipóteses são relativas. Fica cá. Prometo que, se tudo correr bem, voltarei para ti com o mesmo amor e paixão de sempre.
— Mafalda...
— Vamos falando.
Mais uma vez, Mafalda insistia em manter-me afastado do seu sofrimento, escolhendo Vânia para a auxiliar. As duas partiram para Seattle a meio do último mês do ano, acompanhadas pelos pais de Mafalda.
Devido à diferença horária, aos horários dos tratamentos dela e do meu trabalho, raramente foi possível falar ao telemóvel ou pela Internet no Messenger. Assim, as nossas conversas ficaram limitadas às mensagens de email. Só houve telefonemas no Natal e na dobragem para o Novo Ano.
No início de Janeiro, Mafalda deixou de dar notícias...
Ao longo de todo o período desde que fora para os Estados Unidos, Mafalda fora muito superficial nos relatos que fazia nos emails. Eu não sabia onde ela vivia, não me dissera o nome do hospital, pouco descrevia os tratamentos... Era sempre tudo muito vago. Mesmo nos únicos telefonemas que conseguimos partilhar, ela pouca informação passou, sendo sempre muito cuidadosa com o nível de esperança que me poderia transmitir. Repetiu muitas vezes que a duração da estadia era incerta e o processo de evolução do tratamento inconstante. Resumindo, eu não sabia quase nada do que se estava a passar lá. Como também não tinha mais nenhum contacto para além do telemóvel de Mafalda, não conseguia saber nada, pois cada vez que tentava ligar obtinha o sinal de desligado.
Fiquei desesperado por não saber nada, por não receber qualquer notícia, qualquer desenvolvimento. Que poderia ter acontecido para, de um momento para o outro, Mafalda se ter evaporado? Temi o pior. Contudo, não quis acreditar que se o desfecho tivesse sido fatal, pelo menos Vânia não me contasse. E soube que tinha razão, três semanas mais tarde...
Fora um dia complicado, acho que todos os dias se tornavam complicados nos últimos tempos. A noite caíra por completo, quando cheguei de mota à rua onde vivia. Estacionei no lugar do costume e retirei o capacete, antes de desmontar. O cansaço pesava-me no corpo, mais que o habitual. Sabia que o desgaste era mais psicológico que físico, perante a ausência de notícias da mulher que amava.
— Daniel! — ouvi uma voz chamar. Estava escuro e os candeeiros da rua não iluminavam o suficiente. — Daniel! — Percebi que era uma voz feminina. Olhei em volta e vi um vulto sair de um carro estacionado alguns metros mais abaixo.
Não a reconheci, levantando a mão para sinalizar que ouvira. O vulto feminino saiu da sombra, afastando-se do carro e caminhou na minha direcção. Assim que a luz a iluminou, reconheci Vânia.
O coração começou a bater com força. Saí da mota e permaneci impávido a vê-la aproximar-se. Vânia trazia um fato escuro e um casaco comprido quente. O rosto mantinha-se fechado e uma das mãos lutava para manter os cabelos em ordem.
— Daniel... — suspirou, sem saber muito bem o que dizer a seguir.
Eu tinha mil e uma perguntas, mas não conseguia verbalizar nada. Talvez adivinhasse o que aí vinha, talvez tivesse ficado bloqueado por finalmente voltar a ter notícias. Só consegui dizer:
— A Mafalda?
Vânia abanou a cabeça.
— Lamento, Daniel.
O capacete caiu-me da mão. As lágrimas invadiram-me os olhos e turvaram-me a realidade envolvente. A dor da perda foi tão forte que perdi a força nas pernas e caí de joelhos, a chorar compulsivamente. Vânia baixou-se junto de mim e abraçou-me.
— Lamento, Daniel. — repetiu. — Lamento ter de te dar a notícia.
Continuei sem conseguir dizer nada, a dor era insuportável. Queria gritar, queria partir tudo, queria morrer... Porém, fiquei apenas a chorar como uma criança perdida nos braços de Vânia.
Não sei explicar o que aconteceu depois, penso que o choque me apagou alguns momentos da memória. Só me lembro de estar sentado no sofá da minha sala com Vânia a entregar-me um copo de água e a sentar-se numa cadeira. Aos poucos, o choro diminuiu e parei de soluçar.
— Conta-me o que aconteceu. — pedi, vendo que ela também tinha os olhos húmidos.
— O tratamento não resultou.
— Sim, isso já percebi. — retorqui com raiva. — Mas, o que aconteceu? Porque é que ela deixou de dar notícias? Porque é que desligou o telemóvel? Porque é que nunca mais escreveu um email? Porque é que...
— Não sei, Daniel. — respondeu com calma. — Não te sei responder. Apenas te posso dizer que a Mafalda teve de fazer uma cirurgia muito delicada. Conhecia os riscos e aceitou corrê-los. As hipóteses de êxito eram escassas.
— E quando foi isso?
— Há cerca de duas semanas.
A estupefacção cravou-se no meu rosto. levantei-me irritado.
— Duas semanas? DUAS SEMANAS? E só agora é que me contas?
— Tem calma. Deixa-me explicar.
— E o funeral? Quando é? Não me digas que já foi...
O seu silêncio foi a confirmação.
Cravei os olhos nela, preparado para lhe descarregar mais fúria verbal. Como poderiam ter-me deixado assim de lado, todo aquele tempo?
Vânia insistiu que me voltasse a sentar.
— A Mafalda deixou algumas vontades expressas, caso as coisas não corressem bem. — prosseguiu. — Queria ser cremada e queria sê-lo lá. Não queria que a transportassem de regresso a Portugal. Quis também que as suas cinzas fossem largadas ao vento, num lugar bonito em Seattle, onde ela chegou a passear algumas vezes.
— Quer dizer... — interrompi. — Nem sequer há um sítio onde me possa despedir dela.
— Lamento, Daniel. Foi a sua vontade.
— E porque é que não me avisaram do funeral? Eu podia ter ido aos Estados Unidos.
— A Mafalda não queria, Daniel. — explicou. — Sempre te quis poupar o máximo de sofrimento.
— Ela sempre quis foi afastar-me da vida dela.
— Não digas isso. Estás a ser injusto. — Encolhi os ombros. Que interessava isso agora? — Pediu-me que te desse a notícia pessoalmente, quando regressasse a Portugal. Eu cheguei ontem à noite, ainda estou com as horas todas trocadas. Mas, não podia deixar-te na ignorância por mais tempo.
Abanei a cabeça. No pior dos cenários que pudesse imaginar, aquele desfecho era ainda mais horrível.
— Desculpa! Eu talvez tivesse agido de outra forma. — esclareceu, levantando-se da cadeira. — Mas, não me cabia a mim ir contra a vontade dela.
— Eu sei. — concordei, menos irritado. — Tu não tens culpa.
Vânia esboçou um sorriso triste.
— Olha, tenho de ir. Ficas bem? — Eu fiz uma expressão interrogando como era possível ficar bem depois daquilo. — Precisas de alguma coisa?
— Não, obrigado.
Ela pegou numa caneta e num pedaço de papel, escreveu nove algarismos e entregou-mo.
— É o meu número. Se precisares de alguma coisa. Ou se quiseres falar... Podes ligar-me.
Agradeci-lhe, acompanhando-a à porta. Contudo, não sentia o mínimo interesse na sua companhia, na sua ajuda, em nada que viesse do mundo de Mafalda. Estava magoado, ferido pela perda, destroçado pela forma como fora excluído, fatalmente marcado por um ciclo que se quebrara violentamente sem oportunidade de algo tão simples como... uma despedida.
Regressei à sala, despenhando-me no sofá. Já não tinha lágrimas para chorar e questionava-me se Mafalda as merecia. Só que eu não controlava o coração e tinha um fraco jeito para lidar com as emoções. Por isso, continuava a amá-la... a amar a memória que tinha dela. Os meus olhos vaguearam pelo espaço, estacionando em pequenos pormenores que haviam sido responsabilidade de Mafalda, do tempo em que vivíamos oficiosamente juntos. Fechei os olhos, autorizando-me a sofrer com a recordação do primeiro beijo dado naquele mesmo sofá. Lutara tanto para a ter na minha vida, pelo seu amor. Conseguira vencer as suas defesas para que me deixasse amá-la, ser e fazê-la feliz... Para depois tudo se perder com a merda de um tumor. Malvada doença que pela segunda vez me tirava alguém tão importante da minha vida. Não era justo. Olhei para cima e disse:
— Não é justo! Tu não És quem eu acreditava que Eras. Hoje perdi toda a minha fé em Ti.
Mafalda partia deste mundo antes de chegar aos trinta e um anos e, com a sua morte, terminava a escala que fizera a meu lado, na minha vida.
fim do conto IV
O vento soprava com força na costa, levantando areia e atirando as ondas do mar que ribombavam como trovões. Não saíra de casa durante uma semana, adiando trabalhos e recusando outros. Vagueava pelo apartamento, recordava Mafalda a cada canto. Comia pouco ou quase nada. Ficava horas a ver as muitas fotos que lhe fizera. Sentia-me perdido, desmotivado e sem vontade de viver.
No entanto, naquele dia decidira fazer diferente, precisava de apanhar ar. Por isso, ali estava eu, encostado ao pontão de madeira, no mesmo local onde uma tarde Mafalda me prometera levar a novas praias, a tarde do primeiro beijo, a tarde em que fizemos amor pela primeira vez.
As gaivotas sobrevoaram-me, receosas da tempestade que parecia despontar no mar alto e refugiando-se na costa arenosa. Vi um gato correr perto de uma duna e parar, atento em mim.
— Nem penses. — disse-lhe. — Não volto a cair nessa das reencarnações. Não acredito que sejas ela num gato.
Sem compreender as minhas palavras, o animal retomou a corrida e desapareceu.
O horizonte pescou a minha atenção sem que estivesse realmente a registar o que estava a ver. A minha mente perdia-se em recordações, pensamentos, memórias... A buzina de um carro na avenida resgatou-me para a realidade. Vi o homem barafustar com outro carro e tornar a arrancar. Mais alguns minutos passaram até tomar a decisão na qual estivera indeciso desde que estacionara ali. Peguei no telemóvel, procurei o nome da pessoa e cliquei no símbolo de telefonar. Ouvi os toques de chamada, um, dois, três, quatro... Talvez não atendesse e talvez eu não voltasse a tentar. Ao quinto, a sua voz atendeu.
— Olá! Sou eu, o Daniel! Desculpa se estou a incomodar. — Ouvi-a negar o incómodo. — Estava a pensar se podíamos conversar um pouco... Não, por telefone, não. Achas que podes passar por aqui? — Questionou se estava em casa. — Não, estou perto da praia. Queres vir tomar um café?... Sim... Conhecesses aquela esplanada perto da praia?... Sim, essa... Espero-te lá... Tudo bem, pode ser daqui a uma hora... Ok... Beijinho. — E desliguei.
Numa passada lenta, abandonei o pontão com os passos a tombar nas tábuas desgastadas pelo tempo. Segui pelo passeio e só parei junto da esplanada, um espaço pequeno com meia dúzia de mesas e protegido do vento por lonas transparentes. Escolhi uma mesa e sentei-me numa das cadeiras. Pedi uma cerveja e esperei.
Ela não demorou uma hora, nem perto disso. Reconheci o seu carro, assim que passou na estrada, procurando um lugar para estacionar. Conseguiu um espaço a uns trinta metros. Donde estava, vi-a sair do lugar do condutor com o cabelo a rebelar-se contra o vento. Atravessou a rua para o passeio mais próximo do areal. Vestia um casaco espesso comprido que usava aberto, revelando a camisola de malha e a saia por baixo. Os collants de lã eram quase do tom exótico da sua pele e as botas aumentavam a sua imponência.
— Olá Daniel! — cumprimentou, ajeitando o cabelo.
Levantei-me e dei-lhe um beijo na face.
— Olá Vânia!
Eu não tinha amigos e, apesar de me sentir só, também não os procurava ter. Contudo, precisava de conversar, dialogar com alguém, falar de Mafalda com quem a conhecera.
— Como estás? — perguntou, sentando-se do lado oposto da mesa. Encolhi os ombros. — Fiquei surpresa com o teu telefonema. Mas ainda bem que ligaste. — Fez sinal ao empregado para lhe trazer um café. — Pensei em ligar-te para saber como estavas, mas... Não quis incomodar.
— Podias ter ligado.
— Eu sei. Só que... Sinto que ficaste magoado comigo.
— Já te disse que não tens culpa. Limitaste-te a cumprir a vontade dela.
Vânia anuiu e ficou a olhar para mim. E eu a olhar para ela.
— Então? Porque me ligaste?
— Queria conversar um pouco.
O empregado trouxe o café e depositou-o na mesa.
Vânia pegou no pacote de açúcar, agitou-o, abriu-o e despejou a totalidade na chávena.
— Queres conversar sobre a Mafalda? — adivinhou, mexendo o café com a colher.
— Se não te importares.
— Claro que não, Daniel. Não me importo nada. A Mafalda é uma irmã... — interrompeu-se. — ...era uma irmã.
— Também tens dificuldade em usar o passado quando te referes a ela, não é? — Vânia assentiu comprometida. — Acontece o mesmo comigo.
— Custa-me a acreditar que ela... — tornou a interromper-se. — Desculpa, não vamos falar da parte triste.
— Sinto que desperdicei dez anos em que podia ter estado com ela.
— Aconteceu quando tinha de acontecer. — sentenciou Vânia. — Recordo-me bem quando ela foi a Lisboa conhecer-te.
— Sim, a visita do pessoal da faculdade ao Hospital de Santa Maria.
Vânia sorriu.
— Ah... Ela nunca te contou.
— Contou o quê? — questionei, curioso.
Após terminar o café, Vânia prosseguiu o relato:
— Nunca houve nenhuma visita de estudo. A Mafalda foi a Lisboa de propósito para te conhecer. Não foi sozinha, é verdade. Mas quem foi com ela fui eu, não foram os colegas de curso. — Fiquei estupefacto. — Ela queria muito conhecer-te. Só que, como eras casado... ou estavas junto com outra, a Mafalda tinha receio que se te dissesse que ia de propósito a Lisboa para te ver, isso pudesse denunciar o que sentia por ti. — Fez uma pausa. — Ela sempre foi apaixonada por ti.
— Eu sei. Ela disse-mo nesse encontro.
— Pois... Ela contou-me. — confirmou, debruçando-se na cadeira. — Não era suposto. Só que tu surpreendeste-a com a tua declaração. E ela acabou por se denunciar. Arrependeu-se de o ter feito, tinha receio que pudesse ter comprometido a tua relação com a tua companheira.
— A Mafalda vincou bem a sua posição. Quis que concordássemos que nunca mais falaríamos naquilo e que eu deveria voltar para a minha mulher.
— A Mafalda disse-te isso, mas no seu íntimo, ela desejava que tivesses largado tudo e vindo atrás dela.
— Estás enganada. — contrariei. Porém, a expressão no rosto de Vânia revelava que quem estava enganado era eu. — Ela nunca me disse nada...
— Ouve, Daniel! Ninguém conhece melhor a Mafalda que eu. Ela apaixonou-se por ti, praticamente, desde que se conheceram na Internet. Só que tinha receio, tu eras cinco anos mais velho, ela era uma rapariga caseira, virgem... Podia ser humilde, mas tinha noção da sua beleza. — Tornou a sorrir. — Mandou-te a pior foto que encontrou, receosa que se a visses como ela era naquela época, tivesses vindo por aí acima atrás dela.
— Isso não teria acontecido. — lembrei, pensando em mim na época antes de Francisca. — Não conhecia nada para além de Lisboa e Almada.
— Ela falava em ti todos os dias.
— E o que é que a fez ir a Lisboa?
— Aquele ano na faculdade, em Coimbra, amadureceu-a. Não, não se envolveu com ninguém. Foi mesmo só o facto de ganhar outras liberdades e seguranças. Claro que nunca iria sozinha, daí ter pedido para a acompanhar.
Olhei para o vazio, recordando a manhã de Setembro, mais de onze anos antes, a beleza radiante de Mafalda, a confirmação que era possível alguém apaixonar-se à primeira vista.
— Apesar de o negar, a Mafalda desejava que te separasses da tua mulher e fosses atrás dela.
— Se me tivesse dito...
— A Mafalda é uma mulher de princípios bem vincados, jamais se sentiria bem em ser o motivo do fim de uma relação. — acentuou com firmeza. — Com o passar do tempo e nas conversas contigo, percebeu que isso nunca iria acontecer. Depois apareceu o Tiago na vida dela.
— E eu passei à história. — completei.
Vânia abanou a cabeça, prosseguindo:
— Não foi bem assim. Ela amava o Tiago, tinham uma relação muito forte. Ninguém namora tantos anos e casa se não se amar verdadeiramente. Só que ela nunca sentiu por ele, o que sentia por ti. — Baixou a voz para um tom cúmplice. — Claro que o Tiago nunca soube disto. E mereceu bem viver nessa ignorância, tendo em conta o crápula que foi em querer divorciar-se por ela não conseguir engravidar.
Nesse instante, o telemóvel de Vânia tocou. Ela abriu a mala e retirou o aparelho. Olhou para o ecrã com uma expressão de desinteresse e atendeu:
— Olá, amor! Não, não estou em casa... Sim... Onde?... Vim tomar um chá com a minha tia... Ok... Falamos mais logo. Beijinhos... Eu também te amo.
Desligou. Não consegui evitar um sorriso.
— Agora sou tua tia?
— Não vale a pena complicar a vida. — justificou, tornando a guardar o telemóvel. — Não estamos a fazer nada de errado, mas ele ficaria certamente ciumento se lhe dissesse que estava numa esplanada com outro homem.
Assenti com uma questão em mente.
— Compreendo. Mas, não teria ele razão para isso?
— Como assim?
— Estou a pensar no dia do casamento da Mafalda.
Vânia observou-me confusa.
— Não estou a perceber.
— Tentaste seduzir-me. — recordei.
O seu sorriso desvalorizou por completo a lembrança.
— Já nem me lembrava. Foi uma brincadeira parva. — A sua expressão alterou-se. — O facto de teres vindo acompanhado, deixou a Mafalda... Como dizer? Afectada? Sim, afectou-a. Tentou disfarçar, congratulando-se por tu voltares a ter alguém na tua vida. Mas, eu sabia o que ela sentia.
— Eu não queria vir. Só que ela colocou a minha presença como sendo tão importante para ela, para a nossa amizade, que eu acabei por vir.
— Era mais uma oportunidade para te ver. A Mafalda sabia que não teria muitas, talvez mais nenhuma, para te ver depois de casar. — Fez uma pausa. — Confesso que tive receio que o marido desconfiasse de alguma coisa, pela forma como ela olhava para ti. Felizmente, ele não a conhecia tão bem como eu.
Acenei ao empregado. Pedi mais uma cerveja, a quarta desde que ali estava. Vânia recusou a minha sugestão para pedir mais alguma bebida para si.
— Vou ser sincero contigo, Vânia. Sinto que desperdiçámos estes anos todos por culpa dela. Podíamos ter sido felizes um com o outro desde o dia em que nos conhecemos. Eu teria largado a Francisca, o que aconteceu cerca de dois anos depois do nosso encontro, ela largava o namorado e...
— Sabes bem que isso não teria sido assim tão fácil, Daniel. — interrompeu. — Quando te separaste, como era a tua vida? Onde estava a Mafalda? Ela estudava em Coimbra para ser médica. E tu?
— Trabalhava na reposição de artigos num supermercado.
Vânia fez uma expressão de "vês o que quero dizer?" e continuou:
— Que irias fazer? Ias para Coimbra sem casa nem emprego? Querias que ela largasse os estudos e fosse ter contigo?
— Sei lá... — suspirei. — Isso agora é irrelevante.
— Por isso te disse que aconteceu quando tinha que acontecer. — Ofereceu-me um sorriso afectuoso e debruçou-se na mesa. — A Mafalda ama-te... amava-te muito. Sofreu imenso por te afastar, mas não queria que a visses a definhar com a doença.
— Ela não tinha o direito de tomar essa decisão por mim.
— Tinha sim, Daniel. Tinha o direito de não sofrer mais ao ver o teu amor transformado em pena.
— Isso nunca aconteceria. — irritei-me.
— Ok. Vamos acreditar que sim. Só quero que saibas que ela nunca deixou de te amar. E todas as decisões que tomou foram para te proteger do sofrimento... ou pelos menos poupar-te ao máximo.
— Falhou! — exclamei, controlando a raiva que me voltava a instigar perante a sensação de ter sido afastado dos últimos momentos da sua vida. — Eu continuo a sofrer... E nem me pude despedir. Nem tenho um lugar, um canto, uma lápide, onde a possa homenagear, onde possa passar um tempo de reflexão... Enfim... Tu não percebes.
— Percebo, Daniel. Percebo o que queres dizer. E lamento-o. Também gostava que esse lugar existisse. — Tropeçou nas palavras, emotiva. — Ela não era especial só para ti.
Notei a humidade nos seus olhos. Estendi o braço sobre a mesa e agarrei a sua mão.
— Desculpa! — pedi, percebendo a sua mágoa. — No meio disto tudo, esqueço-me que também sofres com a mo... com o que aconteceu.
Vânia colocou a mão sobre a minha.
— Perdi mais que uma amiga, perdi uma irmã. — Acariciou-me os dedos distraidamente com o olhar vago. — Quando ela... A última vez que falámos... Ela pediu para que te dissesse que te amava muito. E que tudo o que fizera fora para te proteger. — Olhou para mim num sorriso magoado. — Foram momentos muito complicados. Não lamentes teres estado ausente. Eu percebo que quisesses tê-la acompanhado, mas... Teria sido horrível para ela, encarar-te cada vez mais doente.
— Não sei se algum dia conseguirei ultrapassar isto, tê-la perdido para sempre.
— O tempo encarrega-se de sarar todas as feridas.
— Achas? Não acredito. — assumi descrente. — A Mafalda era uma mulher extraordinária. Nunca conheci nem conhecerei ninguém como ela.
— Sim, é verdade. Também nunca conheci.
Houve uma pausa no diálogo, um silêncio que surgiu como uma homenagem espontânea à memória de Mafalda. De súbito, percebemos que estávamos a segurar as mãos um do outro e soltámo-nos, meio envergonhados.
— Talvez seja melhor ir andando.
Concordei.
O vento acalmara e a claridade diminuíra bastante, ao deixarmos a esplanada. Ofereci-me para a acompanhar ao carro. Avançámos pelo passeio que ladeava o areal numa passada vagarosa. Caminhámos em silêncio com a melodia do mar agreste a servir de banda sonora.
— O meu carro está ali. — apontou, indicando o automóvel parado no lado oposto da estrada.
Parámos e ficámos de frente um para o outro. Sentia uma atracção estranha por ela, não pela sua figura ou pela sua maneira de ser, apenas porque ela era a única pessoa que partilhava comigo o sofrimento pela morte de Mafalda.
— Posso voltar a ligar-te? — sugeri.
Vânia revelou um sorriso desconfortável. Notei a hesitação. Talvez também ela notasse em si algum clima estranho entre nós.
— Não sei se isso será boa ideia, Daniel.
— Porquê? — questionei com estranheza. Depois, consciencializei-me da realidade. — Ah... o teu namorado.
— Não, não é pelo meu namorado.
— Então?
A hesitação continuou, Vânia procurava as melhores palavras sem as encontrar. E eu, indiferente às consequências, mas algo tocado pelas quatro cervejas, sem parar para pensar e num movimento rápido, beijei-a na boca.
O beijo foi aceite e retribuído. Contudo, o beijo era injusto para ela, pois eu beijava-a e imaginava que estava a beijar Mafalda.
As minhas mãos entraram no casaco e aterraram na sua cintura. Ao sentir o meu toque, Vânia travou-me e empurrou-me devagar, pondo fim ao beijo.
— Não! — exclamou. — Não faças isso.
Fiquei atordoado, uma vez que julgara que ela estava a gostar.
— Desculpa.
Vânia acariciou-me o rosto e sorriu.
— Estás carente, Daniel. Eu percebo. — Sei que não o fez por mal, mas senti as suas palavras como pena. Ela também as sentiu da mesma forma. — Numa outra fase, num outro momento... Talvez acontecesse entre nós. Mas, não agora.
— Eu entendo, fui parvo. Tu tens namorado.
Ela soltou uma gargalhada divertida.
— Já te disse, não é pelo meu namorado. — repetiu, afastando-se para atravessar a rua. — Diz-me uma coisa, Daniel. E sê sincero. — Concordei. — Em quem estavas a pensar quando me beijaste?
Vânia não merecia que lhe mentisse.
— Na Mafalda.
Vi o seu sorriso afectuoso e um piscar de olho cúmplice. Atravessou a rua ripostando uma revelação que me surpreendeu:
— Eu também.
Tive dificuldade em assimilar aquilo, enquanto a via entrar no carro. Seria possível que... Não! O automóvel saiu do seu lugar e afastou-se para norte. Vânia e Mafalda? Não era possível. Repassei memórias de momentos partilhados. Não, nunca notara nada entre elas. Que raio, barafustei sozinho, teria a Vânia uma paixão platónica pela amiga?
Regressei a casa, sentindo os primeiros pingos de chuva a cair. Acelerei o passo para evitar ficar encharcado, caso os aguaceiros dessem lugar a uma tromba de água. Isso não aconteceu e, tão depressa como haviam começado, as gotas pararam.
Aquele momento ficou a perturbar-me as ideias. Não tanto o beijo, mas a suposta possibilidade Vânia também ter sido apaixonada pela mulher da minha vida. Percebi que aquele encontro fora terapêutico, fizera-me sentir melhor por ter com quem falar de Mafalda e partilhar memórias. Se calhar, também o teria sido para Vânia. Por isso, no dia seguinte, voltei a ligar-lhe. O sinal de chamar repetiu-se até passar para o voicemail. Não deixei mensagem e voltei a tentar mais tarde. De novo, só obtive o toque de chamar até ser encaminhado para o gravador. Desliguei. Abri o ícone de mensagens escritas e digitei:
"Podemos encontrar-nos para um café?"
A resposta surgiu quase de imediato.
"É melhor não."
Estranhei e insisti:
"Hoje não podes? E amanhã?"
A resposta demorou mais que anterior.
"É melhor não nos encontrarmos por uns tempos."
Não esperava aquela postura.
"Estás chateada com o que aconteceu ontem? Já te pedi desculpa."
O telemóvel voltou a apitar, passado um minuto.
"Não estou chateada. Só prefiro que não nos voltemos a encontrar."
Não percebi o porquê daquilo e acabei por escrever:
"Se é isso que queres..."
A resposta foi imediata:
"Sim, é isso que eu quero!"
E assim se fechava um ciclo, ignorando eu que, dias mais tarde, um novo se abriria na minha vida.
CONTO V
O teu nome é Leonor.
E jurei ficar a teu lado.
Cada dia era um passo lento na tentativa de ultrapassar a depressão que a perda de Mafalda me deixara. Consegui controlar o ímpeto inicial que tive em me espetar com a mota contra um muro ou acelerar com ela para lá do limite de um precipício. Sim, tive tendência para o suicídio. E se aquela conversa com Vânia atenuara um pouco a mágoa, o seu afastamento injustificado fez tremer a minha fraca estabilidade. Felizmente, a lucidez prevaleceu.
Encarei cada manhã como um desafio, cada tarde como uma etapa, cada noite como uma meta. Usei o melhor trunfo que encontrei para sobreviver aos últimos meses de dor, entregar-me ao trabalho. Voltei ao contacto com as agências de modelos, agências de publicidade e comecei a fazer trabalhos de reportagem fotográfica em espectáculos e eventos desportivos. Mantive-me o mais ocupado que pude.
Não me sentia como um homem de trinta e seis anos, sempre me vi mais novo que a real idade inscrita no meu cartão do cidadão. Porém, ao olhar para o reflexo no espelho, os sinais resultantes do último ano eram evidentes, mais rugas, mais cabelos brancos. Mantive-me solitário, vivendo sozinho em Miramar. Cheguei a ponderar o regresso a Almada, mas todo o meu círculo de clientes se localizava a norte. Também equacionei um regresso a Edimburgo, só que iria à procura de algo que tivera o seu tempo. Se algum dia voltasse, seria apenas como turista.
Vesti a pele do fotógrafo altamente profissional, reservado e com um escudo invisível impenetrável a quem quisesse entrar no meu mundo privado. Não queria novas personagens na minha história, evitaria ter mais contos que pareciam terminar todos da mesma forma. Rejeitei convites para confraternizações de colegas, tentativas de sedução, interesses emocionais, ofertas de prazer sem compromisso. Rejeitei tudo, tudo e tudo.
No meio deste conflito interior, desta vontade férrea de manter o mundo afastado, reapareceu na minha história um velho amigo a quem nunca fecharia a porta, o meu irmão de coração, parceiro e mentor, Peter.
Peter telefonou-me para partilhar a novidade de que viria passar uma temporada a Portugal para colaborar na fundação e lançamento de uma nova revista no mercado português. Não quis revelar muito ao telefone, pois desconfiava das linhas e receava que alguém pudesse ouvir algo que ainda tinha de ser mantido em segredo.
A sua chegada aconteceu na Primavera. E apesar de ter aterrado em Lisboa, o seu destino foi o Porto, uma vez que a empresa responsável pela revista estava sediada na "Cidade Invicta". Devido às nossas agendas preenchidíssimas, não conseguimos encontrar uma vaga para nos reencontrarmos até surgir a oportunidade de o visitar durante uma sessão de fotografia que teve como cenário as caves de uma das marcas mais famosas de Vinho do Porto.
Quando cheguei ao edifício localizado perto do cais de Vila Nova de Gaia, evitei pensar nos passeios que partilhara por ali com Mafalda. Aos poucos, ia sobrevivendo à mágoa e não precisava que as lembranças me puxassem para as trevas. O Sol brilhava sobre o rio Douro e os turistas passeavam às carradas pelas margens, observando e registando cada canto que os surpreendia. Estacionei a mota num lugar apropriado e caminhei pela rua com o capacete pendurado no braço. Procurei o símbolo que identificava a marca e entrei pelas amplas portas de vidro. Um segurança informou-me que estavam fechados, mas deixou-me passar quando expliquei que vinha falar com o fotógrafo responsável pela sessão que estava a acontecer lá dentro. Outro segurança encaminhou-me pelo interior e apontou-me o acesso.
O espaço era enorme com grandes pipas de madeira arrumadas junto às paredes de pedra. Logo a seguir, estantes com centenas de garrafas escuras, completamente forradas de pó e com datas anteriores ao nascimento dos avós dos meus tios. O chão empedrado era irregular e poeirento. Pelo meio daquele cenário antigo, foram colocados focos fortes de luz, equipamento de apoio do mais moderno que existia. Numa das laterais, resguardado do restante espaço, fora estruturado um sector para a privacidade dos manequins e outro para hairstyle and make-up.
Peter estava junto ao tripé que enfrentava o cenário, afinando as definições da Canon EOS 1D X, enquanto diversos elementos da equipa de produção se atarefavam pelo espaço. Não via Peter havia cerca de dois anos e notei que a chegada aos cinquenta anos não fora cruel com ele.
— Peter! — chamei, ao entrar na catacumba de vinhos.
Ele olhou para mim e o seu rosto iluminou-se, dirigindo-se para onde eu estava e oferecendo-me um abraço carregado de saudade. Indiferentes a tudo o que nos rodeava, ficámos a conversar sobre as nossas vidas, os acontecimentos... Peter ainda estava com o dinamarquês. Não escondeu o lamento quando lhe contei do desfecho da minha relação com Mafalda. Repreendeu-me por não lhe ter ligado a contar para que me pudesse dar uma palavra de ânimo.
Por entre a conversa, vi uma rapariga a mexer na máquina de Peter. Tinha uma imagem alternativa, deveria ser uns dez centímetros mais baixa que eu. Usava o cabelo castanho comprido atrás e totalmente rapado nas laterais. Vestia uma camisola sem mangas e calças de ganga justas. Os braços estavam completamente tatuados. O corpo era atlético, musculado com as curvas trabalhadas por demasiado exercício físico, o que lhe acentuava o peito e o rabo. Calçava botas da tropa sem atacadores. E usava uns cinco piercings em cada orelha. Era o pacote completo daquilo que eu não gostava numa mulher.
— Quem é a miss tatoo? — questionei, apontando para ela.
Peter sorriu.
— É a Leo, a minha assistente. — informou. — Tal como tu, também é uma fotógrafa talentosa. Acho que ganhei o gosto em ter discípulos. — Deu uma gargalhada. — Conheci-a num workshop em Manchester. Topei-lhe logo o talento e convidei-a para trabalhar comigo.
— É inglesa?
— Luso-galesa. — corrigiu. — A mãe é portuguesa, o pai é galês.
— Parece novinha. — constatei.
— Vinte e um anos.
— Parece ter quinze. — exagerei.
Peter soltou nova gargalhada. Depois, virou-se para o cenário e chamou:
— Leo! — A rapariga virou-se. — Come here.
Leo caminhou até nós, observando-me com semblante curioso, revelando um olhar em tons de mel penetrante.
— Yes?
Percebi que deveria falar português, uma vez que Peter respondeu:
— Este é o Daniel.
— Hello! — cumprimentei.
— Olá! — retribuiu com um sotaque britânico acentuado de quem não fala regularmente a língua portuguesa.
— O Daniel é fotógrafo. — apresentou Peter. — O meu antigo delfim.
Sorri, retorquindo:
— Não digas isso assim, ainda sou obrigado a cantar "sou como um rio".
O rosto de Leo revelou a mais completa confusão, não percebendo ao que me referia. Também não se interessou e ficou a olhar para mim como se esperasse mais alguma informação que justificasse que a tivessem chamado.
— O Peter foi o meu mentor. — continuei. — Ensinou-me muito.
— Oh yes. Peter ensinar very well. Sorry... — Interrompeu-se, atrapalhada com a mistura de idiomas. — O Peter é muito bom profésser. Eu tenho aprendido muito com ele.
— Se preferires, podes falar comigo em inglês. — sugeri, percebendo o seu esforço e notando que o piercing na língua também não ajudava.
— No, no. — recusou. — Quero treinar more o meu portuguese.
Alguém chamou Peter e ele afastou-se. Para minha surpresa, Leo deixou-se ficar a meu lado.
— Também vais trabalhar with us. Sorry... connosco?
As suas trocas divertiam-me. Sorri-lhe e respondi:
— Não. Vim só visitar o Peter. Já não o via há uns tempos.
— O Peter falar muito em ti. — contou ela, coçando o cotovelo. — But... Eu já tinha ouvido about... sobre teu trabalho. — Lançou-me um olhar curioso. — Fotografaste mesmo a supermodel Tânia quando she... quando ela era teenager?
— Sim. — confirmei. — Fomos colegas na escola.
— Oh. — espantou-se. — Eu ver muito trabalhos teus. Gostar muito da forma como tu shoot... fot... fotoin...
— Como eu fotografo?
— Yes. Thank you. — agradeceu numa mistura de embaraço e diversão.
— Já te disse que podes falar em inglês.
— És muito simpático, Daniel. — O meu nome na sua boca soava a algo parecido com "deinial". — E giro!
Percebi o piropo, mas fiz de conta que não ouvi. Desviei a atenção para os manequins que desfilaram para o cenário. Leo afastou-se para junto de Peter sem dizer mais nada.
Fiquei a assistir a toda a sessão fotográfica. Por vezes, Peter desafiava-me a dar uma sugestão, mas eu não aceitei o desafio por uma questão de cortesia profissional. As horas que ali passei foram agradáveis e desanuviaram-me o espírito, apesar de não ser eu quem se ocupava das fotos.
Muitos dos manequins já me conheciam, já tinham sido fotografados por mim. Uma das raparigas, uma loura deslumbrante de ascendência russa, pediu a um assistente para me entregar um papel. Li nele o seu número de telemóvel e um convite para sairmos. Sabia o que ela pretendia com isso, qualquer homem se sentiria afortunado por ter a possibilidade que ela me abria. Atirei-lhe um beijo discreto e pisquei-lhe o olho. Ela sorriu agradada, respondendo com um lamber de lábios. O papel foi parar ao lixo, quando saí dali.
No final da sessão, despedi-me de Peter.
— Vê lá se não ficas tanto tempo sem dar notícias, Daniel.
— Prometo que ligo, Peter. Os últimos tempos é que foram muito complicados.
— Eu compreendo.
Partilhámos um abraço forte.
Quando estava perto da saída para o átrio do edifício, ouvi uma voz chamar-me. Virei-me e vi Leo numa passada rápida atrás de mim.
— Ias embora sem dizer goodbye?
A questão pareceu-me despropositada. Mal a conhecia, que importância tinha se me despedia dela ou não? Contudo, não fui indelicado ao ponto de o verbalizar.
— Desculpa! Estavas ocupada e eu tenho de ir andando.
— I like... Gostava de conversar more contigo. — Franzi o rosto, denotando que não via qual o objectivo. — É sempre bom poder conversar com bons fotógrafers. — Encolhi os ombros, um gesto que ela interpretou como tentativa de encontrar uma oportunidade. — Queres beber um copo? Later? Não sei se vives no Porto...
— Não.
O meu "não" era resposta ao viver no Porto. Leo escutou-o como uma recusa ao seu convite. A decepção que se lhe estampou no rosto, afectou-me. Insurgi-me contra mim. Bolas, a rapariga só queria aprender mais coisas sobre fotografia. Nem tudo o que usa saias te quer comer, Daniel! Bom, ela não usava saia. Se todos fossem tão intransigentes como eu estava a ser, talvez não tivesse aprendido tanto sobre fotografia. Se o Peter tivesse sido assim, eu nunca teria chegado onde cheguei.
— Não, não vivo no Porto. Vivo em Gaia.
O rosto de Leo iluminou-se.
— Oh... Here?
— Não, mais perto da costa.
— Não conheço nada in Portugal. — lembrou, repetindo o tique nervoso de coçar o cotovelo. — Então? Bebemos um copo?
Tive uma ideia que certamente a faria desistir da bebida comigo. Ela não conhecia nada em Portugal, por isso...
— Estou um pouco cansado. Mas, se quiseres, podes passar por minha casa. — Pedi um papel e uma caneta ao recepcionista. Escrevi o endereço do meu apartamento. — Esta é a minha morada.
Leo recebeu o papel, meio perdida. Sorri-lhe como quem ficava a ansiar pela sua chegada e abandonei o local, certo que nunca mais a veria na vida.
Tal como em tantas outras noites, ali estava eu na sala, sentado no sofá, sozinho, a ver o canal Fashion TV na televisão. Gostava de ver os diversos clipes de sessões fotográficas, as reportagens, as conversas com os fotógrafos. Nunca me senti dominador de todo o conhecimento e procurava sempre saber mais e obter novas ideias para a fotografia. O meu serão foi interrompido pelo soar da campainha. Quem seria àquela hora? Alguém a chatear, certamente, algum entregador de panfletos de publicidade. Caminhei até à porta e peguei no intercomunicador.
— Quem é?
— Deinial?
Pela pronúncia, reconheci de imediato a jovem assistente de Peter. Encostei a cabeça à parede, agastado pelo fracasso da minha ideia dessa tarde.
— Sim. — respondi.
— É a Leo. — informou num tom alegre.
Carreguei no botão para abrir a porta do prédio, tendo depois aberto a do apartamento. Ouvi os seus passos rápidos a subir a escada até surgir diante de mim.
Leo vestia um blusão de aspecto militar e uns calções tão curtos que era possível ver a totalidade das suas pernas tatuadas até entrarem nas mesmas botas da tropa sem atacadores.
— Olá! — cumprimentou, adicionando dois beijos como se fossemos amigos de longa data. Sorriu feliz. — Consegui cá chegar.
Entrou sem esperar convite e despiu o casaco, revelando o top justo, estilo caicai, com desenhos de bonecos infantis. O tecido era tão fino que lhe conseguia notar o relevo dos mamilos, uma vez que não tinha dúvidas que era a única peça que vestia da cintura para cima.
— Queres beber alguma coisa? — ofereci, conduzindo-a para a sala.
— Foi para isso que vim. — retorquiu na brincadeira, observando tudo à sua volta. — O que tens to drink?
Não tinha muita coisa, apenas cervejas no frigorífico e algumas garrafas de vinho tinto na garrafeira do balcão da cozinha. Ela escolheu o vinho. Abri uma garrafa de Douro, a mais baratinha que guardava, e trouxe dois copos de pé alto. Leo aguardava sentada no sofá. Servi o vinho e entreguei-lhe o seu copo, sentando-me a seu lado.
— Cheers! — desejou, tocando com o copo no meu.
Bebemos um pouco e Leo começou a falar sobre como gostava de fotografia, relatando a forma como surgira a paixão pela captação de imagens, os estilos com que mais se identificava. Por entre misturas de idiomas e sotaque acentuado, dei por mim a ouvi-la com interesse. Acabei por partilhar a minha história de como aquele passatempo se tornara em profissão, falei dos projectos que realizei, os estilos que mais preferia em contraponto com o que menos apreciava. Sem que me lembre bem como, a conversa foi dar a Tânia.
— I adore her. — confessou, fascinada. — Tânia ser uma mulher muito pretty. — Sorriu envergonhada. — Tenho uma... crush por ela.
— Ela é muito bonita. — concordei, evitando referir que já dormira com ela. Nem sequer falei no namoro da escola. — Não a vejo há anos.
Notei o interesse cada vez mais intenso na expressão de Leo. Não sei se era sede de conhecimento ou efeito dos três copos de vinho.
— Gostei muito daquele photoshoot... — prosseguiu, estendendo-me o copo para que o enchesse novamente. Eu ainda beberricava o primeiro. — Com aquela actress...
Leo referia-se a um trabalho fotográfico que eu fizera para uma revista masculina, onde fotografei uma actriz de telenovelas em topless numa produção nas piscinas de um hotel do Porto. Na altura, fiquei aparvalhado ao saber a fortuna que ela cobrou para ser fotografada assim. Bom... na verdade, o que me chocou foi a revista se ter disposto a pagar semelhante quantia.
Para minha surpresa, Leo esvaziou o copo e pediu:
— Gostava de ser fot... fotógrafade por ti.
Não me importei de satisfazer o seu desejo e fui buscar a minha máquina fotográfica. Puxei uma cadeira para frente do sofá, defronte dela, e sentei-me, observando-a através da lente. Fiz alguns disparos ao seu rosto sorridente, algo inebriado. A seguir, tornei a sentar-me a seu lado e mostrei-lhe as fotos. Ela ficou muito agradada com o resultado, apesar de eu achar que estavam normalíssimas.
— Can you... — Notei que o álcool lhe estava a dificultar a organização das frases, misturando cada vez mais o inglês com o português. — Podes fazer de all body?
Para a fotografar de corpo inteiro, a sala não era o melhor lugar. Por isso, convidei-a a acompanhar-me ao segundo quarto da casa, o qual me servia de mini estúdio. Nunca fotografara lá ninguém, para além de Mafalda. Não era um espaço muito grande, mas as paredes de cor sólida serviam bem para cenário. Devolvi a máquina ao tripé e indiquei a Leo que pousasse como entendesse defronte dela.
Ela seria muito melhor fotógrafa que modelo, pois não tinha grande empatia com a lente. Fez algumas poses simples e eu fotografei-a sem grande pormenor às definições. A cada disparo, Leo vinha até mim para espreitar o resultado e tornava a afastar-se satisfeita. Ao fim de várias fotos, pediu:
— Podemos tirar one together?
— Sim. — concordei, afinando o ângulo para que coubéssemos ambos no plano. Peguei no comando à distância, que me permitia fazer o disparo longe da máquina, e fui para o lado dela.
— Posso? — pediu, olhando para o comando.
Disse-lhe que sim, entregando-lhe o pequeno objecto e explicando onde deveria carregar. Leo pediu que me colocasse atrás de si. Eu era mais alto que ela, pelo que os meus olhos ficavam acima da sua cabeça. Ela encostou-se ao meu peito. Atrás dela, a minha postura era semelhante a um soldado numa parada militar.
— Do you mind... Sorry. Importares-te que seja one foto sexy? — indagou sem se virar.
Sem saber muito bem o que ela consideraria uma foto sensual, concordei, dizendo:
— É como tu quiseres.
Com gestos decididos, Leo levou as mãos ao cimo do top e puxou-o para baixo até à cintura. Não conseguia ver do ângulo onde estava, mas não tinha dúvidas que nada lhe cobria os seios. A seguir, colocou as mãos nas ancas, segurando o comando de forma discreta para que não se notasse na foto. pensei que ia disparar, quando ouvi novo pedido:
— Can you put your hands in my boobs? — Hesitei. E ela insistiu. — Gostava que tu put tuas mãos nos meus mamas... Pleeease?!
Que se lixe. Não ia ser desmancha-prazeres. Passei os braços por entre os seus, que se mantinham apoiados nas ancas, e coloquei cada mão aberta a agarrar um seio. Senti os seus peitos como dois rochedos, certo que havia silicone neles. Nas palmas das mãos, ao toque frágil dos mamilos, juntou-se a sensação fria de dois aros metálicos que calculei lhos perfurassem.
Antes de carregar no botão, questionou num tom provocador:
— Do you like touch my boobs?
— Please, take the picture! — pedi, desconfortável.
Leo fez o disparo, registando o momento. E eu retirei as mãos logo de seguida, ao que ela respondeu com o puxar do top novamente para a posição original.
Aproximámo-nos ao mesmo tempo da máquina. Eu carreguei nalguns botões para fazer um preview... Bolas, já pareço a Leo a falar. Para fazer a pré-visualização da foto. Ela encostou-se intencionalmente a mim e analisou a imagem com agrado. Depois, olhou-me nos olhos e disse:
— I love your work. — O tom era meloso. — Tu és muito... sweet... querido.
Antes que tivesse tempo para qualquer reacção, Leo beijou-me.
Apesar de ter imensas características que eu não gostava numa mulher, as tatuagens, os piercings, o silicone, os músculos muito salientes... ela não deixava ser atraente.
Não me recordo muito bem dos momentos imediatamente a seguir ao beijo. Só já recordo estar deitado no chão do pequeno estúdio, completamente nu, a olhar para Leo igualmente nua a chupar-me entusiasmada. Todo o seu corpo tinha tatuagens, à excepção do peito, barriga, topo das costas, entre as pernas e nas nádegas.
Estava a saber-me bem, fazendo-me perceber que o meu organismo precisava daquilo, reclamando que há demasiado tempo que estava sem sexo. Tentei abstrair-me do "prego" que ela tinha na língua que me provocava uma sensação diferente. Se tivesse pensado nisso antes, julgaria que aquilo me iria magoar. Mas, não. Para além disso, Leo sabia o que fazia.
Ao fim de algum tempo, parou. Olhou para mim visivelmente ébria, ou melhor, bêbeda. Os copos de vinho faziam o seu efeito e ela exagerara na quantidade que bebera antes das fotos. Sorriu divertida. As suas mãos acariciavam-me os genitais. Com a voz entaramelada, sussurrou:
— Tens condoms?
Confesso que mesmo com a minha fluência em inglês, no meio daquela excitação, pensei que me estivesse a perguntar se eu era dono de condomínios. Porém, rapidamente percebi ao que se referia e respondi que não tinha preservativos.
Ao ouvir a resposta, Leo tornou a sorrir e largou-me. Levantou-se do chão, meia cambaleante, e procurou a roupa caída no chão. Pensei que a resposta tivesse sido um turn off do momento. Talvez fosse melhor assim. Aproveitei o seu afastamento para me levantar. Ao ver-me, ela travou-me com um gesto para que esperasse. Ainda bastante excitado, aguardei, observando-a com desejo.
Leo encontrou os calções minúsculos que trouxera vestidos. Procurou o bolso pretendido e retirou uma embalagem imaculada contendo a borrachinha. Malandra, pensei, tinha tudo planeado, a miúda.
Sem perder o sorriso alcoolizado, regressou para junto de mim, ajoelhando-se no chão e segurando o quadrado prateado. Retomou a posição anterior, tocando-me o ombro para que me voltasse a estender ao comprido e rasgou a embalagem com os dentes.
— Can I? — ofereceu-se.
Assenti e vi-a retirar uma borracha redonda verde do invólucro. Com uma ternura bêbeda e dificuldade em acertar, depositou a borracha na extremidade da minha excitação. Desenrolou um centímetro, olhando-me nos olhos com uma expressão lânguida. Piscou o olho esquerdo e baixou a cabeça para continuar com os lábios. Constatando que estava no lugar, Leo elevou-se ligeiramente, desequilibrando-se e quase caindo para o lado, não fosse eu tê-la segurado. Deu uma gargalhada divertida e esforçou-se para não parecer tão ébria.
Não me senti a fazer o mais correcto, parecia que me estava a aproveitar de uma miúda bêbada que tinha uma atracção por mim. É certo que o sexo fora iniciativa dela, mas cabia-me a mim, pela idade e lucidez, ter-lhe posto juízo na cabeça e ter colocado imediatamente um fim naquilo. No entanto, a cena fizera-me perceber que o sexo me fazia falta e ela já me deixara tão excitado que seria difícil parar por ali. Para além disso, estava farto de me preocupar com moralidades, afinal, a vida insistia em lixar-me constantemente, roubando-me as pessoas que mais amava. Borrifei-me para o certo ou errado e deixei que Leo prosseguisse na sua tentativa de acoplarmos.
— Come! — convidou, abrindo as pernas sobre mim.
Ao vê-la assim, a conduzir-me para ela, a imagem de Mafalda atormentou-me a cabeça. Estremeci. Leo não se apercebeu. Subitamente, tive noção que não conseguiria encarar outra mulher, senão ela, para fazer aquilo. Tinha a certeza que, se tentasse continuar e a ver um rosto que não o de Mafalda, o mais certo seria perder a vontade.
— Espera! — pedi, quando ela estava quase a aterrar.
Surpresa, olhou-me com uma expressão confusa.
— Assim não. — expliquei sem grandes explicações. — Levanta-te, por favor. — Ela não se moveu de imediato, esperando mais esclarecimentos. — Quero fazer noutro sítio, não aqui.
Leo sorriu provocadora.
— Oh... Ok. Seu naughty boy.
A imagem de Mafalda continuava na minha cabeça. Que merda, parecia que o seu espírito me queria atormentar e impedir de obter a gratificação daquela cena. Levantei-me do chão, defronte do olhar atento de Leo, expectante para saber o que eu queria. Segurei-lhe na mão, irritado, não com ela, mas com a mulher que mais amara em toda a minha vida e que me afastara de si, impedindo-me de, pelo menos, uma despedida. Sem me aperceber, puxei Leo atrás de mim. Ao sair do estúdio, olhei para o meu quarto. Não! Ali seria o último sítio onde o faria com outra mulher, aquele fora o nosso ninho de amor, o meu e de Mafalda.
Avançámos pelo corredor em direcção à sala. Larguei-a junto ao balcão que separava a sala da cozinha. Leo ficou a olhar para mim com uma expressão de desejo, mordiscando o lábio inferior e com a respiração acelerada.
Eu também estava com a respiração acelerada, excitado, enraivecido e furioso. Tentava afastar para longe do pensamento o rosto de Mafalda sem sucesso. Todo o meu corpo se consumia em desejo pela miúda na minha frente e em ódio pela vida, pela realidade que me roubara o amor da minha vida.
Leo encostou-se ao balcão, apoiando as mãos no tampo de pedra, pensando, talvez, se deveria sentar-se nele.
— Podes virar-te? — sugeri como um pedido que só quereria uma resposta. Sabia que não conseguiria prosseguir se tivesse que encarar um rosto que não fosse o de Mafalda. Por isso, queria que Leo ficasse de costas para mim.
Não vendo qualquer mal nisso, Leo rodou e virou-se para o balcão. Eu puxei-a suavemente pelas ancas, demonstrando o que pretendia. Ela não compreendeu e recusou:
— Not in the ass, Deinial.
Não respondi. Ou melhor, a minha resposta foi encostar a ponta da borracha à sua vagina.
— Sim. — murmurou como um assentimento agradado.
Penetrei-a com a delicadeza de um carroceiro. Ela soltou um gemido que pareceu algo arranhado, mais doloroso que gostoso. Mas, não se queixou. Pouco me importou. Continuava irritado, corroído pela necessidade de extravasar o desejo e consumido por estar a fazer aquilo com alguém que não era Mafalda. Leo não tinha culpa, mas naquele instante era-me meramente um objecto para a finalidade, uma vagina para foder, tão boa como qualquer outra. Assim que me acomodei dentro dela, agarrei Leo pelos ombros e marquei o ritmo.
Não sei se estaria a ser bom para ela, nem me importei. Acho que fui tudo aquilo que sempre achei que um homem não deveria ser num momento íntimo com uma mulher. Ela estava debruçada no balcão, apoiando os cotovelos no tampo e pressionada entre mim e o móvel. Talvez nem estivesse confortável. Mas, não se queixou.
A imagem de Mafalda não me abandonou. Tudo aquilo se tornou desconfortável, não me conseguia concentrar nem obter um prazer decente para além do esvaziar da excitação. Dei por mim a querer que tudo terminasse o mais depressa possível. Intensifiquei o ritmo
No silêncio da sala com a cozinha, o único som era a minha respiração e a voz dela.
— Oh yeah... — ouvi-a gemer.
Larguei-lhe os ombros. Agarrei-a pelo cabelo e enfiei a outra mão por baixo do seu braço, procurando-lhe o seio mais próximo. Continuei a investir brutamente contra ela, dentro dela.
— Oh yes... yes... oh... yes. — A voz dela ecoava pelo espaço amplo. Fechei os olhos, imaginando que era Mafalda quem ali estava. Era sujo, eu sei. Só mesmo um traste é capaz de estar com uma mulher a pensar noutra. Concentrei a atenção nas sensações de prazer, tentando abstrair-me de a escutar. — Yes... oh yes... fuck me Deinial... yes... oh... fuck me... fuck me hard.
A voz dela desconcentrava-me e dava-me a estúpida sensação de atrasar o orgasmo. Soltei-lhe os cabelos que segurava como se fossem um puxador e deslizei a mão pelo seu pescoço, pelo queixo, pela boca e cobri-lhe os lábios para a calar.
Leo levantou um dos braços com que se apoiava e levou a mão à minha, puxando-me o pulso. Não conseguiu e os seus gemidos tornaram-se mudos, amordaçados pelos meus dedos.
Aquilo só durou mais alguns minutos. Para mim foram como horas intermináveis, mas calculo que para Leo não tivesse passado de uma escassa meia dúzia de minutos. Quando atingi o auge, os espasmos percorreram-me o corpo e o ritmo foi desacelerando até ficarmos imóveis. Saí de dentro dela sem qualquer sensibilidade, afastando-me sem uma palavra e com a certeza que o prazer dela naquilo fora pouco mais que zero.
A lucidez do pós-orgasmo fizera-me cair na realidade, de como fora tudo aquilo que sempre achei que um homem não deveria ser num momento íntimo com uma mulher. Não consegui encará-la de imediato e, quando ela se começou a voltar para mim, eu virei costas e refugiei-me na casa de banho.
Não foi nada que se assemelhasse a fazer amor com Mafalda. Talvez por isso mesmo, porque não estávamos a fazer amor, estávamos a fazer sexo. Fiquei sentado na sanita a pensar como agir, o que fazer. Não me orgulhava de ter sido tão insensível, mas também não dera muita importância a isso. Na verdade, estava mais desiludido com a minha postura que propriamente com aquilo que Leo pudesse pensar ou sentir. Ouvi os seus passos no corredor. Pelo som, percebi que fora ao estúdio buscar a roupa. Para fazer tempo, entrei no polibã e passei o corpo por água, desejando que ela tivesse a cortesia de se ir embora antes de eu sair da casa de banho. Cortesia? Mereceria eu cortesia?
Não ouvi nada, quando fechei a água. Enrolei uma toalha à volta da cintura e saí para o corredor. Não tive sorte, Leo permanecia na sala, já vestida, em pé com os braços cruzados sobre o peito e uma expressão neutra, aguardando que eu reaparecesse.
—I have to go. — disse sem se importar em falar unicamente inglês, quebrando a ausência de sons.
Já era tarde, muito tarde. O relógio indicava que as duas da madrugada já haviam ficado para trás.
O Daniel de um tempo anterior ao desaparecimento de Mafalda teria ficado preocupado com uma rapariga em trajes reduzidos que teria de apanhar um táxi, onde raramente passaria um, para regressar ao hotel. Esse Daniel, teria imediatamente oferecido boleia para a transportar em segurança, teria pedido que ela esperasse um pouco, ia vestir-se, emprestava-lhe um capacete e faria com ela a pequena viagem. Porém, esse Daniel parecia ter morrido juntamente com Mafalda.
Para quê preocupar-me com a segurança dos outros, proteger, evitar que corressem perigos, se do nada aparecia a merda de uma doença e decepava-me de quem eu mais amava? Não voltaria a ter esse tipo de preocupações, muito menos com uma semi-desconhecida que não passara de uma foda.
— It's late. I have to go. — repetiu, não sei se à espera que lhe desse uma solução.
Anuí indiferente e disse:
— É melhor chamares um táxi, antes. Não costumam passar por aqui, a menos que os chamem para cá.
O seu rosto demonstrou decepção. Que queria ela? Que lhe dissesse "se quiseres, podes ficar, podes dormir cá, esta noite"?
Foi a vez dela assentir indiferente.
— Tens algum táxi number?
Abanei a cabeça e não me mostrei disponível a ajudá-la. Estava a ser um autêntico crápula. Ela percebeu. Aliás, era evidente que a queria dali para fora o quanto antes.
— Can you... — Abanou a cabeça, refilando consigo. — Podes enviar fotos para meu email? — Esboçou um sorriso. — Gostei muito de fazer fotos contigo. E do resto...
Não sei muito bem o que me fez "descer à terra", tomar consciência que estava a ser uma vergonha de ser humano. Do nada, imaginei o que diriam os meus tios se vissem aquele meu comportamento. Não se orgulhariam, tenho a certeza. Para além disso, havia algo de frágil e magoado na voz de Leo.
— Claro que sim. — concordei. — Qual é o teu email?
Leo informou o endereço e eu escrevi-o nas notas do meu telemóvel. Tornou a esboçar um sorriso e despediu-se:
— Goodbye Deinial!
— Espera! — pedi, cada vez mais lúcido. Leo ficou imóvel a encarar-me com expectativa. — Desculpa! — Ela pareceu confusa. — I'm sorry!
Eu não disse mais nada. Leo teve a simpatia de anuir sem que eu tivesse necessidade de justificar o pedido.
— Não precisas desculpas. — respondeu, fazendo um aceno de despedida.
— Espera! — pedi de novo, ao mesmo tempo que olhava para o telemóvel. — Deixa-me chamar-te um táxi.
A sua resposta foi uma expressão agradecida.
Pesquisei rapidamente, na Internet, um serviço de táxis que estivesse disponível vinte e quatro horas e que abrangesse aquela zona. Ao encontrar, marquei o número e solicitei o transporte, explicando a minha localização e o destino do passageiro.
— Chega em dez minutos. — informei-a, ao desligar. — Podes esperar aqui, não precisas de ir lá para baixo.
Leo recusou a oferta. Percebi que tinha pressa em sair dali. O desconforto era recíproco. Pensei em oferecer-me para pagar o táxi, mas tive a decência de não o fazer, uma vez que depois do que havíamos feito junto àquele balcão, isso seria quase como estar a pagar a uma prostituta.
— Prefer esperar no rua. — adicionou.
Não a contrariei e acompanhei-a à porta, tendo o cuidado que a toalha não caísse com os meus passos. Abri a saída e sorri-lhe simpaticamente.
Ela retribuiu o sorriso e pediu:
— Can I kiss you?
— Sim. — respondi, baixando-me ligeiramente e dando-lhe um beijo nos lábios.
Foi como uma espécie de trégua, um acordo tácito de que estava tudo bem e não haveria cobranças pelo que fora bom ou não, naquela noite. Antes de sair, acariciou-me o peito nu com ternura.
— Posso return... — Riu atrapalhada. — What a hell... Estou sempre a mix o english com o portuguese.
— Não faz mal, eu percebo-te. — retorqui, cansado. — E já te disse que podes falar sempre em inglês.
Acho que o beijo de despedida lhe criou expectativas que eu não tivera intenção.
— Posso voltar tomorrow, if you want... se quiseres.
Apesar de tudo, Leo queria repetir. Eu fora um péssimo amante. Ela não merecia que eu a tivesse usado daquela forma, só para expurgar os demónios da minha alma e saciar a fome sexual. Não queria fazê-la passar pelo mesmo. E seria isso que aconteceria se ela voltasse. No entanto, Leo era uma mulher interessante, se me abstraísse de toda a pintura e espetos que carregava na pele, e o meu lado mais animalesco não se importaria de repetir... Mas, não ali, não na casa onde vivera os momentos mais felizes da minha vida. Talvez num outro cenário, Mafalda não aparecesse na minha mente. Abanei a cabeça.
— Aqui não. — recusei sério. — Vou ter contigo ao hotel, se quiseres. — Ela sorriu com a sugestão. — Não precisas de vir de táxi como hoje. Vou lá ter contigo.
Olhou para mim numa mistura de carinho e desejo. Anuiu, soprou-me um beijo e foi-se embora.
Não tinha sono, quando fui para a cama. Não conseguia deixar de pensar em Mafalda, imaginando que ela me observava do Céu, ferida, magoada, triste por a ter traído com outra. Senti a tristeza abater-se sobre mim, intensificando ainda mais a escuridão do quarto onde não conseguia habituar-me a dormir sozinho, desde a última noite que Mafalda lá dormira. Ao fim de muitas voltas na cama, acabei por adormecer.
Acordei com o toque do telemóvel, a meio da manhã, despertado por um cliente que me queria contactar. Não atendi para não revelar a voz de sono com que falaria com ele e só retribuí o telefonema mais tarde. Pelo menos, servira para me despertar. Uma hora depois, já estava na cozinha a tomar o pequeno-almoço e a rever as fotos da noite anterior na máquina fotográfica, relembrando o compromisso que assumira com Leo de lhas enviar por email. A minha análise às fotos foi interrompida quando o meu telemóvel voltou a tocar, desta vez um amigo. Não me recordo a razão do telefonema do Peter, apenas aquilo que o tornou importante, o que se cruzou no nosso diálogo.
Peter estava a dizer-me algo, quando pediu:
— Espera um pouco, Daniel. A Leo acabou de chegar e tenho um recado para ela.
Aguardei, ouvindo-o a chamá-la. Entres eles falavam sempre em inglês e, como ele não tapou o microfone, eu ouvi o recado. A mensagem traduzida foi algo do género "o teu marido ligou, diz que tentou contactar-te várias vezes sem sucesso e pede para lhe ligares".
Disfarcei a surpresa, quando Peter regressou à linha.
— Marido? — interroguei. — A Leo é casada?
— Sim, porquê? — confirmou, desconfiando da pergunta.
— Por nada. Parece tão nova.
— Vá lá, Daniel. A miúda tem vinte e um anos. Não é assim tão anormal estar casada.
Pois não. Anormal é ser casada e ter relações sexuais com outro homem.
Ao fim da tarde, fui de mota até ao hotel onde Peter e Leo estavam hospedados. De capacete na mão, dirigi-me ao recepcionista e pedi para avisar a fotógrafa que eu chegara. Eficiente, ele pegou no telefone e ligou para o quarto dela.
— Ela diz para o senhor subir. — informou.
Recusei.
— Desculpe, mas diga-lhe que prefiro que ela desça.
O funcionário voltou a encostar o aparelho ao ouvido e transmitiu o meu pedido.
— Ela desce já. — disse, pousando o auscultador.
— Obrigado.
Caminhei até aos sofás do átrio e sentei-me.
Leo apareceu com uma indumentária semelhante à da noite anterior. Trocara apenas os calções por calças. Revelou alguma estranheza na expressão, quando me viu, quase como se interrogasse o porquê de ter-me recusado a subir. Acho que o meu rosto deve ter denunciado que algo não estava bem, uma vez que ela parou a um metro de mim e cumprimentou distante:
— Hi!
— Olá!
— Não quereres subir? Fiquei com ideia que vires para... — Fez uma expressão de "sabes ao que me refiro" e coçou o cotovelo.
— Tu és casada? — atirei com rudeza.
A pergunta fê-la arregalar os olhos, talvez questionando-se como eu descobrira. Pelo menos, teve a decência de não tentar negar ou inventar uma patranha qualquer.
— You don't ask. Tu no...
— Não precisas traduzir. — interrompi num tom ríspido. — Não achas que me devias ter dito?
Perante a minha agressividade, Leo correspondeu com um semblante agreste.
— Foi only... apenas sex. — afirmou, fulminando-me com o olhar. — E foi... How do you say? Rough sex. — Pela primeira vez, deixava claro que eu não fora nada meigo e fora sexualmente rude e agreste com ela. Notei que uma certa raiva lhe crescia na voz, mas procurava conter-se por estarmos num lugar público. — No one... Nenhum de us quer more que isso. Apenas sex. — Atirou um sorriso escarninho. — If you... Se tu saberes que eu ser casada, no fuck me?
Percebi a irritação crescente na forma trapalhona como misturava as palavras. Calculo que tudo o que fora mau para ela, na noite anterior, ficara arrumado num canto do seu cérebro para agora vir ao de cima e enfrentar-me com algo do qual eu próprio me envergonhava.
Contudo, não dei parte fraca e falei com a mesma segurança e rispidez, mantendo igualmente o tom baixo para não atrair a atenção de outros hóspedes ou funcionários.
— Não! — afirmei seguro disso. — Não me agrada ser motivo de adultério. — A palavra não foi entendida por ela, por isso expliquei. — Que me uses para enganar o teu marido.
— Oh God!!! — exclamou exasperada. — Não deves ser tão old... tão... Shit! Qual ser a palavra...?
— Antiquado? — Mais uma que ela não compreendia. Lancei nova opção. — Conservador?
— Yes!
— Sou como sou.
Leo não quis dar-se por vencida. Olhou para cima, abanou a cabeça e suspirou.
— Seres um... — Esperei que ela concretizasse sem a ajudar a encontrar a tradução para português. — You are a fool.
Não, não era um tolo. Ou talvez fosse...
— Já te disse, sou como sou.
Houve um impasse no diálogo. Não sei o que ela esperava de mim. Nem sequer sei o que esperava eu de tudo aquilo. Enquanto a observava, concentrei-me em tudo o que ela tinha que me desagradava. Contudo, Leo não revelou encarar a situação como um ponto sem retorno, aliás, até demonstrou que tudo se poderia resolver facilmente, alterando o tom para um timbre meloso e sedutor:
— Vou ficar mais uns semanas in Portugal. Why... Porque no aproveitar? Podemos divertir a lot... muito. Meu marido não precisar saber. Forget him!
Com o sorriso amarelo, revelei o quanto estava desapontado.
— Fica bem, Leo!
E virei costas.
Leo encurtou a distância e segurou-me o braço.
— Please. Don't go.
O seu olhar revelou-se carente. Que raio? Eu não precisava daquilo. Não esperou resposta e aproximou a boca do meu rosto. Julguei que me fosse dar um beijo na face, mas ao invés, segredou-se ao ouvido:
— Please. Sobe comigo. Poderes ser... rough... bruto comigo, outra vez. I don't mind.
Afastei-a com gentileza e olhei-a nos olhos.
— Não faças isso. — pedi num tom afável. — Nunca te submetas a ser... maltratada. — Sorri numa expressão idiota. — Acho que não te maltratei, talvez tenha sido rude e não tenha feito com que fosse gratificante para ti, mas... Bolas, não te maltratei.
Apesar de falar com poucas pausas, ela compreendeu tudo o que eu disse. Abanou a cabeça e esboçou um semblante triste.
— No. Tu não me fazeres mal. — Encarou-me o olhar. — Mas, foi um lousy sex, um péssi...
— Eu percebi, Leo.
— Sobe! — exigiu. — Deveres-me isso.
— Não te devo nada. — retorqui, afastando-lhe a mão que me segurava o braço. — Fica bem, Leo.
E com aquelas palavras, deixei-a sozinha no átrio do hotel.
Peter e Leo permaneceram no Porto algumas semanas, quase até Agosto. Peter e eu conversámos muitas vezes por telefone e chegámos a encontrar-nos mais duas vezes para beber um copo e desfrutar da companhia do outro. Não voltei cruzar-me com Leo em todo esse período. Perto da data da partida de regresso a Edimburgo, o meu amigo e mentor visitou-me em minha casa. Foi uma noite animada, recordando outros tempos, desde que nos conhecêramos, passando pela minha ida para a Escócia, o seu apoio e aprendizagem, até ao momento em que regressei a Portugal.
— Achei que eras louco. — confidenciou. — Regressar logo num ano em que a crise estava instalada cá, o resgate financeiro, a economia a cair...
— Sabes bem porque vim.
— Mafalda.
Assenti, fazendo um gesto para que falássemos sobre outro assunto.
Devemos ter estado umas quatro horas, sentados à mesa na minha sala, a dialogar sem dar pelo tempo passar, com minis de cerveja a refrescar as gargantas. Fora quase como se folheássemos um álbum de fotografias, recordações de outros tempos. Já nos conhecíamos há muitos anos.
Peter olhou para o relógio, já era tarde, mais tarde do que esperara que fosse.
— Quando é que partes?
— Amanhã à noite. — A resposta parecia trazer pendente um outro assunto, algo que ele queria falar e não sabia como começar. — Daniel! Posso fazer-te uma pergunta? Não leves a mal.
— Claro, Peter. Diz!
A hesitação levou-me a suspeitar que era um assunto delicado.
— Tu e a Leo... — Acho que a expressão do meu rosto respondeu por mim. — Bem me parecia.
— Não sabia que ela é casada. — apressei-me a justificar, quase como se ele fosse o marido dela. — Aconteceu uma vez.
Peter fez uma expressão de ponderação.
— A Leo é boa rapariga e tem uma grande admiração por ti. Claro que é errado enganar o marido. — Fez um sorriso torcido. — Cá para nós, não foste o único com quem ela o traiu. Já houve outros. Mas, isso agora não interessa. — Olhou para mim com um semblante maduro, alguém com quem se poderia aprender bastante, se estivesse atento. — Fizeste bem em não te voltar a envolver com ela. Mas, seria necessário ter cortado totalmente?
— Não quis arriscar a que voltasse a tentar.
— Por favor, Daniel. Já és crescidinho para saber recusar essas coisas. Ambos sabemos quantas vezes foste assediado e recusaste.
— Sim, é verdade.
— Como te disse, tirando a parte da atracção física que possa ter por ti, a Leo tem uma enorme admiração pelo profissional que és. E sei que está triste por a teres afastado de forma tão dura.
— Ok, Peter. Talvez tenhas razão. Que sugeres?
— Não a deixes ir embora sem se entenderem. Dá-lhe uma oportunidade de se manterem em contacto. Ela já percebeu que não queres nada com ela, como mulher. Mas tenho a certeza que ficaria feliz se pudesse voltar a falar contigo, que lhe deixasses a porta aberta. — Parou para que eu assimilasse a ideia. — Ela quer ser tua amiga.
— Vou pensar.
Peter levantou-se, informando:
— Saímos do hotel a meio da tarde.
Unimo-nos num abraço forte, dois irmãos que se despediam sem saber quando as vidas lhes permitiriam reencontrar-se.
As suas palavras permaneceram na minha cabeça muito depois de se ter ido embora.
O Sol brilhava quente, o Verão parecia despontar a norte, após tantos dias de calor triste. Não tinha nada agendado, daí que tivesse aproveitado a manhã para um passeio na praia. Habituara-me a caminhar pelo areal sempre que precisava de colocar as ideias em ordem.
Logo após o almoço, vesti o blusão de motociclista que usava sempre, estivesse frio ou calor, quando andava de mota. Peguei no capacete e preparei-me para sair de casa. Nesse momento, o meu telemóvel tocou. Não reconheci o número, por isso não atendi, mantendo a concentração na missão que destinara para mim. Desci as escadas e saí para a rua com novo toque do mesmo número. Voltei a não atender. Subi para a mota e liguei o motor potente que começou a roncar, fazendo-se ouvir bem longe. Coloquei o capacete na cabeça e arranquei rumo ao Porto.
O hotel não tinha quase movimento nenhum. Àquela hora, os turistas andavam a passear pela cidade e quem viera em trabalho estaria nos seus afazeres. Entrei com o capacete na mão e depositei-o sobre o balcão, aguardando que alguém aparecesse. Uma recepcionista carregada de simpatia protocolar interpelou-me para saber em que me poderia ser útil. Pedi para ligar para o quarto de Leo e a informasse que eu estava ali.
— Ela pergunta se quer subir. — transmitiu a funcionária, após fazer a ligação ao quarto.
Não seria boa ideia ir até ao quarto dela.
— Diga-lhe que prefiro que desça.
A minha decisão foi transmitida.
— Ela diz que desce já. — informou, desligando o telefone. — Se quiser, pode aguardar no bar. Eu digo-lhe que a espera lá.
Agradeci e afastei-me para a porta indicada. Entrei num espaço mais recatado, completamente vazio de pessoas, e sentei-me ao balcão. Um outro funcionário do hotel materializou-se através de uma porta de serviço.
— Quer tomar alguma coisa, senhor?
— Pode ser um café.
A espera foi mais longa que o expectável. Deu para beber o café e começar a pensar se a recepcionista lhe dera a indicação certa ou se lhe chegara mesmo a dizer alguma coisa. Porém, ao fim desse tempo, Leo entrou no bar com o olhar a procurar-me, o que não foi difícil já que eu era a única vivalma ali. Trazia o rosto fechado, muito séria, o cabelo preso com um elástico e vestia uma t-shirt escura gasta com o símbolo de uma banda e calças de ganga cheia de buracos. Escusado será dizer que calçava as botas do costume. Dirigiu-se a mim, coçando o cotovelo.
— Hi! — cumprimentou, parando atrás do banco a meu lado. Manteve o semblante rígido e o tom era duro. — Que surprise. Não esperar voltar a te ver.
— Caíste? — questionei, olhando para as suas calças. Leo desmanchou-se a rir. Eu gostava daquele sorriso. — Não queria que fosses embora sem nos despedirmos.
Leo retomou a postura séria, mas perdeu a dureza na voz.
— I... Eu pensara que tu don't... no querias voltar a ver-me.
— Senta-te. — convidei. Ela aceitou e ocupou o banco vago. — Queres tomar alguma coisa? — Abanou a cabeça. — Quero conversar contigo. Acho que exagerei. Não precisava de ter sido tão duro.
— I like... — ripostou escarninha. — Eu gostar de te ver duro.
Eu ia a explicar, quando percebi o seu trocadilho.
— Pára com isso. — pedi, retribuindo o sorriso que despontara no seu rosto. — Sabes ao que me refiro. — Ela anuiu. — Tu és uma tipa fixe. Tens esse ar maluco, mas eu gosto de ti.
— Vou embora daqui a few hours. — lembrou, mantendo o tom humorado. — You had your chance. Ter tua oportunidade antes.
— Pára com isso, Leo! — Baixei o tom para que o empregado não ouvisse. — Não estou a falar de sexo.
— Rough sex. — lembrou, desviando o olhar para o balcão.
— Já pedi desculpa por isso.
— Eu sei. Just kidding.
— Gostava que pudéssemos ser amigos. — sugeri.
— With benefits?
— Não. Nem coloridos.
— Ok. I try.
Partilhámos uma gargalhada.
— Quis vir aqui dizer-te isto, que adorava que mantivéssemos o contacto. — Retirei um cartão do bolso e entreguei-lho. — Tens aí o meu número de telemóvel, o email e o meu Facebook.
Leo pareceu ficar emocionada. Disfarçou, puxando o telemóvel do bolso das calças. Digitou o número que leu no cartão e carregou no "verde". O meu telemóvel tocou e ela desligou.
— Ser o meu mobile. At home, enviar um email para tu... para ti. And add you to my Facebook friend's list.
— Ok.
Leo levantou-se.
— Can I... Posso dar-te um hug... um abraço?
— Claro.
Saltou do banco onde estava sentada e aproximou-se de mim. Envolveu os braços no meu pescoço e apertou-me com carinho. Eu envolvi-a pela cintura e fi-la sentir-se querida.
Junto à minha orelha, sussurrou:
— Can I kiss you?
Afastei-a e apontei para a minha face. Ela abanou a cabeça.
— Please... — Apontou para o seus lábios. — A goodbye kiss.
Não sei porquê, olhei em volta. Foi um movimento reflexo. Acho que não queria que Peter aparecesse ali e me visse a dar-lhe o beijo que ela queria. Leo aguardou, olhando igualmente em redor. Apenas nós ali estávamos. Puxei-a pela cintura e partilhámos um último beijo na boca.
— Thanks! — sussurou, afastando-se. — Obrigado!
Abandonámos o bar e caminhámos para o átrio. Perto da recepção, parámos conscientes que era o momento em que cada um seguiria um caminho diferente. Mas, talvez um dia nos reencontrássemos como bons amigos. Sorrimos um para o outro. Abracei-a uma última vez. Dei-lhe um beijo terno no rosto.
— I will call you! — prometeu, despedindo-se.
— Leo! — chamei, curioso. — Leo é o teu nome verdadeiro?
Ela abanou a cabeça.
— É um... Como dizem em portuguese? Small name?
— Alcunha?
Leo fez um gesto com a mão de "mais ou menos".
— Diminutivo?
— Sim.
— Qual é o teu nome?
— Leonarda. Leonarda Redfield.
Um nome que se tornaria famoso na fotografia mundial daí a uns anos.
Ao regressar a casa, o meu telemóvel voltou a ecoar, anunciando o número que eu não conhecia e que já me ligara antes. Poderia ser um cliente novo, alguém com uma proposta de trabalho. Agora que o assunto "Leo" já não me ocupava a mente, decidi atender.
— Daniel? — questionou uma voz rouca, feminina, que não reconheci.
— Sim...
— Olá, Daniel! É a Kátya.
A surpresa foi total, seguida da alegria de voltar a ter notícias dela, algo que se atenuou ao recordar-me da sua última mensagem, afastando-se e pedindo para que nunca a procurasse.
— Olá! — cumprimentei num tom seco.
— Como estás?
A sua voz fazia-me alguma confusão, ecoava arrastada, dorida.
— Estou bem. E tu?
A resposta foi:
— Ainda vives em Edimburgo?
— Não. Regressei a Portugal há uns tempos.
Houve uma pausa, o que acentuou a minha curiosidade pelo seu telefonema. O que a levaria a telefonar-me depois de vários anos sem dar notícias?
— Daniel. Preciso conversar contigo.
— Diz.
— Pelo telefone, não. Será que nos podíamos encontrar?
Suspirei sem vontade de fazê-lo. Ainda me sentia magoado por ela me ter abandonado.
— Kátya... Tu deixaste bem claro, na tua última mensagem, que não me querias por perto.
— Eu sei, Daniel. Só que... É um assunto muito complicado, preciso da tua ajuda. Sei que parece egoísta, pedir-te ajuda, tendo partido sem me despedir... Quando te contar, irás perceber.
As suas palavras não alteraram a minha vontade.
— Estou com muito trabalho. Daqui a umas semanas, isto acalma e eu ligo-te a combinar. — sugeri como desculpa sem intenção de lhe telefonar.
— Por favor, Daniel... É um assunto urgente.
Notei algum desespero na voz, crente que isso se iria tornar em súplica. Apesar de tudo, seria incapaz de lhe negar auxílio.
— Onde te queres encontrar?
— Será que me podias visitar?
— Ir a tua casa? — interroguei, imaginando-a a viver na região de origem, o Algarve.
— Voltaste para Almada? — questionou, como se não tivesse ouvido a pergunta.
— Ainda tenho lá casa, mas actualmente vivo em Gaia.
Escutei um suspiro vencido no outro lado.
— Sei que é muito o que te peço, mas precisava mesmo que viesses a sul. — insistiu, tossindo e respirando devagar. — Eu estou a viver em Palmela. Achas que conseguias vir cá? Ainda esta semana?
Honestamente, não me custava nada fazer trezentos quilómetros de mota. Sempre fui um espírito livre em cima das duas rodas e sempre que podia, ia levar os duzentos cavalos a passear. Contudo, não encaixava no interesse que poderia haver em tornar a vê-la. Tal como Kátya escrevera, nós fomos uma fase bonita na vida um do outro. Só que essa fase já fora arquivada nas nossas histórias, anos atrás.
— Vou ver o que posso fazer.
— Por favor, Daniel...
— Não podes ao menos dizer a razão de tanta urgência?
— Pelo telefone, não.
Em nome de tudo o que havíamos partilhado, acabei por concordar em viajar para sul daí a dois dias.
A manhã despontou com um Sol forte, brilhando pela costa arenosa. No meu terraço, avistei o mar, bebendo um café e já vestido para a viagem. Gostava daquele lugar, a tranquilidade, o conforto. O apartamento estava cheio de recordações de Mafalda e era o lugar onde eu fora tão feliz com ela. Tinha outro apartamento alugado, o de Almada, a casa onde nasci e onde os meus tios me haviam criado. Contudo, esse parecia ser uma recordação distante, algo que passara e talvez já não se justificasse mantê-lo. Iria começar a pensar em deixar aquela casa? Sim, pensaria melhor nisso, no regresso.
Vesti o blusão e pendurei o capacete no cotovelo, segurando as chaves de casa e certificando-me que desligara tudo o que não era necessário na minha ausência. Contava retornar ao fim do dia. Desci as escadas e saí para a rua, caminhando para a mota ao mesmo tempo que colocava a protecção na cabeça. Liguei a ignição e o potente motor rosnou, ansioso, como se adivinhasse o longo percurso de que iria desfrutar.
Segui dentro dos limites de velocidade pelas estradas até alcançar a A29, a qual não ficava muito longe. Entrei no acesso para sul e acelerei, saboreando a potência da máquina, atento a potencias radares de velocidade escondidos. Cruzei-me com a A41 na zona de Espinho e alguns minutos mais tarde, seguia numa linha paralela perto da principal auto-estrada do país. Percorri-a até ao fim, até ao momento que me obrigou a entrar na A25 e escolher a direcção de Aveiro. Poderia ter feito todo o percurso pela A1, mas circular pelas auto-estradas do litoral implicava menos trânsito. O trajecto na A25 foi curto e serviu somente para o Sol se esconder. Como não desviei para a cidade, a A25 deu lugar à A17 sem que tivesse de modificar a minha linha de estrada. Com a via veloz a aproximar-se mais da costa, o Sol tornou a despontar, ultrapassando as nuvens. Em menos de uma hora, estava na região de Leiria e trocava a A17 pela A8. Estava tão habituado a andar de mota que não senti necessidade de parar, indo contra o bom senso de pausar a viagem a cada duas horas. Cerca de mais uma hora e duas portagens, novo desvio na placa que indicava o acesso à Ponte Vasco da Gama. Poderia eventualmente continuar e ir pela A2, atravessando a Ponte 25 de Abril, mas assim encurtava caminho. Fui desembocar ao Túnel do Grilo já com indicações da A12 e, passando este, avistei os altos pilares da ponte mais comprida do país ao fundo. Quase como um míssil, a mota cruzou o rio Tejo pelas mais de dezena e meia de quilómetros. Chegado à margem sul, que não era a minha Margem Sul, fiz a primeira paragem na estação de serviço.
Passava do meio-dia e o Sol escondera-se por completo atrás do manto cinza claro de nuvens. A fome apertara e o meu destino foi o restaurante para lá das bombas de combustível. Comi umas sandes de carne e bebi uma cola sem querer perder demasiado tempo.
Novamente no asfalto, avancei pela A12 rumo a Setúbal. Quase não havia trânsito. Mais uma portagem... Constatei que já deveria ter feito uma boa soma de contribuição para as concessionárias. No final desta via, desviei para a saída de Setúbal e logo a seguir para a seta de Palmela. Nunca andara por ali e só a atenção evitou que tivesse ido mesmo para a terra do choco frito. A viragem para Palmela fez-me entrar na A2, rumo a norte, como se estivesse a voltar para trás. Porém, a saída seguinte não enganava, uma curva de duzentos e setenta graus para uma rotunda de formato esquisito, tipo uma oval que levara uma pancada num flanco. As indicações da primeira saída não me diziam nada, pelo que continuei a contornar até à segunda. Lá estava a placa a apontar Palmela. Avancei pela estrada nacional com o acelerador mais leve, atravessando um lugar chamado Volta da Pedra, uma recta grande que terminava num cruzamento. A seta para a direita era Palmela, mas perto de entroncar com a outra estrada, vi Aires na direcção oposta. Numa manobra rápida que não evitou uma buzinadela, virei para sul.
Kátya estava a viver na região de Palmela, mas não na vila. E neste caso, uma coisa e outra ficavam em pontas opostas. Desci a nacional 252, vendo o aglomerado de casas a descer, à minha esquerda. Não fazia a menor ideia onde ela morava, apenas o nome da rua e que era num prédio de apartamentos. Aires tinha mais moradias que apartamentos, à primeira vista, pelo que não deveria ser difícil. Virei no primeiro semáforo, o que foi um erro. Desci a estrada sempre em frente. Um entroncamento dava indicações que não me interessavam. Continuei em paralelo com a linha de comboio e fui dar a outra rotunda, muito mais pequena, junto da estação ferroviária. Ali não havia nada, senão carros e qualquer comboio que passasse. Prossegui para a zona habitacional, atravessando uma outra zona onde as moradias pareciam estar a despontar em lotes para venda. Vi uma escola e várias ruas de moradias que se cruzavam com a via principal. Virei naquilo que me pareceu ser uma espécie de avenida, ladeada por prédios de princípio ao fim. Mais ou menos a meio, vi uma pequena pastelaria. Pareceu-me um bom sítio para perguntar pelo nome da rua. Fiz a transgressão de passar com a mota por cima do passeio, parei-a a uns metros da porta e entrei no estabelecimento, colocando o capacete no topo da cabeça.
O empregado do café informou-me que a morada que eu procurava ficava exactamente atrás daquela avenida, uma rua paralela. Simpático, questionou se eu sabia o número.
— 110.
— Está com sorte. — retorquiu com um sorriso. — Aqui ao lado está uma passagem para essa rua, a porta do prédio fica aí. Essa pessoa deve viver aqui por cima.
Agradeci as informações e saí. Estacionei a mota melhor, numa zona de carros, e caminhei na direcção que me indicara. A linha de prédios era cortada por um túnel que ligava a avenida com a rua.
Toquei à campainha.
— Quem é? — perguntou uma voz entre os estalidos do intercomunicador.
— Sou eu, Kátya. O Daniel.
A fechadura estalou e a porta destrancou-se. Entrei num átrio amplo com umas escadas largas e com muita luz natural. Sabia que ia rever Kátya dentro de segundos e senti o recalcamento por todos os anos decorridos desde que ela se afastara. Estava desejoso de a confrontar, querer saber porque o fizera, porque estivera tanto tempo sem dar notícias, porque exigira que nunca a procurasse... E agora vinha pedir-me auxílio? Subi as escadas de rosto fechado, podia entender-me com ela, voltar a ser seu amigo, mas tinha umas quantas coisas para lhe descarregar antes que isso acontecesse. Porém, tudo isso se esfumou, quando a vi à minha espera, apoiada na ombreira da entrada do apartamento.
Nada me poderia ter preparado para a ver naquele estado. Kátya estava muito magra, mais magra que quando eu a resgatara da rua, da vida de sem-abrigo. Vestia uma camisola escura, demasiado larga, e umas calças de ganga gastas. Contudo, o que mais me chocou foi o lenço na cabeça. Já vira aquela imagem noutra pessoa e conhecia demasiado bem a causa.
Kátya sorriu e eu sorri-lhe. Não disse nada, nem ela, e limitei-me a abraçá-la com cuidado para o capacete na mão não a magoar. Percebi instantaneamente a urgência da minha visita. A expressão no olhar revelava que os sentimentos por mim não tinham desaparecido. Beijei-lhe a face. Ela convidou-me a entrar para um corredor pequeno e escuro.
— Há quanto tempo estás doente? — indaguei, vendo-a fechar a porta.
— Algum...
— Onde é...? — interroguei sem precisar de completar.
— Nos pulmões.
Podia estar enganado, mas infelizmente confirmara-se o que tantas vezes lhe repetira, "o tabaco ainda te vai matar".
— Agora percebo a urgência.
Kátya fez um sorriso cansado e disse:
— Não, não percebes.
Convidou-me a segui-la pelo corredor até uma porta larga, o acesso à sala, onde o som da televisão ecoava forte em frente a duas poltronas, uma mesa e três cadeiras. Tudo normal, não fosse a minha atenção ter sido captada para a criança que brincava no chão, vendo os desenhos animados no ecrã. A menina deveria ter uns quatro ou cinco anos, de cabelos escuros e expressão muito parecida com a de Kátya, olhou para mim e ficou petrificada.
— É tua filha?
Kátya sorriu para ela e, passando por mim, confirmou:
— Sim, Daniel. É minha filha... e tua.
Fiquei em choque, sem qualquer reacção. Nem sequer a consegui questionar, mas também conhecia Kátya o suficiente para saber que ela jamais brincaria com um assunto assim.
— Leonor! — chamou-a. — Anda cá. Vem dar um beijinho ao Daniel.
Penso que o meu choque assustou a pequena que ficou com medo em se aproximar. Sorri-lhe e baixei-me perto dela.
— Olá!
— Olá! — respondeu, receosa.
— Dás-me um beijinho?
O olhar tinha a intensidade do da mãe. Deu dois passos e beijou-me a face. A seguir, voltou atrás para o local donde me viera. Kátya voltou a chamá-la e pediu:
— Leonor, vai brincar um bocadinho para o quarto. A mãe precisa de conversar com o Daniel.
Obediente, a menina saiu a correr da sala, aliviada por se afastar.
— Como...?
Kátya apontou-me uma das poltronas e sentou-se na outra, dizendo:
— Sim, Daniel, na única vez que tivemos relações sexuais tu conseguiste engravidar-me.
A minha cabeça repassou aquela época, o tempo que ligou o casamento de Mafalda à partida de Kátya.
— Quando tivemos aquela conversa em Carlton Hill, já sabias? — Ela assentiu com a cabeça. — E não disseste nada?
— Disse-te tudo o que sentia por ti e percebi que tu não me querias na tua vida... Pelo menos, não como eu queria estar nela. — explicou, entrelaçando os dedos. — Se te dissesse, tenho a certeza que terias ficado comigo, se calhar até casavas comigo. Mas também sei que nunca serias feliz. Não te quis aprisionar, Daniel.
— Não tinhas o direito de me esconder que tinha uma filha.
— Foi por isso que me vim embora de Edimburgo. — prosseguiu, ignorando a minha indignação. — Se ficasse mais tempo, seria impossível esconder a gravidez.
— Devias ter-me contado, Kátya. — repeti, furioso. O tom tornou-se mais agreste que o pretendido. — Porquê agora? Porque me contas agora?
Kátya fez uma expressão escarninha, apontando para o lenço, puxando-o e revelando a cabeça lisa.
— Penso que não preciso de responder. A Leonor não tem mais ninguém na vida para além de mim. E eu não sei quanto tempo... — Voltou a colocar o lenço. — Não te vou enganar, Daniel. Se isto não tivesse acontecido, eu nunca te teria contado. Aceito que estejas furioso comigo, até podes nem querer olhar-me para a cara nunca mais. Eu compreendo. Só peço que tomes conta da nossa filha, quando eu...
Comecei a ter real noção dos acontecimentos. De nada serviria remexer no passado. Num timbre menos rude, inquiri:
— É assim tão grave? — Ela anuiu. — Quanto tempo? — Encolheu os ombros. — Pareces resignada.
— Já ultrapassei a fase de negação.
— E a Leonor? Sabe que sou o seu pai?
— Sim. — confirmou. — Sempre lhe falei no pai e lhe expliquei que não nos vinha visitar porque estava a viver muito longe.
— Justificação de merda. — Foi o que me saiu.
— Foi o que me lembrei. — retorquiu magoada. Instalou-se um silêncio incómodo. — Nunca lhe quis passar uma má imagem tua. Quando crescesse, iria contar-lhe a verdade e incentivá-la a procurar-te, se quisesse.
Estiquei o braço e segurei-lhe a mão.
— Deves ter passado um mau bocado.
— Sobrevivi. E nunca faltou nada necessário à Leonor.
— Ela parece assustada comigo.
— Não te conhece, Daniel. Tens de ter paciência.
O silêncio entre nós voltou, sonorizado pelas canções infantis na televisão. Sem me aperceber, a minha mão continuou na dela.
— Sempre conseguiste? — interrogou de súbito. Não compreendi. — Tu e a Mafalda?
Assenti com a cabeça, denunciando a tristeza e percebendo que aquela malvada doença pela terceira vez me levaria alguém importante.
— E então? — insistiu, querendo saber mais.
— Ela divorciou-se do marido, dois anos depois do casamento. — relatei. — Depois aproximámo-nos e aconteceu.
— Estás a ver? Agora imagina que estavas comigo e com a Leonor quando soubeste que o amor da tua vida se ia divorciar? Ias odiar-me! — Não a contrariei. Ela confirmou que tinha razão, já o sabia, mas isso não o tornava menos doloroso. — Como é que ela reagiu a teres vindo visitar-me?
A resposta não saiu de imediato. Houve uma névoa, um acentuar de dores que eu conseguira reprimir nos últimos meses. Contudo, aquele ambiente, aquela revelação e aquele assunto pareciam despoletar tudo.
— A Mafalda faleceu no início deste ano. — informei com a voz algo embargada, olhando para Kátya e vendo o seu rosto contorcer-se numa expressão de choque.
— Lamento, Daniel. Lamento tanto. Oh... meu querido.
Fiz um gesto de que o pior já tinha passado.
— Que aconteceu?
— Não interessa. — respondi, consciente que a última coisa que um doente com cancro precisa é que lhe falem em alguém que morreu disso.
Leonor apareceu na porta, espreitando curiosa. Kátya chamou-a para perto de nós. A criança aproximou-se devagar, passando por mim e encostando-se à mãe. Como é lógico, no tempo que permaneci lá, pouca ou nenhuma confiança lhe consegui ganhar. Eu era o pai que nunca conhecera, uma figura abstracta, estranha. Não seria fácil e tinha de lhe dar espaço para se habituar a mim.
Ao fim da tarde, despedi-me da pequena apenas com um aceno, pois não queria que encarasse uma obrigação de beijar o estranho que aparecera do nada.
— Voltas hoje para cima? — questionou Kátya, levando-me para a saída.
— Não. Vou até Almada. Fico por lá esta noite.
— Que pensas fazer?
— Sobre?
Kátya atirou-me um olhar exasperado e apontou para dentro de casa.
— A Leonor.
— Não te preocupes. — Forcei um sorriso. — Tu podes ter-te resignado, mas eu ainda acredito. — Ela abanou a cabeça. — Se tu... Se partires, eu cuidarei da Leonor.
— Obrigado.
— Não agradeças, Kátya. Sou pai dela. Só lamento que não me tenhas deixado sê-lo mais cedo.
Ela baixou o olhar, comprometida.
Eu abracei-a com força e despedi-me.
Tinham passado alguns anos, desde a última vez que entrara na minha casa de Almada. Porém, estava tudo como deixara. Afastei com cuidado os lençóis que cobriam as mobílias, evitando levantar pó. Sentei-me no sofá da sala e fechei os olhos, repousando e pensado em como aquele dia alterara a minha vida.
As alterações não foram imediatas, mas foram tão profundas que trocaram toda a minha realidade. Em breve, aquela criança seria uma responsabilidade exclusiva minha. Fosse como fosse, por enquanto iria dar o máximo de apoio a Kátya e permanecer por ali algum tempo. Contactei os clientes com quem trabalhava regularmente e suspendi a nossa relação profissional, explicando que me vira obrigado a fazê-lo por motivos pessoais. Quando tornei a visitar Kátya e Leonor. Expliquei à mãe da minha filha a decisão e li o alívio no rosto dela, ao perceber que já não estava sozinha.
As nossas casas distanciavam uns trinta quilómetros. Mesmo assim, recusei a sua proposta para que me mudasse para lá. Saía cedo, chegava à hora a que Kátya saía de casa para levar Leonor à escolinha, e acompanhava-as, tornando-me conhecido das funcionárias. Isso também ajudou a que Leonor se habituasse à minha presença. Ficava com Kátya até uma ambulância de transporte de doentes a vir buscar para a levar aos tratamentos. As horas sozinho em casa dela eram os momentos mais difíceis, pois tudo me metralhava os pensamentos. Por fim, ela chegava e íamos buscar a pequena. Mais duas a três horas e regressava a Almada. Este passou a ser o meu dia a dia.
Uma vez por mês, eu regressava a Miramar, só para ver se estava tudo em ordem e manter a casa em condições.
Algumas semanas mais tarde, Kátya informou-me que a equipa médica gostaria de falar comigo, agora que sabiam que o pai da filha dela voltara. Sim, nunca me livrei da imagem do gajo que a emprenhou e deu à sola.
O médico quis falar comigo em privado, enquanto Kátya estava no tratamento. Era um homem alto, robusto e sendo simpático não perdia aquela arrogância típica dos médicos que falam connosco como se fossemos de inteligência inferior.
— Nós temos feito o que podemos, mas a Kátya está a piorar. — explicou num tom muito austero que me parecia só servir para acentuar a tragédia. — Devem preparar-se para o pior.
Não sabia o que dizer. Preparar para o pior? Conseguirá alguém preparar-se para morte de quem se gosta?
Nessa noite, ao chegar a casa, tive consciência que preparar o pior não era preparar a perda de uma amiga, mas sim preparar a perda da mãe pela filha. A partir desse dia, Leonor passaria a ser responsabilidade exclusiva minha, por isso, tinha de começar a planear integrá-la na minha vida.
Certa manhã, segui de mota por Almada até um lugar que conhecia desde miúdo. Estacionei e caminhei pelo passeio, parando defronte de um stand de automóveis. Entrei com o capacete na mão e fui recebido por um funcionário simpático que se prontificou a ajudar-me.
— Tenho uma mota e pretendia vendê-la para comprar um carro.
Foi a mudança que mais me custou, a mota. Se precisasse de transportar Leonor, a mota poderia ser viável, mas implicava perigos desnecessários. Por isso, decidi vendê-la e comprar um automóvel. Escolhi um Renault Clio porque me fazia lembrar Mafalda, uma vez que ela tivera um quando estivéramos juntos. No entanto, foi muito complicado a alguém que adorava a liberdade de andar numa mota ver-se confinado ao interior de um carro.
Com o passar dos dias, apesar dos tratamento, Kátya revelava maior desgaste à doença. Acabei por alterar a minha rotina diária, passando a noite lá em casa. Dormia com Kátya na sua cama, mas nunca houve qualquer intimidade entre nós. Partilhávamos o colchão como dois irmãos.
Leonor habituou-se à minha presença, aceitando-me no mundo delas, convidando-me a brincar, vivendo com naturalidade sempre que a mãe era transportada aos tratamentos no hospital.
Como as minhas idas a Almada diminuíram, voltei a ponderar a ideia que considerara antes. Por isso, numa manhã, logo após deixarmos Leonor na escola, eu decidi ir à minha primeira casa.
Como já referi antes, a casa de Almada tinha dois quartos, o meu e o que outrora fora dos meus tios. Eu não gostava de entrar naquele quarto, havia sempre muitas lembranças e muita dor nas recordações. A minha tia falecera vinte e três anos antes, o meu tio catorze. E eu continuava a fazer o luto. Abri a porta do quarto e acendi a luz. Tirando o pó, estava tudo igual ao dia em que o meu tio foi internado.
— Olá tio! Olá tia! — disse eu para as memórias. Caminhei pelo quarto até à janela. Abri as persianas. — Hoje está um dia bonito, está Sol. Um pouco mais fresco que o habitual. — Peguei na moldura com uma foto do casamento deles. — Gostava que me pudessem ver hoje, ver onde cheguei. Ah... Tenho a certeza que me vêem aí de cima. — Avancei e sentei-me ao fundo da cama. — Tanta coisa aconteceu. — Olhei em volta. — Mantive este quarto como um mausoléu, uma homenagem a ambos. Só que acho que chegou a hora de vos deixar partir. — Sorri para ninguém sem perceber que uma lágrima me escorria em cada face. — Vocês iam gostar de conhecer a Leonor. Sim, tenho uma filha. Desculpem não ter contado antes, mas eu próprio só o soube há pouco tempo. — Funguei e limpei o nariz com as costas da mão. — Iam amá-la como me amaram a mim, incondicionalmente. Por isso, acho que concordam com a decisão que tomei. — Calei-me como se eles estivessem ali comigo e lhes estivesse a dar um momento para ficarem atentos. — A mãe da Leonor é uma grande amiga minha. E em tempos... Bom, nós... Não interessa os pormenores. Infelizmente, a Kátya está muito doente e... Temo que não dure muitos meses. Espero que possam recebê-la e cuidar dela. — Nova pausa. — A Leonor virá viver comigo para a minha casa... E é por isso que estou aqui. Tomei uma decisão. — Tornei a olhar para a envolvência do quarto. — Esta foi a minha... a nossa casa durante muitos anos. E foi minha depois de o tio partir. Só que hoje, eu tenho um outro espaço, um lugar onde também fui muito feliz. Tenho a minha vida estruturada lá e... E não penso voltar a viver aqui. — Olhei para o tecto, para o candeeiro aceso. — Tio! Tia! Obrigado por tudo. Obrigado por me terem criado, por me terem permitido viver, por nunca deixarem que me faltasse o essencial. Espero que tenham orgulho naquilo que sou. — Fechei os olhos sem controlar as lágrimas. — Chegou a hora de eu largar esta casa, de vos deixar partir. Estou a sair da vida que tivemos aqui, mas vocês nunca sairão do meu coração.
A partir daquele dia, arrumei as coisas que me eram importantes, as lembranças, as recordações, as fotos, uma ou outra peça especial... Não me apeguei demasiado a nada. Entreguei todas as mobílias a uma associação de apoio a pessoas carenciadas, bem como outros objectos e roupas. Ainda estavam em bom estado e poderiam ser aproveitados. O resto foi para o lixo. Juntei o que queria levar comigo no meu quarto e ficou tudo arrumado, a aguardar o dia em que regressasse ao norte.
Certa noite, a temperatura arrefecera, lembrando que o Inverno chegaria em breve. Tal como fazíamos diariamente, a seguir ao jantar, deitámos Leonor na cama para dormir e viemos para a sala, sentando-se cada um numa poltrona.
— Acho que não tomei as melhores opções na minha vida. — confidenciei, obtendo de Kátya um olhar de surpresa e curiosidade. — Andei atrás de um amor que acabou por me fazer sofrer e desperdicei uma vida contigo.
— Tu não me amavas, Daniel.
— Porque estava apaixonado pela Mafalda.
Kátya esboçou um sorriso, questionando:
— Teria sido diferente, se ela não tivesse existido na tua vida?
— Não sei. Eu sempre gostei muito de ti, sempre foste especial. Se não vivesse obcecado...
— Não estavas obcecado, Daniel. — interrompeu para me corrigir. — Tu estavas apaixonado. As tuas decisões foram perfeitamente normais.
— Devia ter-te dado uma oportunidade, Kátya. — cobrei-me. — Talvez tivéssemos sido felizes, eu teria lutado contigo para te fazer deixar de fumar. E tu...
— Não sabes, Daniel. Foi isto, poderia ser outra coisa. Todos temos o nosso caminho traçado. Não estávamos destinados a ficar juntos.
— Sinto-me culpado
— Salvaste-me a vida, Daniel. Há sete anos, tu tiraste-me da rua, ajudaste-me a ter um lar. — Sorriu com carinho. — Recorda-me como alguém que te é grata. Não te culpo de nada, nem teria esse direito.
Encarei a sua expressão terna.
— Vou ter saudades tuas. — Parei para a observar, transmitindo-lhe na voz o quanto gostava dela. — Eu amei-te naquela noite.
— Eu sei, Daniel. Só muito amor concebe o ser maravilhoso que está a dormir naquele quarto.
— Prometo-te... Juro-te que cuidarei dela. Nunca lhe faltará nada. E falarei sempre muito em ti, guardarei o máximo de memórias e a Leonor há-de saber como a mãe foi uma mulher extraordinária.
No rosto de Kátya, decifrei a paz, o descanso pela filha que já não corria o risco de ser institucionalizada, como tanto temera, uma vez que seria esse o desfecho se não houvesse mais familiares para tomar conta da pequena. Permitiu-se a descansar.
Eu não sou médico e a minha opinião é mera especulação. Porém, acho que esse descanso baixou as defesas, a luta que Kátya travava com a doença. E infelizmente a doença atacou-a ainda mais.
Não quero relatar muitos pormenores sobre os dias que se seguiram, uma vez foram muito complicados, difíceis e de muito sofrimento. O estado de saúde de Kátya piorou, tossia mais, revelava-se mais fraca e tinha crises complexas que quase a derrubavam. Numa das últimas, teve problemas respiratórios e tive de chamar ajuda médica para a socorrer.
Para além deste cenário dramático, procurava evitar ao máximo que Leonor testemunhasse estas situações, mas era quase impossível. Recordo-me que nesta última, enquanto os médicos do INEM a observavam, vi Leonor a chorar, espreitando na porta do quarto, onde a mãe sofria sobre o colchão da cama. Corri para ela e peguei-lhe ao colo, abraçando-a e levando-a para o seu quarto. Sentei-a na cama e disse:
— Tem calma, pequenina. Não chores.
— A mãe vai morrer?
A sua pergunta surpreendeu-me, pois não considerara que, tão nova, Leonor já pudesse ter noção do que era a morte. Calculo que não tivesse a mesma que um adulto, talvez fosse mais um conceito de perda eterna. Também não sabia quem lhe falara no assunto, se a mãe ou a educadora na escola, uma vez que todas as funcionárias tinham conhecimento do drama familiar.
Que haveria eu de responder? Não lhe queria mentir, mas também não a queria perante a realidade até ser inevitável.
— Aqueles senhores estão a fazer tudo para ajudar a tua mãe.
— Não quero que a mãe morra. — insistiu, chorando compulsivamente.
Abracei-a com muita força.
— Eu também não quero que a tua mãe morra. — Afastei-me um pouco para a olhar nos olhos. — Temos de ser fortes para a ajudar, está bem? — Leonor fez beicinho e anuiu. — Percebo como estás triste, Leonor. E estou aqui para te ajudar.
O médico chamou-me. Pedi a Leonor que ficasse no quarto até eu voltar. Entrei no outro quarto. Kátya estava sonolenta, talvez sedada e com uma máscara de oxigénio. Esperei que me pusessem ao corrente. Ele disse que o estado dela era muito grave e que seria melhor levá-la para o hospital.
Kátya foi transportada para o Hospital de São Bernardo, em Setúbal. Ficou internada dois dias, sendo depois transferida para uma unidade de cuidados paliativos.
A partir desse dia, Leonor passou a ser exclusivamente responsabilidade minha, tal como sabíamos que iria acontecer mais tarde ou mais cedo. Tentei que a sua rotina mantivesse alguma normalidade, o que era complicado. Expliquei-lhe que, por enquanto, não poderia visitar a mãe para a poupar a ver o estado debilitado dela, optando por a deixar na escola como era habitual e ia eu sozinho visitar Kátya. Não era fácil, vê-la numa cama, entubada e com muita dificuldade em falar. A equipa responsável pelos cuidados falou comigo e informou-me da forma mais eufemística que conseguiu que a mãe da minha filha não iria viver muito mais tempo e que seria melhor prepararmo-nos para nos despedirmos dela.
Foi muito duro. Contudo, não tão duro como foi levar Leonor a ver a mãe. Não lhe disse como era grave o estado de Kátya, explicando-lhe apenas que a mãe estava muito doente. Antes de receber a filha, Kátya pediu que lhe retirassem os tubos e a máscara para o seu aspecto não assustar a pequena.
No quarto, após entrar com Leonor pela mão, a pequena correu para a mãe. Kátya falou com imenso amor a cada palavra. Pelo diálogo, percebi que fora ela quem explicara o conceito de morte à menina, pois explicou-lhe que o dia que haviam falado estava a chegar. Leonor desabou num pranto que me dilacerou. Kátya também chorava, mas mantinha-se forte. Senti uma lágrima no meu rosto.
Os médicos pediram para que a visita fosse curta, de forma a não a cansar demasiado. Leonor não quis sair de perto da mãe, mas Kátya convenceu-a a ir com a enfermeira e que poderia voltar no dia seguinte. Ao ficarmos sozinhos naquele espaço, ela pediu num tom rouco:
— Cuida dela, Daniel.
— Não te preocupes, Kátya. — disse eu, segurando-lhe a mão. — Juro-te que ficarei sempre a seu lado.
— Obrigado, meu amor. — agradeceu com um sorriso cansado e uma expressão de verdadeiro sentimento.
Percebi a dimensão do nosso amor. Não era um amor carnal, um amor de casal. Éramos duas almas que se amavam espiritualmente, uma ligação transcendental. Dei-lhe um beijo na testa e prometi voltar na manhã seguinte.
Isso não aconteceu.
Nessa noite, recebi um telefonema. Kátya adormecera o sono eterno.
Não acordei Leonor para lhe dar a triste notícia, haveria tempo na manhã seguinte. Mal dormi, a pensar em tudo aquilo, na segunda vez que perdia Kátya na minha vida. Senti-me perdido na forma como haveria de dizer à criança que a mãe morrera.
Pela manhã, quando fui acordar Leonor, abracei-a com força e disse-lhe baixinho:
— A tua mãe... Lamento, pequenina.
Leonor afastou-se, olhando-me com uma expressão confusa.
— A minha mãe?
Não havia forma de o dizer sem ser doloroso, Leonor não era um adulto para perceber entre linhas o que eu lhe queria dizer.
— A tua mãe já não está viva. — foi a melhor forma que encontrei.
Leonor começou a chorar. Tentei abraçá-la, mas ela bateu-me com os punhos fechados frágeis no peito. Deixei-a descarregar toda a dor em mim. Cansada, abraçou-me o pescoço com força, continuando num pranto desesperado, como se temesse que eu também desaparecesse.
— Calma, pequenina. O pai está aqui.
— Quero a minha mãe, quero a minha mãe... — repetia entre lágrimas. — Quero a minha mãe!
Paciente, aguardei que chorasse tudo o que quisesse, mantendo-a nos braços e transmitindo-lhe segurança. Leonor acalmou-se aos poucos, fechando-se numa cápsula invisível de tristeza.
Nesse dia não a levei à escola, preferindo tê-la sempre por perto. Coube-me a horrível tarefa de tratar dos procedimentos relativos à ida de Kátya para a sua última morada.
O funeral aconteceu no dia seguinte, um dia cinzento e chuvoso, tão ilustrativo do nosso estado de espírito. Leonor assistiu a tudo com a mão segura na minha. Para além de nós, somente algumas funcionárias da escola que quiseram despedir-se daquela mãe que, sem quererem, viram definhar aos poucos. Também compareceram duas vizinhas que nunca foram bater à nossa porta para saber como estava Kátya, mas acharam por bem ir ao funeral. É sempre mais fácil dizer adeus aos mortos que se preocupar com os vivos.
No final, a educadora de Leonor na escola acercou-se de nós para repetir o seu pesar e indagou:
— Quando é que a pequena vai voltar à escola? Vamos tentar ajudá-la a ultrapassar esta fase, sendo que nunca se substitui uma mãe.
— Obrigado pela sua disponibilidade. — agradeci. — Mas, eu não vou ficar cá, vou regressar a minha casa.
A senhora compreendeu e despediu-se, dizendo:
— Desejo-vos as maiores felicidades.
Leonor tornou-se uma criança triste, não voltei a ver-lhe um sorriso no rosto. Ao regressarmos à casa da mãe, expliquei-lhe que iríamos deixar aquele local e ajudei-a a arrumar todas as suas coisas. Também juntei todas as recordações da mãe, fotos, objectos, algumas roupas, entre outras coisas.
A manhã seguinte surgiu com um Sol tímido. Carreguei o automóvel com tudo o que era para levar para norte, sempre com Leonor a meu lado, ora subindo, ora descendo as escadas, envergando o vestido quente por baixo do blusão comprido e almofadado, collants de lã e um par de galochas com bonecos desenhados. O senhorio, conforme tínhamos combinado na noite anterior, passou por lá para receber a chave do apartamento.
— Infelizmente, não me foi possível ir ao funeral. — desculpou-se sem que eu percebesse porque haveria ele de ir, se em todo o tempo que ali estive nunca o vi telefonar ou passar por lá para saber como estava a inquilina.
Apesar do ambiente solarengo, o vento soprava e intensificava o frio. Abri a porta do carro para Leonor entrar para o banco traseiro e sentar-se no seu banquinho. Prendi-a com o cinto de segurança e contornei o veículo para ocupar o meu lugar ao volante.
— Estás pronta? — perguntei, vendo-a pelo retrovisor e sorrindo-lhe. Ela assentiu de semblante alheado.
Partimos de Aires a meio da manhã. Tinha ainda uma paragem a fazer, antes de seguir o meu destino. Entrei na A2 rumo a Almada, uma viagem de pouco mais de meia hora. Estacionei na rua onde cresci e trouxe Leonor até à casa que fora dos meus tios.
— Eu cresci aqui. — expliquei-lhe, entrando no apartamento vazio.
Ela olhou curiosa, mas não se manifestou.
Nos últimos tempos, eu preparara a minha saída definitiva daquela casa. O que poderia interessar a alguém fora dado, o lixo levado e somente algumas coisas sem importância ali permaneciam, para além dos caixotes que levaria comigo para Miramar. Tal como em Aires, Leonor não me largou enquanto eu subia e descia para arrumar no carro o que fora buscar. Por fim, toquei à campainha do rés-do-chão, onde vivia uma senhora que representava o senhorio do prédio. Atendeu-me com a simpatia habitual, elogiando a menina que se escondia atrás de mim e recordando a memória dos meus tios. Lamentou que estivesse a deixar a casa, sabendo eu que tanto ela como os senhorios estavam muito felizes com isso, pois era um espaço que poderiam alugar no futuro por valores muito acima daqueles que eu estava a pagar.
Assim, após esta última etapa, Leonor e eu regressámos ao carro.
A viagem prosseguiu pela saída da cidade rumo à Ponte 25 de Abril, onde atravessámos o rio Tejo. Segui as indicações A1 Norte, mas acabei por desviar para o caminho inverso que me trouxera de Miramar, quando vim reencontrar Kátya, optando pela A8. Ia sempre a espreitar Leonor pelo espelho e encontrava-a sempre com o olhar vago e triste na paisagem. Deixando Lisboa para trás, ia perguntar-lhe se queria comer alguma coisa, só que ela adormecera. Não a despertei, pois sabia que precisava de descansar da dor que a corroía pela perda da mãe.
Perto de Leiria, a chuva começou a cair com intensidade. As gotas fortes a embater no pára-brisas e as escovas a lutar com elas faziam um barulho incómodo. Porém, Leonor permanecia tranquila, dormindo embalada pela viagem. Quando cruzámos o rio Mondego, as nuvens não derramavam mais que simples aguaceiros. Na zona de Aveiro, houve mais intensidade de água. E para lá de Espinho o Sol tornou a trespassar as nuvens com pequenos focos de raios de luz. Leonor despertou no momento em que abandonei a A29 na direcção de Miramar.
— Olá pequenina! Isso é que foi dormir. — disse-lhe pelo retrovisor. — Estamos quase a chegar.
Leonor espreguiçou-se e tornou a olhar para o exterior com o rosto estremunhado. Era tal e qual a expressão da mãe, quando acordava ensonada.
Estacionei na minha rua, a alguns metros do prédio onde vivia, o lugar de estacionamento mais perto disponível. Saí do carro, pedindo a Leonor que vestisse o blusão, pois estava muito vento naquela zona costeira. Ajudei-a a descer do carro e dei-lhe a mão, conduzindo-a até à entrada. Ela segurava sempre a minha mão como se temesse que a largasse. Conforme andávamos, expliquei-lhe que a praia ficava perto e que podíamos ir brincar lá, quando estivesse bom tempo. Abri a porta do prédio e subimos as escadas. Leonor subia sozinha, curiosa, apoiada no corrimão. Seguiu-se a porta do apartamento.
A minha filha ficou a olhar. Pareceu hesitante, talvez receosa de que estivesse lá mais alguém. Notava que, depois da morte da mãe, ela evitava todas as pessoas, excepto eu.
— Podes entrar. — disse-lhe, encaminhando-a com a minha mão nas suas costas. — Bem-vinda à minha casa, Leonor! Esta agora é também a tua casa.
fim do conto V
A manhã de Janeiro estava fria, apesar do céu azul bonito. Acabara de deixar Leonor na escolinha que frequentava desde que vivia comigo. O estabelecimento escolar distanciava pouco da nossa casa, pelo que íamos e vínhamos sempre a pé, a menos que o clima fosse tão agreste que não o permitisse. Olhei para as casas, notando que os enfeites natalícios começavam a desaparecer das janelas dos meus vizinhos. Fora uma quadra triste, pois apesar do meu esforço, nada retirou a tristeza na expressão da minha filha.
Não estava a ser fácil, mas aos poucos a vida dela ia entrando numa normalidade rotineira. A primeira grande alteração em casa foi a transformação do segundo quarto, o local que eu usava como pequeno estúdio, e onde guardava o equipamento fotográfico, no quarto de Leonor. Comprei uma mobília que tentei ser ao seu gosto, mas ela não se manifestou muito quando a fomos escolher. O quarto quase vazio ficou com uma cama individual em pinho com edredão em tons de rosa, um armário com duas portas e uma mesinha com uma cadeira, todos em tons claros. Na parede, coloquei várias fotos da mãe com ela e uma especial, registada em Edimburgo, comigo e com Kátya.
O resto da casa também teve algumas alterações. Agora, atrás do sofá, escondiam-se as caixas que trouxera e que não conseguira arrumar. Coloquei as fotos dos meus tios na sala, umas na parede, outras sobre os móveis. Também coloquei duas de Leonor, uma de Kátya, várias de Mafalda... No quarto coloquei uma foto grande de Mafalda na parede e outra nossa na cabeceira da cama. Não sabia o que seria o meu futuro nos assuntos do coração, iriam existir outras mulheres e alguma poderia vir a partilhar aquele quarto comigo. Porém, Mafalda fora a mulher que eu mais amara na vida e seria difícil desfazer-me da sua memória.
Os objectos importantes que recolhera em Almada também foram espalhados por alguns cantos. A máquina fotográfica e os diversos acessórios da minha actividade profissional foram arrumados no meu quarto.
Profissionalmente também tive de fazer modificações. Logo que regressei a norte, retomei os contactos com os clientes e procurei novos projectos. Tive de abdicar de trabalhos que envolvessem viagens ou que tivesse de fazer à noite, pois não podia deixar Leonor sozinha nem me passava pela cabeça deixá-la com outra pessoa. Mesmo assim, ia tendo trabalho. Entretanto, recebi um convite para dar aulas de fotografia no Porto, algo para o qual nunca me sentira vocacionado, mas que acabara por se revelar uma agradável surpresa e fazer-me perceber que gostava mesmo muito de ensinar. E isso deu-me uma estabilidade de horário muito benéfica à paternidade.
Alguns dias mais tarde, quando fui deixar Leonor na sua sala, a auxiliar que recebia as crianças pediu-me para aguardar um pouco. Ajudei a minha filha a vestir a bata e vi-a entrar para a sala, juntando-se aos coleguinhas.
A educadora responsável por aquela sala apareceu para falar comigo. Era uma senhora com uns cinquenta anos, envergava uma bata idêntica a todas as funcionárias da escola e tinha um rosto afável que lhe atribuía um ar de avozinha.
— Bom dia, pai da Leonor! — cumprimentou. Sempre achei curiosa esta forma de perdermos a identidade em prol dos filhos. — Queria falar consigo sobre a Leonor.
— Aconteceu alguma coisa?
A senhora abanou a cabeça.
— O costume. A Leonor continua muito fechada, não se dá muito com os colegas, está sempre muito triste e carente.
— Não é fácil para uma criança ultrapassar a perda da mãe. — recordei, uma vez que todas as funcionárias sabiam da história do falecimento de Kátya.
— Sim... Mas, talvez devêssemos tentar fazer algo nesse sentido.
Percebi que o "devêssemos" deveria ser ouvido como eu devia fazer algo. Quem me dera ter a receita mágica para o problema. Nada me faria mais feliz que tornar a ver um sorriso no rosto de Leonor.
— Que sugere?
— Talvez devesse procurar apoio psicológico. — respondeu a senhora. — Há especialistas em pedopsiquiatria que poderiam receitar alguma terapia.
Qualquer coisa que fosse benéfica para a pequena valeria a pena investigar. Por isso, fui pesquisar clínicas com essa especialidade e encontrei algumas. Não tendo grande ponto de referência para as avaliar, optei pela que ficava mais perto, sendo a escolhida uma clínica na cidade de Vila Nova de Gaia.
A mesa da sala era agora o meu escritório, o local onde assentava o meu computador portátil e consultava a Internet. Após uma análise rápida ao website da clínica, peguei no telemóvel e liguei para lá. Fui atendido por uma voz feminina que me prestou todos os esclarecimentos que pedi e indicou-me uma data possível para a primeira consulta, a qual aceitei, ficando agendada para daí a uns dias.
Novamente no computador, abri o meu Facebook para ver se havia alguma novidade, uma vez que não passava por lá desde a semana anterior. O meu perfil tinha muitos "amigos". Recebia muitos pedidos de amizade, muito devido a ser um fotógrafo conhecido. Na sua maioria eram pedidos de raparigas que queriam ser fotografadas e pediam uma oportunidade para pousar para mim. Como eu não fazia trabalhos particulares, remetia-as para as agências com quem colaborava para que, caso a agência concordasse, pudesse ser feito um casting onde seriam fotografadas por mim. Também recebia algumas propostas provocadoras, miúdas dispostas a tudo para alcançarem a fama. Algumas metiam conversa comigo pelo Messenger... Se começassem a ser muito inconvenientes, bloqueava-as e retirava-as da minha lista de contactos. Claro que nessa lista estavam amigos verdadeiros como o Peter, a Leo com quem falava com alguma regularidade, a Tânia que tinha um perfil privado e só acessível ao amigos próximos, como eu, e alguns contactos profissionais.
Ao entrar no meu perfil, vi que tinha um pedido de amizade novo. Com algum enfado, cliquei na notificação "Mérida quer adicionar-te aos seus amigos". Quem raio era Mérida? Abri a sua página pessoal no Facebook. A foto de perfil era a personagem protagonista do desenho animado da Disney do filme Brave, a princesa Mérida. Era a única foto. Aquele era o típico pedido que eu eliminava. Calculei que fosse alguma miudinha. Porém, ao ver a informação sobre ela, vi que se tratava de uma mulher de trinta e dois anos, portuguesa a viver no Brasil. Não tinha mais fotos e havia uma mínima quantidade de informação. O estado civil, onde eu tinha viúvo (alterara-o logo após a notícia da morte de Mafalda) ela tinha solteira. Profissionalmente estava ligada à medicina. Nos interesses, gostava de ler, ver filmes, estar com os amigos, ou seja, o básico. E pouco mais. Confesso que não percebi o seu interesse em me adicionar, uma vez que o meu perfil não tinha muito em comum com o dela. Essencialmente, a minha página era dedicada à fotografia. Não tinha muitas referências à minha vida privada, não referia que tinha uma filha nem publiquei qualquer foto de Leonor, como muitos pais faziam. A foto de perfil continuava a ser a que Mafalda escolhera quando criara a minha conta. De resto, fotos só de trabalhos ou registos que gostara particularmente, como uma paisagem, um objecto, um momento... Tudo muito profissional. Acabei por aceitar o seu pedido.
As tardes frias pareciam não ter fim. Mesmo assim, soube-me bem ir até à praia, caminhar pelo pontão e relaxar um pouco, após a manhã atarefada numa sessão fotográfica de estúdio em Matosinhos para uma marca de roupa. Encostado às barras de madeira, observei o mar pensando na minha filha que, nessa noite, voltara a ter pesadelos e acordara a chamar pela mãe. Eu reconfortara-a, percebendo o seu desgosto em novo despertar para a realidade.
Nessa tarde, iria levar Leonor à sua primeira consulta na clínica. Tinha esperança de encontrar lá uma solução para fazer a pequena sair daquele mundo de tristeza e começar a viver com a normalidade de uma criança com quase seis anos.
Caminhei mais um pouco até à esplanada perto da praia. Faltava algum tempo até à hora de ir buscar Leonor à escola e seguir para a cidade. Parei para tomar um café e conversei um pouco com o rapaz atrás do balcão, o qual já me conhecia das muitas vezes que passava por ali sozinho ou com Leonor. Ao fim desse tempo, paguei a bebida e retomei a caminhada de regresso a casa.
Quando estava a chegar ao meu prédio, vi uma mulher sair de outro prédio, uns trinta ou quarenta metros mais acima. Era alta, cabelo preto comprido, muito elegante e vistosa, envergando um casaco comprido, camisola de malha, calças de ganga preta e botas de cano alto até ao joelho. A sua beleza chamou a minha atenção, mas não passaria disso, não fosse o homem que saiu atrás dela, um tipo gordo de óculos e com calvície acentuada. Apesar da distância, ouvi-o chamá-la sem perceber o nome. Ela voltou-se e gesticulou de forma irritada, falando com agressividade. Ele aproximou-se dela, usando o mesmo tom. Eu observava com as chaves na mão para entrar no átrio, sendo surpreendido pelo gesto dele a esbofeteá-la. Ela tentou ripostar, mas ele empurrou-a com força, fazendo-a embater desamparada num carro estacionado.
— Hei! — chamei, incapaz de ficar indiferente à cena. Caminhei para eles. — Que se passa?
A mulher tentou equilibrar-se, encostada ao carro, ainda atordoada com o impacto. O homem olhava para mim num misto de altivez e receio.
— Isto é entre nós. — disse, fazendo um gesto para que me afastasse. — Não se meta.
Ignorei-o e aproximei-me dela.
— Estás bem? — indaguei sem perceber que já a estava a tratar de forma informal.
— Ó pá, vai dar uma curva. — insistiu o homem, apesar de manter uma distância de segurança. — Isto é um assunto nosso.
Eu encarei-o sem pensar, sem medir os riscos. Não conhecia o indivíduo, nem me interessava. Usando um tom ríspido, disse:
— Não sei qual é o assunto. Mas nenhum gajo bate numa mulher à minha frente.
O tipo riu-se com desdém.
— Nunca ouviste dizer "entre marido e mulher não metas a colher"?
— São casados? — inquiri, olhando para ela. Não houve resposta. Olhei para ele. — Violência doméstica é crime público!
— Que queres dizer com isso, pá?
— Além de seres um cobarde que bate em mulheres, também és lerdo e não percebes português?
Vi nos olhos do indivíduo uma raiva contida. Queria ripostar pela força, mas faltou-lhe a coragem. Era, sem dúvida, um daqueles tipos merdosos que só são fortes contra os fracos.
— Se não te importas... — insistiu num tom neutro. — ...gostava de continuar a conversar com a minha... com...
— Porque é que não o dizes? — interveio a mulher. — Tens vergonha de o dizer? Podes dizê-lo. — Olhou para mim com um sorriso escarninho. — Eu sou a amante, percebes?
— Pois... — confirmou o homem. — Por isso...
— Não temos mais nada a dizer. — retorquiu ela. — Vai lá embora. Vai ter com a tua mulherzinha.
— Ivone... Temos de...
— Não temos nada. — A mulher usou de um tom altivo, talvez impulsionada pela segurança que a minha presença lhe dava. — Desaparece daqui. Jamais admitirei conviver com um homem que me bate.
O gordo abanou a cabeça e lançou com desdém:
— Pois, pois... E o dinheiro?
— Hei de me safar.
— Vais arranjar outro amante? Se calhar, já estás a tirar as medidas a este. — alvitrou, apontando para mim.
— Talvez seja melhor ir andando. — disse eu, referindo-me a mim a ir embora, uma vez que não estava a fazer nada ali e, realmente, exceptuando a agressão, o assunto não me dizia respeito.
— Vou quando eu quiser! — afirmou o tipo, levantando a voz.
Virei costas, mas ouvi a voz dela:
— Ele tem razão. Está na hora de ires embora.
— És uma puta!
— Tem lá calma com as palavras. — avisei, voltando-me para ele.
Não tive essa intenção, mas acho que a minha postura deu a impressão que iria confrontar fisicamente o indivíduo. Para minha surpresa, a mão da mulher agarrou-me o braço, ao mesmo tempo que ele se encolheu com a minha investida.
— Não vale a pena. — avisou ela. — Deixa estar, eu estou bem.
— Não vale mesmo a pena. — repetiu o indivíduo barrigudo. Olhou para o prédio, como se procurasse com o olhar o apartamento. — Estou farto de ti. É bom que comeces a pensar como te vais sustentar. De mim não terás mais nada. Sua pu...
— Hei!!!
O tipo olhou para mim e levantou os braços em sinal que não queria problemas comigo. Fulminou-a com o olhar. Ela não pareceu atemorizada, mesmo que ainda uns minutos antes ele lhe tivesse carimbado uma valente chapada no rosto.
— És um cabrão! — retorquiu.
O homem tentou agredi-la novamente, só que travou quando me meti no meio.
— É melhor ires andando. — convidei num tom rude.
O tipo atirou uma expressão de desdém à mulher e afastou-se. Mantive a minha atenção nele até o ver entrar num carro estacionado no outro lado da rua e ir-se embora, arrancando a alta velocidade como um louco.
Não circulava mais ninguém por ali. Durante o dia era raro ver pessoas na rua, uma vez que muitos dos habitantes trabalhavam fora o dia inteiro, saindo de manhã cedo e só voltando ao anoitecer.
— Estás bem? — voltei a perguntar.
Ela assentiu e sorriu-me, fazendo-me constatar pela primeira vez a beleza dos seus olhos escuros.
— Peço desculpa pelo sucedido. — lamentou, mantendo um semblante simpático. Tinha uma voz segura sem perder um timbre sensual a cada palavra. — Já deves ter percebido a que se deveu a discussão.
— Penso que sim, mas não me interessa. Não é assunto meu.
— Não fiques com a ideia errada. Não sou uma...
— Não fico com ideia nenhuma. — atalhei. — Como te disse, não é assunto meu.
Ela anuiu.
— Sim, tens razão. Mesmo assim, devo-te um agradecimento. Se não estivesse aqui...
— Algo me diz que não foi a primeira vez que... — Fiz um gesto a simular a chapada. Ela confirmou que não. — Já devias ter corrido com ele há mais tempo.
— Era o que estava a fazer. — respondeu. — Fartei-me de... de merdas destas. Aguentei algumas coisas porque... o dinheiro...
— Não tens que te justificar a mim. Não tenho nada com isso.
— Seja como for, és um homem corajoso. Nem todos teriam tido a iniciativa de se meter.
— Ou estúpido, uma vez que não medi as consequências.
Ela inclinou a cabeça, curiosa.
— Que quer isso dizer? Se tivesses pensado um pouco, não te tinhas metido?
Encolhi os ombros. Não sabia a resposta, só sabia que tinha corrido um risco estúpido. Se o tipo em vez de ser um cobarde, fosse um marginal e estivesse armado, um tipo sem preconceitos em sacar de uma pistola e dar-me um tiro? Pois... Não me podia esquecer que aquele sentimento suicida que crescera em mim com a morte de Mafalda já não poderia encontrar lugar na minha vida, quando agora entrara nela um ser inocente de cinco anos que contava unicamente comigo para ter uma vida estável.
— É melhor ir andando. — acabei por dizer.
Ela assentiu e agradeceu mais uma vez:
— Obrigado. — Estendeu-me a mão. — Chamo-me Ivone. E tu?
— Daniel.
— Obrigado por teres vindo em meu auxílio, Daniel. — Baixou a voz. — Nem todos se prontificariam a vir em auxílio de uma amante, de alguém que colabora para o adultério.
— Como calculas, não fazia a mínima ideia. Além disso, seres "a outra" não lhe dá o direito de te agredir.
— Pareces ser um tipo porreiro.
— Engano bem. — ripostei.
Ivone sorriu com interesse.
— Estou em dívida contigo.
— Esquece isso. — pedi, desvalorizando o que acontecera. — Não me deves nada. — Olhei em redor. — Não sei se o tipo volta, mas... Talvez seja melhor chamares a polícia, se ele regressar.
Ela não se mostrou muito preocupada.
— Vives aqui? — questionou, curiosa.
— Sim... — confirmei apontando de forma genérica para a rua.
— Que me dizes a um café? — sugeriu do nada.
Não me mostrei muito interessado. Olhei para o relógio no telemóvel, revelando alguma pressa.
— Não quero atrasar-te. — disse ela, desapontada, vendo-me a observar as horas.
— Tenho de ir buscar a minha filha à escola.
— Hoje é a vez do pai? — questionou em tom de provocação.
— É sempre a vez do pai.
— A mãe não é dada a idas à escola?
Abanei a cabeça com um sorriso triste.
— A mãe faleceu no Outono passado.
— Ah... Desculpa. — lamentou envergonhada. — Não te prendo mais, Daniel.
— Não faz mal. Tenho mesmo de ir...
Ivone sorriu em despedida.
— Talvez nos cruzemos por aí... Afinal, somos vizinhos.
Sim, poderia acontecer. Não a contrariei.
— Tenho mesmo de ir, Ivone.
— Até breve, Daniel!
Seguimos direcções opostas. Ivone afastou-se pela rua acima, eu retornei ao meu prédio para ir buscar as chaves do carro a casa.
A clínica ficava num bairro de prédios com meia dúzia de andares cada. No rés-do-chão, a um nível superior ao passeio público, perfilavam-se vários estabelecimentos comerciais, entre eles a clínica.
Aos poucos, os dias iam tornando-se mais compridos. Mesmo assim, naquele fim de tarde, a noite já caíra por completo. Estacionei o carro a poucos metros da entrada da clínica. Com Leonor pela mão, atravessámos a rua. No exterior era possível ver a recepção iluminada e uma funcionária atrás do balcão, da qual só se conseguia ver o topo da cabeça. Toquei à campainha e vi a cabeça ganhar olhos e espreitar. Ouvi o clique da porta a destrancar. Empurrei com força e encaminhei a minha filha para o interior.
— Boa tarde! — cumprimentei, ao mesmo tempo que ajudava Leonor a despir o blusão quente e o gorro. — Temos consulta marcada com a Dra. Cristina.
A recepcionista, uma jovem na casa dos vinte anos, confirmou a marcação e convidou-nos a esperar na sala ao fundo do corredor. Aguardámos alguns minutos. Leonor manteve-se apática, olhando para o chão com o seu característico ar triste. Ao fim desse tempo, surgiu na porta uma senhora de meia-idade, figura roliça e rosto simpático, a qual veio chamar Leonor. Levantámo-nos e a senhora cumprimentou-me, apresentando-se como sendo a psicóloga que viéramos consultar.
O gabinete era um espaço quadrado com uma mesa, duas cadeiras de um lado e uma do outro. Tinha uma marquesa e dois armários encostados à parede. A um canto, um lavatório com uma torneira. Não restavam dúvidas que seria um gabinete multiusos para as mais diversas especialidades.
A psicóloga tentou deixar Leonor o mais descontraída possível, oferecendo-lhe papel e lápis de cor para que se entretivesse enquanto falava comigo. A seguir, pediu-me que falasse na razão que nos levara ali. Partilhei com ela o comportamento solitário e triste da minha filha e depois relatei a história da mãe até ao seu falecimento.
Ouvindo-me com atenção, a sua primeira conclusão foi que se tratava de uma consequência natural perante a tragédia que era para uma criança de cinco anos perder a mãe. Mesmo assim, disse-me que gostaria de conversar com a pequena e questionou se eu via algum inconveniente que o fizesse sem a minha presença. Não coloquei entraves.
Expliquei a Leonor que a doutora queria conversar com ela e que eu estaria à sua espera na sala anterior. Leonor não demonstrou muito agrado nisso. Porém, a psicóloga convidou-a a jogarem um jogo e a minha filha acabou por não se importar que eu saísse. Aquela era uma situação normal, uma vez que a especialista pretendia obter o ponto de vista da criança sem a presença do pai, de forma a que não houvesse qualquer constrangimento de Leonor em expressar alguma emoção que a minha presença restringisse. Não que isso fosse acontecer connosco, mas era um procedimento usual.
Aguardando na sala de espera, ouvi o meu telemóvel a chamar. Olhei para o visor e vi o nome de Peter. Atendi.
Peter ligou-me para uma proposta de trabalho. A revista que ele ajudara a lançar, cerca de um ano antes, estava a ter um enorme sucesso e queriam que ele viesse para Portugal para assumir a direcção fotográfica. Contudo, Peter não pretendia sair de Edimburgo em definitivo e declinou o convite. Em contrapartida, sugeriu o meu nome para o cargo, caso eu estivesse interessado.
— Tu és a pessoa indicada para assumir o lugar, Daniel. — continuou. — Para além disso, a sede está no Porto e não interfere na tua vida de pai. Que dizes?
A proposta pareceu-me bastante interessante. Peter deu-me o contacto da secretária de direcção para marcar uma reunião com a Ângela, a directora da revista.
Mal terminei o telefonema, a Dra. Cristina surgiu na sala com Leonor.
O relatório foi simples, Leonor estava a atravessar uma fase de choque pela perda da mãe. Que novidade... Não havia nada de anormal nisso, nem pareceu à médica que houvesse lugar a alguma terapia. Aconselhou-me a dar-lhe mais algum tempo. Por vezes, naquelas idades, o estado de espírito altera-se e, com a maior das naturalidades, a criança voltaria a um estado de espírito menos recolhido e mais alegre. Informou-me que iria elaborar um relatório escrito, o qual eu poderia levantar na recepção daí a uns dias.
Na manhã seguinte, telefonei para o número que Peter me dera. Fui atendido por uma voz masculina. Apresentei-me e informei que estava a ligar por indicação do fotógrafo Peter para marcar uma reunião com a directora da revista. Ele pediu que esperasse. Fiquei a aguardar que ele regressasse à linha. Porém, em seu lugar, ouvi uma voz feminina, uma voz com um timbre quente:
— Olá Daniel! Fala a Ângela.
— Bom dia! — retribuí o cumprimento, ainda surpreso por ela ter vindo logo à linha. — O Peter falou-me do cargo de director de fotografia...
— Sim... Não sei se ele lhe contou, mas eu convidei-o para o lugar. Só que ele não quer regressar em definitivo a Portugal. — Fez uma pausa para que eu assimilasse a informação. — Temos tido mais sucesso que o inicialmente previsto. Neste momento, não podemos ter o responsável máximo pela fotografia a milhares de quilómetros. Precisamos da pessoa aqui. — Nova pausa. Percebi que dava uma indicação a alguém. — Desculpe, Daniel! Como eu estava a dizer, tem de ser alguém presente. Não se trata de estar aqui das nove às seis. É necessário é que esteja presente sempre que necessário.
— Percebo.
— O Peter falou-me em si. Eu conheço o seu trabalho. E gosto.
— Eu liguei para lhe manifestar o meu interesse.
— Podemos marcar uma reunião para falar melhor. — sugeriu. — Vou estar na revista hoje à tarde. Pode passar por cá?
— Por volta das três?
— Combinado, Daniel.
Os escritórios da revista situavam-se na cidade do Porto, na zona da Boavista. A tarde, tal como a manhã, continuava cinzenta. Conduzi pelas ruas citadinas com saudades do meu tempo de motard, em que era mais simples avançar no trânsito com uma mota e estacionar perto do destino. Após a tentativa fracassada de encontrar um lugar para o automóvel, acabei por entrar num parque de estacionamento subterrâneo a quase um quilómetro dos edifícios de escritórios. Caminhei pelo passeio, cruzando-me com pessoas atarefadas, como se vivessem constantemente atrasadas para chegar a algum lugar. Eu avançava calmamente, pois estava adiantado. Alcancei a entrada do edifício e passei na portaria procurando o acesso ao elevador. Carreguei no botão ao lado das portas e vi o número digital a decrescer até ao zero. As portas abriram e eu entrei. Junto aos botões numéricos, cada andar tinha a indicação da empresa que lá laborava. Pressionei o "5" com o nome da revista.
O espaço era amplo com diversas mesas de trabalho onde se espalhavam os vários departamentos da revista, pessoal a escrever os textos, outros a trabalhar as fotos, outros a paginar tudo. Dirigi-me ao balcão que confrontava a saída do elevador, onde um jovem recebia os visitantes e atendia os telefones.
— Boa tarde! O meu nome é Daniel e tenho reunião marcada com a Ângela.
O rapaz recebeu-me com um sorriso profissional e pediu que aguardasse. Pegou no telefone e carregou numa única tecla.
— Ângela! Está aqui o Daniel. — informou. Ouviu algo e desligou. Levantou-se da sua cadeira e contornou o balcão. — Pode acompanhar-me?
Segui atrás dele, atravessando o espaço com funcionários atarefados que quase nem se aperceberam da minha presença. Observei a densidade de luz que entrava pelas paredes de vidro viradas para a rua. Por fim, ao fundo, vi os únicos gabinetes do local. No maior, apercebi-me da presença de uma mulher alta e esguia que se levantou do seu lugar, ao ver-me aproximar.
Batendo na porta do gabinete dela, o rapaz esperou a autorização para entrar, apesar de ser tudo transparente. Ela fez-lhe sinal para avançar. Ele abriu a porta e indicou-me que entrasse.
Ângela era uma mulher alta, ligeiramente mais alta que eu devido aos sapatos de salto alto. Tinha quarenta e sete anos e um charme maduro. Fora modelo e mantinha a forma esguia dos tempos das passerelles. O rosto era sedutor e a expressão do olhar cativante a juntar ao calor da sua voz seria capaz de derreter um glaciar. Vestia um casaco escuro, estilo blazer, e calças de ganga azuis claras que lhe atribuíam um ar jovial. O cabelo comprido era muito claro, quase branco, sinónimo de alguém que envergava orgulhosamente os sinais típicos da idade. E no caso dela, isso só lhe dava ainda mais charme.
Estendendo-me a mão, Ângela cumprimentou:
— Olá Daniel!
Apertei a sua mão com suavidade, sentindo o toque da sua pele.
— Olá Ângela!
— Obrigado por teres vindo. — agradeceu, apontando-me a cadeira defronte da sua mesa. Parou para me observar. — Espero que não te importes que te trate por tu?!
— Esteja à vontade, Ângela. — concedi.
Ela sorriu, sentando-se.
— Isto da informalidade tem duas vias, Daniel.
Retribuí o sorriso.
Ângela explicou-me o perfil que procuravam, falou-me da revista, de como as coisas estavam a evoluir bem, o sucesso de ter uma revista masculina de fotos ousadas no mercado, o que a diferenciava de outras revistas também ousadas, mas, segundo ela, mais vulgares e menos artísticas.
— Vou ser honesta contigo, Daniel. Conheço o teu trabalho e ter-te na minha equipa é uma ideia que me agrada bastante. — referiu, debruçando-se na mesa e olhando-me com seriedade. — Só que também sei que és um fotógrafo conceituado, tens outros trabalhos e receio que possas não conseguir dedicar a este projecto o tempo necessário.
Defrontei o seu olhar cativante, ponderando a questão.
— Não sei se o Peter te disse que sou pai solteiro. — Ela anuiu, revelando que sabia. — Por isso, a minha filha estará sempre em primeiro lugar, pelo que isso poderá limitar o meu horário.
— De que forma?
— Não estarei disponível antes das nove da manhã, nem depois das sete da tarde. — expliquei, obtendo dela um sinal de que não era problemático. — Nem estarei disponível para viajar, caso isso seja uma necessidade do cargo.
— Em principio, não será.
— Em relação a outros trabalhos, as sessões fotográficas que faço são agendadas mediante a minha agenda, pelo que, a menos que me queiras aqui de segunda a sexta das nove às seis, não me parece que seja impeditivo. E tenho os workshops de fotografia que também podem ser programados em consonância com a minha disponibilidade.
Ângela ofereceu-me um sorriso.
— Então só falta chegar a acordo em relação ao ordenado. — Ouvi o valor proposto. Confesso que ficava abaixo da minha expectativa. — Que te parece?
Franzi o rosto. Queria o trabalho, mas tinha um estatuto profissional a defender. Ela percebeu e elevou a fasquia.
— Para começar, parece-me bem. — concordei.
Ela levantou-se da sua cadeira e estendeu-me a mão.
— Bem-vindo à equipa, Daniel!
A minha nova actividade como director de fotografia da revista levou a que recusasse alguns convites para outros trabalhos por indisponibilidade de agenda, até porque a somar a isto tinha os meus workshops dos quais não queria desistir.
Na época, existia um espaço de cursos e workshops num edifício perto dos Jardins do Palácio de Cristal onde eu apresentava as minhas aulas e partilhava os meus conhecimentos de fotografia. Cada evento era composto por três a quatro sessões em dias distintos e realizavam-se entre as duas e as seis da tarde, sendo que nalguns casos poderiam ser pela manhã. O número de alunos variavam entre cinco, o mínimo para valer a pena, e os dez, o máximo que a minha paciência abarcava para explicações.
Naquela tarde, o grupo era composto por sete pessoas que pretendiam dar os primeiros passos no manuseamento de uma máquina fotográfica reflex. Recordo-me que tínhamos um senhor com os seus cinquenta e muitos anos que segurava orgulhosamente uma Nikon, dois homens mais novos, cada um com uma Canon, outro rapaz com uma Sony, uma rapariga com uma Olympus, outra rapariga também com uma Sony e a última, uma jovem com uma máquina semelhante à minha, uma Canon 5D numa versão mais antiga. Interroguei-me o que faria uma principiante com uma máquina profissional na mão.
Já conhecia todos das sessões anteriores, aquelas em que dou as noções mais básicas até aos conceitos menos simples, mas ainda longe do nível avançado, pois seria inteligente deixá-los interessados a inscreverem-se no nível seguinte. Claro que havia quem tivesse conhecimentos acima da iniciação, como acontecia com o senhor da Nikon. Porém, o resto sabia carregar no botão para tirar a foto e pouco mais. Assim, naquela última sessão, aproveitando a tarde bonita e solarenga, levei o grupo para o exterior de forma a que colocassem em prática o que tinham aprendido sob a minha orientação.
Sempre que fazia aquilo, sentia-me um auxiliar escolar a levar os meninos a passear no jardim. O formando mais velho desinteressou-se de mim e foi à procura de bons registos fotográficos para apresentar no final. O mesmo não aconteceu com os restantes, à excepção da "menina 5D" como eu lhe chamava, os quais me metralhavam com questões ao ponto de lhes dizer "arrisquem e no final logo vemos o que dá". Nunca me preocupei muito em saber se aquela era a melhor forma de ensinar, só me interessava que eles saíssem dali a saber realmente mexer na máquina e a fazer boas fotos. E ainda não tivera reclamações.
Li os meus apontamentos, intrigado com a "menina 5D", cujo o nome era Valentina, uma jovem de vinte e cinco anos de cabelos castanhos compridos com uma curiosa madeixa azul que se estendia desde a raiz até às pontas. Observei-a a fotografar as flores do jardim, debruçada no muro que a separava do canteiro, sem conseguir desviar o olhar do seu rabo aprisionado numas calças justas de tecido elástico. Aproximei-me devagar, reparando nas sapatilhas All Stars. Quem é que naquela idade calçava sapatilhas daquelas? Atrás dos cotovelos apoiados na pedra, vi a camisola larga com o tecido a cair, fazendo-me resistir à vontade de me baixar e espreitar para o interior. Já a seu lado, vi parte da sua pele lombar nua. Não teria frio?
Valentina sentiu a minha presença e afastou a máquina do rosto para olhar para mim. O seu rosto sardento tinha traços asiáticos, não muito pronunciados, vestígios de um avô ou avó naturais do oriente. Os olhos eram claros sem que conseguisse dizer se verdes ou azuis, inclinando-me para uma tonalidade perto do cinza. O nariz pequeno parecia envergonhado perto dos lábios carnudos. Sorriu-me, fazendo as sardas encavalitarem-se nas faces enrugadas pela expressão.
— Estou a ser avaliada?
Por acaso estava, mas não pela fotografia.
— Não. Estou só a observar.
Valentina olhou em redor, como se procurasse inteirar-se da posição dos restantes colegas. Não havia ninguém por perto. Endireitou-se para ficar ao meu nível.
— A fotografia é mais complicada que aquilo que esperava. — confidenciou, analisando a máquina. — Isto parece quase um computador, tem tantas opções...
— Isso é uma máquina profissional. — expliquei. — Sinceramente, nem me parece aconselhável a um principiante.
— Foi o meu pai que ma ofereceu no Natal. — relatou como se justificasse a razão porque a tinha. — Pedi-lhe uma máquina fotográfica e ele deu-me esta.
— Ele é fotógrafo?
— Não. É advogado.
Percebi que o pai deveria ser bastante rico, tendo como único critério de escolha o preço. Nem sei como não lhe oferecera uma Hasselblad.
— Ainda tenho tanto para aprender. — lamentou, quase fazendo beicinho. — O curso está a chegar ao fim e eu sinto que foi pouco o que aprendi.
— Pode inscrever-se no próximo nível. — sugeri, simulando que não reparara na forma com se insinuava.
Valentina prosseguiu com o seu objectivo, indagando:
— Por acaso não dá aulas particulares?
— Não. Só os workshops.
Ela encolheu os ombros decepcionada.
— Os cursos são bons, mas sinto que poderia aproveitar mais com aulas particulares. — Atirou-me uma expressão intensa, quase desejo. — Algo mais intimista.
Sim, compreendi o grau intimista a que se referia.
— Lamento.
A conversa foi interrompida por um dos outros alunos que me chamava. Afastei-me de Valentina, pensando se não começava a ser uma perfeita burrice não aproveitar determinadas oportunidades.
Após o esclarecimento da dúvida, constatei que a aula já avançara dois terços do seu total, por isso chamei todos para que regressássemos ao estúdio.
Na hora final, conversámos sobre os registos que todos haviam feito no exterior, esclareci dúvidas e partilhei mais algumas dicas. No final, informei-os que os certificados ficariam prontos no dia seguinte e poderiam ser levantados na recepção. Todos agradeceram e iniciaram a recolha de equipamento para se irem embora. Disfarçadamente, observei Valentina, ouvindo uma voz na minha cabeça a atiçar-me. Olhei para os ombros como se esperasse ver um anjinho e um diabinho a esgrimirem argumentos para me convencer.
O senhor da câmara Nikon parou junto de mim para me agradecer mais uma vez e elogiar o workshop. Eu ouvia-o com a atenção na movimentação da "menina 5D", a qual acompanhava pelo canto do olho. Ao vê-la dirigir-se para a porta, interrompi o discurso do homem, chamando:
— Valentina! Pode esperar um pouco? Queria esclarecer aquela dúvida...
Que dúvida? Sim, isso deve ter sido a pergunta que se formou na sua cabeça. Porém, alterou a sua trajectória e aproximou-se.
Percebendo que poderia estar a atrasar-nos, o senhor despediu-se e repetiu novo agradecimento e elogios.
— Qual foi a dúvida? — interrogou, após a saída do homem, franzindo o rosto numa expressão cúmplice.
— Ainda queres as aulas particulares? — inquiri, tratando-a com informalidade de propósito, como sinal de que o assunto se desenvolveria à margem da relação formador e formando.
Valentina captou a mensagem e revelou agrado por eu ir ao encontro das suas pretensões, correspondendo:
— Não disseste que não davas aulas particulares?
— Abro uma excepção para ti.
Ela ofereceu-me um semblante sedutor, uma expressão dissimulada de desejo. Agora que a observava sem reservas, constatava como era atraente. Desejava-a...
— Como é que fazemos?
— Deixa-me o teu número. — pedi quase como se fosse uma ordem. Para meu espanto, acho que isso a excitou. — Vou ter uns dias ocupados, mas depois ligo-te a combinar.
— Não me dissestes o preço. — lembrou como se, de repente, o valor pudesse ser um entrave.
— Depois vemos isso.
Valentina pegou num pedaço de papel e rabiscou o seu contacto.
— Fico à espera... ansiosa. — finalizou, entregando-me o papel.
Na verdade, eu não era homem para cenas daquelas, nunca me entusiasmara os envolvimentos casuais para sexo e "até um dia". Sim, fiquei inebriado com a beleza e interesse dela, mas logo que desapareceu pela porta do centro de formação, foi como se eu tivesse despertado de um papel que não era realmente o meu. Eu não era assim, por mais que pensasse em sê-lo, não era. E, francamente, não precisava de cenas de sexo ocasional com desconhecidas. Gostava e sentia a necessidade de sexo, mas não a qualquer custo. O que eu queria realmente era encontrar o impossível, uma mulher que me fizesse esquecer... Não, esquecer não, isso seria impossível, nem eu o quereria. Nunca esqueceria Mafalda, mas se pudesse ter um desejo, esse seria encontrar uma sua semelhante que ao mesmo tempo pudesse atenuar em Leonor a ausência da sua mãe.
Resumindo, aquele telefonema nunca aconteceu. Acho que o papel foi parar ao lixo, quando cheguei a casa com a minha filha.
E nesse anoitecer ameno que nos deixa a ansiar pelos dias coloridos e solarengos primaveris, sem que eu soubesse na altura, a minha vida iria entrar num novo conto, um conto definitivo.
CONTO VI
"O meu nome é...
...para sempre a teu lado."
A Primavera chegara e com ela os dias mais compridos, menos frios e mais alegres. Devido às alterações de temperatura, Leonor adoeceu e ficou uma semana em casa, engripada. Isso limitou a minha mobilidade, impedindo-me de ir à revista, o que não foi problemático, pois não houve nada que exigisse a minha presença nesse período. Leonor não apresentava alterações ao seu estado de espírito, mantendo a expressão triste, algo que se acentuara durante a convalescença em casa. Recuperou no regresso à escola, mas o sorriso no seu rosto continuava a ser uma miragem.
Tal como acontecia todas as noites, terminámos de jantar e Leonor ajudou-me a levar a louça para a cozinha.
— Vai vestir o pijama e lavar os dentes. Eu já vou ter contigo.
Lavei a pouca louça que sujámos e retirei a toalha da mesa da sala. Arrumei tudo e fui ao encontro de Leonor que, obediente, já estava deitada na cama. Debrucei-me sobre ela e beijei-lhe a testa.
— Boa noite, princesa!
— Boa noite, pai!
— Dorme bem! — desejei, apagando a luz do seu quarto e fechando a porta.
Aproveitei o serão para ligar o computador e analisar as mensagens. A televisão debitava programas fúteis que não prendiam a minha atenção, por isso, desliguei-a. Abri a minha caixa de email. Tinha uma mensagem nova de Ângela a lembrar a nossa reunião no dia seguinte. A seguir, vi as várias mensagens de publicidade não solicitada e apaguei-as sem as abrir. Não havia mais nada. Cliquei no ícone do navegador e abri a Internet. Digitei o endereço do Facebook e carreguei no "enter" do teclado. O utilizador estava memorizado, daí que só tivesse de teclar a senha para entrar. A página processou para me mostrar a listagem de posts dos meus "amigos" virtuais. Não vi nada de interesse, tirando uma foto que Leo publicara e onde fiz um "like". Ia a fechar o meu perfil, quando o Messenger disparou um "Olá". Olhei para o remetente e vi que era uma mensagem de Mérida, a pessoa que me adicionara tempos antes e de quem me esquecera completamente.
"Olá", escrevi, vendo depois a indicação em rodapé da caixa de diálogo a indicar que Mérida está a escrever.
"Tudo bem?"
"Sim. E contigo?"
"Também."
Houve uma pausa em que aguardei que ela dissesse mais alguma coisa. Não a conhecia e só por não ter nada melhor para fazer é que permaneci ali.
"Não costumo ver-te online.", surgiu no ecrã, "Costumo vir para aqui mais tarde."
"Também não sou muito de vir para o Facebook."
"Espero não estar a incomodar..."
"Não. Estava aqui a passar o tempo na net.", respondi decidido a tentar saber mais sobre ela, "Fiquei curioso com o teu pedido de amizade. Conhecemo-nos?"
"Eu mandei o pedido porque gostei do teu perfil, tens fotos muito bonitas."
"Eu sou fotógrafo. Só uso o Facebook para colocar fotos e manter-me em contacto com amigos que estão longe."
"Eu uso para me manter em contacto com a família em Portugal."
Recordei-me que vira no seu perfil que ela estava no Brasil.
"Estás no Brasil, certo?"
"Sim."
"Que fazes aí?"
"Trabalho na área da saúde."
"Médica?"
"Enfermeira."
"O que te levou para aí?"
"Acontecimentos da vida."
"Pensei que me ias dizer que tinha sido o namorado."
"Não. Não foi por causa de ninguém, foi mesmo por causa de mim."
"Não encontraste nada mais perto?"
"O que precisava estava aqui."
Mérida revelava-se enigmática. Noutra altura, talvez não tivesse paciência, mas naquela noite estava com disposição para enigmas.
"Não te chamas Mérida, pois não?"
"Não. Nem tenho cara de desenho animado.", respondeu juntando um smile sorridente.
"Porque é que colocaste aquela imagem e não uma foto tua?"
"Já te disseram que fazes muitas perguntas, Daniel?"
"Peço desculpa. Não tens de responder a tudo."
Mérida retorquiu com novo smile sorridente.
"Sou muito reservada, não gosto de publicar fotos minhas."
"Compreendo."
"Escolhi a imagem da princesa do filme Brave porque me identifico com ela. Os meus amigos dizem que sou uma guerreira."
"E tens cabelos ruivos.", repliquei com humor.
"Talvez um dia o possas confirmar."
Há muito tempo que não tinha aquele tipo de conversa e senti saudades desse tempo.
"E posso saber o teu nome verdadeiro? Se não quiseres dizer, tudo bem."
"Alexandra."
"Bem mais bonito que Mérida.", escrevi, obtendo em resposta um smile envergonhado.
Nesse instante, ouvi a minha filha a chorar e a chamar pela mãe. Apressei-me a escrever sem esperar resposta:
"Espera um pouco. Tenho de ir ver a minha filha."
Leonor tivera um pesadelo e, ensonada, chamava por quem sempre chamara nessas situações, a mãe. Entrei no quarto sem acender a luz e encontrei-a em lágrimas e assustada. Abracei-a e descansei-a, fora apenas um pesadelo. Ajudei-a a voltar a enfiar-se nos lençóis e permaneci no escuro até que adormecesse de novo.
Ao voltar ao computador, vi a última mensagem de Alexandra:
"Tens uma filha?"
Olhei para a lista de contactos e constatei que ela ficara offline. Indiferente a isso, decidi escrever que tinha uma filha de seis anos, da qual só soubera da existência cerca de um ano antes. Alguns segundos depois, Mérida... Alexandra voltou a ficar online.
"Voltei... Como assim? Só a conheceste com cinco anos?"
"Eu e mãe dela éramos muito amigos, mas apenas isso, amigos. Só que, uma única vez, envolvemo-nos"
"Uma única vez? Isso é que foi pontaria. Fariam a inveja de muitas mulheres que não conseguem engravidar"
Ao ler aquilo, pensei em Mafalda e na sua infertilidade. Julguei que Alexandra estivesse a ser sarcástica, que não acreditasse realmente que fora uma única vez.
"Não acreditas?"
"Porque não haveria de acreditar?"
"Não sei... Pareceu-me que estavas a ser irónica"
"Nada disso. Não tenho razão para duvidar de ti"
Retribuí com um smile sorridente.
"Vi no teu perfil que és viúvo. A mãe dela faleceu há muito tempo?"
"Em finais do ano passado.", respondi com a necessidade de explicar "O meu estado de viúvo não está relacionado com a mãe da minha filha."
"Então?"
Nos minutos que se seguiram, dei por mim a partilhar com aquela estranha a minha história com Mafalda, como vivêramos tantos anos separados, como nos havíamos juntado e como a vida... Não! Como a morte nos voltou a separar.
"Noto que ela foi muito importante na tua vida, Daniel."
"Foi o amor da minha vida. Nunca existirá outra igual a ela."
O diálogo quebrou-se ali. Não sei bem porquê. De súbito, o assunto pareceu extinguir-se entre nós. Porém, acabei por enviar:
"Já te falei de mim. Agora é a tua vez."
"Que queres que te conte?"
"Já tiveste alguém assim especial?"
"Ainda tenho."
A resposta surpreendeu-me, pois julgava-a solteira, tal como estava no seu perfil.
"Vejo que também não disseste a verdade no estado civil.", escrevi adicionando um smile a piscar o olho.
"Disse sim. Eu sou solteira."
"Ele não quis ir contigo?", tentei adivinhar.
"Eu não quis que ele viesse comigo. Ele vive aí, em Portugal."
"E por isso a relação acabou?"
"Não sei. Não falámos depois disso."
"Não achas que deveriam esclarecer isso?"
"Eu enganei-o. Não sei se ele me perdoa."
Comecei a imaginar que ela traíra o namorado com outro homem. Contudo, as suas mensagens seguintes refutaram a minha suspeita.
"Não o traí. Bom, não da forma como possas estar a pensar."
"Como sabes o que estou a pensar, Alexandra?"
"Calculo... Seja como for, não foi traição amorosa. Não me envolvi com outra pessoa durante a nossa relação. Estávamos a passar uma fase muito complicada, a minha vida estava uma miséria. Não quis arrastá-lo comigo."
"Foi quando foste para aí?"
"Sim."
"E porque dizes que o enganaste?"
"Pedi a uma amiga que o tirasse da minha vida."
"Como é que isso se faz?", interroguei, algo confuso. A resposta demorou um pouco, demasiado... Vi várias indicações de que estava a escrever, mas as palavras não surgiam no ecrã. Por fim:
"Como sabia que a vida aqui no Brasil ia ser muito complicada, ia passar muitas dificuldades, antes que ele se metesse num avião e viesse atrás de mim, pedi a uma amiga para lhe dizer que eu me envolvera com outro homem e que a nossa relação terminara."
"E envolveste?"
"Não."
"E continuas a amá-lo, não é?"
"Mais que a própria vida."
"Acho que devias voltar a falar com ele."
"Não sei..."
"Eu dava a minha vida por um minuto com a Mafalda.", confessei, lamentando que aquelas duas pessoas desconhecidas não se permitissem a ser felizes.
"Daniel, tenho de ir. Gostei de falar contigo. Achas que podemos repetir?"
"Claro que sim."
"Vou tentar aparecer amanhã à mesma hora. É um horário complicado. Aí é noite, mas aqui ainda é horário laboral."
"Cá estarei. Se não puderes, manda uma mensagem a dizer quando te será possível."
"Ok. Beijinhos."
"Beijinhos. Fica bem."
Confesso que nunca gostei de chuva, acho que ninguém gosta. Bom, talvez haja quem goste. Seja como for, eu não gosto e ainda menos quando já estamos na Primavera e ansiamos pelos dias quentes e solarengos.
Nessa manhã, chovia como se o São Pedro tivesse passado um século sem dar uso à bexiga. O trânsito no Porto, mais caótico que o habitual, atrasou-me para a reunião matinal, fazendo-me chegar a escassos cinco minutos da hora marcada.
No gabinete de Ângela, em volta da mesa de vidro, ela, eu e mais duas pessoas olhávamos para as fotos e folhas com maquetas de páginas espalhadas. Os outros dois eram a responsável da redacção, uma mulher da minha geração com ar de bibliotecária, e o editor executivo da revista, um quarentão com ar de playboy. Confesso que estava com uma disposição canina, agravada pelo ambiente cinzento e húmido do exterior. Discutíamos quem deveria ser a capa da revista na próxima edição, sendo a escolha entre uma mulata lindíssima que pousara nua para nós e um antigo jogador de futebol que nos dera uma entrevista. A "bibliotecária" votava no jogador, o playboy na mulata.
— Que achas, Daniel? — questionou Ângela, entregando-me a decisão.
— Somos uma revista masculina. — lembrei. — Somos conhecidos pelas publicações de ensaios fotográficos. — Olhei para a redactora. — Não ponho em causa a qualidade da entrevista, mas os nossos leitores compram a revista pelas fotos. — O editor fez um gesto de vitória. — Eu voto na rapariga, mas... — O tipo olhou para mim, desafiador. — Não quero esta foto de corpo nu. Quero aquela de rosto. A miúda tem uma expressão linda.
— Ó Daniel! Os nossos leitores querem mamas. — argumentou ele.
— Os leitores sabem que terão mamas no interior da revista. — retorqui, desagradado com a sua vulgaridade. — A capa pode ser sensual sem precisar de ter uma mulher nua. — Olhei para Ângela. — Como disse, a miúda tem uma expressão linda. Parabéns ao fotógrafo, captou a intensidade daquele olhar. Eu optaria por esta foto. — Peguei numa das fotos da modelo depositada sobre a mesa de trabalho, uma foto só do rosto a olhar para a lente. Ângela pareceu ponderar a questão. — Já dei a minha opinião. O que nos distingue é a arte das fotos que publicamos. — Tornei a olhar para o indivíduo. — Não a vulgaridade.
— Está escolhida! — afirmou Ângela, fazendo-o soar como uma ordem. — Podem ir.
Todos nos movimentámos para a porta. O editor executivo abanava a cabeça e a responsável de redacção afastou-se de rosto fechado.
— Daniel, espera um pouco. — pediu a directora. — Preciso falar contigo.
Ângela encostou-se ao tampo da sua secretária, enquanto eu me mantive de pé, perto da mesa de vidro.
— Quero lançar uma edição especial da revista. — informou, ao mesmo tempo que lia algo no seu telemóvel. — E quero ter uma estrela de nível mundial na capa e com um ensaio sensual. — Olhou para mim. — Os accionista apresentaram-me um valor generoso para fazer a proposta a alguém que se enquadra naquilo que pretendo.
— Em quem estás a pensar?
— Numa velha conhecida tua.
Mesmo sabendo a quem se referia, não evitei a pergunta:
— Quem?
— A Tânia.
Não contive uma gargalhada.
— A Tânia? Duvido que a convençam a pousar nua para a revista. Alguém com o prestígio dela?
— Tem trinta e sete anos, Daniel. É uma manequim em fase descendente da carreira. E olha que os milhares que lhe vamos propor...
— Desejo-vos sorte. Mas, não acredito.
Ângela ofereceu-me um sorriso simpático e uma expressão de quem sabe mais do assunto que eu.
— Vamos fazer uma abordagem ao agente dela para ver o que dá. — partilhou, contornando a secretária. — Atirar o barro à parede, como diz o povo. — Sentou-se com o olhar cravado em mim. — Vocês mantêm-se em contacto?
— Não falo com ela há anos. — respondi, recordando que a última vez fora na manhã após termos dormido juntos no quarto do luxuoso hotel de Paris. — Se estás a contar comigo para a convencer...
— Não. Mas, gostava que estivesses presente na reunião. A tua presença pode ajudar a convencê-la.
— Por mim, tudo bem.
Conhecendo-a como conhecia... ou como conhecera Tânia, não acreditava que aceitasse dinheiro nenhum para ser fotografada sem roupa e ter as fotos publicadas numa revista masculina.
Mulher perspicaz, Ângela contactou a agência que continuava a representar Tânia, apresentando a proposta em traços gerais e solicitando a possibilidade de se reunirem para conversar sobre isso. A directora da revista sabia que Tânia viria desfilar ao Portugal Fashion, numa espécie de homenagem da organização à sua carreira, e sugeriu uma reunião no hotel onde ela iria ficar hospedada. O encontro ficou agendado para daí a uns dias, o seguinte à chegada da manequim ao Porto.
Dividindo o meu tempo profissional entre a revista e os workshops, dei por mim com uma tarde livre a meio da semana. Leonor estava na escola e ainda decorreriam umas três horas até que fosse o momento de a ir buscar. Sentei-me ao computador no meu improvisado escritório na mesa da sala, recusando-me a aceitar que ia com esperança de ter notícias de Alexandra. Desde aquela noite em que tínhamos conversado no Messenger, não voltáramos a falar, tendo apenas recebido uma mensagem dela a desculpar-se pela impossibilidade de aparecer online e que, em breve, tentaria voltar. Já lá iam vários dias. Para não variar, ao abrir o Facebook, a ausência de notícias dela continuava.
Peguei no telemóvel para procurar o número de Peter. Ia ligar-lhe para saber como estava, novidades... Enfim, conversar um pouco. Peter não me atendeu, estaria certamente ocupado com alguma coisa.
A claridade lá fora era convidativa e optei por ir dar um passeio pela praia. O vento soprava forte, mas nada que tornasse a caminhada desconfortável. Parei numa esplanada vazia ali perto e pedi um café.
Fiquei a observar o mar, as ondas a embater na costa arenosa.
O rosto de Tânia saltou para a minha mente. Continuava a acompanhar a carreira dela, seguia-a no Facebook através da sua conta privada e, algumas vezes, trocámos algumas mensagens de circunstância. Havia muito tempo que não conversávamos e desde Paris que nunca mais estivéramos cara a cara.
— Olá?! — ouvi uma voz atrás de mim.
Virei-me na cadeira e procurei a dona do cumprimento.
— Olá... — Reconheci-a, mas não me lembrava do nome.
— Ivone. — disse ela, lendo a "branca" no meu rosto.
— Desculpa...
— Não tem importância, Daniel. — Referiu o meu nome de forma segura, demonstrando-me que não se esquecera dele. — Posso fazer-te companhia?
Apontei-lhe a cadeira no lado oposto da mesa em resposta.
— Que fazes aqui sozinho? — questionou, sentando-se no lugar que lhe oferecera.
O cabelo de Ivone esvoaçava descontrolado pelo vento. Ela lutou sem sucesso para o domesticar. Vestia uma camisola de gola alta e calças de ganga. Desviei o olhar dela e retornei à observação do mar.
— A passar o tempo e a pensar na vida.
— Hum...
O empregado de mesa aproximou-se. Ivone pediu um café. Não disse nada, limitando-se a olhar para o mesmo sítio que eu, o mar e as suas ondas. Não quis que se sentisse constrangida pelo silêncio, daí que fiz assunto, perguntando:
— Voltaste a ter chatices com o...?
— Não.
O café que solicitara foi depositado sobre a mesa.
— Ele ligou-me várias vezes, queria que reconsiderasse. — prosseguiu. — Mas, não quero. Fui intransigente. Acabou. — Atirou-me um sorriso neutro. — Estou farta de ser "a outra".
— Fazes bem. — concordei indiferente.
— Acho que está na hora de encontrar um homem que me queira por inteiro e não só para... Enfim, tu sabes o que quero dizer.
Talvez soubesse, talvez não soubesse. Não me interessava. Não me manifestei e fiquei em silêncio. Ivone também pareceu não encontrar mais o que dizer.
— Espero não estar a incomodar...
— Porque dizes isso?
— Estás tão calado... Se preferires ficar sozinho, eu compreendo.
— Desculpa. Como te disse, estou a pensar na vida.
— Queres partilhar comigo?
Partilhar o quê? A minha vida? Com ela? Ivone era uma mulher atraente, mas conhecia-a pouco e, honestamente, não me parecia o tipo de personalidade que encaixasse na minha. Seria por ter sido amante de um homem casado? Estaria eu a ser preconceituoso?
— Partilhar o que te vai na cabeça... — adicionou. — Sorri pelos pensamentos parvos que tivera na interpretação errada das suas palavras. — Que foi?
— Nada.
— É muito íntimo para se partilhar com uma desconhecida, não é?
— Tu não és uma desconhecida, és minha vizinha.
Acho que o enquadramento que lhe dei na minha realidade não a deixou agradada. Porém, disfarçou, anuindo em silêncio.
— Não estou a pensar nada demais, apenas na vida, no trabalho e em uma ou outra coisa pendente.
Tal como o facto de aquela conversadora virtual simpática parecer ter-se evaporado da rede social.
— Eu evito pensar muito na vida e em trabalho. Para não deprimir.
— O que fazes?
— Sou caixa num supermercado.
— É um trabalho deprimente?
— O que achas, Daniel?
Sorri com uma recordação de muitos anos antes.
— Eu já trabalhei num supermercado. — confidenciei. — Fazia reposição de produtos nas prateleiras. Sim, era deprimente, o ordenado era uma miséria, mas pagava as contas.
Ivone olhou para mim com um ar agastado.
— Ser caixa não é diferente. Com a agravante que não chega para pagar as contas.
A zona onde ambos vivíamos era cara. Infelizmente, o ordenado mínimo ou pouco acima disso não pagaria certamente uma renda ali.
— O apartamento?
— Vou ter de pensar numa solução. Era o... era ele que pagava a renda. Isso vai acabar. Por isso...
— Que pensas fazer?
— Acabei de te dizer que não gosto de pensar na vida, Daniel. É exactamente por isso, para não pensar nos problemas, nas contas, nas dívidas... — Calou-se, desviando o rosto novamente para o mar. Não sei se esperava que eu dissesse alguma coisa ou não. Eu fiquei calado. — Terei de encontrar uma solução. O mais certo é largar este apartamento e procurar um mais em conta.
Ou um homem que te pague as contas, pensei. Claro que não o verbalizei. Contudo, ponderei se a poderia ajudar de alguma forma, arranjar-lhe um emprego melhor... Talvez na revista? Não conhecia as habilitações dela e não podia assumir que, por ser caixa num supermercado, não pudesse ter boas habilitações para uma profissão melhor e mais bem remunerada. Infelizmente, Portugal estava cheio de recém-licenciados em empregos precários a ganhar o mínimo e sem qualquer estabilidade.
— Espero que as coisas te corram bem. — acabei por dizer.
Era aquele tipo de frase que se diz por dizer. Palavras que não a ajudariam em nada.
O silêncio reinstalou-se. As ondas ecoavam fortes, entrecortadas pela força do vento. Na estrada, o ruído dos poucos carros que passavam.
— Trabalhas em quê? — indagou subitamente. — Calculo que não continues a ser repositor de produtos. Deixa-me adivinhar, subiste na vida e agora és gerente ou director.
— Nada disso. Sou fotógrafo.
— Fotógrafo? — questionou com surpresa. — Isso dá dinheiro?
— Algum. — respondi. — Dá para pagar as contas.
Ivone olhou para os prédios atrás de nós.
— Sim, calculo que dê. Viver aqui não é barato. — Sorriu-me. — Como é que um repositor acaba como fotógrafo?
Era uma longa história que não estava com vontade ou paciência para partilhar com ela.
— É uma longa história.
— Eu tenho tempo.
— Talvez noutra altura.
— Ok.
Nova pausa no diálogo. Um senhor de idade abandonou a mesa que ocupava na esplanada, enquanto um casal jovem chegava para estacionar por ali. Vindas do continente, um aglomerado de nuvens ameaçou o Sol. O vento ficou mais forte.
— Está a ficar fresco. — acabei por dizer numa espécie de despedida. — Talvez seja melhor ir andando.
— Vais buscar a tua filha?
— Só daqui a... — Olhei para o relógio no telemóvel. — Daqui a hora e meia.
— Não queres ficar a conversar mais um pouco?
Fiz uma expressão desconfortável para as nuvens.
— Isto está a ficar desagradável.
— Podemos continuar a conversar em minha casa. — convidou num tom caloroso e olhar sedutor. Eu não escondi a suspeita que me invadiu a mente. Ela deu uma gargalhada. — Não é nada disso, Daniel.
— Isso o quê? — interroguei, fazendo-me de desentendido.
— Não, não. Não estou a atirar-me a ti. — apressou-se a responder, alterando o timbre sedutor para um tom sério. — Pode parecer-te surreal, mas estou só a convidar-te para conversar.
— Porque me haveria de parecer surreal?
— Vá lá, Daniel. Havias de ter visto a tua cara quando o disse.
— Foi surpresa por convidares um estranho para tua casa.
— Não és um estranho, és meu vizinho. — atirou acentuando o "vizinho", lembrando-me a forma como me referira a ela, antes. — Além disso, és também o homem que veio em meu auxílio num momento complicado. Não me parece que corra qualquer perigo em convidar-te a vires a minha casa.
— Talvez noutro dia. — recusei. Um dia em que o Sol nascesse a poente e se pusesse a nascente. Contudo, não quis ser antipático e, em contrapartida, ofereci. — Mas, posso acompanhar-te ao teu prédio, penso que vamos para o mesmo lado.
Ivone concordou e copiou o meu movimento a levantar-me da cadeira. Insistiu em pagar os cafés.
As nuvens pareciam levar a melhor sobre o Sol, retirando alegria ao ambiente e tornando o cenário que nos envolvia num quadro acinzentado. Cheirava a maresia com mais intensidade ou seria apenas impressão? Caminhámos lado a lado pelo passeio oposto à praia. Como eu estava do lado da estrada, evitava encará-la e observava o horizonte. O trajecto foi curto, mas o silêncio fez-me senti-lo como uma eternidade.
— És um bocado calado. — disse ela para fazer assunto.
— Não tenho nada para dizer.
— Quem olha para ti, não diz que és tão tímido. — atirou em provocação.
Eu virei o rosto para ela e ri-me, divertido. Sim, houvera tempos em que fora tímido, muito tímido. Só que já não o era. A verdade é que não tinha assunto para fazer com ela, nem interesse. Talvez estivesse a ser indelicado, mas sentia que já passara aquela idade em que deveria preocupar-me em ser agradável com estranhos, mesmo que esses estranhos fossem meus vizinhos ou minhas vizinhas.
— Sim, acho que é isso. — menti irónico. — As mulheres intimidam-me.
Ivone pareceu curiosa.
— A sério? Eu intimido-te? — Rapidamente percebeu que eu não falava a sério. — Não me lixes, Daniel. Se isso fosse verdade, não eras fotógrafo.
— Porque dizes isso?
— Como irias fotografar as modelos?
— Quem te disse que fotografo modelos?
Com um ar de espanto, Ivone constatou que chegara a essa conclusão sem que eu lhe tivesse dito nada. Talvez estivesse errada.
— Então, o que fotografas tu?
Permiti-me a uma gargalhada.
— Estou a brincar contigo. Sim, fotografo modelos femininos e masculinos.
Nesse instante, alcançámos a porta do seu prédio.
— A proposta para conversar ainda está de pé. — lembrou, retomando o tom sensual. — De certeza que não queres subir?
— É melhor não. — respondi com sinceridade.
Ivone desviou o olhar do meu, observou o chão e anuiu. Suspirou e voltou a encarar-me.
— Gostava de te agradecer. Aquilo do outro dia...
— Não é preciso.
Para meu espanto, à sensualidade na voz, ela juntou um timbre meloso:
— Não sejas assim. Estou em dívida contigo.
Abanei a cabeça e dei um passo atrás.
— Não estás nada. Esquece isso.
Ela pareceu interpretar o movimento como uma tentativa de eu me afastar e estava certa. Contudo, não se inibiu de colocar a mão no meu peito e insistiu:
— Sei que tens de ir buscar a tua filha. Mas, ainda dá tampo para subires, bebemos um copo e conversamos um bocado. Que dizes?
— Eu não bebo. — tornei a mentir.
— Uma água?
— Fica para uma próxima oportunidade.
Ela concordou com um movimento da cabeça e esboçou um sorriso decepcionado.
— Não vai acontecer, pois não, Daniel? — Encolhi os ombros. — Vá lá, Daniel. Eu não mordo... a menos que queiras. — Riu com gosto. — A sério. É só para conversar. Que dizes?
— Que tenho de ir andando.
— Ok, ok. Sei entender quando não sou desejada.
Não parecia, tal era a insistência. Porém, não quis que ficasse magoada. Não me importava o flirt e o joguinho de sedução, mas não queria que ficasse com ideias, eu não pretendia envolver-me sexualmente com ela.
— Fazemos assim. — sugeri. — Se quiseres, podemos combinar novo café amanhã na mesma esplanada e conversar mais um pouco.
O sorriso torcido revelou o desinteresse. Olhou-me nos olhos e informou:
— 2º C.
A princípio não percebi.
— 2º C. — repetiu. — Se mudares de ideias, moro no 2º C.
— Está bem. Combinado. — respondi. — Se mudar de ideias, eu toco no 2º C.
Ambos sabíamos que isso não iria acontecer.
Ivone tornou a penetrar-me com o olhar, mordiscando o lábio.
— Sabes o que acho? — Abanei a cabeça. — Que queres o mesmo que eu. Só que tens receio que isso te traga algum compromisso, alguma obrigação para comigo. Afinal, conheceste-me como a amante de um homem casado.
— Não tem nada a ver, Ivone.
— Não estou à procura de substituto, Daniel, nem estou a tentar fazer de ti o meu novo... pagador de contas. Era mesmo só pelo bom momento que poderíamos passar.
— Tu és uma mulher interessante, Ivone. Eu é que não estou interessado. — Ela ia a argumentar, mas eu travei-a. — Não estou interessado em ti nem em quem quer que seja. Pode parecer-te estranho, mas nem todos os homens se dispõem a sexo só porque uma mulher bonita os seduz.
— Tretas, Daniel. — reclamou. — Podes dizer que não te interessa envolver comigo, agora não venhas com essa história. Os homens são todos iguais.
— Como queiras, Ivone.
— Descansa, Daniel. Não me sinto rejeitada. — Não se sentia era pouco. — Acho que tu é que perdes.
— Tens razão. — concordei novamente irónico. — Se calhar perco. Terei de viver com isso.
Ivone bufou irritada e virou-me as costas, entrando no prédio e deixando a porta fechar-se com estrondo diante de mim. Não perdi mais tempo e afastei-me.
Na verdade, não era difícil sentir desejo por ela da mesma forma que não era fácil resistir-lhe. Analisando friamente, confesso que a desejava, mas era o mesmo desejo que sentira por Valentina, o qual me fizera pedir-lhe o número de telefone com a desculpa de lhe dar explicações de fotografia, quando ambos sabíamos que tudo se resumia a um interesse sexual mútuo. No entanto, passado o ímpeto inicial, eu tinha consciência do resultado. Pode parecer estúpido, mas nunca procurara sexo nas mulheres, somente amor. Bom, exceptuando com Leo em que me deixei levar pelo momento, pela raiva, pelo desespero ou pelo descontrolo das emoções de quem perdera a mulher da sua vida com a certeza que jamais encontraria uma nova alma gémea. E nem em Valentina, nem em Ivone, eu encontraria isso.
Nessa noite, Alexandra voltou a aparecer no Messenger. Trocámos mensagens sobre trivialidades, opiniões sobre o estado do Mundo, como iam as nossas vidas... A determinada altura, perguntei donde ela era natural. A resposta demorou um pouco, o que justifiquei com a sua reserva em transmitir informações suas.
"A minha família é natural de Vila do Conde. E tu?"
"Eu nasci em Almada."
"E continuas em Almada?"
"Não. Vivo numa localidade chamada Miramar. Conheces?"
"Sim. Tem uma praia que gosto bastante."
"A praia do Senhor da Pedra?"
"Sim. Passeei lá algumas vezes."
"Se calhar, cruzámo-nos alguma vez?!"
"Gostas de viver aí?"
"Gostava mais, quando a Mafalda vivia comigo. Mas sim, continua a ser o meu local preferido para viver."
Houve uma breve pausa no diálogo. Aguardei, calculando que algo tivesse afastado a sua atenção. Ao fim de um minuto, Alexandra enviou:
"No outro dia falaste na Mafalda e na vossa relação. Mas, não percebi como tens uma filha que não é dela."
Ia para escrever algo, quando percebi que a mensagem não terminara.
"Como é que aconteceu?"
Comecei a escrever a resposta, mas Alexandra antecipou-se:
"Desculpa a pergunta. Deves achar-me uma intrometida. Não tens de responder."
"Tudo bem, não há problema."
Já lhe tinha dito que só conhecera a minha filha quando esta tinha cinco anos, bem como o facto de só me ter envolvido uma única vez com a mãe dela. Contudo, apesar de ser um assunto que não gostava de partilhar, senti-me confortável a contar toda a história à minha amiga virtual.
Não quero errar, acho que estive cerca de uma hora a digitar mensagens, relatando como conhecera Kátya, a influência que Mafalda teve na nossa relação, a noite de sexo... não, a noite de amor em Coimbra, a fuga de Kátya para que eu não descobrisse a gravidez e o desespero que a fizera voltar a procurar-me e a contar que tínhamos uma filha.
"Pelo que percebi, a Mafalda fez com que tu não tivesses casado com mãe da tua filha"
Ponderei a questão. Kátya sempre fora dessa opinião.
"Não te sei responder. É difícil para mim analisar isso. Se não tivesse conhecido a Mafalda, teria embarcado numa vida de casal com Kátya? Não sei"
"Eu acho que vocês se teriam entendido"
"Eu gostava muito da Kátya, tínhamos uma relação especial. Sim, éramos mais que amigos. Mas, com ou sem Mafalda, acho que nos faltava algo para o considerar amor"
"Talvez para ti. Pelo que contas, acho que ela te amava e muito"
"Sim"
"Arrependes-te?"
A pergunta surpreendeu-me. A frontalidade invasiva da questão chocou-me e senti que Alexandra poderia estar a abusar no teor. Ela pareceu adivinhar o meu pensamento.
"Desculpa, Daniel. Não tenho o direito de te perguntar isto"
"Não faz mal", escrevi, furtando-me a responder que não.
Alexandra não insistiu e mudou de assunto.
"E a pequena está melhor?"
"Continua triste. Noto que se tem adaptado à nova vida, mas a tristeza continua lá."
"É normal. Deve ser horrível para uma criança perder a mãe."
"Eu nunca tive mãe nem pai biológicos.", partilhei, vindo ao meu pensamento a imagem dos meus tios, "Mas tive uns tios que foram como pais."
"Eu felizmente ainda tenho os meus."
"Por vezes sinto-me impotente para a animar. Sinto que não é feliz."
"Tenho a certeza que fazes o teu melhor. Na minha opinião, acho que lhe falta uma figura maternal."
Sim, há muito que também tinha essa opinião. Contudo, não me parecia provável nos tempos mais próximos que conseguisse colmatar essa lacuna.
Uma tarde amena e solarenga foi o cenário que se me apresentou, logo a seguir ao almoço, quando saí do meu apartamento. Os dias primaveris pareciam ter vindo para ficar na região norte. Caminhei até ao meu carro e entrei para o lugar do condutor. Ao ligar a ignição, a minha atenção centrou-se num outro veículo que acabara de chegar. Vi Ivone a sair do interior e, para minha surpresa, vi-a ser acompanhada pelo indivíduo gordo que a agredira na rua e que despoletara a minha ira em sua defesa. Vinham ambos animados e ela segurava-lhe o braço, completamente apaixonada... pela sua carteira. Ora aí estava a forma como ela decidira solucionar o problema das contas a pagar. Eu fora um perfeito otário em me ter intrometido na cena. Fosse como fosse, eu não era homem de me deixar ficar, perante a agressão cobarde a uma mulher.
Arranquei sem que nenhum deles reparasse em mim.
O meu destino seria um luxuoso hotel em Vila Nova de Gaia, local onde Tânia se encontrava hospedada, nesta sua vinda para o Portugal Fashion, e onde fora agendada a reunião para lhe apresentar de forma oficial a proposta da revista. Claro que Ângela já falara com a agência de modelos que representava a manequim, mas faltava fazê-lo com a principal visada. Fiquei de me encontrar com a directora da revista no átrio do hotel, antes de seguirmos para a reunião.
Àquela hora não havia muito trânsito, daí que a conduzir nas calmas tivesse demorado menos de meia hora a chegar. Estacionei o carro o mais perto que consegui e completei o trajecto a pé.
A entrada do hotel evidenciava classe com uma fonte em mármore a brotar água, antes das duas colunas em estilo romano que antecediam as amplas portas de vidro. Entrei num átrio amplo, luminoso e arejado, encantando-me com a extravagância do interior. Não sei porque ainda me surpreendia com estes locais que Tânia escolhia para se hospedar.
Ângela aguardava junto aos sofás numa área adjacente à recepção. Vestia um fato formal, envergando toda a elegância que lhe era característica. Reparei que se fazia acompanhar por mais dois homens, igualmente de vestes formais. Aproximei-me para a cumprimentar. Ela apresentou-me os dois indivíduos como sendo o responsável legal pelos assuntos relativos ao contrato que fosse assinado e o representante do grupo accionista que seria, em última análise, o tipo que daria o aval aos valores negociados. Sinceramente, não percebi para que era tudo aquilo, quase fazendo-me questionar se vínhamos convidar Tânia a pousar nua para a revista ou comprar o hotel.
Uma jovem funcionária, fardada com todo o requinte e de gestos formais, usando de um protocolo que quase parecia estar a receber a realeza, convidou-nos a acompanhá-la.
A reunião fora marcada para uma das salas empresariais do hotel, um dos vários locais que ofereciam para reuniões de negócios, conferências, entre outros. A rapariga abriu a porta e indicou-nos que nos acomodássemos nas cadeiras. A sala não era muito grande, a dimensão suficiente para uma mesa comprida em carvalho com quatros cadeiras de cada lado. As paredes eram forradas a papel com relevos de flores em tons esverdeados. Só tinha uma janela ampla, mas a vista para o rio Douro e para a cidade do Porto já faziam ter valido a pena entrar ali.
Sentámo-nos nas cadeiras mais próximas da porta. O tipo do dinheiro na ponta, Ângela e o advogado ao meio e eu na cadeira mais afastada da entrada.
— Vamos assinar algum tratado? — questionei com humor.
Ângela sorriu, não sendo seguida pelos outros dois.
Ao fim de cinco minutos, a porta abriu-se e vi entrar um homem na casa dos quarenta anos com indumentária bastante informal, camisa de algodão e calças de ganga, um pouco ao nível da minha, o que me fez sentir menos pelintra ao lado do meu grupo. O homem apresentou-se como sendo o representante da agência de modelos, apertou a mão aos "gravatas", deu dois beijos a Ângela, informando que fora com ele que ela falara ao telefone, e terminou com um aperto vigoroso da minha mão.
— A Tânia já vem. — disse ele, sentando-se defronte de Ângela.
Menos de um minuto depois, entrou a mundialmente famosa manequim portuguesa. Tânia emanava elegância, glamour, beleza e um tom natural de sedução. Trazia um vestido caro sem mangas e com uma bainha que quase lhe tocava os pés. O cabelo louro penteado para trás e preso num carrapito emolduravam um rosto de olhos penetrantes e semblante austero. Todos se levantaram na sua presença. Tânia estendeu a mão ao representante dos accionistas, num cumprimento, o qual repetiu com o advogado. Trocou um beijo distante com Ângela. Depois, ao ver-me, o seu rosto transformou-se, abrindo um enorme sorriso.
— Olá Daniel! Como estás, meu amor? — cumprimentou com a sua voz calorosa, envolvendo-me o pescoço num abraço que acompanhou com dois beijos sentidos nas minhas faces.
— Estou bem. E tu?
— Também. — respondeu, contornando a mesa e sentando-se ao lado do homem da agência de modelos.
Aquela cena fez-me recuar vinte anos no tempo, quando Tânia assumiu a nossa relação perante os colegas, demonstrando a todos a importância que eu tinha para si. Fora isso que ela fizera ali, revelou aos presentes quem era a pessoa mais próxima de si naquela sala.
— Bom, aqui estamos. — começou o homem ao lado de Tânia. — Como lhe disse, Ângela, nós apresentámos a vossa proposta à Tânia.
Ângela alterou de imediato a sua atenção para a manequim que se manteve impávida. Numa atitude que pareceu ignorar o interlocutor, questionou:
— Então, Tânia, o que achou do nosso convite?
— Não é desinteressante. — respondeu Tânia como se falasse de uma proposta de comprar dois vestidos pelo preço de um. O tom era frio, tão característico nela quando tinha todas as defesas levantadas. — Mas, tenho algumas condições que terão de ser satisfeitas para que possa sequer ponderar uma análise.
A resposta surpreendeu Ângela:
— Pensava que vínhamos afinar detalhes.
— O vosso convite a uma modelo internacional como a Tânia não é algo que se possa aceitar de ânimo leve. — interveio o representante da agência. — Temos que estudar bem o contrato.
A palavra "contrato" pareceu ter servido de interruptor ao advogado que, num gesto rápido, retirou um grupo de folhas agrafadas e colocou-o sobre a mesa.
Tânia antecipou-se e pegou nos papeis, começando a procurar as cláusulas que lhe interessavam, já que para as restantes tinha pessoas com mais créditos para a análise. Ninguém proferiu uma sílaba, enquanto ela lia. Por fim, olhou para mim e indagou:
— O que achas?
— Tu é que sabes.
Tânia devolveu as folhas à mesa e encarou o rosto de Ângela.
— Para começar, terão de ser mais ambiciosos no valor que propõem. Publicarem fotos minhas sem roupa fará vender a vossa revista como garrafas de água no deserto.
Ângela revirou os olhos, como se considerasse tal ideia um exagero. No entanto, o homem que representava os accionista expressou-se:
— Não poderemos ir muito acima disso.
— Então ficarei a aguardar a vossa nova proposta de quanto mais acima é que vão. — rematou Tânia, indiferente. — Mas, não perderei muito mais tempo com este assunto, por isso, a próxima proposta terá de ser... digamos, irrecusável.
— E é só a questão do valor que está pendente? — questionou a directora da revista.
— Não. Tenho mais algumas condições. — Ângela não escondeu a sua exasperação. — As fotos serão a preto e branco, não quero fotos a cores publicadas. Não faço nu integral. Aceito ser fotografada com os seios descobertos, mas a parte genital está fora de questão. — A pausa serviu para que assimilássemos o que dissera. — Por fim, mas não menos importante, quero ser eu a escolher o fotógrafo.
— Mas, Tânia, a nossa revista... — tentou Ângela argumentar.
Tânia não lhe deu hipótese:
— Quero que seja o Daniel a fotografar-me!
Era uma exigência que até agradava a Ângela, a qual olhou para mim à espera que eu confirmasse ou declinasse. Eu observei a super manequim com ternura e respondi:
— Terei todo o gosto em voltar a fotografar-te.
A reunião não demorou muito mais. Tânia foi a primeira a levantar-se e despediu-se de todos com um distante "até breve", desaparecendo pela porta da sala de reuniões sem olhar para trás. O representante da agência tomou a seu cargo as despedidas formais, lembrando que ficaria a aguardar novo valor para a sessão fotográfica.
Quando regressámos ao átrio, Ângela estava possessa, irritada com a postura de Tânia, a qual considerava arrogante e prepotente.
— Achas que lhe podes dar uma palavrinha, Daniel? — pediu, perante o desinteresse dos dois homens de fato que a esperavam à saída.
— Se bem conheço a Tânia, pouca influência terei na decisão dela. Além disso, não conversamos para aí há uns seis anos.
— Não foi isso que me pareceu, quando ela te cumprimentou. — retorquiu séria, quase altiva. — Não me interpretes mal, não estou a duvidar daquilo que dizes. Só acho que tens mais influência nela que aquilo que pensas.
Caminhámos lado a lado para o exterior, sendo seguidos pelos seus parceiros de viagem.
Antes que eu dissesse o que quer que fosse, Ângela continuou:
— Ok, Daniel. Percebo que não te queiras envolver. Ela é tua amiga, vocês têm um passado. — Eu ia a argumentar, mas a minha chefe não o permitiu. — Se puderes fazer alguma coisa... — Assenti sem grandes perspectivas. — Encontramo-nos na revista?
— Sim, sigo já atrás de vocês.
Tomámos direcções opostas, rumo aos nossos carros. No momento em que me aproximava do meu automóvel, o telemóvel apitou uma mensagem nova. Peguei no aparelho e reconheci o número do remetente, um número que poucas pessoas tinham, o número privado de Tânia. Abri a mensagem e li "quando estiveres sozinho, liga-me."
Logo que me sentei ao volante, antes de rodar a chave na ignição, liguei para ela.
— Querias falar comigo?
— Estás sozinho, Daniel? — questionou num tom neutro.
— Sim. — confirmei curioso. — O resto da comitiva seguiu noutro carro. Algum problema?
— Quero conversar contigo. Só contigo.
— Estou a ouvir.
— Não pelo telefone.
— Que se passa?
— Quero falar contigo sobre esta proposta que vocês trouxeram.
— Não tenho muito mais a dizer-te para além do que já sabes.
— Quero a tua opinião, sem teres a chefe a teu lado.
— Posso dar-ta agora.
— Não quero! — exclamou para minha surpresa.
— Então?
Houve um suspirar no outro lado da linha.
— Tenho saudades tuas. Pensei que talvez pudéssemos jantar logo?!
— Não posso. Tenho de tomar conta da minha filha. — informei.
— Tens uma filha? — interrogou com surpresa, fazendo-me constatar que isso era uma novidade para ela. — Não sabia que tinhas casado.
Em todos os anos que passaram, desde Paris, a nossa troca de mensagens fora supérflua, um cumprimento, votos de ocasião, um feliz aniversário ou um feliz Natal. Em momento algum, partilhara com ela a existência de Leonor.
— Não casei, Tânia.
— Que idade tem ela?
— Seis anos. — Pela ligação era perceptível a confusão que deveria ir na cabeça de Tânia. Não esperei que colocasse as questões para a esclarecer. — É filha de uma amiga minha do tempo de Edimburgo. Tivemos... — Ia a dizer uma relação, um caso, mas fora só uma noite. — Tivemos um envolvimento e ela engravidou.
— Há coisas que se usam para evitar isso. — interrompeu num timbre condescendente.
— Só soube da criança há cerca de um ano. — prossegui, ignorando a sua frase.
— Como é que descobriste?
— É uma longa história. — atalhei sem vontade de estar ao telefone a reviver momentos tristes.
— Vocês estão juntos?
— Não.
— Estás com alguém?
— Não.
Nova pausa, um silêncio típico dela, antes da investida.
— Estás livre, amanhã à tarde?
— Em princípio sim, Tânia.
— Podemos encontrar-nos? Gostava de conversar contigo, Daniel.
— Não tenho muito a dizer-te acerca da proposta.
— Merda para a proposta, Daniel. Pouco me interessa isso agora.
— Está bem, não precisas de ficar chateada.
— Não estou chateada. — negou afável. — Vens ter comigo ao hotel, amanhã ao início da tarde?
— Sabes bem que sim.
— Podes fazer-me um favor?
— Diz.
— Deixa ficar em casa o Daniel que apareceu na reunião, hoje. E traz o meu amigo, aquele a quem devo o início da minha carreira.
— Não me deves nada, Tânia.
— Não sejas tolo! Até amanhã.
Conforme ficara combinado, na tarde seguinte repeti todo trajecto do dia anterior e o automóvel ficara estacionado quase no mesmo sítio. Não partilhara com Ângela que me iria encontrar com Tânia, não só porque não tinha nada a ver com isso, como porque me desagradara imenso a forma a roçar o insulto que a directora da revista usara para se pronunciar acerca de Tânia, apelidando-a de prepotente e pretensiosa. Ficara irada com a imposição de condições, principalmente com o aumento da verba necessária para que pousasse nua. Ainda para mais, os accionista não estavam na disposição de aumentar muito mais a parada, o que a envolvera numa luta de argumentos com o representante deles.
Sob mais uma tarde quente, ali estava eu a entrar no hotel. Agradado com o ambiente fresco do interior, caminhei até ao balcão da recepção onde interpelei um homem elegantemente fardado com as insígnias do empreendimento. Pedi-lhe que informasse Tânia de que eu tinha chegado, uma vez que ela se encontrava à minha espera. Solícito, pegou no telefone e marcou o número do quarto dela. Ao ser atendido, transmitiu o meu recado, ouviu algo e desligou. A resposta foi um pedido para que subisse, baixando depois o tom de voz e indicando o piso e o número do quarto como se receasse que alguém o pudesse escutar.
Agradeci, logo após ouvir as indicações do caminho, e segui até ao elevador. Cruzei-me com alguns hóspedes que me fizeram sentir um verdadeiro pobretanas. O elevador parecia estar à minha espera, entrei e carreguei no botão referente ao piso pretendido. Saí para o corredor alcatifado, avançando entre as paredes que emanavam opulência.
Bati à porta.
Nenhuma voz perguntou quem era, talvez porque não seria suposto ser outra pessoa que não eu. Tânia abriu a porta e ofereceu-me um sorriso doce. Convidou-me a entrar. Trocámos dois beijos fraternais e um abraço saudoso. Ela fechou a porta e passou por mim. Permiti-me observá-la, continuava linda, esguia, orgulhosa das suas pernas curvilíneas que a faziam usar saias tão curtas como aquela em tons escuros. O cabelo louro estava solto, descomprometido, caído sobre os ombros tapados pelo tecido fresco da túnica larga azulada. Sem se conseguir abstrair do hábito de caminhar como se estivesse numa passerelle, desfilou descalça até ao sofá.
O quarto era uma suite. A sala composta com sofás, uma mesa e um móvel encostado à parede, contendo uma televisão, todo trabalhado e com ar tão requintado como tudo o resto. As paredes eram vermelhas e os tectos brancos em contraste com o chão alcatifado em tons de terra. Contornando a sala para a esquerda, via-se o quarto com uma enorme cama de casal com um aspecto soberbo de conforto. Para lá da cama, a porta entreaberta para o que deveria ser a casa de banho. Todo o espaço era iluminado por luz natural proveniente das grandes janelas de acesso à varanda, a qual possuía uma vista fabulosa para o Douro e para o Porto.
Tânia sentou-se no sofá, cruzando as pernas e colocando a mão na almofada num claro convite a que lhe fizesse companhia. Sentei-me a seu lado.
— Com que então, tens uma filha. — foi a primeira coisa que disse. — Como é que isso aconteceu?
Em jeito de brincadeira, retorqui:
— Acho que não precisas que te explique como se faz.
Tânia deu uma gargalhada.
— Sabes o que estou a perguntar.
Adoptei uma postura séria.
— A mãe era uma grande amiga minha. Tínhamos uma relação especial. Não éramos um casal, apenas amigos muito próximos.
— Amigos coloridos?!
— Não, não. Nada disso. — neguei, recordando a Kátya de Edimburgo. — Sabia que ela tinha sentimentos especiais por mim, mas eu...
— Tu não correspondias? — interrogou surpresa. — Isso nem parece teu, Daniel.
— Eu estava apaixonado por outra pessoa.
Tânia arregalou os olhos.
— Oh... Agora, isto está a ficar interessante.
Abanei a cabeça com um sorriso triste. Não queria entrar em muitos pormenores, por isso abreviei a história ao máximo.
— Só nos envolvemos uma única vez, uma cena daquelas em que eu estava muito deprimido e ela consolou-me. — Tânia franziu o rosto. — Sim, foi um consolo que acabou nisso. Nessa única vez, ela engravidou. Eu não fazia ideia. Como eu nunca quis que fôssemos mais que amigos, ela acabou por se afastar. Deixou-me uma mensagem de despedida e desapareceu por completo, só voltando a procurar-me no ano passado.
— E porque é que ela mudou de ideias?
— Porque... — Senti a voz a fugir-me. Sem ter essa intenção, revi a imagem da Kátya de Palmela, a Kátya fustigada pela doença. — Porque ela estava doente e... Não queria que a filha ficasse sozinha.
Tânia pareceu adivinhar o final da história:
— Ela...
— Sim. Faleceu no Outono passado.
— Lamento, meu amor. — proferiu com enorme ternura.
Abanei a cabeça e fiz um gesto de que era algo do passado e que não tinha retorno.
— E quem era a... a mulher por quem estavas apaixonado?
Suspirei.
— Se não te importas, prefiro não falar nisso, Tânia.
— Compreendo. Ela não correspondeu.
Tornei a suspirar, agastado, tolhido pelas feridas das lembranças.
— Fui correspondido. — disse, disfarçando a mágoa. — Há muitos anos que era correspondido. Reencontrámo-nos mais tarde e chegámos a viver juntos.
— Já não estão juntos? — questionou, indiferente ao meu pedido para não continuar.
— Não.
Tânia ficou a olhar-me, aguardando mais desenvolvimentos.
— Mudemos de assunto. — pedi. — Que querias conversar comigo?
Tânia recostou-se no sofá. O seu olhar subiu para o tecto, depois desceu para mim. Suspeitei que pretendia tocar num determinado assunto e quando falou, fiquei com a sensação que não optara pelo tema principal.
— Aquela reunião ontem. Quero saber a tua opinião. — explicou. — Achas que devo aceitar?
— Tu é que sabes, Tânia. Além disso, não faço ideia do valor que vão contrapor.
Ela permaneceu com os olhos em mim.
— Se me disseres para aceitar, eu aceito. Mesmo pelo valor de ontem. Se isso for bom para ti, se te trouxer benefícios, eu faço-o por ti.
— A que propósito vem isso agora?
— Como assim?
Eu fizera uma pergunta que nem percebia porquê. Teria sido ouvi-la dizer que faria algo por mim? Que teria isso de estranho? Tânia já não era a minha cruel colega do secundário, também não era a minha namorada da juventude, talvez nem uma amiga... Quanto muito, tínhamos um passado, éramos capazes de ser os conhecidos mais antigos na vida um do outro.
— Desculpa! — pedi, meio envergonhado. — Não precisas de fazer nada por mim.
Ela sorriu condescendente, colocando a mão na minha coxa.
— Tu és um tipo extraordinário, Daniel. E único.
— Não exageres, Tânia.
— É verdade. Sabes? Por vezes, recordo os tempos de escola, a forma ignóbil como eu te tratava. E tu...
— Eu era um parvinho.
— Não, tu eras um ser humano excepcional. Apesar de te tratar mal, tu ajudaste-me, alimentaste o meu sonho, ajudaste-me a concretizá-lo...
— Estava apaixonado. — lembrei com um sorriso divertido.
Ela permaneceu séria.
— Fui muito estúpida, Daniel. Podes achar que não te devo o início da minha carreira, mas devo-te sem dúvida o facto de não me teres deixado desistir. Podias estar apaixonado, mas... Bolas, até um apaixonado tem o seu limite. A tua paciência foi inesgotável.
Senti saudades daquele tempo, dum tempo longínquo. Não os de humilhação diária na escola, mas aqueles em que namorámos. O nosso primeiro beijo... Preferi mudar a conversa.
— Falávamos do contrato, se deverias aceitar?
Tânia revelou alguma decepção pela alteração do tema. Porém, percebeu a mensagem e respondeu:
— Não preciso do dinheiro. E só ponderei ouvir a proposta por saber que trabalhavas na revista. Se quiseres que o faça, eu faço.
— Eu conheço-te, Tânia. Não acredito que te sintas confortável a pousar para um ensaio fotográfico erótico. Mesmo que isso me trouxesse alguma vantagem, jamais te pediria que o fizesses. Mas, acredita, se alguém ganhar com isso não serei eu.
Ela não se manifestou. Ficou muito quieta, mantendo a mão na minha coxa e o olhar nos meus olhos. Detectei um centelha do brilho que lhe encontrara neles, mais de vinte anos antes.
Não sei donde veio ou o porquê, mas naquele momento, tive uma certeza incontornável. Tânia tinha sido a minha primeira namorada. Fora-o num curto espaço de tempo, mas tornara essa época marcante nas nossas vidas. Sim, não duvidava disso, marcante para ambos. Bastaria ver como ela me olhava, a forma como me recebia nos raros reencontros ao longo dos anos. Vivêramos a maior parte da nossa vida longe um do outro, anos e anos sem contacto. Reencontrámo-nos em Paris, num evento de moda, onde partilhámos uma noite de amor. Mais anos passaram, eu acompanhei-a ao longe, uma ou outra mensagem esporádica... Porém, sempre que os nossos caminhos se voltavam a cruzar, parecia que nunca estivéramos longe. Ela era especial, muito especial para mim. E eu tinha a certeza que também era especial para ela.
Do nada, confessei:
— Eu amei verdadeiramente quatro mulheres na minha vida.
O seu rosto revelou uma mistura de surpresa e confusão.
— A que propósito vem isso agora?
— Não sei... — O meu tom era sério, carinhoso e cúmplice. — Quero apenas dizer-te que és uma delas.
Tânia desviou o olhar para a parede, furtando-se a encarar-me. Não sei se ponderava uma resposta, se haveria de dizer algo ou esperar que eu prosseguisse. Esperei. Ela evitou o meu rosto, mas não ficou calada:
— Não sei o que esperas que te responda a isso.
Coloquei a mão sobre a dela que permanecia na minha perna.
— Não tens de responder nada. Foi apenas a partilha de um sentimento. — Tânia encarou-me. A expressão era indefesa e segura. — Tenho perdido tantas pessoas importantes... Chego a uma idade em que não quero que fique nada por dizer. — Sorri com ternura. — Não sei quando te voltarei a ver, por isso... — Foi a minha vez de desviar o olhar. — Acho que o sabes, mas quero dizer-to olhos nos olhos. — Tornei a observar os seus fantásticos olhos verdes. — Fazes parte de um grupo muito pequenino de pessoas que eu amo.
Tânia sorriu:
— Tu és muito especial para mim, Daniel. Nunca duvides disso.
E com aquela frase, retirou a mão da minha perna e alterou o tom de voz para algo mais profissional.
— Porque é que a revista está disposta a investir tanto para me querer fotografar num ensaio ousado?
— Querem fazer uma edição especial, comemorativa. — respondi, equiparando o meu tom ao dela.
— Partilhaste com a tua chefe que dificilmente eu aceitaria uma proposta dessas? — Anuí. — Então, o que os fez avançar com a proposta?
Não tinha porque lhe esconder a verdade.
— A Ângela está convencida que a tua carreira está em declínio. — iniciei, obtendo dela um semblante irado. — E quer tirar proveito disso para te convencer a pousar nua para a revista. — Falei, demonstrando bem como repudiava isso. — Se queres a minha opinião, tu não precisas do dinheiro. Acho que deves mandá-los à merda. — Sorri. — Ou melhor, mandar-nos à merda, já que eu faço parte da comitiva de ontem.
Tânia levantou-se do sofá. A raiva era patente nos seus movimentos. Não precisava que ela o dissesse, sabia que nada daquilo era dirigido a mim.
— Em declínio, eu?
— Eu disse-lhe que não concordava. Mas, ela acha que está certa.
— Que cabra. — vociferou, voltando a sentar-se. Colocou novamente a mão no meu joelho. — Obrigado por me contares.
— Ela é minha chefe, mas tu és...
— Eu sou?
— Tu és especial.
Tornando a sorrir, o seu olhar voltou a evadir-se do meu. Ficou em silêncio. Eu aguardei, olhando-a com o mesmo carinho de sempre. Não sentia a paixão da adolescência, somente algo parecido com... amor.
— És o melhor ser humano que conheci em toda a minha vida. — disse por fim, escondendo o rosto com o cabelo caído. — E fui tão cruel contigo, quando andávamos na escola.
— Vamos voltar outra vez a esse assunto? — questionei numa mistura de divertimento e seriedade. — Cruel, Tânia? — interroguei, rebatendo a acusação. — Tu foste minha namorada. Fizeste-me o puto mais feliz da escola.
— Mas antes, tratei-te como... fui tão má contigo. Humilhei-te. — Encarou-me e surpreendeu-me com uma lágrima que despontava. — E apesar de te ter tratado como uma víbora, tu ajudaste-me. Não sei se não tivesses insistido, se algum dia teria sido o que sou hoje.
Confesso que me senti confuso por ela voltar ao tema anterior. Não conseguia perceber porquê, parecia que estávamos numa conversa aos círculos, saltando de um assunto para o outro. Para além disso, Tânia revelou-se subitamente fragilizada e com o olhar húmido.
— Vá lá, eu só queria agradar à miúda gira. — desvalorizei para atenuar a sua culpa. — Só queria estar perto de ti. Acho que nem me importava que me insultasses o tempo todo.
— Nunca conheci ninguém como tu.
— Conheceste melhor. — argumentei com modéstia.
Ela abanou a cabeça. Limpou os olhos com os dedos, procurando sem sucesso não esborratar a maquilhagem.
— Dás-me um minuto? — pediu, levantando-se e atravessando o quarto até à casa de banho.
Afastei-me até à janela, espreitando o rio brilhante com o reflexo do Sol.
— Então e o teu namorado canadiano? — questionei, recordando a sua vida amorosa no tempo em que nos encontrámos em Paris.
— Quem? — ouvi do interior da casa de banho, misturado com o som da água a correr.
— A última vez que nos encontrámos, disseste que tinhas um namorado canadiano e que suspeitavas que ele te ia pedir em casamento.
Tânia espreitou pela porta, revelando o rosto sem maquilhagem.
— Não pediu. — partilhou, desaparecendo novamente atrás da porta. — E também não durou muito mais depois disso.
Tornei a sentar-me no sofá, elevando a voz para que me ouvisse:
— E o teu amigo fotógrafo? O de Los Angeles?
Não houve resposta, mas senti os seus pés a caminhar silenciosamente pela alcatifa. Tânia contornou o sofá e sentou-se no meu colo.
— Posso? — pediu com naturalidade. Fiquei surpreendido e agradado por a ter tão perto. Ela colocou um braço à volta do meu pescoço e explico, tocando-me o rosto com o indicador. — Já estou numa idade que para ele está fora do prazo.
Sem pensar, envolvi-lhe a cintura, enquanto a outra mão acariciava distraidamente a sua coxa.
— Só um estúpido te pode considerar fora de prazo.
— Tenho trinta e sete anos, Daniel.
— Também eu.
— A tua chefe acha que estou em declínio.
— A minha chefe é parva.
Tânia sorriu. O seu sorriso era carinhoso, a sua expressão inundada de ternura. Os seus olhos verdes observavam-me, tentando ler para lá dos meus. De repente, estávamos ali tão próximos como vinte anos antes, como dois adolescentes apaixonados, o tempo suspenso à nossa volta, o desejo dissimulado, a insegurança de não estar a corresponder ao outro. Tal como há vinte anos, a iniciativa foi dela. O seu olhar desceu para os meus lábios e a sua boca encontrou-se com a minha. Trocámos um beijo profundo, toda a paixão a subir pelos nossos corpos. A minha mão saltou da coxa para dentro da túnica e subiu para o seio.
— Quero fazer amor contigo, Daniel! — exclamou entre beijos sôfregos. — Vem...
Saiu do meu colo e segurou-me a mão, puxando-me com doçura para a cama. Fez-me despenhar no colchão e despiu a roupa como se estivesse a exibir-se para mim. Eu tirei a camisola e as calças, excitado com o seu corpo nu a avançar para mim. Abriu uma gaveta e retirou uma embalagem pequena prateada.
— Já vi que tens pontaria, não preciso que a tua filha tenha um irmão.
Sorri.
— Se for como em Paris, espero que tenhas mais.
Tânia mordiscou o lábio e desceu sobre mim.
No beijo seguinte, pelo meio da paixão, a imagem de Mafalda no pensamento desconcentrou-me. Temi que a incapacidade de encarar outra mulher que não ela, naquela intimidade, fizesse perigar o momento. Vi Tânia estender-se na cama, convidando-me a amá-la. Emanava tanto carinho e doçura dela que surpreendentemente a imagem de Mafalda esfumou-se. Fizemos amor olhos nos olhos com tanta intensidade, tanta paixão, tanto amor...
O auge foi intenso, brutalmente intenso. Mas, mais intenso que o orgasmo foi a percepção do quanto nos amávamos.
Não sei quanto tempo passou. Tal como em Paris, não nos saciámos facilmente. Eu tinha a tarde livre até à hora em que teria de regressar a Miramar e ir buscar Leonor à escola. Deitados na cama, Tânia e eu olhávamos o tecto branco com os corpos tapados pelo lençol fino e os dedos entrelaçados das nossas mãos.
— Já não estou no auge da minha carreira. — disse Tânia do nada, quebrando o silêncio relaxante. — Mas também não estou no fim.
— Tu continuas muito bem. És uma mulher linda. Sempre foste.
— Aqui que ninguém nos ouve, Daniel. Esta carreira tem validade.
— Tens mais glamour que muitas dessas miúdas novas que estão no auge.
— A imagem também se gasta. — lembrou, consciente da realidade. — Estou neste mundo há quase vinte anos. — Suspirou. — E também estou cansada desta vida de constante movimento.
— Tira umas férias. — sugeri.
Sem responder à sugestão, afirmou com segurança:
— Vou recusar a proposta da revista, independentemente do valor que ofereçam.
— Acho que fazes bem. — concordei, apertando a sua mão.
— Só o faria por necessidade financeira ou... por ti. Tu não ganhas nada com isso. E felizmente tenho o suficiente para uma velhice descansada. — Olhou para mim com aquele novo semblante enamorado. — Estou a pensar manter-me no mundo da moda mais alguns anos. Mas, não muitos mais.
Assenti, concordando com aquela informação tão natural, pois ninguém mantinha uma carreira de manequim com aquele ritmo eternamente.
Tânia ergueu-se na cama e apoiou-se no cotovelo, fazendo o lençol cair até à cintura. O seu semblante sério observou-me hesitante.
— Responde-me com sinceridade. — pediu.
— Sempre.
— És capaz de esperar por mim?
— Esperar por ti? — repeti, confuso.
— Sim. Ainda continuarei neste ritmo de trabalho até aos quarenta, quarenta e poucos. — explicou. — Depois, vou parar. Tenho pensado muito no que farei a seguir e sei que tenho muitas portas abertas para projectos na moda e no agenciamento de manequins. E conto fazer isso em Portugal. — Fez uma pausa com o verde cravado em mim. — Serias capaz de esperar? Esperar que voltasse em definitivo a Portugal e ficarmos juntos?
A sua pergunta apanhou-me completamente de surpresa.
— Casar?
— Se quiseres. — concordou franzindo o rosto.
— E queres ter filhos?
— Claro.
Fiz um sorriso parvo, deliciado com a ideia de ela ter um filho meu. Imaginei-a grávida...
Pensei um pouco. Perante toda sua expectativa, retorqui:
— E porquê esperar? Porque não ficamos juntos já?
Tânia abanou a cabeça.
— Não quero parar já. E não é justo para ti ter uma relação com alguém que talvez consigas ver uma vez a cada três ou seis meses.
Virei-me na cama, preocupado com as horas. Peguei no telemóvel e confirmei que teria de estar em Miramar daí a uma hora.
— Não te quero prometer algo que não sei se conseguiria cumprir. — confessei. — Nenhum de nós pode prometer isso, tendo vidas afastadas. Nem eu te posso garantir que não surja ninguém na minha vida, da mesma forma que tu não podes garantir que não surja na tua.
Ela acabou por concordar, vendo-me levantar da cama.
Comecei a vestir-me, ciente que a estava a decepcionar.
— Tu fizeste a tua proposta. Eu faço-te a minha. — prossegui, enfiando-me nas calças. — Não te peço que deixes a moda, deixa apenas a carreira internacional. Volta em definitivo para Portugal agora, aproveita a homenagem no Portugal Fashion e estabelece-te cá. Terás certamente trabalho sem teres de ir para longe. Vem viver comigo e com a Leonor. — Parei para que nada no meu tom deixasse dúvidas. — Eu amo-te, Tânia! Hoje sou teu. Daqui a alguns anos não to posso prometer.
Tânia levantou-se do colchão, saltou para o chão e abraçou-me.
— Vou pensar, meu amor. Prometo.
E beijou-me os lábios com fervor, paixão e indubitavelmente muito amor. Aquilo que durante muitos anos não passara de fantasia, poderia vir a concretizar-se.
Antes de saber a sua decisão, recebi um telefonema de Ângela a informar-me que Tânia recusara a proposta de pousar nua para a revista, ainda antes de ouvir o novo valor. Fiz de conta que estava surpreendido e tive de ouvir um sem número de comentários insultuosos acerca dela. Não servia de nada argumentar com Ângela, pelo que a deixei dizer os disparates todos.
Dois dias depois de termos estado juntos, aconteceu o desfile final de Tânia no Portugal Fashion, onde ocorreria a homenagem que o mundo português da moda lhe queria prestar. Como queria assistir ao evento ao vivo, levei Leonor comigo na esperança de a apresentar à manequim mais famosa de Portugal, a qual poderia vir a ser a sua nova figura maternal.
Confesso que foram dois dias em que me deixei mergulhar num mar de expectativas. Imaginei como seria partilhar a minha vida com Tânia, tê-la a viver em minha casa. Como iria Leonor reagir a isso? Poderia Tânia ser o gatilho para despoletar o regresso da alegria à minha filha? Tânia teria os seus defeitos, mas eu não duvidava que ela seria maternal para com a criança e poderia tornar-se importante para Leonor. Deslumbrei-me com outras fantasias, acordar diariamente com ela a meu lado, passear pela praia com ela e Leonor... Sorri sozinho, imaginando-a com uma barriga enorme, grávida à espera do nosso primeiro filho...
O evento estava a realizar-se no edifício do Centro de Congressos da Alfândega do Porto. Não me despertava grande interesse assistir a todos os desfiles, pelo que só chegámos perto do último, aquele em que Tânia iria participar. Entrei com as credenciais de fotógrafo profissional e coloquei-me perto da passadeira por onde os manequins circulavam, num lugar que permitisse à pequena Leonor visualizar os intervenientes sem obstáculos visuais.
O espaço amplo era semelhante a um enorme armazém. Não existia palco, apenas uma linha de chão que atravessava o espaço de uma ponta a outra, ladeada por cadeiras onde os espectadores assistiriam à mostra de modelos. A passerelle branca era delimitada por pequenas pedrinhas, dando um aspecto de pista de circulação. Os manequins entravam por entre paredes de pedra, ao fundo, desfilando sob a luminosidade intensa que assolava o centro do espaço em contraste com o ambiente de penumbra do sector dos espectadores.
Leonor assistia a tudo com muita atenção, num fascínio contido e sem que lhe alterasse a expressão fechada do rosto. Nunca largou a minha mão, talvez temendo que eu pudesse desaparecer por entre a multidão.
As peças de roupa eram criações de um famoso estilista português, um dos mais conceituados e dos poucos que tinha capacidade financeira e interesse em pagar o cachet de Tânia. Porém, parte desse valor fora custeado pela organização que pretendia aproveitar o momento para homenagear a modelo e atrair ainda mais atenção ao evento.
Os manequins, na sua maioria femininos, começaram a entrar, avançando com o olhar fixo em nada para lá dos espectadores. Era como se fossem autómatos a apresentar tecidos. Neste caso, eram exemplos de roupa que de facto se imaginava que se pudesse vestir no dia a dia, ao contrário de alguns exemplos de vestimentas completamente absurdas a que já assistira em palcos bem conceituados no universo mundial da moda.
Tânia entrou em destaque, desfilando com sua postura característica, emanando elegância e sensualidade. Atravessou toda a linha de circulação debaixo dos olhares maravilhados do público. Chegou ao fim e rodou subtilmente, retornando na direcção inversa e mantendo todo o glamour da estrela que sempre fora.
Seguiram-se mais algumas passagens, onde os destaques foram sempre atribuídos a Tânia, ela era a figura principal daquele momento. No fim, o estilista entrou de mão dada com a vedeta do seu desfile, sendo seguidos por todos os manequins que haviam participado. Agradeceu a todos, sorrindo e acenando e voltou a esconder-se nos bastidores.
Com o estrado central vazio, o apresentador do evento surgiu de microfone na mão, solicitando a todos que se mantivessem nos seus lugares, uma vez que iriam proceder à tão publicitada homenagem. Falou durante alguns minutos, dando tempo a que Tânia se preparasse para o momento.
Após um resumo da carreira da manequim portuguesa, o apresentador pediu uma salva de palmas e chamou-a ao centro de destaque. Tânia apareceu no palco ovacionada pelo público, desfilando sozinha com um vestido preto comprido com uma abertura que subia quase até à cintura e lhe revelava a perna esquerda. O decote generoso sugava muita da atenção da sala. Sorrindo e acenando, ela parou junto do homem, num ponto central para receber um ramo de flores, entregue por uma das manequins mais jovens que também tinham participado no último desfile. A seguir, os organizadores do espectáculo, liderados pelo presidente da marca que geria o evento, avançaram sob os focos de luz. Era um homem conhecido, de porte forte e ligado ao mundo empresarial do norte. Segurava uma caixa nas mãos e deu início à tão planeada homenagem, entregando-lhe o conteúdo, uma placa em cristal comemorativa dos seus vinte anos de carreira.
O apresentador entregou-lhe o microfone e a voz quente de Tânia inundou o espaço, agradecendo a todos.
— Ao longo da minha carreira, — continuou ela, olhando para os espectadores, na minha direcção. — conheci algumas pessoas que me ajudaram muito, me ensinaram a ser a profissional que sou. No entanto, tudo isto começou graças a alguém que em determinado momento acreditou mais em mim que eu própria. E essa pessoa está aqui presente, hoje. — Vi as cabeças virarem-se na busca por esse ser misterioso. Eu próprio o fiz sem saber que essa pessoa... — Peço a vossa salva de palmas para o meu grande amigo e um dos melhores fotógrafos portugueses, o Daniel que está ali atrás.
As pessoas seguiram a direcção do seu dedo que apontava para mim. Eu fiquei sem reacção, surpreso e limitei-me a acenar, qual rainha de Inglaterra, completamente intimidado com toda a atenção. A meu lado, segurando a minha mão, Leonor estava ainda mais assustada sem perceber o porquê de, subitamente, todos olharem para nós.
Felizmente, não durou muito e as cabeças tornaram a voltar-se para a homenageada.
O apresentador recolheu o microfone, durante os muitos aplausos para ela. A seguir, agradeceu num timbre afável, numa sugestão para que se silenciassem, e colocou algumas questões típicas da ocasião. Perguntou a Tânia como se sentia, o que significava para ela aquele reconhecimento, entre outras coisas. Por fim, questionou:
— E agora, Tânia. Qual vai ser o futuro?
Tânia sorriu, brotando glamour por todos os poros. O seu olhar cruzou o meu. Parte do sorriso perdeu-se e, antes de ela o dizer, eu já sabia o que aí vinha na interpretação que fiz do seu olhar:
— Vou continuar a desfilar pelos palcos internacionais.
Apesar de o prever, as suas palavras foram uma seta no meu peito, no meu coração. É certo que ela apenas me prometera pensar no assunto. Fora eu quem fizera filmes do que poderíamos ser juntos. Talvez tivesse sido isso que mais me feriu, ter-me deixado inebriar pela fantasia, ter acreditado em algo que só existira na minha cabeça.
Decidi que nada mais tinha a fazer ali, não valeria a pena esperar, ir ao encontro de Tânia... Acho que, naquele instante, nem seria bom para nós falarmos. Eu estava magoado e poderia dizer alguma coisa menos simpática.
Sem perder mais tempo, virei costas e abandonei o local com Leonor pela mão. Felizmente, não partilhara com a pequena a minha intenção de lhe apresentar Tânia, pelo que não houve decepção para além da minha.
Tentei abstrair-me do sucedido no resto do dia, mas foi difícil. Leonor já dormia há muito, quando o som do telemóvel quebrou a paz nocturna na sala, despertando-me da televisão. Atendi, reconhecendo o número.
— Desculpa... — foi a primeira coisa que me disse.
— Tudo bem, Tânia. Eu compreendo.
— Aos quarenta, paro. — prometeu com um pedido. — Espera por mim.
Podia estar errado, mas na minha opinião, Tânia era viciada naquele mundo de desfiles e viagens por todo o globo. Não sei se iria parar aos quarenta anos. Não sei sequer se pararia sem ser obrigada a isso. Não podia esperar por algo tão incerto. Não seria honesto com ela se lhe dissesse que sim.
— Não te posso prometer isso.
— São apenas três anos, Daniel. No máximo quatro ou cinco.
— Disse-te no outro dia que nenhum de nós poderia prometer isso, um ao outro. Não mudei de ideias.
— Não confias em mim? É isso? Receias que assuma um compromisso contigo e não o respeite?
— Nem sequer pensei nisso, Tânia. — menti. Claro que tinha muita dificuldade em acreditar que ela se mantivesse fiel, tal como não se manteve com o namorado canadiano que traía constantemente. Mas, essa nem era a questão principal. — Não tenho idade para relacionamentos à distância. Preciso de alguém que esteja presente, não alguém que veria de meses a meses, senão anos.
Houve uma pausa no diálogo. Ouvi a respiração dela, no lado de lá da linha. Acabou por dizer:
— Gosto muito de ti, Daniel. És sem dúvida alguém com quem me veria a passar o resto da minha vida, mas não já. Não me sinto preparada para parar ou abrandar. Sei que te disse que estou cansada, mas ainda não estou exausta.
Novo silêncio. Penso que esperava eu dissesse alguma coisa, um qualquer argumento, concordar com ela, aceitar a sua decisão, dizer que a esperava...
— Fica bem, Tânia. — disse em despedida.
— Daniel...
— Desejo-te toda a felicidade do mundo.
— Vais esperar por mim?
Foi como arrancar o próprio coração. Porém, jamais seria eu se dissesse outra coisa:
— Não.
"Pareces triste."
Alexandra conseguiu descodificar o meu estado de espírito nas primeiras trocas de frases. Não tive essa intenção, nem me senti à vontade para partilhar com ela a minha amargura.
"Aconteceu alguma coisa?"
"Nada de mais. Isto é mais cansaço que outra coisa."
Alexandra entendeu a frase como uma despedida.
"Então, talvez seja melhor deixar-te descansar."
"Não vás.", pedi, recusando-me a cair na solidão, "Falar contigo é reconfortante."
A sala estava envolvida num silêncio tranquilo. Lá fora, a noite há muito que se instalara. Mesmo com as portas de vidro do terraço entreabertas, não havia qualquer ruído exterior. Do resto da casa, nem um som e Leonor dormia um sono pacífico. Estivera um dia quente, mais que o usual naquela altura do ano.
"Tenho uma novidade, Daniel.", enviou ela, deixando-me curioso, "Em breve irei regressar a Portugal."
"Vens passar umas férias?"
"Não. Regresso em definitivo."
"Então? Houve algum problema?"
"Não, Daniel. A minha temporada aqui é que está a chegar ao fim."
Estranhei aquela informação, pois julgara que ela fora para o Brasil por causa do emprego.
"Vais deixar o teu emprego aí?"
A resposta demorou um pouco, ao que se seguiu a mensagem:
"A minha estadia aqui teve um objectivo. Esse objectivo foi cumprido, graças a Deus. Por isso, já nada me prende cá e quero voltar ao meu país."
"Lá estás tu a ser enigmática."
Alexandra retorquiu com um smile sorridente e outro a piscar o olho.
"Quando pensas voltar?"
"No Verão. Tenho algumas coisas a resolver por aqui e depois vou-me embora."
Já não faltaria muito tempo, uma vez que estávamos a poucas semanas de entrar na estação mais quente do ano. Confesso que sentia alguma curiosidade em a conhecer, mas não enquadrava essa possibilidade no futuro. Para além disso, pouco ou nada sabia sobre ela, uma vez que nem uma foto vira de Alexandra. Se ela se cruzasse comigo na rua, eu não faria ideia de quem era.
"Chegaste a falar com o teu namorado que deixaste cá?", questionei, recordando a questão amorosa mal resolvida que ela me relatara.
"Mais ou menos."
"Mais ou menos?"
"É complicado.", atalhou sem querer dar grandes pormenores.
"Já lhe disseste que vais regressar?"
"Sim."
"E ele?"
A troca de mensagens ficou suspensa. Aguardei pacientemente alguns segundos que se tornaram minutos. Ia a escrever "estás aí?", quando surgiu no ecrã:
"Vi a tua publicação no Facebook."
Percebi que Alexandra não queria prosseguir naquele tema, alterando o assunto para a foto que eu colocara no Facebook, uma foto de Tânia no Portugal Fashion, durante a homenagem, que eu fora "roubar" a um artigo sobre o evento. À foto juntara a mensagem "A melhor manequim de todos os tempos". Entre os muitos "gostos", estava um da própria Tânia, a qual também comentara que me devia o início da sua carreira de manequim, tendo eu ripostado que lhe devia a minha de fotógrafo. Aquilo acontecera após o nosso telefonema e servia, acho eu, para atenuar a mágoa que ficara pela separação, pelo fim de uma relação que nem chegara a começar, mas que me criara expectativas dolorosas. Fora uma forma tácita de retomar a relação de conhecidos de outrora, um homem e uma mulher com um passado comum, mas sem futuro como casal. Tânia prosseguiria a sua bem-sucedida carreira de modelo a viajar pelo globo, eu continuaria a minha vida simples de fotógrafo e pai.
"Parece ser alguém especial.", escreveu Alexandra na expectativa que eu desenvolvesse.
"É uma grande amiga.", resumi.
"Vocês parecem ser mais que amigos."
"Porque dizes isso?"
"Não sei... Intuição feminina."
Alexandra era demasiado enigmática para que lhe revelasse mais que aquilo, por isso, insisti:
"Somos amigos desde o tempo da escola. Fui eu quem lhe fez as primeiras fotos com que ela conseguiu ser agenciada para manequim."
"Ela é lindíssima!", afirmou, juntando um smile com olhar expressivo. A seguir, escreveu "Quem me dera ser assim."
Eu aproveitei a oportunidade:
"Sobre isso não me posso manifestar, uma vez que nunca vi uma foto tua."
"Acredita em mim, não sou assim bonita."
"Se tu o dizes... Podias mandar-me uma foto tua."
A sugestão obteve um smile envergonhado em resposta.
"Na tua opinião, ela é a mulher mais bonita que já fotografaste?"
Ok, continuas a desconversar, cada vez que o assunto és tu.
Os seus enigmas começavam a cansar-me. Contudo, dei por mim a equacionar a questão e respondi-lhe:
"É a manequim mais bonita que já fotografei. Curiosamente, a mulher mais bonita que fotografei não era modelo."
"A sério?"
"Sim. A mulher mais bonita que fotografei foi a Mafalda."
Nova pausa. O rodapé da caixa de diálogo indicava que ela estava a escrever, depois parava, aparecia novamente e nada. Que mensagem tão extensa iria sair dali?
Foi curta e extremamente simples.
"Isso é tão querido da tua parte."
"É a verdade."
"Confesso que fiquei emocionada."
"Porquê?"
"Coisas de mulher. Já não se encontra um amor assim, como aquele que se percebe nas tuas palavras, cada vez que falas na tua mulher."
"Não é por ela ter falecido que o meu amor se perdeu. Continuo a amá-la."
"Achas que um dia a vais reencontrar? Não sei quais são as tuas crenças..."
"Não sei. Não penso muito nisso. E para te ser sincero, a minha fé sofreu grandes abalos nos últimos tempos."
Não queria prolongar o tema Mafalda, pois era algo que ainda doía profundamente no meu coração. Optei por alterar o foco do assunto para Alexandra.
"E tu? Como vão ser as coisas com o teu namorado?"
"Não sei."
"Tens esperança numa reconciliação?"
"Tenho. Se ele me perdoar..."
"Achas que não te perdoa?"
"Temo que não."
"Quando lhe contares a verdade, ele não tem como não te perdoar."
"Eu enganei-o. Não da forma como ele pensa que fiz, mas não deixa de ser uma traição."
"O vosso amor vai ultrapassar isso, vais ver."
"Deus te ouça."
O que pensei não escrevi, pois teria que lhe dizer que Ele dava pouca atenção aos meus pedidos.
A conversa não se prolongou muito mais.
Sem que houvesse uma razão que o justificasse, os nossos encontros online sucederam-se com regularidade, num ritmo quase diário. Comecei a notar uma empatia cada vez mais forte com Alexandra e uma curiosidade que se intensificava. Dei por mim a querer mesmo conhecê-la. Para além disso, apesar de ela continuar enigmática em relação a si, foi ganhando a minha confiança ao ponto de lhe falar cada vez mais em Mafalda, o que para mim era terapêutico. Cheguei a equacionar que a constante repetição do assunto a pudesse maçar, mas para minha surpresa, Alexandra interessava-se muito pelo que eu contava.
Entretanto, profissionalmente, a vida corria de vento em poupa. Os meus workshops continuavam um sucesso, sendo eu assediado pelo centro de formação para que me disponibilizasse para mais datas, o que recusei sob pena de perder tempo de qualidade com quem se tornara na pessoa mais importante da minha vida, a minha filha.
Não voltei a falar com Tânia, após aquele telefonema na noite da sua homenagem. Ela partiu de Portugal, despedindo-se com uma mensagem escrita por email a lamentar os caminhos antagónicos das nossas vidas e reafirmando que quando parasse a sua carreira, se eu quisesse, teria prioridade no acesso ao seu coração. A partir daí, o nosso contacto limitou-se aos "gostos" e mensagens circunstanciais no Facebook.
A revista teve a sua edição especial apresentada com grande pompa, num jantar no Palácio da Bolsa, ao qual compareci com a minha princesa. Ângela não perdoava Tânia pela recusa e continuava a vilipendiá-la, sempre que o assunto era a manequim. Quando a minha capacidade de encaixe se esgotou, tive que lembrar a minha patroa que Tânia era minha amiga e, por isso, da mesma forma que eu não falava em sua defesa, pedia a Ângela que não tecesse aqueles comentários na minha frente. A vedeta dessa edição acabou por ser uma actriz portuguesa de telenovelas, uma das mais famosas da época, a qual se fez pagar quase com o seu peso em ouro para aceitar pousar nua. A revista pagou mais que aquilo que propusera inicialmente a Tânia, mas teve o retorno com lucro. Ângela queria que eu fosse o fotógrafo da sessão, só que a actriz pretensiosa não abdicou que fosse um fotógrafo seu amigo a realizar a produção. Por mim, tudo bem. Ela tinha fama de ser possuidora de um feitio de mer... Disso.
Leonor também continuava sem evolução no seu encarar triste do dia a dia. De tempos a tempos, a educadora lá vinha falar na psicóloga e em terapias... Eu sabia o que fazia falta a Leonor, mas não conseguia trazer-lhe a mãe de volta. Daí que só me restasse esperar que o tempo cicatrizasse a ferida.
No início de Julho, Alexandra regressou a Portugal.
A nossa última grande conversa pelo Messenger aconteceu na véspera da sua viagem. Em todas as anteriores, por muito que falássemos em um dia nos conhecermos, isso era sempre expressado de forma abstracta. Um pouco ao género de "um dia", "talvez", "havemos de ver isso" e pouco mais. Contudo, a meio dessa conversa, após um relato tranquilo dos assuntos resolvidos no Brasil e a iminente partida, Alexandra escreveu:
"Gostava de te conhecer."
Num tom brincalhão, respondi:
"Eu também, mas nem uma foto tua me mostras."
A sua mensagem seguinte revelou que o assunto era sério:
"Isso é importante para ti? Precisas de me ver para saber se vale a pena conhecer-me?"
Não, eu não era assim. Não fazia depender o meu interesse nas pessoas com base no seu aspecto físico. Partilhávamos uma relação virtual de amizade, a qual tinha vindo a evoluir bastante e que poderia desencadear uma amizade real.
"Não, não preciso de ver uma foto tua, antes."
"Também gostavas de me conhecer?"
"Sim. Mas tenho de ser sincero contigo.", escrevi agindo na minha forma honesta de ser, "Acho que não te queres dar a conhecer."
"Percebo que digas isso. Mas, talvez compreendas porque o faço, quando me vires."
Comecei a imaginar que ela pudesse ter alguma deficiência. Mesmo assim, isso não me desmotivou, uma vez que as verdadeiras amizades não se prendem nesses pormenores. Como forma de demonstrar isso, digitei:
"Um dia havemos de combinar esse encontro."
"Quero que esse dia seja em breve."
Notei alguma ansiedade naquele desejo. Não encontrei uma justificação para isso. Teria ela alguma paixoneta por mim? Teria visto uma foto minha? Será que se apaixonou pela imagem adicionada ao ser que com ela conversava virtualmente? Achei tudo muito estranho, na verdade. E o namorado? Quais seriam as intenções dela com ele? Eu não queria ver-me envolvido no meio de uma relação. Surgiram tantas dúvidas no meu cérebro que tive de respirar fundo e fazer uma espécie de restart aos pensamentos.
Como não respondi logo, Alexandra escreveu:
"Será quando tiver que ser"
Percebi que interpretara o meu silêncio como um retraimento em relação àquele encontro. Não tinha nada a recear dela. Estava a fazer conjecturas absurdas. Alexandra era apenas uma amiga virtual que queria transporta essa a amizade para o mundo real. E, por mim, tudo bem, não via nada contra.
"Será quando quiseres. Terei todo o gosto em conhecer-te"
O diálogo ficou suspenso. Vi no cantinho habitual que ela escrevia e apagava, escrevia e apagava. Aguardei. Por fim...
"Posso pedir-te uma coisa, Daniel?"
"Sim."
"Podes dar-me o teu número de telemóvel?"
Fiquei pensativo. Mais uma vez, seria eu a dar algo e ela continuaria na sombra.
"Também me dás o teu?"
"Quando chegar a Portugal, mando-te uma mensagem do meu número, pode ser?"
"Não sei...", fingi hesitar, preparando-me para lhe enviar os nove dígitos. Contudo, ela interpretou a hesitação a sério.
"Tudo bem, eu compreendo que não queiras dar. Afinal, tenho sido eu sempre a recusar revelar-me mais que nada."
"Mesmo assim, acho que és boa pessoa. Não me importo de te dar o meu número."
E enviei-lhe o meu contacto telefónico.
"Vais achar-me uma parva, mas não gosto de falar ao telefone. Só troco mensagens. Por isso, não me ligues, por favor, quando tiveres o meu número."
Bolas! Que mulher esquisita.
"Ok."
Como prometido, ao fim da tarde seguinte, recebi no telemóvel uma mensagem escrita de um número que não conhecia, a qual continha "Olá Daniel. A viagem correu bem e já cheguei a Lisboa. Beijinhos. Alexandra."
Nunca houve grande troca de mensagens pelo telemóvel. E nos primeiros três dias desde o seu regresso, a ausência de contacto foi quase total. Ao fim desse tempo, retomámos as nossas conversas no Messenger.
Alexandra estava a viver em casa dos pais, enquanto reestruturava a sua vida. Pretendia regressar à vida activa e procurava novo emprego na área da saúde. A sua postura reservada e enigmática não se alterou. Questionei-a sobre o namorado, se já conversara com ele, mas ela limitou-se a informar que estava a trabalhar nisso.
A meio do mês, a sua presença online vinha com um único objectivo e expressou-o logo que entrou no Messenger:
"Podemos encontrar-nos amanhã?"
Fiquei surpreso, perplexo e algo confuso.
"Porquê esse interesse súbito?"
"Tenho andado a ganhar coragem.", respondeu.
Digitei um smile a piscar o olho e adicionei:
"Não precisas de muita coragem. Não sou nenhum extraterrestre."
"É importante para mim que me conheças. Quero que me vejas. E não pode ser por foto. Quero que me conheças na realidade."
Comecei a sentir que poderia haver algum interesse dela para além da amizade. Não sei se isso me interessava, para ser honesto. Aquela vontade de se mostrar no mundo real, sem protecção ou obstáculo de um ecrã de computador, levava-me a crer que ela queria ter a percepção real do que eu pensava da sua figura, sem ter hipótese de disfarçar. Calculei que ela deveria ser feia... bem feia mesmo.
"Já te disse que o aspecto físico me é indiferente para ser amigo de alguém."
"Eu sei, Daniel."
Houve uma pausa, mas percebi que ela estava a escrever.
"Tenho um segredo. E quero contar-te esse segredo. Mas, tem de ser ao vivo. Não pode ser aqui."
Ui. Fiquei apreensivo. Um segredo? Que viria aí? Será que era um homem? Um gay que se apaixonara por mim e se fizera passar por mulher? Seria uma mulher com alguma deficiência? Comecei a interrogar-me se queria aquele encontro. Ela insistiu:
"Podemos encontrar-nos em Miramar, não me importo de ir ter contigo. Pode ser na praia que conheço."
Não sei se queria conhecer uma desconhecida tão perto de casa.
"Não precisa de ser aqui."
"Por mim calha bem, fica-me em caminho."
Fica-lhe em caminho? Pelo que deduzi, ela estava em Vila do Conde. Para onde iria, se Miramar lhe ficava em caminho?
"Fica-te em caminho?", interroguei numa mistura de curiosidade e confusão.
"Sim. Vou sair de casa dos meus pais para ir viver com uma amiga."
"E o teu namorado?", questionei sem saber bem porquê. Arrependi-me depois de enviar e esperava uma resposta a estranhar a minha referência.
No entanto, ela enviou:
"Se o meu namorado me perdoar, pode ser que depois volte a viver com ele."
Bom, a questão "namorado" ainda estava viva, por isso, talvez o seu interesse em mim não passasse mesmo da amizade.
"Não é melhor resolveres essas questões e depois combinamos um café?", sugeri, procurando adiar o encontro.
"É importante para mim. Podemos combinar amanhã à tarde, na praia?"
Confesso que não percebia a importância, qual a razão para ela subitamente querer encontrar-se comigo. Não tinha nada que me impedisse de comparecer ao combinado, daí que tenha aceite, não sem antes colocar a dúvida:
"Como é que te reconheço?"
"Não te preocupes. Eu consigo reconhecer-te. Em todo o caso, eu serei a mulher de saia aos quadrados e terei uma camisa clara."
Algo naquela frase fez despontar um alerta, algo que me levantou uma suspeita que não consegui identificar. Era como se houvesse algo nos confins da minha mente que me queria gritar algo, só que o som não chegava ao meu consciente. No entanto, essa dúvida, essa suspeita pareceu extinguir-se assim que nos desconectámos do Messenger.
A manhã do dia 17 de Julho de 2014 nasceu quente, o Sol brilhava imponente nas ruas e adivinhava-se mais um dia tórrido, algo que sempre achei impossível de acontecer no Norte, quando vivia em Almada.
Deixara Leonor na escolinha que ela continuava a frequentar, apesar do período de férias. Contrariamente ao seu semblante sombrio e pouco sociável, era visível que gostava da escola e sempre era melhor que estar em casa longe dos coleguinhas.
No que respeita a agenda profissional, aquele seria um dia livre. Fui para o terraço apreciar a vista de mar azul forte ao longe. Pensava no encontro que iria ter nessa tarde, com uma desconhecida, quando o meu telemóvel tocou. Peguei no aparelho e surpreendi-me com o nome que vi piscar. Atendi:
— Olá Tânia!
— Olá, meu amor! — ouvi-a dizer, notando algum ruído do local onde ela estava.
— Tanto barulho. Onde estás?
— Estou no aeroporto de Amesterdão. — informou com a sua voz quente e sensual. — Como estás?
— Estou bem. — respondi, vendo no céu um avião lá muito em cima. — E tu?
— Estou a ligar-te para te contar uma coisa. — disse, quase ignorando a minha pergunta. — Quero que saibas por mim, antes que o saibas por terceiros.
— Que se passa? Estás a preocupar-me.
Ouvi uma voz ecoar do outro lado da linha, alertando em inglês para uma porta de embarque. A voz de Tânia veio a seguir.
— Não é nada de grave, descansa. É que eu... Bom... Como dizer... Talvez seja melhor começar pelo princípio.
— Costuma resultar. — retorqui, impaciente.
— Estou na Holanda porque o meu namorado é holandês.
Pronto, percebi o objectivo do telefonema.
— E que tenho eu com isso? — questionei de forma rude, sem perceber que de repente me sentia magoado.
Tânia percebeu-o.
— Daniel... Tu disseste que não esperavas por mim.
— E não espero! — afirmei, adoptando uma postura firme sem evitar que o meu coração se começasse a rachar, quebrando-se naquele espaço que era dedicado a ela.
— Seja como for, ele é uma pessoa famosa. — prosseguiu. — E é natural que a comunicação social comece a falar nisso. — Suspirou. — Não quis que soubesses dessa forma.
— E devo agradecer-te?
— Merda, Daniel! Não sejas assim. — alterou-se.
— Desculpa. — pedi, tendo a noção que estava a ser injusto. — Tens o direito de ser feliz.
Nesse momento, ouvi uma voz interpelar Tânia. Era uma voz feminina e falava português. Tânia respondeu-lhe:
— Voo MH17 da Malaysia Arlines. Deve estar a aparecer a porta de embarque.
A outra voz ofereceu-se para ir ver no quadro com a listagem de voos em tempo real.
— Desculpa, Daniel. Era a minha amiga Jaymira. Não sei se conheces, ela é manequim.
— Sim, sei quem é. — confirmei, recordando a imagem da manequim angolana que começava a fazer furor nas passerelles internacionais. — Para onde vais?
— Kuala Lumpur. Temos um desfile lá.
— Desculpa a minha reacção. Apanhaste-me de surpresa.
— Eu compreendo.
O diálogo silenciou-se. Fiquei a ouvir os característicos avisos nos altifalantes, dando indicações de voos, partidas, chegadas... Não sabia o que dizer, aquilo quase parecia uma despedida.
E de facto foi. Aquela tornou-se na nossa última conversa. E até hoje sinto-me agradecido pela forma como se completou:
— Daniel. Não sei se vai resultar. Gosto muito dele, é um querido. Pode até ser o homem que me vai acompanhar para o resto da vida, não faço a mínima ideia. — Tornou a parar. Não à espera que eu dissesse algo. Procurava verbalizar tudo o que lhe ia na alma. — Não te estou a ligar só para te dar a notícia. Não sei porquê, mas hoje acordei com saudades de te ouvir e uma necessidade imensa de te dizer... Oh, Daniel... — Sorriu com a voz embargada. — Lamento tanto que não tenhamos tido oportunidade de ter uma vida juntos. Eu adoro-te! — Esperou uma reacção, mas não me deu tempo para isso. — Sei que a culpa é minha. Só que ainda não sinto que seja o meu tempo de parar, de abandonar algo que me realiza desta forma. — Soluçou. — Talvez um dia... Quem sabe? Pode ser que daqui a uns anos, quando eu... — Soltou uma risada. — ...ganhar juízo. Se estivermos ambos sozinhos... Quem sabe? Seja como for, não quis deixar de te dizer isto. Tu foste o homem mais maravilhoso que conheci, desde o puto tímido da escola ao homem que és hoje. E és a pessoa que eu mais amo neste mundo, hoje e sempre para todo o resto da minha vida.
Não sabia quais as melhores palavras, aquilo que ela mais gostaria de ouvir. Por isso, deixei o meu coração falar por mim:
— Eu também te amo, Tânia! — E amava-a quase tanto, quanto um dia amei Mafalda. — Espero que o holandês te faça muito feliz.
— Obrigado, meu amor. — agradeceu com tanta ternura na voz que senti o meu coração apertado. — Também espero que encontres alguém que te faça feliz, tanto quanto mereces.
— Faz boa viagem.
— Posso ligar-te quando chegar?
— Podes ligar-me sempre que quiseres.
Ouvi a voz de Jaymira a alertar que tinham de seguir para o embarque. Esperei uma última despedida, mas ao invés, Tânia disse:
— Independentemente do rumo das nossas vidas, há um pedaço muito grande do meu coração que será para sempre teu.
Despedimo-nos com ternura. Desejei-lhe uma boa viagem e ela sugeriu numa mistura de seriedade e humor que talvez pudéssemos tomar um café na sua próxima vinda a Portugal.
— Claro que sim. — concordei.
— Beijinho muito grande para ti, meu amor. — finalizou. — Ligo-te quando chegar.
Porém, não ligou. Infelizmente, não teve oportunidade de o fazer. E aquela foi a última vez que ouvi a sua voz.
Senti que o ciclo se fechava. Este poderia ser o fim deste conto, se o conto fosse sobre Tânia. Mas, não era...
Ao início da tarde, arrumava a louça do almoço ao som da música que ecoava pela casa, vinda da televisão sintonizada no canal VH1. Procurava abstrair-me da ansiedade pelo aproximar do encontro com a enigmática desconhecida com quem trocara tantas conversas nos serões das últimas semanas. Ponderava todas as hipóteses, preparando-me para qualquer eventualidade, qualquer cenário que me deparasse ao conhecê-la. Se fosse um homem, viraria costas e iria embora sem uma palavra e ele poderia ter muita sorte em não levar um soco. Se fosse feia... mesmo muito feia. Bom, colocaria a minha postura mais cordial, aceitaria a sua amizade e colocaria uma linha invisível para demonstrar que não estava interessado, caso ela a ultrapassasse. Se tivesse uma deficiência... Confesso que tenho alguma dificuldade em lidar com isso, mas jamais marginalizaria quem quer que fosse por ser diferente. Sei que me iria adaptar. Alexandra, por trás da cobertura do anonimato virtual, demonstrava ser um excelente ser humano. Nas muitas horas de diálogo online, constatei que tínhamos muito em comum, ela era uma pessoa com princípios parecidos com os meus, ideias bem assentes, uma forma de estar na vida com que me identificava. Acho que eu falava tanto em Mafalda com ela porque Alexandra, por vezes, me fazia recordá-la, recordar as muitas horas em que conversávamos quando eu trabalhava na loja e ela era uma jovem estudante a terminar o secundário.
Os meus pensamentos foram despertados para a música que se iniciava vinda da sala. Adorava aquela melodia que começava com "Excuse me for a while, while I'm wide eyed and I'm so damm caught in the middle". A canção intitulada "Strong" era cantada pela harmoniosa voz da vocalista dos London Grammar. Fiquei a olhar para o ecrã, sem me aperceber que murmurava "I excused you for a while, while I'm wide eyed and I'm so damm caught in the middle". Fiquei parado a olhar para o videoclip como se aquilo tivesse um significado especial, uma mensagem que me estava a ser transmitida e que eu não conseguia descodificar. Não me mexi até a melodia terminar, estático, pensando na letra, traduzindo-a mentalmente à procura do que não consegui discernir no momento. No fim, acabei por desligar a televisão e preparei-me para sair de casa, rumo ao encontro marcado.
A tarde quente atingiu-me com o bafo forte assim que saí para a rua. Vestia uma t-shirt branca com umas frases em inglês que já não me recordo e umas calças de ganga pretas, um pouco gastas. Caminhei calmamente pela rua em direcção à praia. O Sol lá no alto brilhava com todo o esplendor. Alcancei a avenida que me separava do areal. A partir dali, qualquer desconhecida poderia ser Alexandra. Recordei-me das suas referências, saia aos quadrados e camisa clara. Não vislumbrei ninguém assim. Atravessei a estrada, atento aos carros e às pessoas. Pensei em parar pela esplanada para tomar um café, mas o encontro fora marcado para o pontão, por isso, foi esse o trajecto que tomei. Cruzei-me com meia dúzia de pessoas que ia e vinham do areal. Observei um número significativo de banhistas a desfrutar da tarde de Verão, até porque naquela época era comum a zona estar mais preenchida de habitantes que tinham ali a sua casa de veraneio e estavam a passar férias.
Num ritmo vagaroso, avancei pelo pontão de madeira, o qual entrava pela praia. Vi o mar ao fundo, brilhante com os raios solares a incidir na água. Alcancei a extremidade, olhando em redor para ver se alguém se parecia com a imagem imaginada da desconhecida que vinha ao meu encontro. Ninguém. Sentei-me nos degraus que desciam para o areal. Olhei para trás e não havia uma única pessoa em todo o pontão. A minha atenção passou para as gentes na praia, estendidas ao Sol, em confraternização, as crianças a brincar, as ondas a embater na costa e o vento fraco a atenuar o calor. Pensei em Leonor que, àquela hora, estava na escolinha a brincar com os amiguinhos. Decidi que a levaria a passear por ali, mais logo, quando o Sol estivesse mais brando e a temperatura menos agressiva.
Perdi-me em pensamentos, deixando-me recordar alguns momentos significativos da minha vida. Pensei no telefonema de Tânia e a sua imagem com dezassete anos retornou à minha memória. Senti um aperto no coração, consciente que a perdera em definitivo. Como teria sido? Nunca o saberíamos. Revi-a no seu quadro glamoroso de super modelo com os seus trinta e sete anos. Para minha surpresa, houve uma farpa de angústia que me atingiu, vindo do nada. Atirei a sensação para longe.
A imagem feliz dos meus tios a sorrir abraçados defronte da lente da minha velhinha Canon materializou-se no meu pensamento, como um sopro de esperança. Quem me dera viver um amor como o deles... Suspirei entristecido. Eu vivera um amor como o deles. E tal como a morte separara os meus tios, também eu fui separado por ela de Mafalda.
Observei a praia, os banhistas. Nova recordação, a tarde na praia com Francisca, quando ambos andávamos no limbo entre a amizade e o amor. Lamentava a forma como a nossa relação acabara, a forma estúpida e insensível como Francisca colocara os seus interesses à frente dos nossos. Para além disso, fora igualmente responsável por eu e Mafalda não termos... Abanei a cabeça para ninguém. Não lhe poderia imputar isso, Francisca nem sequer sabia da existência de Mafalda. E naquela altura, um dia Vânia bem o dissera, como seria um namoro com Mafalda, sendo ela estudante e eu um repositor de supermercado, separados por cerca de duzentos quilómetros? Apesar de tudo, eu amei muito Francisca e sei que ela também me amou.
Uma rajada forte atingiu-me do nada. Sorri. Foi como se o vento dissesse "acorda, pá!". Aquele tipo de rajadas pareciam o vento agreste escocês. Ah... Edimburgo. Acho que a capital escocesa será para sempre a minha segunda cidade. Se acreditasse em reencarnação, iria jurar que numa outra vida eu fora escocês. Nunca conseguirei explicar aquela sensação de regresso a casa, quando saí, pela primeira vez, do aeroporto de Edimburgo. E foi lá que conheci a maravilhosa Kátya, a minha melhor amiga de sempre, uma das mulheres mais maravilhosas e queridas que conheci e que não merecia amar tanto alguém que não fora capaz de retribuir tudo o que ela me queria dar. Hoje, olhando para trás, sei que a amei profundamente. Talvez não o soubesse, na altura, ou não o quisesse admitir por continuar apaixonado por Mafalda. Mas, sim, a verdade é que a amava. E no fim de tudo, mesmo não sendo correspondida, acabou por ser ela a fazer de mim um pai. Leonor era o resultado fabuloso, maravilhoso, sensacional do único momento em que me permiti a ser completamente aberto com Kátya, em que não a rejeitei e em que fizemos amor.
Tornei a olhar para o areal, vendo as crianças a brincar. A morte decepara-me das pessoas mais queridas da minha vida. Talvez por isso, eu tivesse agora tanta relutância em deixar alguém entrar nela. Se pudesse pedir um desejo, seria ter Mafalda novamente comigo. Mas, ainda ninguém inventou a forma de resgatar os mortos para a vida. Não pensava muito em relacionamentos. Se ainda existia uma centelha de abertura a essa possibilidade, isso esfumou-se no momento em que Tânia decidiu prosseguir a sua carreira, ao invés de embarcar numa união comigo. Não queria novas pessoas na minha vida, na minha vida amorosa. Somente amigos. Daí que me dispusesse a conhecer Alexandra.
Um criança chorou na areia, tropeçara e caíra num choro mimado. A mãe veio a correr, limpou-lhe as lágrimas e ela sorriu. Talvez fosse isso que fazia falta a Leonor, uma mãe para lhe limpar as lágrimas e a fazer sorrir... Eu limpava-lhe as lágrimas, acarinhava-a e sabia que ela se sentia segura comigo. Mas, em todo este tempo, jamais lhe despertei um sorriso. Não sei que mais poderia fazer para...
— Daniel? — ouvi uma voz chamar atrás de mim.
O seu timbre provocou-me uma pontada que não tive tempo de perceber. Contudo, sem ter consciência disso, voltei-me devagar, quase como se temesse o que iria encontrar. Olhei para os pés bonitos envolvidos pelas sandálias de couro. Subi pelas pernas esguias bem torneadas. Acima dos joelhos, vi a bainha da saia axadrezada em tons vermelhos e castanhos. Levantei-me do degrau onde estava sentado. A minha visão comportava-se como um mostrador digital, onde os caracteres numéricos rodavam loucamente na busca do código correcto. Cada pedaço do seu corpo era um número que parava. A saia apertada na cintura prendia uma camisa clara, a silhueta feminina elegante não me era nada estranha. Já lá ia mais de metade do código descodificado, mesmo que o meu íntimo se recusasse a aceitar o que aí vinha. Os braços nus escondiam-se atrás das costas, numa postura indefesa. Os meus olhos continuaram a subir pela camisa entreaberta até ao colarinho. Os ombros estavam cobertos por caracóis ruivos pertencentes a uma farta cabeleira que envolvia o rosto bem delineado, com nariz singelo, uma boca simples de lábios carnudos e olhos grandes azuis que me observavam com uma mistura de ternura, paixão e receio.
Senti um choque tremendo ao encarar o seu rosto, o que me fez procurar apoio num dos postes de madeira do pontão. Aquilo não era possível. Completamente perdido, tentei dizer algo.
— Alexandra? — verbalizei.
Contudo, a minha mente queria dizer o seu nome, o seu verdadeiro nome... Mafalda.
Ela anuiu, hesitante, temerosa da minha reacção.
Eu não consegui reagir, começando a ficar com a visão turva, pois as lágrimas começaram a inundar-me os olhos. Isso desencadeou em Mafalda um par de lágrimas que começaram a escorrer-lhe pelo rosto.
— Não é possível... — balbuciei incrédulo.
Ela voltou a anuir e confirmou:
— Sim, é possível. Sou eu, Daniel, a Mafalda.
Abanei a cabeça. Estaria a sonhar? Como eu desejei aquela fantasia desde o dia da sua morte... da sua suposta morte.
— Disseram-me que tinhas morrido. — relatei, limpando o rosto com as mãos. — A Vânia... Porquê?
— Fui eu que lhe pedi. — confessou, esticando o braço, hesitante, na minha direcção.
— Como? — interroguei, estupidificado, afastando-me do seu toque. — Tu pediste-lhe para me dizer que tinhas morrido?
Percebendo a rejeição à sua intenção de me acarinhar, Mafalda recolheu o braço e desviou o olhar, despertando para o seu maior receio, aquele que tantas vezes me dissera online, o medo que o namorado não a perdoasse, sem que eu compreendesse que se referia a mim.
— Podemos conversar? — pediu com a voz a tremer e indiferente às próprias lágrimas. — Quero contar-te tudo.
Eu não a ouvia. Estava tão magoado que os meus ouvidos assimilavam as suas palavras como se viessem em mandarim.
— Fizeste-me acreditar que tinhas morrido? Sabes o quanto eu sofri ao longo destes quase dois anos?
— Por favor, Daniel. — quase que implorou. — Deixa-me explicar.
— O que pode haver para explicar, Mafalda? Quem é que faz isso a alguém que se ama? — questionei irritado. — Ou que supostamente se ama.
— Não! — exclamou, ripostando com retemperada firmeza. — Nunca coloques em causa o meu amor por ti. Foi por te amar que fiz o que fiz.
Um casal aproximava-se pelo pontão. Não queria continuar aquele diálogo perante olhares de terceiros. Mafalda aproveitou para insistir:
— Quero contar-te o que aconteceu. Podemos ir para um lugar mais tranquilo? — Suspirou. — Se depois disso não me quiseres mais na tua vida, prometo que me vou embora e nunca mais me verás.
Estava tão magoado que descarreguei o que sentia sem filtros:
— Já te foste embora uma vez, não me parece que me faça diferença que vás em definitivo.
Mafalda soluçou, amargurada por me estar a perder, e pediu:
— Não sejas cruel, por favor!
Acabei por aceder a ouvi-la. Não encontrei outro sítio mais tranquilo para conversarmos que não fosse a minha casa. A casa que outrora fora nossa.
Lado a lado, caminhámos em silêncio pela rua. O ambiente alegre que nos rodeava contrastava com o negrume que ensombrava as nossas almas. Não trocámos uma palavra, uma sílaba que fosse, até entrarmos no meu apartamento.
Com um gesto frio, convidei Mafalda a entrar. Ela avançou com o olhar a contemplar um espaço que lhe trazia tantas memórias e tanta saudade. Sem que precisasse de incentivo, seguiu para a sala. Parou para ver as fotos que não conhecia. Não conteve um sorriso tímido ao ver a sua imagem em várias molduras. Depois, dedicou a sua atenção à foto de um casal, uma foto mais antiga que a maioria.
— São os teus tios? — perguntou num tom simpático, tentando quebrar o gelo. Assenti sem abrir a expressão zangada. — Parecem ter sido um casal feliz.
Não me pronunciei, sentando-me numa cadeira. Mafalda ocupou um dos lugares no sofá.
— Não te queres sentar aqui? — sugeriu, apontando para o lugar a seu lado.
— Estou bem aqui. — recusei com frieza.
Os momentos que se seguiram foram de silêncio. Mafalda não sabia como começar e eu também não lhe facilitei a vida.
— Nem sei por onde começar. — disse por fim.
— Pelo principio costuma resultar. — atirei com desprezo. — Mas, podes sempre começar pelas mentiras... Alexandra.
A forma de a tratar pelo nome que usara nas nossas conversas no Messenger foi usada quase como um insulto, recordando-a que era uma mentirosa.
Mafalda ignorou a agressividade.
— Não te menti em relação ao nome. Se tivesses prestado atenção, quando estávamos juntos, saberias que me chamo Mafalda Alexandra. — Encolhi os ombros como se isso fosse irrelevante. — Nunca te quis magoar. Foi muito difícil tomar a decisão de te afastar da minha vida. — Encarou-me o olhar com determinação. — Eu estava a morrer, Daniel. Os médicos, cá em Portugal davam-me poucos meses de vida. Não queria arrastar-te nesse sofrimento. — Fez uma pausa, tentando perceber a minha reacção. Permaneci uma estátua. — Quando surgiu a hipótese do tratamento inovador nos Estados Unidos, nem pensei duas vezes. Mas, não queria ter-te por perto. — Não evitou nova lágrima. — Por favor, Daniel, tenta perceber. Eu não conseguia lidar com a nossa relação durante a doença. Sentia-me desprezível aos teus olhos...
— Eu nunca te fiz sentir assim. — interrompi.
— Não estou a dizer que fizeste. — explicou. — Estou a dizer-te como me sentia. — Cruzou as pernas e colocou os dedos entrelaçados sobre um joelho. — Nos Estados Unidos, fui observada por um especialista que me explicou como se processaria o tratamento. Foi muito honesto, alertou-me que iria atravessar uma fase muito complicada, muito sofrimento e que, no fim, as probabilidades de sucesso eram irrisórias. Na prática, poderíamos estar apenas a adiar o inevitável. — Penteou os caracóis com uma mão e limpou a face com a outra. — Tu irias sofrer sempre com a minha... Quando partisse. Por isso, para quê prolongar o teu sofrimento? Se tinhas que atravessar essa dor, mais valia que fosse o quanto antes para que fizesses o luto e prosseguisses com a tua vida.
— Não achas que me cabia a mim essa decisão?
— Qual teria sido, Daniel? — questionou, sabendo a resposta. — Qual teria sido a tua decisão?
— Teria estado a teu lado até ao fim.
— E que terias ganho com isso? Só sofrimento.
— Não, não era só sofrimento. Tu estás aqui, viva.
Mafalda abanou a cabeça.
— Só te quis proteger. Lamento muito ter-te magoado.
— A Vânia disse-me que tinhas sido operada e que não resistiras à cirurgia. — contei, recordando o dia em que a amiga me viera trazer a mentira.
Ao mesmo tempo, veio à minha lembrança o beijo que lhe roubara e o seu afastamento. Ah... Agora percebia o que ela quisera dizer ao confessar que, tal como eu, no beijo, também ela estava a pensar em Mafalda. Não era um amor platónico, era culpa pela traição à amiga.
— Sim, foi o que lhe disse para te dizer. — confirmou. — Ela contou-me como ficaste desesperado com a notícia. Não imaginas o que chorei por imaginar o que deverias estar a sofrer.
— Ela tentou ajudar-me a atenuar a dor. — retorqui, transparecendo algum descontentamento. — Depois, também desapareceu.
— A Vânia receou que pudesses estar a interessar-te por ela.
— Era a única pessoa que te conhecia, com quem eu podia falar sobre ti. — expliquei. — Foi uma espécie de terapia. Não percebo onde ela foi buscar essa ideia.
Mafalda esboçou um sorriso torcido.
— Talvez no beijo na boca que lhe deste? — Não evitei uma expressão comprometida. — Sim, a Vânia contou-me tudo. Eu tinha-lhe pedido para te auxiliar no que pudesse. Só que perante esse... acontecimento, ela tomou a decisão de se afastar e eu não a contrariei.
— A tua amiga é uma actriz do caraças. Fez um papel...
— Não a culpes, por favor. A Vânia só fez o que lhe pedi. É a minha melhor amiga, é uma irmã. Se te interessa saber, ela foi contra a ideia de te afastar e zangou-se comigo quando lhe contei a minha decisão de te fazer acreditar que tinha morrido. Só que, como grande amiga que é, acedeu a tudo o que lhe pedi.
— Que aconteceu a seguir? — indaguei, controlando a paixão e amor que sentia por aquela mulher.
— Como te disse, as hipóteses de sucesso eram escassas. Fiz tratamentos que ajudaram a diminuir o tumor até se tornar possível a cirurgia. Isso levou alguns meses. — Desviou o olhar para as grandes janelas de vidro que davam acesso ao terraço, revendo esse tempo. — A operação, segundo me contaram, levou muitas horas e não foi um completo sucesso. Extraíram o tumor, mas houve complicações e eu fiquei em coma várias semanas. A minha mãe, que me acompanhou todo esse tempo, disse-me que cheguei a ter uma paragem cardíaca e tive quase a ir para o outro lado, o que seria inglório depois de me livrar do mal que me levara àquele estado. Felizmente, consegui recuperar e despertar do coma.
Esquecido momentaneamente da raiva por ter sido afastado por ela e da ira pela mentira, falei pela primeira vez num tom afável:
— E estás curada?
Mafalda ofereceu-me um largo sorriso. Como eu amava aquele sorriso.
— Completamente. — As lágrimas assolaram-lhe novamente o olhar azul. — Acreditas em milagres? Eu passei a acreditar.
Eu já não sabia em que é que haveria de acreditar.
— E que foste fazer para o Brasil?
Mafalda soltou um riso divertida.
— Nunca estive no Brasil. Estava nos Estados Unidos. Não te quis dizer por receio que pudesses suspeitar de algo. — Novo sorriso ingénuo e humorado. — Dei-te uma pista com a imagem do meu perfil falso do Facebook.
— A Brave. A princesa Mérida.
— Sim, a rapariga de caracóis ruivos.
A minha mente continuava a descodificar as pistas tão claras e que na altura nem me passaram pela cabeça.
— Quando te disse que o meu tempo no Brasil (que era nos Estados Unidos) terminara foi quando recebi a confirmação de que estava totalmente curada.
— Mas procuraste-me muito antes disso. — lembrei confuso.
— Procurei-te quando a perspectiva de uma morte certa deu lugar a grandes probabilidades de cura total. — explicou com um semblante cada vez menos triste e mais confiante. — Perante a hipótese de realmente sobreviver, o meu objectivo passou a ser recuperar a coisa mais importante da minha vida, recuperar-te a ti.
Não me manifestei, mantendo todas as defesas levantadas sem lhe dar sinal do turbilhão de sentimentos que me perturbavam o espírito. Isso pareceu desapontá-la. Ficou a observar-me, expectante por uma reacção que não aconteceu.
— Bom... — prosseguiu, tornando a entrelaçar os dedos sobre as pernas cruzadas. — Era isto que te queria contar. Sei que te magoei ao ter agido desta forma. Mas o meu amor por ti continua tão grande e tão forte como antes. — Cravou o olhar em mim, como se me cercasse para obter um sinal daquilo que eu queria. — Disse-te a verdade, online. Venho à procura do perdão do meu namorado e a esperança de poder retomar a vida que deixei em suspenso, quando parti e te afastei. — Amava-a tanto quanto a queria castigar pelo que fizera. Por isso, retribuí o seu olhar com firmeza e sem me pronunciar. — Será que me podes perdoar?
— Não sei se consigo ultrapassar tanta mentira.
— Isso significa que não me queres de volta? — inquiriu com toda a frontalidade.
Eu desviei o olhar, escondendo o amor mais intenso que alguma vez sentira por alguém. Ao invés de responder, questionei:
— Disseste que este encontro te ficava em caminho...
A frase apanhou Mafalda de surpresa. Rapidamente se lembrou da troca de mensagens na noite anterior.
— Venho da casa dos meus pais na Figueira da Foz. — relatou, esforçando-se para não tremer a voz. — Vou reassumir as minhas funções no hospital. — Olhou-me com imenso carinho, indefesa. — Trago tudo o que é importante no carro. Estou a caminho da casa da Vânia. A menos que...
— A menos que?
— A menos que me queiras de regresso à tua vida. — confessou na esperança de obter uma reacção de felicidade da minha parte.
— Não sei...
A dúvida atingiu-a como um tiro, uma certeza dolorosa.
— Ok. Já percebi, Daniel. — balbuciou, segurando as lágrimas sem sucesso. Levantou-se. — É melhor ir andando. Não te maço mais. — Afastou-se do sofá. — Prometo que não voltarei a incomodar-te.
Ao passar por mim, segurei-lhe o braço pelo pulso, travando a sua passada. Levantei-me da cadeira e virei-a, deixando-nos cara a cara.
— Como podes pensar que eu deixaria fugir novamente da minha vida a mulher que eu mais amo neste mundo? — interroguei, segurando-lhe o pulso com carinho.
O rosto húmido de Mafalda esboçou um sorriso confuso.
— Daniel...
Abracei-a pela cintura e puxei-a para mim. Ela envolveu o meu pescoço com os seus braços. Permitimo-nos olhar bem no fundo dos olhos do outro. Sorrimos e os nossos rostos aproximaram-se, as nossas bocas tocaram-se, os nossos lábios acariciaram-se. Toda a paixão contida explodiu num beijo tão profundo quanto o nosso amor.
Mafalda estava de volta e veio para ficar, pois eu jamais a deixaria partir de novo.
— Onde está o teu carro? — indaguei após o beijo. — Vamos buscar as tuas coisas!
Alguns minutos mais tarde, ambos reentrávamos no apartamento carregando toda a bagagem de Mafalda. Ela largou as malas na entrada. Ficou a olhar como se fosse a primeira vez que ali entrava.
— Estás bem? — inquiri, segurando o resto dos sacos de viagem.
Mafalda assentiu, revelando um sorriso emocionado. Eu avancei pelo corredor e fui colocar a bagagem no nosso quarto para que depois tudo fosse arrumado nos devidos lugares. Ao regressar, encontrei Mafalda à porta do outro quarto, espreitando para o interior.
— É o quarto da Leonor. — disse, como se fosse preciso identificar.
— Ainda me recordo de como usavas este espaço para arrumar o teu equipamento fotográfico e como estúdio. — Olhou para mim, feliz. — Quase me senti uma modelo, naquelas vezes que me fotografaste aqui. — Avançou para o interior, olhando para as fotos que eu pendurara na parede.
— É a mãe dela, não é? — inquiriu, apontando para a foto de Kátya com a filha. — Recordo-me dela no meu casamento. Não tinha o direito, mas senti ciúmes quando te vi chegar com ela.
— A Kátya era uma amiga muito especial.
Mafalda encarou-me com curiosidade.
— Foi mesmo na noite do meu casamento?
— Sim. — confirmei. — A Leonor foi concebida nessa noite. Aliás, foi a única vez que eu e a Kátya...
— Tens saudades dela?
— Sim. — confessei sem receio. — Apesar de ter estado longe, isso não diminuiu a amizade que tinha por ela. Foi muito duro, ver como morria mais um pouco a cada dia.
— Então, percebes o que te quis evitar?
— Talvez... Mafalda. percebo que tivesses querido poupar, mas não te cabia a ti essa decisão.
Mafalda anuiu sem intenção de argumentar.
— E a pequena?
Encolhi os ombros, revelando a impotência.
— Continua triste. Nunca mais a vi sorrir, desde a morte da mãe.
— Tadinha...
Saí do quarto e fui buscar as malas deixadas atrás da porta do apartamento. Trouxe-as para o nosso quarto, onde Mafalda já se encontrava, olhando emocionada para as fotos do seu rosto sorridente nas paredes.
— Não acredito. — murmurou.
Pousei a bagagem junto da outra, dizendo:
— Dava-te os bons dias todas as manhãs, acreditando que me estavas ouvir num cantinho do céu.
— Tu és tão maravilhoso. — elogiou com os olhos húmidos. — Eu fui...
— Xiu. — interrompi com carinho, colocando um dedo nos seus lábios. — Vamos esquecer essa fase má. Temos uma vida inteira pela frente.
Mafalda sorriu e abraçou-me com força. Trocámos um beijo carinhoso, um beijo enamorado. A sensação de a ter novamente nos meus braços era maravilhosa. Poder tocá-la, acariciá-la...
— A que horas tens de ir buscar a Leonor à escola? — questionou do nada.
Peguei no telemóvel e olhei para o relógio.
— Daqui a duas horas.
Mafalda atirou-me uma expressão libidinosa, olhou para a cama e depois para mim, mordiscando o lábio inferior. Percebi a sua intenção e beijei-a de novo. Puxei-lhe a camisa para fora da saia e comecei a desapertar-lhe os botões. Ela despertou-me as calças e despiu-me a t-shirt. Já sem botões para desapertar, afastei as abas da camisa, envolvendo-lhe a cintura e apertando-a contra mim. Mafalda desfez-se da camisa, atirando-a para o chão. As minhas mãos subiram pelas suas costas, dedilhando o fecho do sutiã.
— Espera! — pediu, soltando-se do abraço. — Espera um pouco.
— Que se passa?
Num sorriso envergonhado, disse:
— Já lá vai algum tempo, Daniel. Vamos com calma, por favor.
— Quando foi a tua última vez? — foi a pergunta mais estúpida que eu poderia fazer naquele momento.
— Quando achas que foi? — retorquiu com um semblante de "não te lembras quando o fizemos pela última vez?"
Só que assim que ela o disse, duas certezas lhe surgiram na mente: Que eu julgava que ela tivera algum relacionamento durante aquele tempo e que a minha última vez não fora com ela. Não escondeu a decepção no olhar.
Tive consciência que cometera um erro.
— Mafalda...
— Não, Daniel. Não quero saber. — exigiu, afastando-se para a cama. — Não tenho o direito de te cobrar nada. — De costas para mim, puxou o lençol para trás. Virou-se e desapertou o fecho da saia. — Só quero que me digas se tenho de tomar alguma precaução.
— Não. Não precisas de te preocupar. — descansei-a. — Fi-lo com protecção.
Mafalda anuiu, qual inquisidora satisfeita com o interrogatório. Subiu para a cama e sentou-se encostada à cabeceira.
— Vens?
O seu convite trouxe-me de volta à realidade, pois perante aquele incidente de confissão, ficara pasmado a observá-la. Despi os boxers descomplexadamente e contornei a cama, sentando-me a seu lado.
— Estás bem? — questionei, sentindo a sua hesitação.
Ela sorriu envergonhada.
— Estou nervosa.
— Porquê?
— Tenho receio de estar... sei lá... destreinada.
Soltei uma gargalhada, o que a deixou ainda mais envergonhada.
— Desculpa, amor, foi sem intenção. — pedi perante a sua súbita timidez. — Não tens de recear nada. Se não te sentes à vontade, podemos ficar só a namorar.
Mafalda baixou o olhar para a minha cintura.
— Pois... Queres que acredite nisso? — interrogou, vendo como ansiava por ela.
— Vem quando te sentires pronta.
O seu sorriso encantador despontou no seu rosto doce e tão cativante. Debruçou-se ligeiramente para a frente e levou as mãos às costas, desapertando o sutiã, o qual despiu e atirou para o chão. Movendo-se como se estivesse sozinha, elevou as ancas e puxou o elástico das cuecas, desfazendo-se delas e atirando-as também para o chão. Por fim, levantou-se e rodou na minha frente, colocando um joelho de cada lado das minhas coxas. Em jeito de provocação, encostou o peito ao meu rosto, convidando-me a tocar-lhe os mamilos com os lábios. As minhas mãos apertaram os seios redondos perfeitos, ao mesmo tempo que lhe dava chupadelas ternas. Ouvi os seus gemidos excitados.
Sedenta de desejo, empurrou-me para baixo, fazendo-me deslizar entre as suas pernas. Olhou-me nos olhos completamente apaixonada e, num tom meloso, disse:
— Vamos sintonizar as nossas últimas vezes?
Concordei, sentindo que a amava tanto que o coração parecia explodir no meu peito. Vi-a baixar-se devagar, a sua mão a acariciar-me a fonte de desejo. Toquei-a entre as pernas, sentindo os lábios húmidos a receberem-me. Olhei para Mafalda que se curvava para trás e virara o rosto para o tecto, num espasmo de excitação.
A primeira vez foi rápida. Contínhamos tanta paixão e tanto amor acumulados naqueles últimos quase dois anos que a explosão de prazer foi como um relâmpago. Mafalda deixou-se cair sobre mim, sem conter os espasmos de prazer que lhe percorriam o corpo. Ofegante, sussurrou-me ao ouvido:
— Amo-te, Daniel!
— Eu também te amo, Mafalda!
Rodei-a com carinho no colchão, deitando-a de barriga para cima. Coloquei-me sobre ela, apoiado-me nos braços para não lhe pesar. Trocámos beijos carinhosos, as nossas bocas não se descolavam mais que meio segundo. As nossas línguas confraternizavam como dois amantes que não se viam há demasiado tempo.
Ao fim de alguns minutos naquele enamoramento, Mafalda afastou as pernas e dobrou os joelhos. Olhei-a nos olhos. Ela sorriu. Poderia haver maior felicidade que aquela que estávamos a sentir naquele momento? Aceitei o seu convite.
A segunda vez foi mais demorada, cada momento saboreado com calma e tranquilidade. Fomos invadidos por uma paz interior tão confortante que o tempo parecia ter parado à nossa volta. Amámo-nos com tanto afecto, explorámo-nos com tanto amor, derretemos os corpos um no outro... até ao momento em que a excitação cresceu e o ritmo aumentou. As nossas bocas embatiam como se quisessem literalmente comer-se uma à outra. Senti as suas mãos nas nádegas. As minhas apertaram os seus seios. O colchão rangia a cada investida minha dentro dela. As suas unhas cravaram-se na minha pele, no momento em que o seu grito de êxtase ecoou pelo quarto, indiferente a quem pudesse ouvir. No mesmo instante, um espasmo de prazer brotou de mim e aqueceu-lhe o ventre.
Completamente fatigados, permanecemos na cama, estendidos ao comprido. Mafalda deitou a cabeça no meu ombro e acariciou-me a barriga, enquanto eu a abraçava.
— Estou tão feliz! — afirmou. — Até tenho medo.
— Não tenhas. Já passámos por tanto que acho que o destino não nos trará mais tropeções.
— Amo-te tanto que até dói. Tive medo de ter perder de vez.
— És o amor da minha vida, Mafalda. — assumi sem complexos. — Quero-te para sempre a meu lado!
Ela virou a cabeça para mim, olhando-me intrigada.
— Estás a pedir-me em casamento?
Levantei-me devagar, retirando o braço debaixo dela. Ajoelhei-me no colchão e adoptei uma postura séria. Ela percebeu e repetiu o movimento, ficando na mesma posição defronte de mim. Era um quadro curioso, um homem e uma mulher, completamente nus, ajoelhados um para o outro.
Segurei as suas mãos. Ela encarou-me incrédula.
— Não acredito nisto. — espantou-se perante a minha postura.
Num tom cheio de formalidade, disse:
— O meu nome é Daniel. Para sempre teu, para sempre a teu lado!
Mafalda emocionou-se com o momento. A lágrima que brotou do olho esquerdo foi um sinal de pura felicidade. Não era oficial, mas para nós, naquele instante, estávamos a casar as nossas almas. Por isso, não hesitou em dizer:
— O meu nome é Mafalda. Para sempre tua, para sempre a teu lado!
Faltavam cerca de vinte minutos para a hora a que todas as tardes eu ia buscar Leonor à escola. Deslocava-me sempre a pé e aquela vez não foi excepção. O ambiente não estava tão quente como antes, mas ainda se sentia um ar abafado na rua.
Mafalda acompanhava-me no trajecto. Caminhávamos com as nossas mãos presas uma na outra e com os dedos entrelaçados, emanando felicidade. Porém, conforme nos aproximávamos da escola, senti a tensão crescer nela.
— Que se passa?
— Estou nervosa. — confidenciou, timidamente. — Acho que só agora estou a ter noção da realidade. Vou conhecer a tua filha.
— E então?
— Tenho receio que possa não gostar de mim.
— Não digas isso. Tu és adorável.
Mafalda encostou a cabeça no meu ombro, retribuindo o carinho. Contudo, a sua apreensão não desapareceu.
A escola era um edifício térreo, moderno, cercado por um muro de arbustos que impedia a visão para o interior do pátio. Àquela hora, o portão da escola estava aberto e era permitido entrar para ir buscar as crianças. Pais, avós, tios, irmãos ou outros responsáveis aglomeravam-se à volta da porta principal, à espera que o seu pequeno viesse. Mafalda sugeriu aguardar um pouco mais atrás, enquanto eu ia para o meio da pequena multidão.
À hora certa, as funcionárias da escola abriram a porta. Lá dentro, os diversos grupos de crianças perfilavam-se obedientes, esperando a sua vez. As senhoras conheciam todos os respectivos responsáveis de cada menino e menina, por isso, conforme apresentavam um pequeno na porta, um adulto chegava-se à frente e elas confirmavam a correspondência.
Leonor apareceu no seu ar triste e rosto infeliz. Uma das funcionárias indicou-lhe onde eu estava e ela caminhou vagarosamente até mim. Baixei-me para a abraçar e dei-lhe um beijinho.
— Como foi o teu dia?
Ela encolheu os ombros, triste.
Observando o seu rosto, fui contagiado pela apreensão de Mafalda. A minha felicidade estava a distrair-me do pormenor que, para Leonor, Mafalda era uma estranha com quem teria de passar a conviver. Que pensaria a minha filha sobre isso? Que estava a arranjar-lhe uma nova mãe, uma substituta? Lamentei não ter pensado melhor naquilo que haveria de lhe dizer sobre isso.
As pessoas passavam por nós, indiferentes, com a atenção nos pequenos que falavam animados do seu dia.
Olhei para o muro onde Mafalda aguardava. Ainda me custava acreditar que tudo aquilo estava a acontecer. Receava que tudo fosse um sonho do qual eu despertaria em breve. Ao longo dos anos habituara-me que tudo o que era bom também era efémero, mas como diz o povo "não há bem que para sempre dure, nem mal que nunca acabe" ou qualquer coisa parecida.
Tive medo. Tive medo que Leonor rejeitasse Mafalda.
— Anda. Quero apresentar-te uma pessoa.
Sem perder a expressão fechada, o seu olhar tornou-se curioso.
Segurando a sua mão, trouxe-a até ao lugar onde Mafalda aguardava. Leonor olhou-a intrigada, sem alterar um único traço facial.
Mafalda sorriu-lhe e colocou-se de cócoras, para ficar à sua altura.
— Leonor! Apresento-te a Mafalda. É uma amiga muito especial do pai. E espero que possa ser também muito especial para ti.
A minha filha ficou a olhar, estática, inexpressiva.
— Olá Leonor! — cumprimentou Mafalda. — Posso dar-te um beijinho?
A pequena assentiu com a cabeça.
Mafalda deu-lhe um beijo na face.
Para minha surpresa e dela, Leonor perguntou:
— Vais ser minha mãe?
Mafalda ficou sem saber o que dizer. Eu baixei-me ao lado da minha filha e expliquei com a maior honestidade, consciente que apesar da idade, havia conceitos que ela já percebia:
— A Mafalda é namorada do pai. E vem viver connosco, lá em casa.
Leonor continuou sem demonstrar se isso lhe agradava ou não.
Mafalda estudara e fizera carreira na área médica a lidar com crianças, uma vez que era pediatra. Com enorme ternura, segurou a mão de Leonor e disse:
— Sei que perdeste a tua mãe. Nunca ninguém a irá substituir na tua vida. — Leonor ouvia-a com atenção. — Gosto muito do teu pai. E tenho a certeza que também vou gostar muito de ti. Podes ter a certeza que serei sempre tua amiga e poderás contar comigo sempre que precisares. — Era exasperante a falta de reacção de Leonor. Porém, Mafalda foi paciente. — Ninguém substitui a tua mãe. Mas, também não há nada que proíba uma menina linda como tu de ter uma segunda mãe. E se tu quiseres, nada me faria mais feliz que poder ser a tua segunda mãe.
Aquela tarde estava a ser tão feliz que eu não pensei que pudesse sentir-me ainda mais feliz. Só que isso aconteceu, logo após as palavras de Mafalda, quando olhei para o rosto de Leonor e ela estava... a sorrir.
fim do conto VI
FIM