Nunca Neva no Meu Aniversário

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I

 

Não fosse o momento e o ambiente envolvente poderia ser apreciado com a devida honra. O céu estava azul, o sol brilhava e o mar ao longe parecia calmo. Na minha frente, imponente, o cume da ilha do Pico elevava-se sobre as nuvens, como que espreitando do lado de lá do canal, por cima da mancha urbana da Horta. A brisa fresca, ténue e agradável, soprava-me o rosto. Como seria bom desfrutar daquele cenário noutra circunstância.

No entanto, a hora era solene e triste. Quase que poderia dizer que o silêncio era prazenteiro, não fosse o facto de eu estar num cemitério a assistir a um funeral.

Uma dúzia de pessoas rodeavam o caixão prestes a descer até à sua última morada. Rostos riscados de lágrimas, alguns escondendo olhos inundados atrás de lentes escuras, outros impávidos num lamento interno olhando o buraco sem o ver e escutando as palavras ditas pelo padre local.

Eu ali estava, observando e partilhando dos sentimentos que se afloravam a cada palavra, a cada sílaba, a cada letra proferida. Se a morte é sinónimo de paz, quem nos deixava estava a alcançá-la e essa convicção atenuava a dor que perfurava a alma.

O cemitério descaía como se descesse na direcção do mar, deixando as campas viradas para o majestoso Pico. O orador colocara-se numa posição alta, encabeçando o círculo que rodeava a urna, tendo perto de si os familiares. Eu estava um pouco mais ao lado, descaído para a esquerda, tendo o padre quase à minha frente. As suas palavras cerimoniosas elogiavam quem nos deixara e procuravam ânimo na fé de um destino celestial de descanso eterno. Talvez nem todos os presentes fossem religiosos, mas em momentos de dor, as pessoas agarram-se às crenças como medicamento.

A minha atenção estava dispersa em memórias que se misturavam com o som das palavras afagadas pela música dos pássaros e do mar lá em baixo.

Olhei para o rosto da criança petrificada junto ao padre, a qual parecia desligada da realidade com o olhar fixo no caixão que guardava o seu progenitor. Não chorava, não gritava… Lamentava com silêncio a dolorosa perda. A menina tinha onze anos e o seu rosto era assustadoramente idêntico ao da sua mãe com a sua idade que eu conhecera vinte e cinco anos antes.

Quando tinha dez, onze anos, Sónia era o original da cópia quase perfeita que via naquela menina triste. Na altura, eu tinha os meus dez anos e confrontava-me com o primeiro dia de aulas no 5º ano numa escola da grande cidade, vindo da escola primária da aldeia. Para mim era um mundo novo e temível, onde não conhecia ninguém. Tudo era muito maior, o edifício, o recreio, os alunos… Ao entrar na sala de aula, a professora disse-nos que nos espalhássemos pelos lugares por ordem numérica da turma. Durante alguns segundos, andámos perdidos mas lá nos fomos arrumando. A sala tinha mesas de dois lugares e eu fiquei numa das últimas, graças ao facto de me chamar Ricardo e a ordem numérica respeitar a ordem alfabética do nome próprio de cada um.

Eu iria partilhar a mesa com uma colega. Quando temos dez anos sentimo-nos mais entusiasmados em falar com os rapazes do que com as raparigas. Aliás, até àquele momento, nunca tivera uma amiga, apenas os meus amigos da aldeia com quem jogava à bola, ao berlinde ou à apanhada, entre muitas outras brincadeiras.

Antes de me sentar, perguntei-lhe timidamente qual era o seu número. Ela respondeu sem me dar grande atenção e eu confirmei que era o seguinte ao meu e que o lugar a seu lado era para mim.

Tirando uns cinco ou seis que já se conheciam, todas as crianças estavam em silêncio, tímidas a ouvir a primeira chamada do ano lectivo. Como não sentia a mínima cumplicidade com meninas, lamentei ter uma como colega de mesa. Para ser sincero, ela intimidava-me, tal como todas as raparigas bonitas como ela. Nem tive coragem de lhe perguntar o nome, o qual só vim a saber no momento em que a professora a chamou.

Sónia era uma menina de rosto triste, pois o destino fizera os pais deixarem a sua amada ilha do Faial para trabalhar no continente, o que a afastou da restante família e amigos. As suas feições eram rosadas, os olhos rasgados onde sobressaia uma tonalidade castanha, um nariz singelo e uma boca pequena silenciosa. Tinha um longo cabelo preto liso com uma fita branca em volta da cabeça que lhe amparava a franja. Vestia calças de ganga com uma camisa amarela ponteada de pequenas rosas desenhadas.

Feitas as apresentações, a professora indicou como primeiro trabalho para aquela aula que cada aluno fizesse uma composição acerca do seu colega do lado, ou seja, tínhamos de entrevistar o nosso desconhecido sócio de mesa e fazer um texto sobre isso.

Escusado será dizer que éramos tão tímidos que parecia que existia um muro de gelo entre nós. Por momentos, ficámos paralisados e só nos mexemos para pegar no caderno e na caneta. Sem saber bem como, dei por mim a virar-me para ela e começar a falar, dizendo-lhe o meu nome, idade e a contar‑lhe donde vinha e como me sentia com aquela mudança. Para meu espanto, ela olhava-me com muita atenção e eu falava completamente hipnotizado pelo seu olhar penetrante de menina. Senti-me nas nuvens quando lhe provoquei o primeiro sorriso com os meus relatos. O à‑vontade súbito com que falava deixara-a também mais relaxada e também ela começou a falar de si. Acabámos por concluir que tínhamos histórias parecidas e o facto de sermos duas crianças num ambiente novo e desconhecido aproximou‑nos muito e deu origem à cumplicidade e amizade que passámos a partilhar.

Apesar do aspecto cândido de menina bem-comportada que parecia só se interessar por brincar com bonecas, ela era uma maria-rapaz que adorava jogar à bola, correr, rebolar na terra… Mas, o nosso maior divertimento era brincar à “Acção em Miami”. A geração nascida nos anos 70 lembra-se certamente dos míticos Sonny Crockett e Ricardo Tubbs, protagonistas da série Miami Vice, ou em português Acção em Miami. Tanto eu como ela adorávamos a série e gostávamos de brincar ao faz-de-conta encarnando os dois detectives. Pelas semelhanças entre os nomes, ela fazia de Crockett e eu de Tubbs. De tal maneira aquilo nos marcou que para sempre ficámos um para o outro como Tubbs e Crockett.

Houve uma altura, ainda antes de entrarmos na adolescência, em que Sónia se sentira influenciada por um filme de miúdos em que um rapaz e uma rapariga, mais ou menos da nossa idade, davam o seu primeiro beijo. Na época, o assunto era completamente desinteressante para mim, mas ela não se calava com as cenas do filme. Confesso que mesmo sendo uns meses mais velha que eu, Sónia amadureceu mais rapidamente e estava a sentir a curiosidade do primeiro beijo. E um dia, a meio de uma brincadeira, ela surpreendeu-me com um beijo nos meus lábios. Bom, foi mais um choque de bocas. Eu tive a reacção mais estúpida, saindo-me um “que nojo”. Ela ficou meio envergonhada sem saber o que dizer. Acabou por perguntar se eu não gostara. Eu menti que não, agradado com o sabor que ela me deixara. Na verdade, eu habituara-me a que Sónia fosse um amigo como os que tinha na aldeia, como se fosse um rapaz, dar beijos na boca era coisas de adultos, eu não sabia como agir perante aquele tipo relação e a minha timidez condicionava-me. Porém, a menina Sónia gostara, não o disse, mas gostara. Percebi isso quando disse que esse poderia ser o nosso cumprimento secreto. A minha resposta foi: “já viste o Crockett e o Tubbs aos beijos na boca?”. O assunto morreu ali. Contudo, o episódio não afectou a nossa amizade. Sorri-lhe, agarrei-lhe na mão e voltámos às brincadeiras usuais.

Longe estava eu de saber que abrira mão de algo que iria desejar ardentemente algum tempo depois.

Os anos foram passando por nós e a amizade era cada vez mais sólida. Adorávamos estar um com o outro e mesmo tendo outros amigos e amigas, nada se comparava à nossa relação.

A entrada na adolescência trouxe uma Sónia cada vez mais mulher, a ganhar formas e muito preocupada em ser feminina. Já no meu caso, trouxe borbulhas, mudança de voz e as hormonas ao rubro. Já não conseguia olhar para a Crockett como o meu amigo. Sónia era uma rapariga linda, a minha amiga, confidente, a minha metade e eu estava apaixonado por ela. No entanto, algumas coisas mudaram nela, tal como a reserva em certas confidências, preservando uma área invisível à sua volta onde eu não podia entrar e esforçava-se por parecer adulta. Se com aquela idade não tinha a mínima noção do que era o amor, estava certo de que era isso que sentia por ela. Só que o medo de perder a minha grande amiga nunca foi vencido pela paixão e atracção que ela provocava em mim. Apenas uma vez tive a intenção de me declarar, começando a falar no episódio do beijo. Ela deu uma gargalhada e disse que tinha sido das coisas mais ridículas da sua vida. O meu coração ficou em cacos.

O nosso percurso escolar foi paralelo até ao 12º ano, colegas de escola, de turma e na maior parte dos casos de mesa também. Quase todas as pessoas pensavam que namorávamos, mas isso nunca aconteceu entre nós. E em determinada altura, eu tive a minha primeira namorada, o que deitou por terra essa ideia. Para meu mal… ou bem, os meus namoricos nunca duravam muito. Eu não alterava a proximidade que tinha com Sónia e isso deixava as minhas namoradas ciumentas, o que as levava a ultimatos onde ficavam sempre a perder, pois eu jamais preteria a minha Crockett. Já Sónia afastava qualquer ideia de namoros, dizendo que isso não a interessava e concentrava-se exclusivamente nos estudos e em algumas amigas, para além de mim. E na verdade, ela era uma aluna excepcional, por quem dava muito jeito copiar nos testes.

Quando chegou a altura da Universidade, Sónia deu continuidade aos seus planos para o futuro, unindo dois desejos, o gosto pela Biologia e o regresso aos Açores. Por isso, candidatou-se à Universidade do seu arquipélago natal. Sem ter um objectivo concreto, acabei por me candidatar ao mesmo curso. Sónia sabia que a minha escolha tinha como único fim acompanhá-la e por isso tentou convencer-me a escolher algo que fosse bom para mim, repetindo várias vezes que a distância jamais seria uma barreira à nossa amizade. Porém, bom para mim era estar perto dela, fosse ali ou no fim do mundo.

No dia em que saíram os resultados das colocações, o meu mundo ruiu. Sónia entrara na sua primeira opção e eu fora atirado para a minha penúltima, Biologia na Universidade do Algarve. E quando ela partiu para São Miguel, para a sua nova etapa escolar, as nossas vidas tomaram caminhos distantes.

Ambos sofremos bastante com a separação. Desde miúdos que não havia um dia que não nos víssemos. Mesmo assim, esforçávamo-nos por estar em contacto todos os dias. No início, ligávamos um ao outro todas as noites e trocávamos emails. Porém, o ritmo esmoreceu quando ela começou a namorar com um colega de curso.

Foi durante um telefonema que Sónia me deu a novidade com um tom de felicidade na voz. Senti-a tão feliz quanto era a mágoa que me ia na alma. Eu tinha namorada no Algarve, e ela sabia, pois brincava sempre comigo dizendo que estava a durar porque ela estava longe. Só que na realidade, eu continuava a trocar de namorada com frequência porque procurava sempre em todas a cumplicidade Ricardo “Tubbs” e Sónia “Crockett”. Era uma omissão que a deixava a pensar que a minha namorada era sempre a mesma. No entanto, saber que Sónia tinha um namorado era mais sério, pois era o seu primeiro relacionamento e, se ela deixara cair as defesas e se entregara a um namoro, significava que era algo muito profundo e que poderia muito bem um dia resultar em casamento. E por mais escondidas que eu mantivesse as minhas esperanças com Sónia, elas andavam sempre por ali à flor da pele. Só que aquela notícia abafava-as em definitivo.

Infelizmente, eu não me enganara. O namoro era mesmo sério e resultou em casamento após a licenciatura, quando ambos conseguiram bons empregos. A minha licenciatura demorou mais algum tempo, já que eu não levava a questão com tanta responsabilidade quanto devia.

Durante o tempo universitário, nem ela regressou ao continente, nem eu a visitei. Ela costumava mandar-me emails com fotos onde se via explicitamente o seu ar de felicidade. Quando me telefonava, partilhava comigo relatos dos bons momentos com o namorado. Sempre me mostrei feliz por ela, mesmo com o que sentia, e a sua felicidade atenuava o lamento de não ser eu a sua causa.

Quando Sónia casou, eu ainda estava a terminar o curso. Fui convidado para o casamento, mas não fui com a desculpa de que o orçamento de estudante deslocado não dava para pagar uma viagem até ao Faial. Na realidade, não tinha dinheiro para o fazer, mas mesmo que tivesse não tinha vontade de lá ir. Contudo, Sónia mandou-me tantas fotos da cerimónia que vi tudo como se lá tivesse estado.

Licenciei-me um ano depois e tive a oportunidade de fazer um estágio em Londres. Decepcionado que estava com a sucessão de namoros falhados, dediquei-me totalmente ao trabalho. Com o tempo construí uma excelente carreira profissional na área da investigação, trabalhando durante uns anos em Londres, Praga, Seattle, Sidney e Joanesburgo até regressar a Portugal para a direcção de uma grande empresa em Lisboa.

Se era um profissional de sucesso, no campo afectivo era uma miséria. Nesses anos continuara a ter casos pontuais com várias mulheres que se cruzaram na minha vida, tantos que lhes perdera a conta e ficara sempre sozinho. Quando pensava nisso, sentia-me como a música do outro que dizia “já tive mulheres de todas raças, de todas as cores”.

Felizmente, Sónia alcançara os dois, sucesso profissional e pessoal. Tinha um casamento feliz e um emprego estável bastante rentável. E não muito tempo passado, fora mãe de uma menina. Mesmo comigo a trabalhar pelos quatro cantos do mundo, mantivemos o contacto, não com a regularidade de antigamente, mas o suficiente para manter a forte amizade que sempre nos unira. E longe, eu acompanhava a evolução da sua vida através das fotos que me enviava por correio electrónico.

Ao longo dos anos habituara-me ao tom feliz dos relatos dela. O tempo e a distância deixaram-me a convicção de que todos os sentimentos que eu nutria por ela se haviam esfumado, excepto a amizade. Até a cumplicidade já não era a mesma. Decorrera mais de década e meia desde a última vez que estivera com ela e eu acreditava que toda a partilha que tivéramos era agora algo dela com o marido. Eu fora substituído e era normal que assim fosse, a sua metade deveria ser ele e não eu. A minha Crockett era uma figura distante no tempo, onde este Tubbs já não se encaixava no presente.

No entanto, uma noite, quando atendi o telefone, senti‑lhe imediatamente na voz uma mágoa profunda. Nos meses que antecederam aquele telefonema, já reparara que os seus relatos da vida pessoal se haviam reduzido, falando apenas na filha e raramente no marido. Até as fotos por email acabaram porque supostamente a máquina fotográfica avariara. Conhecia-a demasiado para não perceber que algo não ia bem, só que sempre que lhe perguntava, obtinha a mesma resposta: “sim, sim, está tudo bem”. Contudo, naquele telefonema, a sua voz tropeçava nas palavras e perante a mesma pergunta, ela surpreendeu-me com a informação de que se iria divorciar. Foi um choque e uma sensação de impotência quando ouvi o seu choro no outro lado da linha. Sónia não quis avançar pormenores, limitando-se a balbuciar que se sentia perdida e sozinha. “Preciso tanto dos meus amigos” dizia ela, “preciso tanto de ti”. Não sabia que palavras usar para atenuar a sua dor e acabei por dizer que eu estava ali para o que ela precisasse. Ela retorquiu que não precisava de mim ali, mas sim lá perto dela.

Desde que regressara aos Açores, Sónia convidara-me inúmeras vezes a visitá-la. Nas primeiras, a recusa devia-se à falta de dinheiro, mas depois desculpava-me com o trabalho que não me permitia ter uns dias de descanso. Claro que o que eu não queria era ser espectador da sua vida matrimonial. Ficava feliz por ela estar feliz, só que evitava ser parte do filme. Por isso, aquele convite desesperado sabia que iria ter uma resposta negativa. Só que as condições eram diferentes, ela precisava de mim e isso era mais que suficiente para largar tudo e ir ao seu encontro. No meio de tanta tristeza, as suas lágrimas deram tréguas ao ouvir-me dizer que iria tirar uns dias e iria visitá-la ao Faial.

Demorei uns três dias a conseguir organizar a minha vida profissional para ter férias. Ao longo desse tempo, a ansiedade foi crescendo e voltei a sentir-me um miúdo adolescente com o nervoso miudinho de quem vai ao encontro do amor da sua vida.

 

 

 

As viagens de avião eram uma rotina para mim. Desde o primeiro voo que garantia a mim mesmo que voar era seguro, mas isso não evitava que receasse fazê-lo. E confesso que as viagens sobre o mar me assustavam. O dia estava bonito e a visibilidade para quem ia à janela era muito boa, só mesmo perto da chegada houve um aumento de nebulosidade. O cume do Pico deu-me as boas-vindas, surgindo magnânimo acima do manto de nuvens. Alguns instantes depois, o avião começou a sua trajectória descendente rumo ao Aeroporto do Faial. Cerca de duas horas e meia após levantar de Lisboa, o avião aterrava tranquilamente na pista da ilha.

O Sol estava tímido deixando-se tapar por um leve aglomerado de nuvens. Ao sair do avião, senti a brisa suave e o cheiro a maresia. O ambiente transmitia a sensação de paz, de calma, de sossego… Só mesmo o pessoal do aeroporto andava stressado a encaminhar os passageiros para o terminal.

Respirei profundamente aquele ar puro que parecia limpar-me os pulmões de toda a poluição acumulada na grande cidade. Estar de férias fizera-me abandonar o estilo formal de fato e gravata de todos os dias para umas informais calças de ganga e t-shirt.

Ao caminhar pela pista, observei o edifício do terminal. Algures lá dentro, Sónia aguardava a minha chegada. O meu coração estava aos pulos, desejoso do reencontro. Dirigi-me à zona das bagagens e aguardei impaciente pela minha mala. Assim que ela surgiu no tapete rolante, agarrei-a e caminhei para fora da zona reservada aos recém-chegados.

Tudo era novidade ali. Segui as indicações de saída e, como não vi Sónia no espaço público do edifício, aguardei no exterior junto à saída. O aeroporto ficava mesmo junto ao mar e a um nível inferior à estrada que lhe dava acesso. Observava toda a beleza paisagística envolvente, quando ouvi uma voz:

─ Tubbs!

Olhei para trás de mim. O meu coração batia a mil à hora e toda a ansiedade dera lugar a uma súbita timidez, aquela que sempre me afectara junto de Sónia.

─ Crockett. ─ suspirei.

Sónia não estava muito diferente das últimas fotos que vira de si. Apesar de ser uma opinião suspeita, não posso deixar de dizer que estava linda e a idade trouxera-lhe uma maturidade donde brotava uma elegância muito sensual. Vinha vestida com uma t-shirt branca larga que destacava um golfinho azul, calções pelos joelhos e sapatilhas. O vento fazia‑lhe esvoaçar o longo cabelo e o seu rosto mantinha todos os traços gravados na minha memória. Abriu o sorriso quando olhei para ela e puxou os óculos escuros para cima de forma a amparar a franja.

Larguei a mala no chão e aproximei-me dela. Abracei‑a e senti o seu abraço tão forte como o meu. Não tenho palavras para descrever o que senti ao absorver o seu cheiro, o seu toque… Foram mais de quinze anos longe dela. Abraçá-la foi como envolver uma almofada macia junto ao corpo adaptando-se a cada pedaço da pele. Ela cheirava tão bem que apetecia respirar cada poro. Por momentos não dissemos nada, ficando apenas agarrados naquele abraço muito forte com medo de que se largássemos, nos voltássemos a afastar para muito longe. O seu rosto mantinha-se colado ao meu, os seus braços à volta do meu pescoço. Eu tinha os meus à volta do seu tronco, apertando-a bem contra mim.

─ Que saudades. ─ disse ela por fim.

─ Mais que aquelas que o meu coração aguenta. ─ confessei.

─ Achas que já nos podemos largar? ─ interrogou num tom brincalhão.

─ Só mais um bocadinho. ─ respondi, obtendo um risinho delicioso da sua parte.

Em simultâneo, afrouxámos o abraço e trocámos dois beijos na face. Ela afastou-se e eu segurei de novo a mala, reparando que os seus olhos estavam ligeiramente inchados. Muitas lágrimas deveriam ter derramado nos últimos tempos.

O trajecto até sua casa foi feito de carro, um pequeno Peugeot 107 branco, pela estrada que contornava a ilha. Apreciei a vista, o mar infinito que nos acompanhava paralelo ao percurso. Em frente, o topo do Pico começava a aparecer no horizonte. Curva para a esquerda, curva para a direita, recta… Alguns quilómetros percorridos em pouco mais de quinze minutos até chegar à capital da ilha.

Sónia vivia numa casa térrea, num pequeno bairro de casas semelhantes, à entrada da cidade da Horta. A moradia parecia pequena, mas lá dentro era bastante espaçosa. Tinha uma grande sala que partilhava o espaço com a cozinha, um quarto e uma casa de banho logo à entrada e ao fundo um outro quarto. Uma porta em vidro fazia a ligação para um pequeno pátio lateral.

Apesar do semblante abatido resultante dos acontecimentos dos últimos tempos, Sónia não escondia o sorriso ao fazer de guia pela sua casa, mostrando-me todos os cantos e indicando-me o quarto onde eu iria ficar. Com a decisão da separação, o marido já não estava a viver lá, havia mais de três semanas, e naquela altura até estava em Ponta Delgada por causa do seu trabalho. Eu poderia dormir no quarto da filha e a pequena Clarinha dormiria com a mãe. Contudo, nem mesmo a filha estava em casa, pois com as férias o seu gosto era passar o dia em casa dos avós que viviam perto de Varadouro e onde poderia desfrutar das piscinas naturais e da companhia dos amiguinhos.

O Varadouro é um conjunto de formações basálticas que se transformaram em piscinas naturais, muito procuradas por endémicos e turistas, o que a tornou numa das áreas balneares de eleição da ilha. Nessa tarde, Sónia levou-me até lá quando foi ao encontro da filha. O carro ficou no parque, junto aos balneários, e caminhámos por entre as rochas até ao mar. A vista da baía era deslumbrante com o imenso mar a ondular, renovando a água das piscinas, e o morro de Castelo Branco a sul, uma formação enorme com um penhasco assustador. Logo junto à primeira piscina, uma outra pequena estava repleta de crianças. Sónia chamou a filha e eu reconheci de imediato a pequena Clara. A criança também me reconheceu a mim, das muitas fotos que eu enviara à mãe, ao longo dos anos. Fez um intervalo nas brincadeiras e veio ao encontro da mãe. As semelhanças entre Clarinha e Sónia com a sua idade eram quase surreais. A pequenina, meio tímida, aproximou‑se de mim para me dar um beijo. Olhar para ela era como recuar vinte e cinco anos. Como qualquer criança, não perdeu muito tempo connosco e regressou para junto dos amigos.

─ Como tem ela reagido? ─ indaguei, olhando para o rosto da mãe a observar a filha.

Sónia encaminhou-nos para uma zona onde nos pudemos sentar e respondeu:

─ Mais ou menos… De início ficou em choque, principalmente quando o pai saiu de casa. Tentei explicar-lhe, mas… Tu imaginas, não é? Explicar a uma criança… Bolas, nem eu consigo compreender…

Desde que ela me contara da separação, nós nunca mais faláramos sobre isso, nem ela ainda contara as causas. Por isso, tentando usar as melhores palavras que não a melindrassem, questionei os seus motivos.

Ela olhou para mim e abanou a cabeça. Antes que proferisse qualquer palavra, reparei que os seus olhos começaram a ficar húmidos. Pedi-lhe desculpa e constatei que era melhor não falar disso.

─ Não. ─ recusou, limpando as lágrimas com as costas da mão. ─ Eu conto-te. Preciso de falar. Ainda não falei sobre isso com ninguém.

Eu coloquei um braço sobre os seus ombros para a reconfortar e com um sorriso, lembrei:

─ Sabes que podes contar comigo… Crockett.

─ Eu sei. Tu és um querido. És um amigo incrível, és a melhor coisa da minha vida a seguir à Clarinha.

Apertei-a ligeiramente contra mim e dei-lhe um beijo na testa. Ela era não só a coisa mais importante da minha vida como era o meu grande amor. Mas, claro que isso eu não disse.

─ Sabes? Acho que um homem quando está casado com uma mulher de trinta e seis anos acaba por preferir ter duas de dezoito.

─ Que estupidez. ─ barafustei indignado.

─ A sério, Ricardo.

─ Não me digas que ele te trocou por duas de dezoito…

─ Não foi assim linear, mas trocou-me por uma mais nova.

Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Eu antecipei-me e limpei-a, acariciando a sua pele molhada com o dedo indicador. Passei a mão pelo seu cabelo e constatei:

─ Então divorciaram-se porque ele te traía.

Sónia abanou a cabeça. Por instantes, pensei que estivesse a afastar a minha mão, mas era apenas a negação da minha afirmação. Explicou:

─ Tenho que lhe fazer justiça, até foi muito honesto. Algures num qualquer momento do seu dia-a-dia, ele sentiu‑se atraído por uma colega. Acho que deve ter pouco mais de vinte anos. E antes que sucedesse algo entre eles, conversou comigo acerca de já não sentirmos a mesma paixão e que o casamento o estava a sufocar… Enfim, justificações de merda para dizer que queria “comer” a outra gaja… ou outras. E, claro, não queria cometer adultério, daí a separação.

─ Honesto ou não, é preciso ser muito estúpido para abrir mão de ti.

A minha frase foi dita com tal convicção que Sónia me olhou nos olhos com algum espanto. De súbito, senti que poderia ter-me revelado. No entanto, ela limitou-se a colocar a sua mão sobre a minha e a dizer:

─ Tu és um querido.

─ Sou sincero, Sónia. ─ retorqui desviando o olhar para o mar. ─ Tu és uma mulher linda, seja com trinta e seis anos ou cinquenta ou oitenta. Porque a tua maior beleza está naquilo que és e não na tua figura física.

Estás a abusar, pensei, daqui a pouco estás a declarar-te. Porém, não pensei muito nas consequências do rumo da conversa. E esperei que ela me interrogasse onde queria eu chegar com aqueles elogios. Só que a reacção foi diferente.

─ Isso é mesmo o tipo de coisas que se dizem às feias para as fazer sentir melhor. ─ constatou ela, olhando também para o mar.

─ Tu sabes bem que não és feia. ─ argumentei, tornando a olhar para ela. ─ Tu sempre foste linda. Ele não tem noção do que está a perder. Eu conheço-te há vinte e cinco anos e sempre me senti um privilegiado por tudo o que partilhámos, pela nossa amizade, pela nossa cumplicidade. Nunca existiu nem existirá ninguém como tu na minha vida.

Estás mesmo a passar dos limites, insurgiu-se a minha mente contra mim próprio. Estás a um passo de…

─ Foi por isso que nunca casaste? ─ interrogou ela, confrontando o meu olhar com muita seriedade.

Encolhi os ombros sem saber muito bem o que responder. A minha mente assolava-me com ideias e o meu coração batia descompassado. Eu nunca casara porque a única mulher com quem queria casar era ela, a minha Crockett, a minha amiga, o amor da minha vida. Parecia que tinha uma voz dentro de mim que dizia “estás a ir tão longe, já agora diz‑lhe tudo”. Engoli em seco e comecei:

─ Nunca casei porque…

─ Mãe! ─ gritou uma voz, interrompendo-me. ─ Mãe! ─ Ouvindo a voz da filha, Sónia desviou imediatamente o olhar para a criança. ─ Estou a ficar com frio.

O Sol já se começava a pôr e a brisa tornara-se num vento mais forte. As pessoas começaram a abandonar o lugar e nós fizemos o mesmo.

Aquela conversa ficou na minha mente como um sino que não parava de tocar. Regressámos a casa de Sónia com Clarinha e não voltámos a tocar no assunto. O dia fora esgotante, principalmente devido à viagem de avião que me obrigara a levantar da cama muito cedo. Pouco depois do jantar, e como Sónia não quisera ajuda para arrumar a louça, eu despedi-me de ambas e fui para a cama. Em todo esse tempo, perguntava-me o que poderia ter acontecido se eu tivesse completado aquela frase. Só que assim que aterrei no colchão, o cansaço não me deixou pensar em mais nada.

II

 

As vozes das pessoas na rua acordaram-me a meio da manhã. A princípio não tivera a noção de onde estava, mas rapidamente me lembrei. Levantei-me sentindo o corpo agradecido pelo descanso.

Não havia ninguém em casa. Com total silêncio, pensei que mãe e filha ainda dormissem, mas a porta do seu quarto estava aberta e a cama feita.

Após tomar um banho e vestir-me, aguardei na sala que Sónia voltasse. Como se estivesse a passear numa galeria de arte, observei as fotos espalhadas pela estante, fotos dos pais, dela com o marido, deles com a filha, só da filha, só dela, algumas minhas e num dos cantos a última foto que tirámos juntos, antes da partida dela para os Açores. Tão novos que nós éramos naquela foto, captada por um turista que ia a passar e que simpaticamente correspondeu ao nosso pedido. A foto foi tirada em Belém, com o rio Tejo como cenário, lado a lado, eu com o meu aspecto imberbe e ela linda com o cabelo a esvoaçar ao vento. Na noite daquele dia de finais de Setembro, recordo-me do que chorámos abraçados um ao outro pela separação que aí vinha. Foi um momento inesquecível, nos braços um do outro a lamentar que a nossa vida académica não me tivesse levado para o mesmo lugar que ela. A despedida final foi um beijo sentido dela na minha face e outro meu na dela, olhámos um para o outro com olhos marejados de lágrimas e jurámos que a nossa amizade nunca teria fim. Durante os meses que se seguiram, influenciado pelas cenas dos filmes românticos, eu lamentava não me ter despedido dela com um beijo nos seus lábios, aproveitando o momento fragilizado de ambos e roubando-lhe o beijo como ela me fizera em criança. Contudo, com o passar do tempo, congratulei-me por não o fazer, pois se ela tivesse a mesma reacção que eu, o momento seria estragado e a recordação um embaraço e uma vergonha.

Os meus pensamentos foram interrompidos pela chegada de Sónia. Ao dar de caras comigo ali na sala à sua espera, sorriu-me e abraçou-me com força, dando-me dois beijos. Os seus abraços eram carregados de carinho, apertando os seus braços à volta do meu pescoço durante alguns segundos. Havia uma imensa saudade neles.

Sónia fora levar a filha a casa dos avós logo de manhã, como era hábito, ainda antes de eu acordar. De vestido colorido fresco e havaianas, olhou para mim e disse com sorriso maroto:

─ Espero que debaixo dessas calças tenhas calções de banho. Aqui deves andar sempre preparado para entrar na água.

Pois… Não tinha. Por isso fui mudar de roupa e vestir uns calções, largar os ténis e calçar chinelos.

Contente por me ter ali a partilhar os dias de férias consigo, Sónia foi a minha guia e queria mostrar-me todos os cantos da terra que tanto amava, a ilha do Faial. E para começar, fomos caminhar até ao centro da Horta.

A temperatura era amena e o Sol brilhava no céu azul. Curiosamente, o cume do Pico estava escondido por uma massa de nuvens. Passeámos descontraídos até à zona histórica da cidade e descemos ao porto. O porto da Horta é um lugar mundialmente conhecido, uma vez que é o local favorito para fazer escala nas travessias marítimas entre a América e a Europa. Protegido pelo canal que liga a ilha do Faial à ilha do Pico, a constituição geográfica oferece resguardo a todos quantos navegam naquelas águas.

Recordo-me que descemos uma rua que nos levou a uma rotunda de formato esquisito, onde inúmeros carros se arrumavam meios desordenados. Era nessa zona do porto que atracavam os barcos que faziam o transporte de passageiros para as outras ilhas. Virámos à esquerda e espantei-me com as dezenas e dezenas de veleiros atracados na marina, embarcações dos quatro cantos do Mundo. Sónia conduzia‑me pelas ruas, falando dos sítios, apontando para pontos que queria que eu visse.

O nosso passeio prosseguiu ao longo do porto, onde passámos pelo bar do Peter para beber um café. Este é outro lugar emblemático da Horta, pois não deve haver velejador no globo que não conheça o Peter’s. Lá dentro, o ambiente é semelhante a um bar irlandês, paredes e tecto em madeira e muitas mesas apinhadas de pessoas a falar alto e em vários dialectos. Centenas de mensagens espalham-se pelas paredes, mensagens de pessoas que quiseram deixar a sua marca com algumas palavras sobre a ilha, a cidade, o bar, as gentes ou outra ideia que lhes fosse na mente, quase todas datadas e algumas praticamente do início da fundação do bar.

Continuámos por aquela rua que reparei ter mais duas ou três lojas do Peter’s, destinadas a venda de souvenirs para os turistas. Descemos umas escadas e Sónia mostrou-me a marina onde tanto o chão como os muros estavam pintados com centenas de gravuras que, tal como no bar, os velejadores deixavam à sua passagem. Porém, não estou a falar de mensagens escritas, mas sim de autênticos quadros a cores muito bem pintados e fazendo referência a uma determinada embarcação. Havia casos em que as pinturas eram renovadas a cada nova passagem e essa data era adicionada ao desenho. Sónia chamou a minha atenção para as que considerava mais bonitas e vimos um senhor ajoelhado no chão a pintar uma alusiva ao seu barco que chegara na noite anterior.

O telemóvel de Sónia tocou e nós parámos o passeio junto a um dos extremos do porto. Tentei não dar atenção à conversa, por educação, mas deu para perceber que o telefonema era do seu ex-marido. Fiquei a olhar para o mar e para a ilha do Pico, onde as nuvens começavam a revelar o Piquinho. O tom da conversa era cordial e a voz dela parecia tranquila, querendo revelar distância, mas com um timbre de quem falava com alguém que lhe era muito próximo. Eu sentei-me no muro a ouvir, sentindo um absurdo ciúme por ela falar bem com ele, pois esperava que como casal divorciado eles só discutissem.

Quando terminou, Sónia voltou a guardar o telemóvel e veio sentar-se ao meu lado.

─ Era o teu marido?

─ Ex. ─ corrigiu. ─ Mandou cumprimentos para ti.

─ Para mim? ─ interroguei surpreso. ─ Ele sabe que estou cá?

─ Sim, claro.

Por instantes ficámos a observar as casas da Horta, espalhadas pelas elevações.

─ Vocês parecem continuar a dar-se muito bem. ─ constatei.

─ Porque dizes isso?

─ Pela forma como estavas a falar ao telefone.

Sónia olhou para o chão com o vento a soprar-lhe os cabelos. Pensei que não fosse dizer nada, mas acabou por se justificar, dizendo:

─ Tento dar-me bem com ele por causa da Clarinha. Não quero que ela sinta qualquer ódio entre nós. Mas… Se não fosse ela, nunca mais o queria ver.

─ Ainda gostas dele? ─ questionei, percebendo que a amargura nas suas palavras balançava entre o amor e o ódio.

─ Digo a toda a gente que não. ─ Levou a mão ao cabelo e puxou-o para trás, olhando depois para mim. ─ Mas não é verdade, Ricardo. Não tenho segredos para ti, és o meu confidente desde pequena. Foram cerca de quinze anos… Claro que gosto dele, ainda gosto dele. Mas espero que isso passe rapidamente.

─ E não há possibilidades de voltarem?

─ Não. ─ respondeu com um sorriso irónico. ─ Ele não quer voltar à vida de casado. Quer andar com esta e aquela sem responsabilidades. E de mim já se fartou há muito tempo.

─ Não digas isso. ─ interrompi, acariciando-lhe as costas. ─ Pode ser uma fase…

─ Não, não é. Basta ver pela reacção à tua presença cá. Ele sabe que tu estás em minha casa. Sim, claro, nós somos como irmãos. Só que ele não mostrou qualquer tipo de ciúme.

A última coisa que eu queria era ser irmão dela. E quem me dera que ele tivesse muitas razões para ter ciúmes. Contudo, acabei por argumentar:

─ Se somos como irmãos, porque haveria ele de ter ciúmes?

─ Ó Ricardo, somos como irmãos, mas somos uma mulher e um homem. Ele podia pensar…

─ Ele sabe como é a nossa relação, tonta. Crockett e Tubbs. Somos amigos eternos. Por isso…

─ Por isso, ─ interrompeu. ─ pense o que pensar, o nosso casamento acabou, não tem volta. Mesmo que goste dele, jamais admitiria voltar para um homem que me deixou para andar enrolado com outras.

Eu assenti com a cabeça, concordando com ela.

Sónia voltou a olhar para mim, abriu o sorriso e sugeriu que fossemos até à praia. Deixámos os murais pintados e caminhámos sobre as gravuras, fazendo o percurso inverso. Atravessámos novamente a zona portuária e Sónia guiou-me até ao extremo oposto da cidade da Horta para me mostrar a Baia de Porto Pim, a qual tinha uma bela praia de areia escura e águas muito calmas. A praia ficava no sopé do Monte da Guia, uma pequena montanha a sul da ilha, talvez uma antiga cratera que perdera metade da sua estrutura, o que vista de cima a fazia parecer um quarto crescente.

Percorremos metade da praia e escolhemos um espaço para estender a toalha que ela trouxera consigo. Como eu não tinha uma, ela ofereceu-me metade da sua para eu me sentar. Enquanto tirei a minha t-shirt, Sónia puxou o seu vestido e despiu-o pela cabeça, ficando em biquíni. Ela continuava a ter um corpo curvilíneo, muito elegante, muito sensual, muito excitante. Uma excitação que eu me esforçava por não revelar. A idade não lhe deixara marcas, pelo contrário, ela estava em forma e com belas formas. Nem a gravidez lhe deixara qualquer vestígio. A pele bronzeada fazia sobressair o biquíni roxo com pequenas flores vermelhas, o qual ela ajeitou cuidadosamente como se receasse que ele revelasse algo que não devia. Depois, sentou-se a meu lado e ficámos a olhar o mar da baía.

Durante todo aquele passeio, reparei nos olhares de algumas pessoas quando passávamos. Mesmo ali na praia, uma ou outra pessoa olhava para Sónia com uma expressão estranha. Isso incomodou-me e partilhei esse facto com ela.

─ Não te preocupes. ─ disse ela, sorrindo. ─ São pessoas daqui, pessoas que me conhecem e conhecem o meu ex. A nossa separação não foi propriamente noticiada na televisão. Isto é um meio pequeno, agora vêem-me com outro homem e começam a pensar coisas.

─ Lamento estar a causar isso.

─ Não lamentes, não tem importância. ─ afirmou, dando-me um beijo na face. ─ A opinião deles não me interessa para nada. As pessoas que me são importantes sabem o que realmente se passa. E além disso, a tua presença cá tem sido um óptimo remédio para mim.

Olhei para ela e retribuí-lhe o beijo na face. Fiquei a olhá‑la nos olhos e a pensar em como gostaria de lhe dizer o que sentia. Como não disse nada, ela perguntou o que se passava para a estar a olhar com um sorriso parvo.

─ Não é nada, estava só a olhar para ti. Não imaginas as saudades que tinha de estar assim contigo, sem dar pelo tempo passar, como se nada mais existisse no mundo para além de nós.

─ Velhos tempos… ─ concordou, desviando o olhar.

Permaneci a observar o seu rosto de olhar perdido nas casas no lado oposto da baía. Apreciei cada traço da sua face, a beleza dos seus lábios, o contorno das suas sobrancelhas, a cor dos olhos…

 ─ Quem me dera poder voltar atrás no tempo. ─ confessei, encostando a cabeça no seu ombro.

Sónia repousou a sua cabeça sobre a minha e respondeu:

─ Já me dava por satisfeita se pudesse parar o tempo e ficar aqui contigo eternamente. ─ Levantou a cabeça e moveu‑se de forma a olhar-me novamente. ─ Senti muito a tua falta. Senti muito a falta do amigo que sempre foste para mim.

Sorri-lhe e abracei-a com força e ternura.

─ Não penses nisso, agora. Estou aqui contigo e vamos aproveitar cada minuto da minha estadia no Faial.

Sónia envolveu-me com os seus braços e deixou-se ficar naquele abraço fraternal.

─ Obrigado, Tubbs! Obrigado por tudo o que sempre foste para mim, desde o primeiro dia em que nos conhecemos.

Dei-lhe mais um beijo na nuca, bastante sentido, como se agradecesse o seu agradecimento e ao mesmo tempo a fizesse sentir que eu sentia o mesmo. A forma como falava nas lembranças, na saudade, revelavam o quanto estava fragilizada. Pudesse eu fazer o que me ia no pensamento e envolvê-la ia com todo o meu ser, inundava-a de beijos e amá‑la‑ia como nunca fora amada na sua vida. Porém, sabia que não o podia fazer, não correria o risco de que os meus sentimentos estragassem aquilo que de melhor tinha na minha vida. Afrouxei o abraço e com um tom brincalhão, disse:

─ Bom, deixemo-nos de lamechices e vamos dar um mergulho. Ainda continuas a ser um peixe na água?

─ Claro. ─ confirmou, forçando um sorriso. Levantou-se, puxou-me pela mão e ambos corremos para o mar calmo e mergulhámos juntos.

 

 

 

Nessa noite, Sónia, Clarinha e eu jantámos em casa. A refeição foi uma bela dourada com batatas cozidas. Sónia não esquecera como eu gostava de comer um bom peixe e nessa tarde esmerara-se a assar aquele no forno. Estava delicioso.

─ Amanhã, quero levar-te a conhecer alguns locais da ilha. ─ sugeriu Sónia. ─ Pensei que poderíamos sair cedo e aproveitar bem o dia.

─ Parece-me bem. ─ concordei, sentindo o sabor do peixe fresco bem assado, na boca.

─ Queres vir connosco, Clarinha? ─ convidou a mãe, olhando para a filha que espetava o garfo no peixe com alguma desconfiança.

─ Prefiro ir à praia.

Sónia encolheu os ombros.

─ É natural que prefira brincar com os amigos que acompanhar dois cotas. ─ constatei com um sorriso.

─ Tudo bem. ─ concordou ela com algum lamento. ─ Sendo assim, antes de irmos, deixo-te em casa dos avós.

O jantar prosseguiu, ouvindo-se em fundo o som da televisão com o noticiário da noite. Eu mastiguei o meu peixe, bebi um pouco de vinho e disse:

─ Se tivermos oportunidade, gostava de visitar a ilha do Pico, também. Aliás, gostava de subir a montanha.

─ Olha que não é tarefa simples. ─ alertou Sónia. ─ A subida é bem complicada e dura.

─ Já a subiste?

─ Sim. Antes de a Clara nascer. Mas, não me importo de a voltar a subir contigo.

─ Costuma nevar no Pico?

─ Sim, no Inverno. ─ confirmou Sónia.

─ Eu gostava de ir à neve. ─ interrompeu Clara. ─ Nunca vi neve.

─ Vês quando o topo da ilha está coberto de branco. ─ recordou a mãe. ─ Daqui, vê-se bem a neve no cume.

─ Não é a mesma coisa. ─ argumentei em defesa do desejo da pequena.

Sónia lançou-me um sorriso e retorquiu:

─ Fala o menino “nunca neva no meu aniversário”.

Soltei uma gargalhada, ao ouvir a sua citação.

─ Não esperava que ainda te lembrasses disso.

Completamente confusa com o nosso diálogo, Clara perguntou:

─ Que quer isso dizer?

─ Era uma expressão que o Ricardo usava em miúdo.

Clara olhou para mim, esperando que eu adicionasse uma explicação mais completa. Eu não a decepcionei.

─ Quando eu era criança, mais novo que tu, todos os anos nevava na aldeia onde nasci. Para mim e para os meus amigos, a neve era tão natural como aqui é a chuva. ─ Olhei para o vazio, recordando os tempos em que andava na escola primária. ─ Éramos poucos miúdos na aldeia, mas éramos muito amigos. Quando um fazia anos, a família dele convidava todos os outros para uma festa lá em casa. Só que eu não podia fazer o mesmo porque, quando eu fazia anos, quase todos estavam ausentes. ─ Clara franziu o rosto, estranhando a situação. Eu expliquei. ─ Todos faziam anos no Inverno. Eu era o único que nascera no Verão. Por isso, na altura do meu aniversário, as famílias dos outros estavam ausentes em férias.

─ E o Ricardo achava que se nevasse no aniversário dele, os amigos já não podiam ir de férias e estariam na aldeia para comemorar os anos dele.

Clara sorriu, achando a teoria engraçada.

─ Seja como for, ─ continuei perante o seu olhar atento. ─ quando somos crianças pequenas, criamos as teorias mais complexas. E esta era a minha. Se nevasse no meu aniversário, eles estariam na aldeia. Por isso, tal como a tua mãe lembrou, eu dizia muitas vezes que nunca nevava no meu aniversário.

─ Mas, a mãe conhecia-te nessa altura?

─ Não. Só nos conhecemos mais tarde, no quinto ano. Só que eu nunca larguei essa frase.

─ Sim. Disseste-a muitas vezes à minha frente. ─ recordou Sónia.

─ Claro que com a idade, essa relação perdeu a razão de ser. No entanto, passou a ser uma espécie de grito de inconformismo.

─ Como assim? ─ interrogou Clara, não entendendo o significado de inconformismo.

Sónia esclareceu melhor:

─ Quando o Ricardo via os outros terem sorte e ele não, dizia que nunca nevava no aniversário dele, ou seja, nunca lhe calhava a ele. Era como dizer “nunca tenho sorte”. Percebes?

Clara assentiu com a cabeça.

─ Acho que já não o digo tantas vezes. ─ constatei, pensando quando teria sido a última vez que o dissera.

─ É porque não tens tido falta de neve. ─ afirmou Sónia, piscando-me o olho e sorrindo.

─ Quantidade não significa qualidade.

─ Também neva onde vives? ─ inquiriu Clara, ao ouvir a mãe.

─ Não. A tua mãe está a dizer que sou uma pessoa com sorte.

Sónia levantou-se da mesa e começou a recolher a louça. Eu ajudei-a, tal como a filha que pegou no prato e no copo e colocou perto do lava-louça.

Enquanto a mãe lavava a louça do jantar, Clara sentou‑se no sofá a ver a novela que começara. Eu peguei num pano e fui limpando os pratos que Sónia retirava da água.

─ Não precisas fazer isso.

─ Não custa nada ajudar. Não sou daqueles homens que têm alergia a tarefas da cozinha.

─ O meu ex devia ter. Nunca fez nada de tarefas domésticas em casa. ─ desabafou ela. ─ Só se fosse pôr um prego na parede ou martelar alguma coisa. Sim, isso já era tarefa de macho.

Sorri com a forma sarcástica como ela pintava a situação.

Quando terminámos a parceria de arrumar a louça, Sónia chamou a filha:

─ Clarinha! Beijinho de boa noite ao Ricardo e vai lavar os dentes para ir para a cama.

─ Oh, mãe…

─ Vá lá! Já são horas de ir dormir.

A contragosto, Clara abandonou o sofá e dirigiu-se a mim para me dar dois beijos e desejar uma boa noite, a qual eu retribuí e adicionei um “dorme bem”. A pequena seguiu para a casa de banho para cumprir a ordem da mãe. Quando saiu, a mãe foi ao seu encontro e ambas entraram no quarto ao fundo da casa.

Sozinho na sala, fiquei a olhar para a estante de CDs com a colecção de discos dela. Havia um pouco de tudo, desde o actual aos anos oitenta. Parei num sector que também era especial para mim, a discografia dos Genesis, os quais eu também idolatrara na juventude, principalmente a fase após a saída de Peter Gabriel e total protagonismo de Phil Collins. Penso que foi uma preferência baseada no facto de ter conhecido o grupo quando as músicas surgiram como banda sonora nos episódios do Miami Vice. Mais tarde, aprendi a gostar dos temas mais antigos, dos anos setenta, com a voz do Gabriel em destaque e a do Collins em fundo. Depois da saída de Phil Collins, os Genesis perderam o interesse.

Lembro-me que durante a adolescência, na altura em que me apercebi que estava apaixonado por Sónia, a música que mais ouvia era o Invisible Touch. Devo ter passado os dois discos ao vivo, The Way We Walk, centenas de vezes no leitor, nessa época. A voz do Phil Collins era uma espécie de banda sonora da nossa amizade.

─ Genesis? ─ ouvi a voz de Sónia interrogar atrás de mim, sentindo a sua mão acariciar-me as costas. A minha mente perdera-se de tal forma nas memórias que nem me apercebera que ela regressara à sala. Confirmei que sim. ─ Tive imensa pena de não os ter visto ao vivo, quando vieram a Portugal.

Fora algo que sempre lamentámos, não termos tido possibilidade de ir ao Estádio de Alvalade quando eles actuaram lá no início da década de noventa. Eu consegui colmatar essa lacuna, em 2008, assistindo a um concerto deles em Roma.

─ Tanto que nós ouvíamos os Genesis. ─ recordei.

─ As minhas cassetes duraram até a fita aguentar.

─ Era a música do Crockett e do Tubbs. ─ disse eu como se elas não pudessem pertencer a mais ninguém.

Sónia sentou-se no sofá e convidou-me a sentar a seu lado, assistindo à novela na televisão. Devia ser das poucas coisas antagónicas entre nós, o seu gosto pelas novelas, as quais me eram indiferentes. No entanto, estar ali sentado ao lado dela, com o seu braço colado ao meu, compensava bem ter de suportar a novela. E se fosse só uma… Contei pelo menos três diferentes até perceber que Sónia adormecera com a cabeça repousada no meu ombro.

Tê-la a dormir encostada a mim era daqueles momentos que poderiam durar a eternidade, ainda para mais quando ela se aninhou com a cabeça no meu peito e o seu braço a envolver-me a barriga. Sentia a sua respiração no peito que se pressionava contra mim a cada inspiração, bem como o cheiro perfumado do seu cabelo junto ao meu rosto.

Na televisão continuava a novela. Procurei o comando, mas antes de mudar de canal, uma cena captou a minha atenção. Não me recordo porquê, só sei que nela uma das personagens levava um tiro e morria. Cansado, o sono venceu a minha vontade de alterar o canal.

Quando voltei a acordar, vi a mesma actriz que levara o tiro, novamente viva e com cabelo de cor diferente. Que raio de história, pensei. Porém, percebi que já era outra novela com a maior parte dos actores da anterior. Uma seca.

Pode ser um defeito meu, mas não suporto novelas, aqueles enredos em que do primeiro ao penúltimo episódio os maus fazem a vida negra aos bonzinhos. Vencem sempre até chegar o último episódio em que morrem ou são presos e os bons têm um final feliz. Enfim… Ninguém é capaz de avisar os tipos que inventam estas histórias que a vida é um bocadinho… só um bocadinho, diferente?

Seja como for, esquecendo as novelas, comecei a mudar de canal, procurando algo pelo qual valesse a pena largar o comando da televisão. Fui saltando de programa em programa sem encontrar nada de interessante. Bem podia ir para a cama, mas estava a saber-me bem ter Sónia a dormir tranquilamente sobre o meu peito. Dei por mim a ver o canal das notícias até o sono me vencer novamente.

Não sei quanto tempo estive a dormir no sofá da sala. Sei que acordei com a voz de Clara a chamar a mãe, a qual acordara instantes antes de mim.

─ Não vens para a cama, mãe?

Sónia levantou-se, afastando-se de mim e olhou para o relógio. Meia estremunhada, surpreendeu-se com a hora tardia. De seguida, o seu olhar encontrou o meu e disse:

─ Desculpa! Estiveste aí a suportar-me a dormir sobre ti sem poderes ir para a cama.

─ Não digas isso. Soube-me muito bem ter-te a dormir no meu ombro.

Sónia sorriu, algo envergonhada por se ter deixado adormecer assim. Levantou-se do sofá, pegou na mão da filha e sugeriu:

─ Amanhã podias vir comigo quando eu fosse levar a Clarinha? Assim continuávamos o nosso passeio sem ter de voltar aqui. É muito cedo para ti?

─ Não. Claro que não.

Sónia deu-me um beijo no rosto e despediu-se de mim para ir dormir para a cama.

Quando me deitei, não tinha sono. Típico. Adormecer no sofá e acabar por espertar do sono quando se vai para a cama. Não conseguia tirar da cabeça a imagem de Sónia a dormir no meu peito, a sua postura pacífica e descansada, sonhando… Imaginei como seria se vivêssemos juntos como marido e mulher, a dormir no sofá… Eu a pegar-lhe ao colo com ternura, carregá-la nos braços e deitá-la na cama. A cena mental deixou-me de tal forma inebriado que adormeci e não me recordo de ter pensado em mais nada.

Na manhã seguinte, quando o meu telemóvel me alertou que deveria sair da cama, já a voz de Clara se ouvia na sala. Senti o peso de uma noite pouco dormida no corpo e a pouca vontade de abandonar a colchão. Porém, nenhum minuto mais ali valeria um minuto na companhia de Sónia.

Ao sair do quarto, cumprimentei mãe e filha. Clara via os desenhos animados na televisão e Sónia preparava algumas coisas para fazermos um piquenique ao almoço. Fui tomar um duche rápido e regressei ao quarto.

Pelo vestuário da minha amiga “Crockett”, percebi que o dia iria ser de passeio ao ar livre, talvez a andar pela natureza faialense. Vesti uma camisola de manga curta e umas calças leves, deixando o impermeável na mochila que levaria comigo. Tal como ela me avisara, era sempre bom estar preparado para a chuva que nos Açores poderia aparecer de um momento para o outro. Claro que não me esqueci dos calções de banho por baixo das calças, uma vez que a possibilidade de dar um mergulho ainda era maior que a chuva.

Sónia vestia umas calças leves para andar e uma camisola da mesma marca das calças, a qual se moldava suavemente às formas do seu corpo. Tal como eu, ela calçava botas de caminhar.

Na minha mochila, para além do protector de chuva, levava protector solar, uma garrafa de água, a máquina fotográfica e um casaco para o caso de a temperatura mudar. E na alça da mochila, uma bolsa escondia o meu telemóvel.

A minha anfitriã carregou na sua as mesmas coisas que eu, à excepção da máquina fotográfica. Levava também os alimentos que preparara para o piquenique.

Clara destoava totalmente de nós, pois estava vestida para ir para as piscinas do Varadouro, perto da casa dos avós.

 

 

 

A viagem entre a casa de Sónia e a dos seus pais durou uns dez ou quinze minutos. Durante esse tempo não falei muito, pois a conversa andou à volta das recomendações de mãe para filha.

Enquanto olhava para a estrada, recordava a altura em que vira os pais de Sónia pela última vez, nas vésperas de regressarem ao Faial com a filha, quando ela foi para a Universidade. Não podia condenar o seu ar feliz desse momento, o qual contrastava com a infelicidade que me ia na alma por ver a minha melhor amiga e mulher por quem nutria um amor platónico a partir para longe. Para eles era o regresso à terra natal, a qual haviam deixado para permitir que a filha pudesse obter um nível de ensino superior ao que nesse tempo existia nas ilhas.

Sónia estacionou em frente à casa. Clara saiu do carro ansiosa por encontrar a avó que depois a levaria ao encontro dos amigos na piscina. Eu saí a seguir a Sónia, subindo as escadas a seu lado para rever aquele casal simpático que sempre me tratara com enorme afabilidade.

Tanto a mãe Emília como o pai Alfredo estavam bastante diferentes do dia em que estivera com eles a última vez. No entanto, como eles também apareciam em algumas fotos que ela me enviava, o choque não foi tão grande.

Cumprimentei a mãe que nos esperava à entrada e o pai que nos aguardava na sala. Sempre sorridentes, convidaram‑me a entrar e a sentar-me para conversar um pouco. Perguntaram como eu estava, o quanto estava crescido desde a última vez que me viram, quase fazendo-me sentir um puto que aparece com os primeiros pelos da barba.

Eu fiz-lhes um pequeno resumo da minha vida, desde o estudante até ao cargo profissional que tinha. Não falei muito da minha vida pessoal, apesar de ouvir as perguntas normais de quando casaria, quando teria filhos. Vocês sabem a resposta, se a filha quisesse que eles fossem meus sogros…

─ Vocês têm uma amizade extraordinária. ─ constatou o pai de Sónia. ─ Amigos desde pequenos, tanto tempo afastados e agora parece que nunca se separaram.

─ Olha para a carinha da Sónia. ─ adicionou a sua mãe. ─ Parece que ganhou uma cor nova, desde que o Ricardo chegou.

─ Mãe… ─ interrompeu a filha, envergonhada. ─ Estás a deixar-me sem jeito. O Ricardo é o meu melhor amigo, é natural que me sinta feliz por o ter perto de mim, depois de tantos anos longe.

─ Fez muito bem em vir. ─ elogiou novamente Emília, sorrindo-me. De seguida, olhou para Sónia. ─ Desde que o pai da Clarinha se foi embora, esta rapariga andava com uma cara que fazia doer este coração de mãe.

─ Já chega, mãe. ─ pediu Sónia, colocando-me a mão nas costas, como que num sinal para que fossemos embora. ─ Temos de ir.

─ Jantem connosco, logo. ─ convidou o senhor Alfredo.

Eu olhei para Sónia, procurando uma resposta. Ela fez o mesmo ao olhar para mim.

─ Por mim, parece-me bem.

─ Então fica combinado. ─ atalhou a mãe, ao ouvir a minha resposta.

A Sónia que me acompanhou até ao carro, depois de sairmos da casa, era uma Sónia envergonhada com a denúncia dos pais à importância da minha presença na ilha e de como isso afectava positivamente a filha.

Como não a quis deixar mais constrangida, disse-lhe:

─ Havias de ver a minha cara, antes de chegar aqui. Pensas que és só tu que ganhas cor? Longe de ti, eu pareço um pacote de farinha.

Sónia soltou uma gargalhada, esquecendo o embaraço.

─ Isso é por te veres livre da poluição da grande cidade. ─ retorquiu. ─ Não me esqueci como Lisboa é stressante e poluída.

─ Sim. Isso também. ─ concordei. ─ Mas não penses que a tua companhia não influencia o meu estado de espírito. Sabes bem que sempre foi assim, nos anos todos em que não havia um dia que não nos víssemos.

─ Bons velhos tempos. ─ suspirou ela, iniciando a marcha do carro, retomando o trajecto para o nosso passeio. Voltou a rir provocada pelas lembranças. ─ As tuas namoradas é que não achavam muita graça a ver-me por perto.

Eu sorri sem a contrariar.

Enquanto ela conduzia, eu apreciava a paisagem, vendo os campos verdes com longas linhas de hortênsias azuis, bem floridas. Ao longo da estrada, reparei nos pinos de pedra com as indicações da distância quilométrica entre eles e a cidade da Horta. Conhecem a expressão “todos os caminhos vão dar a Roma”? Pois no Faial bem que se podia dizer que todas as estradas iam dar à Horta. Não era completamente desprovido de lógica, sendo o Faial uma ilha relativamente pequena. No entanto, não pude evitar uma gargalhada quando, num cruzamento da estrada, uma placa indicava para a esquerda a cidade da Horta e para a direita… a cidade da Horta. Era como se a placa avisasse o condutor de que se estava com pressa virava à esquerda, se quisesse fazer tempo ia pela direita e contornava a ilha.

A estrada de dois sentidos que rodeava a ilha parecia uma pista, só perdendo qualidade nos desvios para o interior ou para as zonas costeiras. Porém, salvo algumas excepções, perdia pouca qualidade.

O nosso destino seria a Caldeira, o ponto central da ilha, uma enorme cratera de dois quilómetros de diâmetro e quatrocentos metros de profundidade, resultado de um vulcão extinto.

Outro pormenor que reparei durante o trajecto foram as casas que ainda tinham as marcas do último grande sismo no Faial, em finais do século XX. Algumas estavam mesmo abandonadas, pois não tinham quaisquer condições de habitabilidade.

Sónia conduzia o carro com calma, em sintonia com a passividade do ambiente que nos envolvia.

─ Continuas sozinho? ─ interrogou sem tirar os olhos da estrada.

A pergunta apanhou-me de surpresa, apesar de não ser nada que tivesse problemas em conversar com ela. Algum tempo antes, durante mais uma das nossas conversas ao telefone, eu falara-lhe no fim de mais uma relação, uma advogada do Porto com quem tinha algo parecido com uma relação estável. Durara seis meses…

Depois dela, não me envolvera com mais ninguém. Não porque tivesse ficado afectado, somente não acontecera. E pouco tempo após a rotura, tive conhecimento do divórcio de Sónia e todas as mulheres passaram para segundo plano.

Antes que dissesse o que quer que fosse, o meu telemóvel tocou.

─ Bom dia, Milu!

─ Bom dia, doutor! ─ Mesmo trabalhando comigo nos últimos anos, a simpática senhora não perdia o hábito de me tratar por “doutor”, algo que eu no início lhe pedira que não fizesse, mas que ela recusou por achar que era uma obrigação da função que executava. ─ Peço desculpa por estar a ligar. Não queria incomodá-lo nas suas férias, só que tenho um recado para si.

Milu era a minha secretária, uma senhora de cinquenta e pouco anos que fora transferida na empresa para me secretariar quando eu ocupei o meu cargo. Na altura, receei que viesse a ter uma jovem secretária com mais atributos físicos que profissionais, daquelas que gostam de uma grande proximidade com o chefe. Nunca me arrisquei a misturar trabalho com prazer, mas sabia os riscos inerentes a essa situação. Fiquei muito satisfeito quando conheci Milu, na altura com quase cinquenta anos, com um aspecto muito conservador e uma funcionária bastante competente.

─ Recebi um telefonema do dono de uma galeria de arte, um senhor que disse que o doutor dera o contacto do escritório para combinar uma exposição.

Sabia ao que ela se referia. Uma das minhas grandes paixões é a fotografia, daí que por todo lado por onde viajo, e não são tão poucos locais quanto isso, ande sempre a fotografar. Um amigo de uma amiga minha viu as minhas fotos e convidou-me a expô-las na sua galeria de arte. Como não saberia quando seria oportuno fazer esse evento, dei-lhe o contacto do escritório para que falasse com a minha secretária, a qual tinha uma noção dos meus compromissos melhor que eu. Ele sugerira a Milu no início do Outono e após consultar a agenda, ela queria a minha concordância em relação à data.

Quando desliguei, percebi o sorriso irónico no rosto de Sónia. Espantoso como, após tantos anos longe um do outro, a nossa cumplicidade se mantinha tão activa ao ponto de eu lhe conseguir ler os pensamentos só pelo semblante do seu rosto. Mesmo assim, perguntei:

─ Que se passa?

─ Parece que o teu telemóvel respondeu à minha pergunta. ─ Sorri com gosto, perante a ideia de que Milu pudesse passar por minha namorada. ─ Que foi? Disse alguma piada?

─ Não. A Milu é minha secretária.

─ Ui… Secretária? Imagino como deve ser a tua secretária. ─ ripostou, mantendo a ironia.

─ Não sei se imaginas de facto como ela é. ─ retorqui, bem-disposto. ─ A Milu é uma senhora com idade para ser minha mãe, muito competente e ficaria certamente muito ofendida se soubesse que fazias essa ideia dela. ─ Sónia desviou o olhar para mim. ─ Sim, essa ideia de secretária que vai para a cama com o chefe.

O seu rosto sorridente foi a confirmação de que eu lhe lera os pensamentos na perfeição. Acabou por dizer:

─ Não tens de te justificar…

─ Não me estou a justificar. E, além disso, já te falei dela várias vezes. ─ Olhei para as hortênsias que cercavam a estrada. ─ A Milu é uma grande ajuda a organizar a minha vida profissional.

─ Estavas a falar numa exposição?!

─ Querem fazer uma exposição das minhas fotos numa galeria. ─ expliquei, sem que isso parecesse interessante.

─ Que bom! ─ congratulou ela, mesmo percebendo isso. ─ Mas… Não respondeste à minha pergunta.

─ Sim, Crockett, continuo sozinho. ─ respondi com um ar falsamente enfadado com a questão. Ela riu e deu-me uma palmada na perna. ─ E o teu trabalho? Como está a correr?

─ Bem. ─ Sónia fez uma festa na minha perna, no local onde batera, como se me tivesse magoado. ─ Foi complicado darem-me estes dias de férias. É Verão e é a época com mais turistas, mas o meu patrão compreendeu que eu não estava bem e deixou-me vir com o compromisso de que se houvesse muita procura, eu iria ajudá-los.

Sónia trabalhava como bióloga e guia marítima para uma empresa que fazia excursões no mar com turistas para observar os golfinhos e as baleias. Era uma das actividades de lazer mais procuradas da ilha, principalmente naquela época do ano. No caso da empresa dela, essas excursões eram feitas em barcos de borracha semirrígidos com um máximo de dez a doze turistas, dirigido por um piloto e assistido por uma guia da fauna marinha. Se houvesse oportunidade, ela iria levar-me numa dessas excursões.

Conforme a estrada nos levava a uma altitude maior, o nevoeiro adensou-se, o que era também usual, os nevoeiros que surgiam tão depressa quanto desapareciam. E a coroa de nuvens à volta da Caldeira ameaçava estragar as vistas do nosso passeio.

A estrada, cercada por hortênsias em ambos os lados, terminou junto a um pequeno parque com alguns carros estacionados, quase todos alugados por visitantes da ilha. Saí do meu lugar e respirei o ar ameno exterior, observando o ponto mais alto da ilha que se escondia nas nuvens. Do lado da montanha, vi um túnel por onde saiam duas pessoas. Sónia fechou o carro e convidou-me a segui-la. Com a máquina fotográfica na mão e mochila às costas, caminhei a seu lado pelo túnel.

Aquele pequeno corredor desembocou num miradouro com uma vista espectacular para o interior da cratera. Sem hesitar, comecei a fotografar a paisagem deslumbrante.

Para Sónia, aquele lugar era normal, era a sua terra, a qual me mostrava com orgulho e já sem o deslumbramento do visitante. Com as mãos penduradas nas alças da mochila, ela aguardou que eu saciasse a minha sede de fotos. E eu disparava cliques com receio que o nevoeiro descesse ao ponto de tapar a vista. Por fim, puxei Sónia pela cintura e virei a lente para nós.

Como excelente anfitriã, ela ia comentando o passeio, explicando-me que a Caldeira estava rodeada por hortênsias, bem como cedros, zimbros, faias, fetos e musgos. Toda aquela zona estava classificada como Reserva Natural. Eu ouvia-a e fazia dela a minha modelo para inúmeras fotos.

─ Pára com isso! ─ pediu, sentindo-se tímida perante a lente da máquina. ─ Não sou nenhuma modelo.

Eu parei por alguns instantes, sabendo que Sónia seria o alvo preferencial da minha objectiva enquanto estivesse com ela.

Retornámos à estrada, atravessando novamente o túnel. Na encosta para lá do alcatrão, vi inúmeras vacas a pastar. Esta também foi uma imagem que se repetiu diversas vezes, as vacas a pastar livremente pelos campos da ilha.

─ Podemos fazer um passeio à volta da cratera. Queres?

Eu assenti que sim.

Uns dez metros ao lado do túnel, antes de chegar ao caminho que subia para a montanha, existia uma placa com a explicação do trilho que rodeava a Caldeira. Parei aí e comecei a ler o cartaz. Tínhamos pela frente oito quilómetros de caminhada que levaria cerca de duas horas e meia a percorrer.

III

 

Quando alcançámos o ponto mais alto do percurso, reparei no conjunto de antenas que ali haviam sido plantadas. Esta primeira parte do caminho fora a mais dura, uma vez que implicou uma subida algo acentuada.

O percurso de contorno da cratera podia ser feito nos dois sentidos, na direcção dos ponteiros do relógio ou ao contrário. Como eu sempre preferi subidas íngremes a descidas íngremes, optei pela primeira hipótese.

Sónia revelou melhor preparação que eu, brincando que o “Tubbs” estava a ficar velho. Mesmo com uma subida feita num trilho com degraus escavados na terra, o esforço nos joelhos revelou-me que andava a ter uma vida muito sedentária. Parei diversas vezes para fotografar a paisagem, bem como as vacas que encontrei nas encostas mais íngremes, quase me parecendo que a qualquer momento elas rebolariam dali abaixo.

No fim da subida, tentei captar mais imagens de Sónia, fotografando-a nas formas mais inesperadas e obtendo dela a constante reclamação por isso.

─ As maravilhas do digital. ─ concluiu, franzindo o rosto com a noção de que o nevoeiro parecia ter vindo para ficar. ─ Se fosse rolo, como antigamente, não desperdiçavas tantas fotos comigo.

─ A minha máquina está fascinada com a tua beleza. ─ justifiquei, recebendo um sorriso de volta. ─ Se ainda estivéssemos na era dos rolos de fotografia, só te fotografava a ti.

─ Deixa-te de tretas, Tubbs! ─ Abanou a cabeça como se eu não tivesse emenda. Qualquer elogio que lhe fizesse, ela interpretaria como uma brincadeira de amigos de infância. ─ Guarda essa conversa para as tuas amigas coloridas.

Mesmo assim, sentindo um súbito receio de que as minhas palavras pudessem denunciar os meus sentimentos, mudei de assunto:

─ Lembras-te daquela máquina que eu tinha quando éramos pequenos?

Caminhando lentamente a meu lado por uma pequena estrada de alcatrão situada a seguir às antenas, ela confirmou:

─ Aquela que fazia fotos quadradas? Sim, lembro-me. Mas não éramos assim tão pequenos, eu já tinha catorze anos. ─ Olhou para as nuvens, procurando um sinal de que se afastavam, mas sem sucesso. Franziu o rosto. ─ Tinha uns rolos com um formato muito estranho.

─ Pois era… Pareciam uns carrinhos de brincar.

─ Já nessa altura eras um chato a tirar-me fotos.

Já nessa altura era apaixonado por ti, pensei.

O ambiente à nossa volta estava cada vez mais denso, sentindo-se uma humidade no ar. A visibilidade para lá da encosta da montanha era quase nula, mas para o interior da cratera ainda se conseguia ver a vegetação.

Os metros que se seguiram eram planos. Para o exterior do cone da montanha, o solo era muito irregular. No entanto, pelo meio daqueles altos e baixos lá andava uma ou outra vaca. Ao longe, no início do trilho, era possível ver um grupo de turista a começar o nosso trajecto.

─ Também é possível descer ao interior da cratera? ─ perguntei, sentindo alguma curiosidade em conhecer a base do coração da montanha, a qual me parecia um lugar quase intocável.

─ É possível, mas muito perigoso. ─ explicou. ─ Só mesmo com um guia, alguém que conheça bem o terreno. Não é uma descida nem uma subida fácil. O meu… ─ Parou de falar. Foi como se tivesse sido atingida por uma lembrança dolorosa. ─ O pai da Clarinha chegou a fazer esse caminho com um amigo que é guia, aqui na ilha e no Pico.

─ Desculpa! Não queria…

Sónia forçou um sorriso.

─ O meu ex não é nenhum tabu. E além disso, tu não podias adivinhar que a tua pergunta me faria recordá-lo. ─ Suspirou. E para meu pesar, concluiu. ─ Como se fosse possível esquecê-lo…

Coloquei o meu braço sobre os seus ombros e reconfortei-a.

─ Pode ser que ele se arrependa e volte. ─ sugeri, desejando que isso não acontecesse.

─ Não acredito. ─ disse ela com desânimo.

─ Se ele quisesse, tu aceitava-lo de volta?

A sua resposta foi uma facada no meu coração:

─ Eu amo-o, Ricardo! Amei-o ao longo dos últimos quinze anos. Não se esquece alguém assim tão facilmente.

─ O tempo irá ajudar-te a sarar as feridas. ─ Ela encolheu os ombros, pouco crente. ─ Quem sabe se não encontras alguém que te ajude a esquecê-lo?!

Nesse instante, parámos para observar um novo ângulo da cratera, aproveitando um ligeiro abrir das nuvens. Apontei a máquina para mais uns disparos.

─ Duvido… ─ proferiu Sónia com o olhar perdido na paisagem. Depois, olhou para mim e, muito séria, confessou. ─ Ele foi o único homem da minha vida. Não sei como reagiria num novo relacionamento.

Correspondendo ao seu tom sério, alertei:

─ Estás a pensar tornar-te freira? Não podes desistir de ser feliz só porque o teu ex decidiu mudar de vida e não te incluir nela. ─ Sónia ficou muda, observando a neblina ténue. ─ Desculpa! Não tenho o direito…

─ Tu tens razão. ─ atalhou, quase que soprando as palavras. ─ É verdade. Ele mudou de vida e não me incluiu nela. ─ Reparei que uma lágrima escorria no seu rosto. Ela limpou-a com a ponta dos dedos. ─ E com isso mudou também a minha vida. ─ Soluçou e levou ambas as mãos a cobrir o rosto.

Eu envolvi-a num abraço carinhoso e ela chorou no meu ombro, soluçando. Colocou os seus braços à volta do meu pescoço e deixou-se ficar, sem dizer nada, chorando com a amargura que aquela nova etapa da sua vida, aquele divórcio, lhe estava a provocar.

Não quebrei o silêncio, apertando-a apenas contra mim para que se sentisse confortada. Estático como uma pedra, só afrouxei o abraço quando senti que ela se queria desprender e afastar. Retirou um lenço de papel da mochila e limpou o rosto, recuperando gradualmente daquele momento de fraqueza.

─ Já deves estar arrependido de teres vindo visitar-me. ─ reclamou ela, recriminando-se. ─ Vires aturar uma amiga dispensada pelo marido.

─ Não digas disparates! Não trocaria a tua companhia por nada.

Sónia sorriu por entre as lágrimas.

─ Tu és um excelente amigo! És o meu melhor amigo. ─ Voltou a abraçar-me. ─ Obrigado por teres vindo! Gosto muito de ti.

─ E eu de ti.

Ela voltou a afastar-se, abriu um sorriso para combater as lágrimas de tristeza e disse:

─ Vamos, Tubbs! Temos uma aventura para continuar.

Na verdade, dei por mim a pensar se teria feito bem em ter vindo. Nunca esquecera o quanto fora apaixonado por ela, mas o tempo atirara esse sentimento para o baú das recordações. O casamento dela e a distância fizeram-me acreditar que estava imune aos seus encantos. Quando vim ao seu encontro, quando aterrei no Faial para visitar a minha grande amiga que passava por uma fase difícil, tinha consciência que poderia voltar a sentir a atracção que sentira por ela na juventude. Contudo, percebi que continuava completamente apaixonado por ela, que sentia algo que nunca sentira com outra mulher. E não sabia como lidar com a situação.

─ E tu? Quando é que esse coração assenta? ─ interrogou ela, despertando-me dos pensamentos. Recuperara das lágrimas e o seu rosto voltava a alegrar-se. ─ Já não estás a caminhar para novo.

─ Estás a chamar-me velho, Crockett?

─ Não, Tubbs.

O nosso trajecto desviou-se para um trilho mais apertado e irregular. O Sol começou a furar as nuvens e a abrilhantar o cenário. Parei mais uma vez para fotografar. Depois coloquei‑me atrás dela, estiquei os braços na sua frente com a máquina apontada a nós e disparei.

─ Devo estar com uma cara linda. ─ disse ela com ironia.

Eu virei o ecrã da máquina para ela e mostrei-lhe que tínhamos ficado muito bem na foto.

─ Sempre que me falavas nas tuas namoradas, esperava que um dia me dissesses que ias casar. ─ recordou, reiniciando o andar.

─ Achas que alguém quer casar comigo? ─ interroguei num tom brincalhão. ─ Sou chato de aturar.

─ Não digas isso. Tu é que nunca quiseste assentar.

─ Talvez…

Sónia voltou a parar.

─ Não percebo, Ricardo. Será que nunca encontraste ninguém que te fizesse ter vontade de ter uma relação para vida? Casar? Ter filhos?

Sim, encontrei. Estou a falar com ela.

─ Não. Nunca senti esse desejo.

Sónia abanou a cabeça, lamentando a ausência de interesse por coisas tão sagradas para ela como o casamento e os filhos.

O percurso já passara a metade e as altas antenas eram uns traços finos visíveis do outro lado da cratera. O nevoeiro dissipara e o Sol brilhava, aumentando a temperatura. A paz reinava à nossa volta, onde só o vento e o som dos animais se faziam ouvir. Muito ao longe, era possível ver pontinhos coloridos, pessoas que também percorriam aquele trilho montanhoso.

O brilho da claridade, vista daquele ângulo, revelou melhor o pequeno lago no interior da cratera. Mais uma vez, fotografei a paisagem e… uma Sónia distraída a esticar os braços e a respirar fundo, de olhos fechados e rosto para o céu.

O trilho descia, depois subia, voltava a descer, outra subida… Havia alturas em que a estreita linha rapada de vegetação parecia desaparecer, levando-me a pensar que daí a alguns metros nos iríamos perder na busca do resto do caminho. No entanto, isso nunca aconteceu, o trilho era sempre visível e fácil de perceber.

─ Isto quase parece as nossas aventuras Miami Vice. ─ recordou Sónia, liderando a passada. ─ Tenho saudades desse tempo, Tubbs.

─ Também eu.

─ Passámos horas a ser Crockett e Tubbs. Os putos hoje já não sabem brincar assim.

─ Preferem uma Playstation.

─ De preferência com jogos com muitos tiros e sem tirar o rabo do sofá.

─ Nós também dávamos tiros.

─ Queres comparar? Nós fingíamos uns “pum, pum”. Eles hoje têm réplicas de armas para apontar para a televisão.

─ Isso é verdade. ─ concordei, lamentando aquilo que se estava a dar de forma tão irresponsável às gerações mais novas. ─ Tu para além de fazeres os barulhos dos tiros também cantavas.

Sónia deu uma gargalhada, adicionando:

─ Adorava a música do Crockett. Era uma melodia linda. Já nem me lembro quem foi o autor.

─ Jan Hammer. ─ informei com a melodia muito clara na minha mente. ─ Tenho um CD dele.

Continuámos o percurso até já se avistar o humilde altar por cima do miradouro da cratera. O caminho era ladeado por arame farpado de um lado e hortênsias no outro. Quando encontrámos uma abertura entre as flores, Sónia sugeriu que parássemos ali e aproveitássemos aquele pequeno espaço com uma vista tão bonita sobre a Caldeira para fazer o nosso piquenique.

Sentámo-nos numa longa pedra. Da sua mochila, Sónia retirou as sandes que preparara de manhã e dois pacotes de sumo.

Por alguns minutos, comemos em silêncio. A brisa fresca atenuava o calor que aumentara com o dissipar das nuvens. Os sons da natureza envolviam-nos, juntamente com os cheiros das flores.

─ É pena que o nevoeiro não tenha levantado mais cedo. ─ lamentou. ─ Há uma parte do percurso em que se conseguem ver as outras ilhas mais próximas do Faial. ─ Apontou para uma das encostas. ─ Dali até se vê a Graciosa.

─ Deixa lá. Há tanta coisa bonita à nossa volta.

Bebi um pouco de sumo, vendo Sónia terminar a sua refeição. Também ela bebeu um pouco do seu sumo e limpou os lábios, olhando a seguir para mim.

─ Posso fazer-te uma pergunta?

─ Claro. ─ concedi, curioso com o que quereria ela saber.

─ Porque acabou a tua última relação?

Sorri, demonstrando que o assunto “terminar relação” era tão banal para mim como respirar.

─ Eu contei-te num dos nossos últimos telefonemas. Foi a distância. Ela trabalhava no Porto, eu em Lisboa.

─ Isso não justifica tudo. ─ argumentou Sónia. ─ Há muitos casais que têm casamentos sólidos e trabalham a mais de trezentos quilómetros de distância e só se veem aos fins‑de‑semana.

─ Talvez… Mas, connosco não resultou. ─ A minha mente reviu a última conversa entre mim e a minha última namorada. ─ Para além da distância física, aumentou a distância sentimental. Conversámos e concordámos que era melhor cada um seguir o seu caminho.

─ Foi doloroso para ti?

Encolhi os ombros.

─ Não quero parecer insensível, perante o momento que estás a passar. Porém, para te ser sincero, não me afectou muito.

─ Alguma te afectou?

─ Como assim?

─ Alguma vez ficaste afectado com o fim de uma relação?

─ A fazeres a pergunta dessa maneira, sou obrigado a responder que sim para não parecer um monstro.

─ Eu sei que não és um monstro. ─ afirmou, acariciando‑me o braço. ─ Podes ser sincero comigo.

Eu olhei para o terreno deserto no fundo da cratera. As memórias invadiram-me o pensamento com o momento mais doloroso que tivera, por ver alguém partir.

─ É curioso. ─ constatei, olhando para ela. ─ O afastamento que mais me fez sofrer não esteve relacionado com namoros.

─ Não? ─ interrogou com alguma surpresa. Porém, rapidamente percebeu. ─ Quando nos afastámos?

Eu assenti com a cabeça.

─ Foi assim tão duro?

─ Sabes que sim. Nunca te escondi isso.

─ Porquê, Ricardo? ─ interrogou, encarando-me com um ar sério. ─ Como pode o afastamento de dois amigos ser mais doloroso que o de dois namorados?

Será preciso dizer? Será que não consegues perceber sozinha? Era o que tinha vontade de lhe perguntar. Acabei por dizer:

─ Tu és uma grande amiga. Tivemos uma relação muito próxima, muitos anos a conviver diariamente. ─ Sorri como se tudo fosse uma recordação longínqua da juventude. ─ Bom… Pelo menos, tornou-me imune a separações.

Sónia abanou a cabeça, mas não proferiu qualquer palavra. Aliás, não disse mais nada até nos pormos novamente ao caminho, logo que arrumámos tudo.

O percurso até terminarmos o contorno da Caldeira não demorou muito mais a concluir. A parte final era composta por uma ligeira descida, a qual terminava junto ao pequeno altar, o ponto branco que se avistava em quase todo o percurso. Passada essa singela construção, descemos até ao local onde havíamos iniciado o percurso, só parando em frente ao túnel do miradouro, junto ao carro de Sónia.

─ Que se segue, Crockett?

─ Que me dizes a um mergulho, Tubbs?

─ Parece-me bem.

Arrumámos as mochilas no porta-bagagem e entrámos no carro, voltando à estrada para nova etapa.

Sónia conduzia quase de forma automática, pois já deveria ter percorrido cada quilómetro de alcatrão da ilha centenas de vezes. O nosso destino foi a praia de Almoxarife, na costa oriental do Faial. Voltámos a entrar na estrada principal e circulámos quase até entrar na cidade da Horta, momento em que Sónia desviou para norte, continuando na mesma estrada. Um ou dois quilómetros a seguir, uma placa indicava a praia, Sónia virou na direcção da tabuleta.

Na nossa frente, o majestoso Pico e uma estrada que descia até quase ao mar. Ao fundo, uma rotunda com vários carros estacionados. A tarde aquecera e o local era dos mais procurados para banhos. Só conseguimos um lugar para estacionar perto de uma casa.

Mulher prevenida, ela trazia sempre uma toalha de praia no carro, a qual se prontificou a partilhar comigo, uma vez que eu deixara a minha em casa dela.

A praia de Almoxarife tinha um muro baixo que a separava da estrada, juntamente com um passadiço. Não era uma praia larga, mas tinha um bom comprimento. Caminhámos por aquele passeio de tiras de madeira até passar uma ponte singela que atravessava uma ribeira quase seca. Descemos por umas pedras e assentámos a nossa posição numa zona com menos pessoas.

Sónia estendeu a toalha. Eu fiquei a ver a paisagem defronte do areal negro. O Pico magnânimo, o canal entre a Horta e a Madalena, a ponta ocidental da ilha de São Jorge à nossa esquerda. Retirei a máquina fotográfica da mochila e gravei a paisagem no cartão de memória.

Quando olhei para o lado, vi Sónia descalça, já sem a camisola e com a parte superior do biquíni, puxando as calças para baixo. Apontei a máquina para ela e fotografei-a. Ela reclamou.

─ Vais ficar a tirar fotos ou vens dar um mergulho comigo?

Eu guardei a máquina novamente e desfiz-me das roupas e das botas de caminhar, ficando em calções de banho. Não consegui evitar olhar para a minha amiga, encantado por ela ser tão dolorosamente bela. Vi a sua mão esticada, a qual eu segurei, aceitando o convite para entrar no mar.

Quando regressámos à areia, sentámo-nos na toalha e ficámos a olhar para o ambiente à nossa volta. O céu estava azul e o Sol brilhava, porém, o topo do Pico fora novamente envolvido pelas nuvens que o esconderam.

Havia muitas pessoas na praia, desde turistas a nativos. Se em alguns casos era difícil distinguir, noutros era perfeitamente perceptível, fosse pela língua, fosse pelo tom de pele ou dos cabelos, ou até pela estrutura corporal. Seria difícil pensar que um homem de quase dois metros com cabelo louro e olhos azuis era faialense.

─ Só fotografas paisagens? ─ interrogou Sónia, olhando para mim, despertando-me da observação. ─ Isto, para além de me melgares a mim, Tubbs.

─ Fotografo tudo aquilo que acho que vale a pena fotografar.

─ Se isso era um elogio, obrigado! ─ agradeceu, sorrindo.

─ Há muitos sítios lindíssimos no mundo. Eu tenho a sorte de já ter estado em muitos deles e ter tirado fotos muito bonitas. Confesso-te que a tua ilha é um paraíso na Terra, daí que goste de andar a fotografar cada canto.

Num tom bem-humorado, ela espicaçou:

─ Espero que não andes a fotografar cada canto de mim também.

─ Podes achar estúpido. ─ retorqui sério. ─ Mas, é uma forma de poder “estar contigo” quando voltarmos a estar longe um do outro. Posso olhar para estas fotos e recordar estes dias maravilhosos na tua companhia. ─ Sorri-lhe. ─ É estúpido, não é?

─ Não. ─ negou ela mais séria. ─ Acho isso muito querido da tua parte. Espero que me deixes algumas tuas para eu poder fazer o mesmo.

Eu voltei a virar a lente para nós e fotografei-nos, lado a lado.

─ Pronto! Esta será uma delas.

Sónia encostou a cabeça ao meu ombro, num gesto de carinho.

─ Quando vi a tua máquina, pensei que fosses um daqueles fotógrafos de moda, aqueles tipos que fazem sessões fotográficas com modelos.

Naquela altura, eu tinha uma máquina fotográfica topo de gama. Não é necessário ser profissional para ter uma daquelas, apenas paixão pela fotografia e dinheiro para a comprar.

─ Também faço. ─ informei, causando-lhe alguma surpresa. ─ Tenho um amigo que trabalha para uma agência de modelos e é caçador de talentos.

─ Caçador de talentos?

─ Sim. Anda sempre à procura de novas caras para a moda. ─ expliquei. ─ Como eu tenho um estúdio em casa, ele recorre a mim para fazer os books dos modelos.

─ Das modelos. ─ corrigiu Sónia.

─ Não. Dos modelos. ─ insisti, percebendo o seu desprezo por essa minha faceta. ─ Fotografo homens e mulheres.

Sónia olhou para mim, aquele olhar que não admitia ser enganada perante a inquirição. Quase que ia jurar que havia ciúme nas palavras seguintes:

─ E envolves-te com elas, quando as fotografas?

Eu dei uma valente gargalhada.

─ Que raio! ─ exclamei. ─ Que ideia que fazes de mim, Crockett. ─ Abanei a cabeça, parecendo triste. ─ Já me devias conhecer o suficiente para saber que eu não misturo trabalho com prazer. ─ Olhei para a areia negra e para as ondas rasteiras que nela embatiam. ─ Já namorei com uma modelo que fotografei, mas não me envolvi com ela na sessão fotográfica. Cheguei a sair com outras duas…

─ Pronto, ok! Já percebi. Não é preciso dares mais pormenores.

Voltei a sorrir para ela, sendo correspondido pelo seu sorriso.

─ Adorava fazer uma sessão fotográfica contigo. ─ confidenciei, obtendo dela um franzir de rosto, como se isso fosse absurdo. ─ Que foi?

─ Tenho espelhos em casa, Ricardo. Não sou nenhuma modelo.

─ És uma mulher muito bonita, Sónia! Farias inveja a muitas meninas que andam na moda.

─ Pronto, lá está o Tubbs… ─ Sem dizer mais nada, ela pegou na máquina. ─ Como é que isto funciona?

Eu dei-lhe uma explicação básica de como focar e fotografar. Ela aproveitou para testar o seu jeito em mim.

Com o Sol quente a incidir sobre nós, voltámos a saborear a frescura do mar.

Ainda ficámos algum tempo na praia, dando mais alguns mergulhos. A temperatura era amena e de boa vontade teríamos ficado ali até anoitecer. No entanto, Sónia alertou que era melhor irmos andando, pois queria tomar banho e arranjar-se antes de irmos a casa dos seus pais, os quais nos haviam convidado a jantar lá nessa noite.

Após o último mergulho, deixámo-nos ficar ao sol até os nossos corpos secarem o suficiente para voltarmos a vestir a roupa. Enquanto voltava a entrar na camisola e nas calças, observava Sónia que fazia o mesmo. Nem o cabelo comprido húmido todo despenteado tirava encanto à sua beleza. Ela bem o tentou sacudir, mas não evitou manchar a camisola nos ombros. Para que não acontecesse o mesmo na zona do peito, depois de vestir a camisola, desprendeu a parte superior do biquíni e retirou-a por uma das mangas.

Sei que tinha um olhar felino para o corpo feminino, ainda mais no que respeitava à mulher que tanto mexia com os meus sentimentos. Não pude deixar de reparar como as pontas dos seus mamilos se destacavam por baixo da camisola, soltos do biquíni e ainda húmidos pelos vários banhos no mar. Sónia percebeu isso e envolveu o tronco com a toalha.

Quando saímos da praia já não estavam tantas pessoas como quando ali chegáramos. Algumas delas seguiam em paralelo connosco no regresso aos carros estacionados.

Entre Almoxarife e a casa de Sónia o percurso era curto, alguns quilómetros para atravessar a cidade da Horta. A estrada subia para uma encosta, a qual Sónia me explicou tratar-se da Ponta da Espalamaca. Quando a subida terminou, ela parou o carro para me mostrar a vista do miradouro.

Saímos do carro junto a uma grande estátua da Senhora da Conceição, pelo menos foi o que pude ler na placa pregada à pedra, a qual tinha falta de muitas letras na mensagem que continha.

Sempre com a máquina na mão, fotografei a vista espantosa sobre a cidade da Horta com o Monte da Guia para lá das casas. Vi o longo pontão que se estendia de sul para norte e a construção do novo onde se previa a edificação do novo porto com capacidade para os gigantescos navios de cruzeiro. Em frente, tal como vira em Almoxarife, a alta montanha do Pico, coberta pelas nuvens, e a ilha de São Jorge com a parte ocidental visível até se esconder atrás da ilha do Pico. Mais ao longe, para nordeste, com uma cor que quase se misturava com os azuis do céu e do mar, a ilha da Graciosa com o seu recorte semelhante a duas lombas gémeas. No mar, um barco fazia a travessia do canal e alguns veleiros desfrutavam do vento fraco para navegar. Mais perto da ilha do Pico, cara a cara com a Madalena, vi duas formações rochosas no mar, uma parecia estar em pé e a outra deitada.

Antes de regressarmos ao carro, abracei Sónia e apontei a máquina para nós, usando a montanha do Pico como cenário da foto.

Quando chegámos a casa, Sónia largou a mochila e foi tomar um banho. Ainda me perguntou se eu queria ir antes, mas eu preferi ir depois. Segurando a parte do biquíni que despira numa mão e a toalha na outra, ela entrou na casa de banho e fechou a porta.

Eu deixei a minha mochila perto da dela e sentei-me no sofá, à espera da minha vez. Enquanto aguardava, retirei o telemóvel da bolsa na mochila e consultei o meu email. Na rua, duas senhoras conversavam uma com a outra, queixando-se dos preços dos legumes. Na sala, o silêncio só não era total porque se ouvia a água a sair do chuveiro no duche de Sónia.

Não tinha muitas mensagens novas e nenhuma na qual valesse a pena debruçar-me antes de voltar ao continente.

Passados alguns minutos, o som da água a correr parou. Fui ao meu quarto e retirei a camisola, as calças e as botas, ficando tal como estivera na praia. Ao retornar à sala, Sónia saiu da casa de banho com o corpo envolvido numa longa toalha turca e o cabelo embrulhado noutra mais pequena.

─ Podes ir. ─ indicou, segurando a toalha maior em volta do peito, a qual mesmo sendo grande não lhe cobria as pernas abaixo das coxas. ─ Deixei-te uma toalha pendurada que podes usar para te secares.

Eu agradeci e segui para o meu duche.

Antes de entrar na banheira, vi o biquíni de Sónia pendurado a secar. Estendi o braço até às duas peças pequenas e toquei-as como se pudesse sentir nelas o corpo dela. Retirei uma do seu suporte e apertei-a junto ao nariz, procurando absorver o cheiro da minha amiga. No entanto, o tecido molhado cheirava a avelã, o mesmo cheiro do gel de banho. Voltei a colocar a peça no seu lugar e segui para o duche.

Quando abandonei a casa de banho, trazia a toalha que ela me deixara, enrolada à cintura. Do quarto de Sónia vinha o ruído do secador de cabelo a funcionar. Caminhei para o meu quarto e fui procurar uma roupa para vestir.

Como a temperatura era amena, tanto de dia como de noite, optei por uma camisola de manga curta, calças de ganga e um casaco só para o caso de sentir algum frio com o avançar da noite. Calcei umas sapatilhas, coloquei um pouco de perfume e penteei o cabelo. Pronto, saí do quarto e encontrei Sónia à minha espera.

Sentada no sofá, ela verificava se não lhe faltava nada na pequena mala. Vestia um vestido de alças colorido em tons de verde e amarelo. Tal como eu, para prevenir alguma descida da temperatura, tinha consigo um casaco de malha branca. Desta vez não prendera o cabelo, deixando-o solto sobre os ombros. Para não variar, estava linda.

─ Estás pronto? ─ indagou, levantando-se do sofá.

─ Sim. ─ confirmei, vendo as suas sandálias com tiras que se cruzavam sobre os seus pés.

Sónia vestiu o casaco e pegou na mala, retirando as chaves do carro e da casa.

O Sol começava a tomar os tons mais laranjas, quando circulávamos pela estrada rumo a Varadouro. Ao passar por Castelo Branco, surpreendi-me com o som forte dos motores de um avião que descolava do aeroporto do Faial.

A paisagem da ilha era um deslumbramento a qualquer hora, encostas escarpadas, rochedos a entrar no mar, campos extensos de um verde puro, as vacas a aproveitar os pastos antes do recolher do fim de tarde, montes, vales… Reparei em vários rolos empilhados nos campos. Poucos carros na estrada e alguns tractores. Existia no ar a sensação de que tudo era feito sem ansiedade e com toda a calma.

O acesso às piscinas naturais de Varadouro era feito por uma estrada que descia na direcção do mar. No fim da descida, virámos à direita e parámos no pequeno parque de estacionamento junto ao edifício com sanitários de apoio aos banhistas.

Sónia e eu saímos do carro e caminhámos por uma linha de cimento ali construída para facilitar o acesso entre os muitos rochedos que separavam o parque das piscinas. Algumas pessoas já regressavam de mais um dia de lazer.

Já fizera aquele trajecto anteriormente, mas naquele fim de tarde observei melhor o espaço. O caminho de cimento levou-nos às duas piscinas, uma muito grande de adultos e outra pequena de crianças, onde as pessoas desfrutavam da água do mar.

Sónia acenou para um grupo de crianças. Reconheci Clara entre elas. As amiguinhas também acenaram a Sónia. Junto das crianças, estava uma mulher da nossa idade, a qual vim a saber ser a mãe de uma das crianças, a qual tomava conta das pequenas ali na piscina.

Eu cumprimentei-as a seguir a Sónia. Clara pegou na toalha e veio ao encontro da mãe que ficou a conversar com a outra senhora. Curioso com o que havia para lá das piscinas, continuei a andar pelo caminho de cimento que subia por umas escadas de três ou quatro degraus e seguia por entre as rochas.

A cada passo, o som das ondas e a voz das pessoas aumentava. Fui desembocar numa zona de saltos directamente para o mar, onde a ondulação era significativa e nem todos se aventuravam a banhos. Reparei que existia uma marcação feita por boias em frente ao local, uma espécie de escudo de segurança no caso de a corrente ser muito forte e arrastar os banhistas. Olhei para sul e vi que as encostas da ilha, desde ali até quase ao Morro de Castelo Branco eram altas e verdes.

A minha contemplação da paisagem foi suspensa pela voz de Sónia a chamar-me atrás de mim.

─ Pareces hipnotizado. ─ constatou com humor.

─ Paisagem magnífica.

Ela assentiu com a cabeça.

O Sol começava a entrar no mar, quando deixámos as piscinas e voltámos ao parque. Clara despediu-se das amigas e entrou no carro. As outras crianças seguiram juntas para as suas casas ali perto. Eu abri a porta do automóvel, olhei à volta, senti a brisa do mar embater no meu rosto e acreditei que não era difícil ser feliz ali.

IV

 

A casa dos pais de Sónia situava-se perto da estrada principal e tinha uma vista magnífica para o mar. Entre a estrada e a casa existia espaço suficiente para deixar o carro sem atrapalhar os outros veículos que por ali passassem. Logo que passámos o portão, uma escada fazia o acesso à porta principal da casa, a qual estava envolvida por vegetação em ambas as laterais.

Quando entrámos, o Sol já desaparecera e o crepúsculo tomava conta do ambiente exterior. Sónia levou a filha para o andar de cima, onde a pequena iria tomar banho e libertar-se do sal acumulado nos banhos na piscina de água salgada.

A senhora Emília, sua mãe, recebeu-nos com um sorriso generoso, informando que estava a terminar os preparativos para o jantar. Aquele piso da entrada era mais alto que um primeiro andar, em relação à estrada. A casa não tinha uma frente muito grande, mas era mais profunda que o normal. Passei o átrio da entrada, onde umas escadas em caracol davam acesso ao piso superior e por onde seguiram Sónia e Clara. A senhora Emília encaminhou-me pelo arco que dividia o corredor do átrio e entrámos na grande sala de estar e onde se faziam as refeições. Reparei que numa ponta do corredor havia uma porta para a casa de banho e na outra a porta da cozinha.

Na sala, o senhor Alfredo levantou-se da poltrona ao ver-me entrar. Tão simpático quanto a esposa, estendeu-me a mão para me cumprimentar e convidou-me a sentar no outro sofá.

─ Quer beber alguma coisa? ─ ofereceu, dirigindo-se ao bar. A princípio recusei. ─ Tenho aqui um licor da ilha do Pico que é uma delícia.

─ Faço-lhe companhia. ─ aceitei, recebendo um pequeno copo com o líquido.

O senhor Alfredo sentou-se novamente na sua poltrona e perguntou:

─ Está a gostar da nossa ilha?

─ Sim, muito. É um pequeno paraíso.

─ Também concordo. Mas a minha opinião é suspeita. ─ Sorriu com agrado. ─ Talvez um pouco calma para o Ricardo, habituado ao ritmo da capital.

─ É diferente, sem dúvida. ─ concordei, bebendo um pouco do licor. ─ Tem um efeito terapêutico.

─ Recordo-me dos tempos em que vivíamos no continente. Acho que não conseguiria viver lá novamente.

─ Nem ir lá fazer uma visita?

O senhor Alfredo encolheu os ombros, revelando que a ideia de viajar até ao continente para passear não era nada tentadora.

─ Prefiro estar sossegado no meu canto. ─ constatou naturalmente. ─ Já não tenho idade para andar a viajar.

Discordei, mas não fiz qualquer comentário. Eu adorava viajar e esperava não perder esse gosto quando chegasse à idade dele.

Enquanto conversávamos, a senhora Emília colocava os pratos e os talheres na mesa. Ofereci a minha ajuda, mas ela recusou.

─ O Ricardo trabalha em quê? ─ indagou o senhor Alfredo.

─ Sou director numa empresa de estudos e projectos. ─ expliquei, procurando não ser demasiado técnico na descrição. ─ Dirijo a unidade responsável pelos estudos na área oceânica e marinha. ─ Reparei pelo seu rosto que não percebera bem o objectivo do meu trabalho. ─ Vou dar-lhe um exemplo: Quando as empresas querem fazer empreendimentos turísticos, necessitam das ideias dos arquitectos, a avaliação dos engenheiros e da consultoria de profissionais ambientais que certifiquem a viabilidade de construção de uma determinada obra numa zona sem que isso coloque em causa a estabilidade do ecossistema. A nossa empresa trabalha nessa área e é aí que entram os nossos profissionais. ─ O senhor Alfredo ouvia-me com toda a atenção. ─ Quando esses projectos envolvem mar, rios, lagos, lagoas… são os meus consultores que conduzem os estudos.

─ É uma empresa muito grande?

─ Mais ou menos. Temos várias áreas de actuação, sendo a minha ligada ao mar. Tenho cinco equipas de consultores, cada uma com um chefe de equipa e três biólogos marinhos.

─ Coordena vinte pessoas. ─ contabilizou com ar espantado. ─ É um cargo importante.

Eu sorri e encolhi os ombros, desvalorizando essa importância.

─ O Ricardo é um dos quatro directores de uma multinacional. ─ disse Sónia que, entretanto, entrara com a filha na sala. ─ Lidera essas vinte pessoas, mais um sem número de assistentes, secretários, pessoal administrativo. Ele está a simplificar o facto de ser um profissional muito bem‑sucedido na sua área.

O senhor Alfredo olhou para mim como se estivesse a receber o Presidente da República.

─ Continuo a ser o mesmo rapazinho que o senhor Alfredo conheceu. ─ retorqui.

Nesse instante, a senhora Emília entrou na sala com uma panela nas mãos e chamou todos para a mesa.

A mesa da sala era redonda, tinha uma toalha dourada a cobri-la e cinco pratos brancos a marcar os lugares. Deixei que todos se antecipassem a mim, sentando-me na cadeira que ficara vaga. Fiquei entre Sónia e o seu pai.

O jantar começou com um caldo de peixe bem apetitoso.

─ A Sónia fala muito em si. ─ revelou o senhor Alfredo, quase de uma forma que deixou a filha pouco à vontade. ─ Aliás, ela tem muito orgulho em si.

Sorri a uma Sónia corada.

O prato seguinte foi um belo peixe assado e batatas com um tempero divinal. O senhor Alfredo trouxe um vinho do Pico para acompanhar a refeição.

─ Que tal foi o vosso passeio? ─ inquiriu a senhora Emília.

─ Fomos passear à volta da Caldeira. ─ respondeu Sónia. ─ Pena termos apanhado nevoeiro.

─ Mas foi muito bom. ─ disse eu. ─ Gostei muito. E o nevoeiro nem atrapalhou nada.

O pai de Sónia encheu-me de novo o copo e disse:

─ Nos Açores é assim, meu amigo, o nevoeiro vai e vem num abrir e fechar de olhos.

Mastiguei um pedaço de peixe e bebi mais um golo de vinho. Depois, olhei para Sónia e relatei:

─ Comentava há pouco com o teu pai que podiam ir ao continente matar saudades.

─ Por vezes, falo nisso. ─ confessou a senhora Emília. ─ Já temos pensado nisso, mas o Alfredo não quer.

─ Ainda se fosse para ver um jogo do Porto. ─ sugeriu o marido. ─ Isso ainda me fazia atravessar o mar de avião. ─ Olhou para mim. ─ O meu amigo é do F. C. Porto?

─ Não.

─ Ó diacho! ─ exclamou, arregalando os olhos. ─ Não me diga que é lampião?!

─ Não. ─ voltei a negar com um sorriso. ─ Não sou de nenhum deles, nem de qualquer outro. O futebol passa-me ao lado.

Alfredo pareceu decepcionado. Acabou por dizer:

─ Bom… Antes isso que ser lampião.

─ Ó pai! ─ reclamou Sónia. ─ Cada um tem o clube que quiser.

─ Está bem. ─ concordou. ─ Mas, o Ricardo é tão bom moço que seria uma pena ser do Benfica. ─ Voltou a direccionar o olhar para mim. ─ Só há uma ocasião em que não sou adepto do Porto. É quando jogam com o meu Sporting.

─ Sporting? ─ interroguei. ─ Então, o senhor não é adepto do Porto?

─ Estou a falar no Sporting da Horta, a nossa equipa de andebol. ─ explicou, enchendo o copo dele, o de Emília, o de Sónia e o meu. ─ São uma grande equipa. Estão na primeira divisão.

Confesso que pouco me interessavam os assuntos de desporto. Porém, o senhor Alfredo falava de uma forma tão apaixonada que o escutei com atenção.

Quando terminou a sua refeição, Clara levantou-se da mesa e sentou-se no sofá a ver televisão.

─ E os seus pais como estão? ─ perguntou a senhora Emília.

─ Estão bem.

─ Ainda vivem no mesmo sítio? ─ inquiriu o marido, recordando o local onde a minha família vivia quando se mudou para a cidade.

─ Não. Reformaram-se há dois anos e regressaram à aldeia. Já tinham vontade de o fazer desde que eu fui estudar para o Algarve, mas a vida profissional obrigou-os a permanecer na cidade. Agora, sei que estão felizes por estar de novo na terra onde nasceram.

─ E o Ricardo? Sente saudades da aldeia? ─ questionou a mãe de Sónia, pouco crente que alguém como eu pudesse sentir qualquer saudosismo por uma pequena aldeia perdida no interior do país.

─ Para ser sincero, não. Vivi lá até aos nove ou dez anos, mas não sinto uma saudade que me levasse a voltar lá. Só regresso de tempos a tempos, quando o trabalho permite, para visitar os meus pais.

O senhor Alfredo olhou para a filha e indagou:

─ Onde estás a pensar levar o Ricardo amanhã?

─ Ainda não sei. Há tanta coisa que lhe quero mostrar.

O pai concordou, pois a sua ilha era para ele o local mais bonito do Mundo e merecia ser apreciado ao milímetro. Sugeriu-me uma visita a todas as localidades costeiras, aos parques e piscinas naturais, à cidade da Horta com passagem pelos edifícios de governação e culturais, a cada uma das caldeiras… Enfim, por sua vontade, eu ficaria um ano inteiro no Faial.

─ Também quero ir ao Pico. ─ confessei, recebendo um olhar de desdém dele.

─ O Pico é a montanha e mais nada.

─ Não digas isso, pai. O Pico é uma ilha bem bonita.

─ Ricardo! Quando lá for, faça um passeio pelas vinhas. ─ sugeriu a senhora Emília. ─ Olhe que vale bem a pena. ─ Virou o olhar para o tecto, como se procurasse recordar algo. ─ O Pico é um local histórico em relação à caça à baleia. O museu do baleeiro é um bom local a visitar para quem gosta de passeios mais culturais.

Agradeci a informação, apesar de não ter qualquer intenção de visitar um museu que consagra uma actividade tão bizarra e selvática quanto a caça à baleia.

─ Se ficasses mais tempo, levava-te a São Jorge. ─ disse Sónia. ─ Pelo teu gosto pela natureza, acho que ias adorar visitar as fajãs.

─ Meu caro. ─ voltou a interromper Alfredo. ─ Você vê a fajã de Santo Cristo e está tudo visto. São todas iguais.

 ─ Irra, homem! ─ barafustou a esposa. ─ Parece que só o Faial é que tem coisas bonitas.

─ O pai é bairrista. ─ justificou Sónia, sorrindo-me. ─ Bairrista com a sua ilha.

─ São certamente todas bem bonitas. ─ concluí, recebendo um acenar concordante de todos.

Entretanto, com o prolongar da nossa conversa, Clara adormecera no sofá.

─ Pobrezinha! ─ exclamou a avó. ─ Está ferrada no sono. Se quiseres, podes deixá-la dormir cá esta noite.

Sónia hesitou perante essa ideia.

─ Não vale a pena estar a espertá-la para ir para casa. ─ sugeriu o avô.

Sónia acabou por concordar. Com carinho, acordou a filha e perguntou-lhe se ela queria ficar em casa dos avós nessa noite. Clara, ensonada, abanou a cabeça afirmativamente. Mãe e avó levaram-na para o andar de cima, assim que ela se despediu do avô e de mim.

─ A Sónia é muito apegada à filha. ─ informou o seu pai, quando regressámos aos sofás. ─ Então agora com a separação, ainda mais.

─ É normal.

O senhor Alfredo encolheu os ombros.

─ Já temos dito à Sónia para a deixar cá durante as férias, sempre escusava de andar para trás e para a frente, de manhã e à tarde, entre o Varadouro e a Horta. Mas, a Sónia sente que é sua obrigação cuidar da filha.

Foi a minha vez de encolher os ombros, não tinha uma opinião acerca daquele assunto, eu não tinha filhos, por isso, sentido de obrigação a cuidar de um filho era algo abstrato.

Alguns minutos mais tarde, Sónia e a mãe regressaram do piso superior. Desciam as escadas devagar, falando sobre Clara. Ao entrarem na sala, Sónia olhou para mim e disse:

─ Vamos andando?

Eu concordei e levantei-me do sofá, despedindo-me do simpático casal que me recebera para jantar. Sónia despediu‑se dos pais e acompanhou-me na direcção do carro.

Só quando partimos no automóvel é que o senhor Alfredo e a senhora Emília retornaram ao interior da casa. Ficaram a acenar-nos até seguirmos viagem para a Horta.

─ Não me parecias com muita vontade de deixar a Clarinha em casa dos teus pais.

─ Não estou habituada a que a minha filha durma fora de casa.

─ Está com os avós, é como se estivesse contigo.

─ Sim, eu sei. Mas… Como explicar? É uma coisa de mãe.

A estrada estava deserta. Não havia um carro a cruzar‑se connosco ou na mesma direcção que nós.

─ Tive uma ideia. ─ disse ela. ─ Como amanhã não tenho de vir ao Varadouro logo de manhã, podíamos ir ao Pico.

─ Por mim, tudo bem.

─ Estás preparado para escalar a montanha?

─ É assim tão difícil?

─ Não é fácil.

─ Se tu consegues, eu também consigo.

─ Não sei, Tubbs. O Crockett sempre foi mais forte que o Tubbs. ─ constatou ela num tom brincalhão.

─ Tretas. ─ ripostei. ─ Se uma mulher consegue subir, eu também consigo.

─ Ui… Que comentário tão machista.

Olhei para ela e sorri-lhe, dizendo:

─ Não sou machista, mas sou mais forte que tu.

Sónia abanou a cabeça, dando-se por vencida nos argumentos daquela conversa. Continuou a sua condução tranquila pela estrada da ilha até alcançar a entrada da cidade da Horta e o bairro onde tinha a sua casa.

─ Então, está combinado. ─ insistiu quando nos despedimos ao chegar a casa. ─ Acordamos cedo e partimos para a nova aventura de Crockett e Tubbs, a subida ao cume do Pico.

Dei-lhe um beijo no rosto e concordei.

V

 

A minha atenção nas recordações dos momentos passados com Sónia foi quebrada pelas palavras do padre, ao referir o sofrimento da perda de um ente querido.

A interrupção das memórias fizera-me voltar à realidade, ao facto de estar presente no funeral que decorria naquela manhã no cemitério da Horta. Olhei para o caixão fechado que aguardava as últimas palavras do padre para ser depositado na sua última morada. Clara, a filha do corpo que se iria sepultar, permanecia petrificada a olhar para o caixão, deixando apenas escapar as lágrimas vagarosas que lhe escorriam no rosto.

Tirando um ou outro ruído da cidade, a sonoridade do local era partilhada entre a voz do padre e o som dos passarinhos que por ali voavam. A tristeza era comum em todos os rostos que ali permaneciam na despedida.

A minha atenção foi dirigida para a ilha do Pico e para o cume da montanha que começava a aparecer por entre a cobertura de nuvens que habitualmente a cobria. Olhei para a imponência do monte e os meus pensamentos voltaram às recordações, mais precisamente ao dia em que com a mãe de Clara, eu subi ao topo do ponto mais alto de Portugal.

 

 

 

O Sol brilhava num laranja matinal, dando ao amanhecer um colorido característico, onde a brisa fresca soprava fraca. Era raro assistir ao nascer do dia, mas naquela manhã Sónia quisera partir para a ilha vizinha bem cedo, de forma a aproveitarmos bem o dia.

O carro ficara estacionado na tal rotunda de forma esquisita, em frente ao porto. A nossa primeira tarefa foi entrar no pequeno edifício térreo onde se compravam os bilhetes e onde as pessoas aguardavam a hora de embarcar no catamaran que ligava as duas ilhas.

Enquanto Sónia se dirigiu ao balcão para adquirir os ingressos, eu fiquei a observar o local. A minha atenção centrou-se durante alguns instantes num quadro com um excerto de um texto do livro Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio, pendurado na parede.

Com os dois bilhetes na mão, Sónia regressou até mim e informou que o barco partiria daí a quinze minutos e sugeriu que fossemos até ao exterior, pois queria mostrar-me onde trabalhava.

A empresa de excursões na qual ela era guia tinha uma espécie de loja ao lado daquele edifício, onde os turistas compravam os bilhetes e se reuniam para formar os grupos de observação. Ao sairmos da sala de espera para embarque, Sónia reparou que a porta estava aberta, sinal de que já alguém estava a trabalhar lá.

Sónia convidou-me a ir até lá.

Antes de alcançarmos a porta, um homem saiu do interior. Não era muito alto, para não dizer que era baixo, vestia uma t-shirt e uns calções, caminhando com as pernas arqueadas sobre uns chinelos de estilo havaiano. Usava o cabelo muito comprido, despenteado numa mistura de louro com grisalho, o qual prendia com uma fita vermelha em volta da cabeça. Usava barba e bigode nos mesmos tons do cabelo. A pele era bronzeada e bastante marcada pela exposição solar e aos ventos no mar.

Ao ver Sónia, este sorriu e acenou-lhe. Ela chamou-o pelo nome, mas para ser sincero já não me recordo qual era. Só parámos junto dele, o qual me cumprimentou com simpatia, após a apresentação de Sónia.

─ Então você é que é o famoso amigo que vinha visitar a Sónia. ─ disse ele, revelando que a minha vinda já era assunto diário por ali, muito antes da minha chegada. Ele olhou para Sónia, alterando o seu semblante para um ar mais preocupado. ─ E tu como estás, pequena?

Sónia encolheu os ombros, denotando que o seu estado de espírito não se alterara muito. Eu ouvia-os a falar, mas observava o interior da loja, onde uma pequena secretária fazia de balcão, num espaço rodeado de prateleiras com artigos para vender aos turistas, os quais iam desde as camisolas com desenhos de golfinhos e baleias, até postais desses mamíferos no mar ou paisagens da ilha, porta-chaves, pins, enfim… Um sem número de artigos sempre com a alusão aos Açores e à fauna marítima.

─ Sónia, sei que estás de férias, mas amanhã já temos muitas reservas. ─ informou o patrão dela. ─ Dava-me jeito se pudesses vir cá dar uma ajuda.

─ Claro que sim.

Ele olhou para mim, esboçando um sorriso em forma de pedido de desculpa. Eu correspondi ao sorriso e disse que não tinha importância, pois iria aproveitar para conhecer a cidade.

─ Venha numa das excursões. ─ convidou.

Eu assenti afirmativamente com a cabeça.

─ Reserve-lhe um lugar no meu barco. Mas à tarde. ─ pediu Sónia. ─ O Ricardo não é muito de aventuras logo pela manhã.

─ Nota-se. ─ retorqui, lembrando que era bem cedo e estávamos de partida para escalar a maior montanha de Portugal.

Não nos demorámos por ali muito mais tempo. Mais cinco minutos e estaríamos dentro do barco que nos levaria ao outro lado do canal.

Sónia e eu envergávamos o mesmo equipamento que no dia anterior, bem preparados para caminhar num terreno agreste como são os trilhos da montanha. Para além disso, vestíamos casacos por causa da brisa fresca da manhã. As nossas mochilas levavam alimentos e bastante água. Para uma aventura daquelas, no mínimo, cada elemento deve levar cerca de dois litros de água.

Apesar de ser cedo, já havia muita gente para embarcar. Os elementos da tripulação do catamaran colocaram as pontes metálicas que permitiam aos passageiros passar do porto para a embarcação. O barco era igual aos que fazem a travessia do tejo, não os cacilheiros, mas sim os azuis e brancos que ligam o Barreiro ao Terreiro do Paço.

Nós subimos a bordo e Sónia conduziu-me ao piso superior de forma a ter uma boa visão da viagem, no terraço da parte traseira do barco.

As pessoas continuaram a embarcar e a espalharem‑se pelos espaços vagos no terraço ou no interior. Três outros tripulantes arrumavam mercadorias e bagagens na proa.

Olhei para a ilha do Pico, o Sol subia lentamente à sua esquerda e o vento soprava com alguma intensidade. Retirei a máquina fotográfica da mochila e preparei-me para registar mais alguns pormenores paisagísticos.

Começava a ser usual, puxar Sónia para mim e fotografar-nos lado a lado. Nem todas as fotos saiam perfeitas, algumas ficavam mesmo tortas, mas todas revelavam a nossa boa disposição e amizade.

Após o aviso estridente da embarcação, esta começou a mover-se de forma a afastar-se do cais. Primeiro de forma lenta, depois mais depressa, a nossa travessia começou. Enquanto navegou dentro do porto, a ondulação era quase nula. Porém, ao deixar a protecção do extenso pontão, a ondulação fez-se sentir com maior intensidade.

A travessia do canal demorou cerca de quinze minutos, tempo suficiente para fotografar diversos planos da cidade da Horta iluminada pelo Sol da manhã, da ilha do Faial, do mar, da ilha do Pico e por fim da Madalena. Entre todas estas paisagens, mais umas quantas fotos da minha modelo preferida.

Com a aproximação ao porto da Madalena, o catamaran começou a reduzir a velocidade para entrar e depois manobrar para encostar ao cais.

A Madalena era uma vila ainda mais tranquila que a Horta. Afastámo-nos do barco e caminhámos para a saída do cais, atravessando um amplo parque de estacionamento automóvel. Enquanto caminhava, ouvia a música vinda das televisões dos bares em funcionamento, pequenos cafés que formavam uma linha ao longo do parque. Espreitei para o interior de um deles e constatei que a música era de um teledisco que passava no ecrã de uma televisão sintonizada no canal VH1.

Apesar de o nosso primeiro objectivo ali ser o consumo de um café, não parámos em nenhum daqueles espaços, optando por seguir para o interior da vila, segundo sugestão de Sónia.

Ao fim de uns duzentos metros, parámos na esplanada do café na praça central da vila. Tal como no Faial, o ritmo da vida das pessoas no Pico era igualmente calmo. E mesmo cedo, já muitas andavam pela rua.

Em frente à praça, uma linha de táxis aguardava clientela. No momento em que observava os carros, o funcionário do estabelecimento veio tomar nota do nosso pedido.

─ Dois cafés. ─ pedi.

Em frente a mim, Sónia olhava para os veículos de cor creme, quando de súbito levantou o braço e chamou:

─ Tio Zé!

Olhei para o outro lado da rua e vi um senhor forte, aparentando ter entre cinquenta e sessenta anos, corresponder ao aceno e a dirigir-se a nós.

O homem tinha um rosto bem-disposto, usava óculos e o pouco cabelo estava penteado ao sabor do vento. Aproximou-se de Sónia e ambos se cumprimentaram.

─ Este é o meu tio Zé. ─ apresentou ela.

─ José Costa. ─ disse ele, estendendo-me a mão.

─ Ricardo. ─ retorqui, apertando-a.

─ O Ricardo é o meu grande amigo de infância. ─ relatou Sónia, avivando a memória do tio que com certeza já teria ouvido falar muito de mim.

─ O famoso Ricardo do continente. ─ concluiu com um sorriso genuíno. ─ A Sónia sempre falou muito em si.

─ O tio Zé é taxista aqui na ilha. ─ explicou ela, evitando que o tio aprofundasse mais o relato de como ela falava orgulhosamente de mim.

─ Vieram conhecer a Madalena?

─ Viemos subir o Pico. ─ informou Sónia.

O senhor Costa arregalou os olhos, denunciando que não era um passeio fácil. Sempre bem-disposto, ofereceu-se logo para nos levar.

Sónia aceitou a oferta com a condição de pagar a viagem. Só que o tio recusou e até se mostrou ofendido com a ideia.

─ Mas enquanto nos leva, está a perder turistas para levar lá acima. ─ lembrou Sónia.

─ Não te preocupes. ─ tornou a recusar. ─ Ora que disparate, cobrar a viagem à minha sobrinha.

Sem perder mais tempo, pagámos os cafés e acompanhámo-lo ao seu táxi. Colocámos as mochilas no porta-bagagem e partimos para o início da escalada.

Nativo da ilha e profissional do transporte de turistas pela sua terra, o senhor José Costa conduziu o seu táxi pelas ruas da Madalena até deixar a vila para trás. A partir daí, mais umas curvas e a estrada resumiu-se a uma linha recta que nos levaria quase ao coração da ilha, a uma altitude de mil e duzentos metros.

A estrada era boa, mas tinha várias linhas de cancelas por causa do gado, as quais cortavam a estrada com umas lombas acentuadas. Como o tio de Sónia não fazia questão de abrandar nesses pormenores, cada passagem era um impacto desagradável.

Conforme subíamos, sentia os ouvidos a estalar, resultante da subida de altitude em pouco tempo. Olhei pela janela do carro e vi o Faial cada vez mais um pedaço de terra abstracto sobre o mar.

A estrada terminou ao lado de um edifício de aspecto recente, ao qual davam o nome de Base, o local onde tinha início o percurso de subida.

O senhor Costa parou o carro perto da escadaria de acesso. Nós saímos do carro e retirámos as mochilas da bagageira. O vento era mais intenso ali. O tio de Sónia desejou-nos uma boa aventura e disse que lhe ligasse quando regressássemos ao edifício, pois ele viria buscar-nos e levar-nos de volta à Madalena.

Sónia não queria estar a incomodá-lo, mas ele disse que ficaria aborrecido com ela se não o fizesse.

Com as mochilas às costas, subimos as escadas até à porta do edifício. O pequeno átrio de entrada dava acesso a um bar à direita e a uma sala à esquerda. Em frente, uma escadaria para os lavabos.

Nós virámos para a sala, um espaço amplo com uma mesa e um bombeiro, o qual anotava num caderno os dados dos candidatos a montanhistas.

Nesse instante, um grupo de turistas estrangeiros entrou pela porta do lado oposto da sala, encabeçados por um guia.

─ Já voltaram? ─ interroguei a Sónia.

─ Sim. Mas estes devem ter passado a noite na montanha.

Muitos turistas optavam por subir a montanha à tarde, passar a noite acampados no cume para observarem o pôr e o nascer do Sol, descendo depois pela manhã.

Sónia dirigiu-se ao bombeiro. Eu observei as fotos espalhadas pela parede e os dados relativos ao trilho, o qual começava nos mil e duzentos metros de altitude e terminava nos dois mil trezentos e cinquenta e um metros de altitude, ou seja, no cume do Piquinho. O tempo que demoraria a subida e a descida variava de pessoa para pessoa.

─ No outro dia esteve cá aquele alpinista português famoso. ─ relatou o bombeiro, quando lhe pedi uma estimativa de tempo. ─ Parece que levou pouco mais de meia hora a chegar lá acima. Porém, conte com duas a três horas em média para subir e outras tantas para descer.

Sónia preencheu os nossos dados no caderno, juntamente com os números dos telemóveis. Era mais uma medida de segurança para os turistas, uma vez que assim os bombeiros responsáveis pela segurança do local sabiam quantas pessoas estavam no trilho, quem partia, quem chegava e quem deveria ter chegado e ainda não o fizera. Neste último caso, para quem não chegava até uma certa hora era lançado o alerta para a sua busca.

A maior parte dos turistas seguem em grupos e liderados por um guia de montanha. Nós preferimos um passeio a dois, ao nosso ritmo.

Cumpridos todos os procedimentos, abri a porta por onde os turistas haviam chegado e saímos do edifício, seguindo por uns vinte degraus que subiam para um piso superior, onde começava o trilho de montanha. Parecia que estávamos a sair de uma cave para um pátio de um jardim.

Mesmo com muita vegetação, o trilho estava bem demarcado e notava-se que havia algum cuidado para que as marcações fossem visíveis. Reparei que mais acima seguia um grupo que deveria ter partido uns dez minutos antes de nós.

Caminhámos com calma e em silêncio durante uns vinte minutos. A subida não era complicada, mas suficientemente desgastante para não desperdiçar fôlego a conversar. O trilho levou-nos a uma clareira com uma saída de fumo do vulcão, uma pequena chaminé que servia como ponto característico do caminho.

Fotografei o local, bem como a distraída Sónia.

─ Não vais começar com isso. ─ protestou, vendo-se novamente na mira da lente.

─ Anda cá. Vamos tirar uma, juntos.

Quando nos preparámos para retomar a subida, um grupo de jovens que vinha a descer perguntou-nos se faltava muito para chegar à Base.

─ Uns quinze a vinte minutos. ─ respondeu Sónia.

─ E para subir? ─ indaguei.

O rapaz que arregalou os olhos, observou o relógio e respondeu:

─ Nós estamos a descer há quase quatro horas.

Não se pode dizer que a informação nos motivava a subir, mas jamais desistiríamos do nosso objectivo para aquele dia.

Sempre que olhava para cima, parecia que trilho de montanha se perdia na vegetação. Não fosse a crença de que todo ele estaria bem marcado e temeria chegar a meio da escalada completamente perdido. Conforme subíamos, continuávamos a cruzar-nos com turistas que desciam, uns com calma e a desfrutar do passeio, outros bem equipados com um ritmo atlético. Muitos apoiavam-se em paus compridos, tipo cajado do pastor, para descer. De facto, esse utensílio é supérfluo para subir, mas muito prático para auxiliar na descida.

Confesso que nunca mais perguntei se faltava muito, pois a resposta não seria nada motivante.

Apesar de quase todo o trilho poder ser feito como caminhada, havia muitos sítios onde optei por escalar à força de pernas e braços. Os guias de montanha olhavam sempre de lado para nós, pois não lhes agradava a ideia de aventureiros que prescindiam dos seus serviços para serem conduzidos pela montanha.

Cada vez que olhava para cima, dava-me a sensação que estava perto do topo. No entanto, rapidamente descobria que aquela saliência era apenas mais um nível, a que se seguiria outro e outro e outro.

Ao fim de uma hora a escalar, Sónia e eu parámos numa rocha fora do trilho para descansar um pouco. Confesso que estava a ser mais duro que o esperado.

Tirámos as mochilas das costas e ficámos a olhar a paisagem. Um longo manto branco cobria a paisagem lá em baixo, uma vez que já estávamos numa altitude acima das nuvens. Recordo-me que numa pequena abertura daquela infindável passadeira branca se via uma ponta da ilha do Faial, lá muito em baixo.

Sónia estava tão cansada quanto eu. Retirou uma garrafa de água e bebeu alguns golos. Eu fiz o mesmo.

─ Isto é lindo! ─ afirmei, observando a paisagem. ─ Aliás, tudo aqui é lindo.

Sónia assentiu.

─ Já podias ter conhecido tudo isto há muito tempo. ─ Eu não me pronunciei. Ela olhou para mim. ─ Porque é que nunca me vieste visitar em todos estes anos? Convidei-te tantas vezes.

─ Nunca houve oportunidade.

─ Tretas, Tubbs. Não me digas que ao longo dos últimos dez ou quinze anos nunca tiveste uns dias de férias.

─ Sim, tive. ─ confirmei, pensando que nunca a visitara porque não suportaria vê-la feliz ao lado de outro homem. ─ Tu também nunca me visitaste no continente.

─ É diferente. Tu viajaste pelo Mundo inteiro. Eu não voltei a sair dos Açores.

─ Sempre que o fiz foi em trabalho.

─ Ok, Tubbs, já percebi. ─ disse com lamento. ─ Nunca mereci um desvio.

─ Não digas isso, Sónia, estás a ser injusta. Quando precisaste mesmo de mim, eu meti-me num avião e aqui estou.

─ Sim, é verdade. Desculpa! Mas, sempre senti que te afastaste desde…

─ Desde?

─ Deixa lá. Parvoíce minha. ─ Sorriu e abraçou-me. ─ O importante é que agora estás aqui comigo.

Findo o abraço, voltámos a carregar as mochilas e prosseguimos a subida.

Quanto mais subíamos, mais cansados nos sentíamos, daí que tivéssemos a preocupação de dosear o esforço, pois ainda havia muito para escalar.

Na paragem seguinte, quando voltámos a encontrar um espaço para descansar sem atrapalhar quem avançava pelo trilho, Sónia questionou:

─ Não te sentes sozinho?

─ Como assim?

─ Tu vives sozinho. ─ disse ela, explicando o objectivo da questão. ─ Consegues lidar bem com isso?

─ Sim. Desde que saí da Universidade e arranjei o primeiro emprego que vivo sozinho. Nos tempos de estudante, se bem te lembras de te contar, eu partilhava um apartamento com dois colegas. Depois, não tive outra solução que viver sozinho.

─ E não te custou?

─ Sim, claro que custou. ─ confirmei, recordando os primeiros dias solitário. ─ Mas depois habituei-me. E nunca mais partilhei casa com ninguém.

─ Só com as tuas namoradas.

─ No máximo, passavam lá a noite, mais nada. ─ corrigi como se ter uma namorada a viver comigo fosse muito errado.

─ Para mim foi o contrário, nunca vivi sozinha. E isso está a custar-me muito com o divórcio. É por isso que não encaro com agrado que a Clara fique em casa dos avós.

─ Compreendo. Mas desta vez, eu estou cá, não estás sozinha.

─ Sim, tens razão, Tubbs.

─ Vá, Crockett, não penses nisso.

Partilhámos a garrafa de água e voltámos ao percurso.

Duas horas mais tarde, alcançámos o topo da montanha, uma cratera enorme onde nascia o Piquinho. Em todo esse tempo foram raras as palavras trocadas entre nós.

Fiquei estupefacto com paisagem, a cratera parecia solo lunar, sem vida e completamente rochosa. Só com muita atenção conseguíamos vislumbrar pequenos arbustos que sobreviviam às condições austeras do local.

O Piquinho, que parecia uma montanha pequenina, revelava a sua grandeza quando observávamos as pessoas as subir e a descer, pequenos pontos a deslocarem-se entre as rochas.

Se já achara a subida até ali tão agreste, comecei a pensar se seria boa ideia escalar até ao cume, até aos famosos dois mil trezentos e cinquenta e um metros.

Sónia sugeriu que fizéssemos o piquenique por ali, sobre uma rocha. O vento soprava fraco e o Sol brilhava forte e quente.

Bebemos mais que comemos, uma vez que o corpo pedia mais hidratação. Não conseguia deixar de olhar para o que faltava da escalada sem sentir alguma hesitação. Porém, continuava a ver pessoas a subir e a descer, daí que jamais me perdoaria ter chegado ali e não ir até ao topo.

─ Sou mais de andar na água que a fazer escalada. ─ constatei, não escondendo o cansaço. ─ Isto é mesmo uma aventura durinha.

─ Não é como caminhar à volta da Caldeira. ─ concluiu Sónia. ─ Mas também não é nada que o Tubbs e o Crockett não ultrapassem com uma perna às costas.

─ Admiro o teu optimismo. ─ retorqui, bebendo mais um pouco de água.

Sónia também bebeu e recordou:

─ Tu sempre gostaste muito de mar, mas terias seguido a profissão que seguiste se não fosse eu?

─ Não sei. É certo que tu me influenciaste a seguir Biologia Marinha, pois eu nem sabia muito bem o que queria fazer profissionalmente e estava mais preocupado em continuar a estudar contigo. No entanto, acabei por me sair bem e gosto verdadeiramente do que faço.

─ Acabaste por ser mais bem-sucedido que eu.

Eu assenti com a cabeça, mas expliquei:

─ Tu finalizaste o curso e procuraste um emprego que te desse estabilidade para formares uma família, casar, ter filhos… Eu finalizei o curso e parti à aventura. Não cheguei onde cheguei por mérito de notas, mas sim por ter feito currículo um pouco por todo o Mundo.

─ Sim, tens razão. Quando casei, limitei as minhas opções de carreira.

─ Não se pode ter tudo. ─ constatei com um sorriso.

Com um semblante desalentado, Sónia questionou:

─ Terá valido a pena? Agora que o meu casamento acabou, terá valido a pena ter apostado mais na família que no trabalho?

Toquei-lhe no queixo e virei o seu rosto para mim.

─ Quando tiveres essas dúvidas, pensa na tua filha. Acho que isso responde à tua questão.

Sónia sorriu e deu-me um beijo no rosto.

─ E a tua carreira? Tens projectos novos?

A minha atenção foi desviada para um avião que sobrevoava a montanha, fazendo os motores rugir e quebrando a tranquilidade do local. Acabara de levantar do Faial. Quando o barulho se desvaneceu, eu respondi:

─ Antes de vir, tive um convite para um novo projecto no estrangeiro. A Administração da minha empresa quer que eu chefie a equipa de consultores que vai acompanhar um novo complexo turístico em Singapura, um resort. É um projecto enorme, ligado ao mar e à vida marinha da região.

Era o típico projecto que me aliciava e me faria partir de imediato para o outro lado do Mundo.

─ Quando partes?

─ Ainda não dei uma resposta, se aceito ou não. ─ expliquei, provocando alguma surpresa nela.

─ Fico muito feliz por ti. Mas, não percebo porque não aceitaste logo.

─ Gosto de pensar bem. E como recebi o convite em vésperas de vir para cá, pedi que me deixassem pensar até regressar.

Aquela resposta não era verdadeira. O convite acontecera em vésperas de partir, só que sabendo que Sónia se estava a divorciar, o meu subconsciente levou-me a ponderar bem. Não queria partir para o outro lado do Mundo, havendo a possibilidade de me reaproximar da mulher da minha vida.

─ Acho que devias aceitar já! ─ afirmou Sónia. ─ Com oportunidades assim, não se pode hesitar Tubbs. Não tens nada que te prenda cá.

Não tinha, mas queria ter. Queria que ela fosse a razão de eu não ir para lá. Porém, Sónia estava tão distante dessa hipótese que se tornou obvio que algo entre nós, para além da amizade, só existia nas fantasias da minha mente.

Findo o piquenique, não nos demorámos mais e iniciámos a última etapa da escalada.

Apesar de terem decorrido vários anos, desde que Sónia fizera aquele percurso, ela conhecia bem o caminho. Houve alturas em que pensei que só conseguiríamos chegar lá acima com o auxílio de cordas, mas Sónia encontrava sempre o trilho certo.

─ Não te afastes muito, Crockett, senão perco-me aqui.

Ao fim de vinte minutos, constatei que todo o esforço, todo o cansaço, todas as dificuldades tinham valido a pena para alcançar o ponto mais alto de Portugal. A vista infindável era espantosa, formidável, quase indescritível.

O cume do Piquinho era um espaço relativamente pequeno. No entanto, para além de nós só lá estavam mais quatro pessoas. O chão tinha uma base de cimento com um pequeno poste que assinalava o ponto máximo da montanha. Sónia e eu colocámo-nos ao lado do poste e eu fotografei-nos lado a lado, abraçados e felizes.

Permanecemos ali mais alguns minutos, o tempo suficiente para eu fotografar a paisagem ao pormenor.

Aquele local era tão único e tão belo que nem tinha vontade de descer. Porém, novos montanhistas alcançaram o topo e nós optámos por começar a descer.

Quase custa a acreditar, mas a descida foi mais dolorosa que a subida. Raramente parámos, uma vez que parecia que se o fizéssemos, isso nos custaria um maior esforço para reatar a caminhada. O Sol forte fustigou-nos ao longo do regresso do Piquinho e assim continuou por mais uma hora na descida da montanha. Era talvez o pico do calor, daí que não nos cruzássemos com tantas pessoas como acontecera na ida.

O solo tornara-se escorregadio devido ao cascalho solto, onde uma desatenção mínima nos faria ir de rabo ao chão, se não fosse uma queda pior. Um trilho que nem era muito complicado a subir, tornava-se muito desconfortável a descer.

As pequenas paragens resumiam-se a compensar a perda de líquidos. Sentia a pele queimada pelo Sol. Por vezes, as nuvens tapavam-no e isso atenuava a sensação de queimadura, só que aumentava a brisa fresca e o desconforto do Sol dava lugar ao desconforto do frio.

Durante hora e meia não vimos vivalma. Cheguei a pensar que só nós é que ali estávamos. Deveria ter existido um longo período em que ninguém se aventurara a escalar.

Ao fim de quatro horas, desde que saímos do cume, avistámos a entrada da Base. Caminhei os últimos metros com dificuldade, pois sentia os pés doridos. Desde que dali tínhamos partido, haviam passado mais de oito horas.

Quando entrámos no edifício, parámos junto ao bombeiro de serviço para que ele anotasse a nossa chegada. De seguida, fomos para o bar, onde comprámos mais água, pois a nossa acabara uma hora antes de terminar a descida.

Enquanto recuperávamos do esforço da aventura daquele dia e repunhamos os níveis de água dos nossos corpos, Sónia telefonou ao tio, conforme havia ficado combinado.

─ Ele diz que dentro de quinze minutos está cá. ─ informou ela, logo que desligou a chamada.

Eu olhei para os altos vidros em volta daquele espaço e disse:

─ Já viste como o clima mudou? Está um nevoeiro que não se vê nada lá fora.

Em poucos minutos, o fim de tarde solarengo e ameno dera lugar a um nevoeiro cerrado. Quando deixámos a Base e fomos para o táxi do tio Zé, a temperatura baixara consideravelmente, fazendo-nos sentir frio.

─ Então? Que tal a subida? ─ questionou o tio de Sónia, sempre alegre, conduzindo pelo nevoeiro sem preocupação, conhecendo a estrada como a palma das suas mãos.

─ Cansativa. ─ respondi, procurando não pensar nas dores que trazia nos músculos.

─ O amigo não está habituado.

Conforme a estrada nos trazia a uma altitude mais baixa, o nevoeiro dissipou-se.

─ Querem jantar lá em casa? ─ convidou ele, olhando para Sónia pelo espelho retrovisor.

─ Fica para outra vez. ─ recusou a sobrinha. ─ Temos de apanhar o barco. Ainda vou buscar a Clarinha a casa dos meus pais antes de jantar.

─ Está bem, Sónia. ─ concordou com lamento. ─ Mas, quando puderes, vem cá jantar comigo e com a tia. E traz a Clarinha. E o amigo, se ainda cá estiver, venha também. É bem-vindo a nossa casa.

─ Obrigado!

─ Se fosse noutra altura, até o levava a ver um jogo do nosso clube aqui da terra. Sabe? É uma das melhores equipas de hóquei do Mundo.

Encolhi os ombros, não fazendo a mínima ideia de que clube falava ele.

─ O tio Zé é um adepto ferranho do Candelária. ─ explicou Sónia. Eu devo ter mostrado o meu olhar completamente ignorante. ─ É o clube aqui da Madalena.

─ Até o Benfica e o Porto tremem quando aqui vêm jogar. ─ relatou o tio com entusiasmo.

Ao entrar na vila, o ambiente perdera muita da claridade do Sol poente, deixando as nuvens transparecer uma falsa ameaça de chuva. O tio Zé parou o táxi junto ao porto e despediu-se de nós, reiterando o convite para que fossemos lá jantar.

Sónia voltou a agradecer e, carregando as mochilas às costas, despedimo-nos daquele simpático senhor e caminhámos para a zona de embarque do catamaran que nos transportaria de regresso ao Faial.

Faltavam quinze minutos para o barco chegar e ainda não havia muita gente para embarcar. Passei o tempo a tirar mais algumas fotografias do ambiente crepuscular da vila e a Sónia que estava tão cansada que nem se esforçava em reclamar.

Quando o barco chegou, os passageiros que vinham do Faial deram lugar aos que queriam partir do Pico.

Terminava assim a nossa aventura na ilha do Pico, com muito cansaço e muita satisfação por mais uma memorável aventura de Tubbs e Crockett.

VI

 

A manhã do dia seguinte ia bem avançada, quando despertei na cama do meu quarto em casa de Sónia. O cansaço pela ida ao Pico fora de tal forma arrasador que dormira toda a noite como um pedregulho.

Nesse dia, Sónia concordara em ir auxiliar os colegas nas excursões de turistas para observar golfinhos e baleias no mar alto. Por isso, quando saí da cama confirmei que estava sozinho. A minha amiga “Crockett” deixara-me um bilhete em cima da mesa a convidar-me para ir ao seu encontro junto à marina para almoçarmos juntos.

Tomei um banho, comi qualquer coisa e decidi ir passear pela Horta até à hora do encontro.

Ao sair de casa, deparei-me com uma manhã cinzenta. O ar estava abafado, fazendo lembrar alguns locais tropicais por onde eu viajara. Com a máquina fotográfica na mão, telemóvel e carteira nos bolsos dos calções, comecei a minha caminhada pela avenida que ligava o bairro à zona ribeirinha da cidade.

Achei curioso o nome da rua, Príncipe Alberto do Mónaco, a qual viria a saber mais tarde que se devia à comparticipação deste para a colocação do observatório meteorológico na ilha, que não ficava muito longe dali.

Desci pelo passeio que ladeava a estrada e fui fotografando os pormenores que iam despertando a minha atenção. Após dez minutos a andar, a estrada terminou numa curva apertada à esquerda, onde vi uma igreja. Mais uma foto e prossegui pela outra rua, mais apertada.

Na esquina seguinte, surpreendi-me com uma loja de produtos chineses. Estava habituado à proliferação destes estabelecimentos no continente, mas não esperava encontrar um daquela dimensão naquele local. Virei à direita e desci em direcção ao cais.

Ao fundo dessa rua, ficava o edifício da polícia marítima e, logo ao lado, um dos hotéis mais caros da ilha. Não virei nessa direcção, mas sim na oposta, optando por caminhar pela zona ribeirinha em frente ao Peter’s Café.

Deixei-me ficar por ali, aproveitando uma abertura das nuvens, para fotografar o mar e os muitos veleiros na marina.

O meu passeio continuou junto ao mar. Aliás, limitava‑me a seguir a mesma rota que já fizera com Sónia. No entanto, em vez de seguir sempre junto ao cais, optei por ir pelo passeio ao longo das ruas da cidade.

Após uma ligeira subida, vi um edifício mais antigo, uma espécie de monumento. Era o Forte de Santa Cruz que fora transformado em Pousada. Toda a zona frontal era muito bonita, muito verdejante. E logo a seguir, a Praça do Infante prolongava o verde com um jardim repleto de árvores.

Atravessei a rua para o lado oposto e entrei no Posto de Turismo. Pedi um mapa da cidade e alguns pontos interessantes para visitar. A funcionária simpática entregou‑me uma folha grande com um mapa do Faial à frente e outro da Horta no verso.

De novo na rua, decidi aventurar-me pelo interior da cidade, afastando-me da zona ribeirinha. Por isso, virei logo à esquerda, na esquina seguinte e subi pela rua Cônsul Dabney.

O Sol voltara a esconder-se, mas o calor mantinha-se. Numa passada calma, caminhei pela calçada, sempre a subir. Só parei quase no cimo, quando alcancei o cruzamento com a rua Marcelino Lima, onde se localizava a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores. Não deixava de ser curioso que apesar de a sede do Governo Regional ser em Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, a Assembleia estava localizada na ilha do Faial.

O meu interesse residia numa foto do edifício que estava no mapa, onde dava para perceber que a vista era muito interessante. E quando lá cheguei e subi aos jardins do prédio, plantados num piso superior à estrada, confirmei que o desvio valera a pena. Consegui fotos excelentes do mar, do canal entre as ilhas, dos veleiros, do Pico… Enfim, um cenário deslumbrante, onde só faltava o Sol para acentuar as cores da paisagem.

Como não queria correr o risco de me atrasar para o almoço com Sónia, retomei a caminhada na mesma direcção, prosseguindo pelas ruas da cidade que desciam novamente para o mar. Ao fim de mais alguns minutos a andar, desemboquei no Largo Duque D’Ávila e Bolama, onde estava situada a Câmara Municipal da Horta. Este edifício também mereceu a atenção da lente da minha máquina.

De seguida, atravessei as vias rodoviárias que me separavam do passadiço junto ao mar. A Avenida Diogo Teive que contornava o mar até à saída da cidade fizera-me lembrar a Marginal entre Cascais e Oeiras com aquele mar calmo que certamente em dias de tempestade se tornaria violento e agressivo para com quem passasse ali.

A tranquilidade do local só era perturbada, para além do natural circular de veículos, pelos trabalhos de construção do novo pontão que estava a nascer na ponta oposta da costa marítima da Horta.

Parei junto do muro e observei as enormes pedras que protegiam a minha posição do mar. Como ainda tinha tempo, deixei-me ficar ali a observar o mar e a fotografar. O meu momento introspectivo só foi perturbado por uma voz feminina que me interpelou, indagando em inglês se eu falava a língua.

Por breves instantes, confesso que me surpreendi mais com o seu aspecto que com o facto de me abordar. A dona da voz era uma jovem loura de cabelo apanhado na nuca, bastante curvilínea, de sorriso cativante e pele muito clara. Na sua informalidade de turista, vestia um polo de manga curta laranja justo e uns calções brancos muito curtos, mostrando com orgulho umas longas pernas que terminavam numas sapatilhas beges.

Em inglês, eu respondi que sim, reparando que era quase tão alta quanto eu. Irradiando simpatia, perguntou-me se era dali e eu respondi que não. Estrangeiro? Não, era português, mas do continente, expliquei-lhe.

Ela assentiu com a cabeça. Disse que era holandesa, a passar umas férias por ali e estava a adorar.

A conversa agradável serviu para me distrair de a olhar sem pensar como era bonita e sedutora. O que não consegui fazer por mais de dois segundos. A meio do diálogo, ela levou a mão ao bolso traseiro dos calções e retirou o telemóvel, um iphone de última geração, para que eu a fotografasse com ele.

Apesar de eu saber como o aparelho funcionava, deixei que ela me explicasse ao pormenor como lhe fazer a foto. Talvez não tivesse sido propositado, mas ela aproveitou o momento para se encostar a mim e me fazer sentir bem de perto o seu perfume.

Quando terminou a explicação, encostou-se ao muro para que a foto saísse com o mar e a ilha do Pico como fundo. Disparei dois cliques e entreguei-lhe o iphone para ela ver se a foto ficara do seu agrado. Ela confirmou que sim.

Ao invés de se despedir, pediu se poderia tirar uma foto comigo. Disse que eu fora tão simpático que gostaria de ficar com uma recordação. Em tom de brincadeira, concordei com a condição de que a foto não fosse parar ao Facebook. No seu inglês arrastado no sotaque holandês, ela concordou com a justificação que não partilhava fotos de homens lindos com as amigas.

Ignorando o piropo, coloquei-me a seu lado, quase da mesma forma como fazia nas fotos que tirava com Sónia. A holandesa encostou-se a mim de forma descomplexada e eu aproveitei para colocar a minha mão na sua cintura. Ela virou a camara do iphone para nós e registou o momento.

Antes que eu me despedisse, ela olhou para a minha máquina fotográfica e perguntou se eu queria tirar-lhe uma foto. Na verdade, a ideia não me passara pela cabeça, mas seria deselegante recusar, depois de ela ter tido a simpatia de me querer na foto dela.

Quando concordei, ela sentou-se no muro e pediu-me para esperar, dizendo que para mim tinha que ser uma foto especial. Cruzou as pernas, desapertou os botões do polo para aumentar o decote e empinou o peito. Ofereceu-me o seu sorriso mais carinhoso e deu autorização para o disparo.

Fiz três fotos esforçando-me para parecer indiferente ao seu jogo de sedução. De seguida, aproximei-me dela e mostrei-lhe o resultado no ecrã traseiro da máquina. Ela sorriu agradada com a forma como pousara.

Desliguei a máquina, dando a entender que chegara a hora de nos despedirmos. A holandesa saltou do muro e com toda a frontalidade, convidou-me para beber uma bebida fresca.

Eu recusei o convite e, para a desencorajar totalmente, expliquei que tinha combinado encontrar-me daí a alguns minutos com uma amiga minha e não a queria fazer esperar.

Mesmo lamentando a recusa, a holandesa não desistiu. Concordou que não deveria fazer esperar a minha amiga, o que só revelava como eu era um tipo decente. A seguir, disse‑me o seu nome e o hotel onde estava hospedada, sugerindo que a poderia procurar lá mais tarde e beber um copo com ela. Eu não disse nem sim, nem não. Insistindo que teria muito gosto nisso, adicionou ao convite a possibilidade de pousar para mim de forma ainda mais especial no seu quarto de hotel.

Fiquei tão surpreso que sorri de forma aparvalhada. Ela assumiu isso como uma forma algo tímida de aceitar uma proposta daquelas. Deu-me um beijo no rosto e afastou-se com um “see you later” sorridente e de sotaque carregado no “r”.

Nunca mais a vi, nem fiz por isso.

Ainda estupefacto, prossegui a minha caminhada em direcção à marina, procurando o local que Sónia me descrevera como sendo o sítio onde chegavam os barcos das excursões.

Quase não me reconhecia por desperdiçar um convite daqueles, feito por uma mulher muito bonita e atraente. Voltei a passar em frente ao Forte de Santa Cruz, desta vez no sentido oposto e desviei para as escadas de acesso às docas da marina.

A holandesa era excitante. No entanto, quando vi Sónia com os colegas perto dos barcos de excursões, todo o interesse que a estrangeira pudesse ter se desvaneceu perante a imagem da minha amiga faialense. Junto deles, envergando ainda o equipamento de trabalho, colete e impermeável, ela parecia uma miúda de vinte anos, alegre e divertida, irradiando simpatia para com os turistas que devolviam os coletes salva‑vidas e se afastavam de rosto satisfeito pela aventura no mar.

Como pode um homem abrir mão de uma mulher como ela, interrogava eu mentalmente, amaldiçoando o individuo que a fazia sofrer com a separação, sentindo em simultâneo alguma gratificação por ele o ter feito.

Quando me viu, Sónia acenou com o braço esticado, abrindo ainda mais o sorriso. Nunca consegui explicar muito bem a diferença do que sentia com qualquer outra mulher e ela. Com as outras era sempre algo carnal, desejo, sexo… A “Crockett” sempre despertara em mim sensações diferentes, uma paixão que tanto aquecia a alma como gelava o coração, fazia-me sentir um frio na barriga, engolir em seco. Demorei bastante tempo a deixar de pensar nela de forma apaixonada, só que aqueles dias no Faial reacenderam muitos sentimentos que eu arquivara nos confins da mente e eu não estava a conseguir lidar com isso.

─ Olá, Tubbs! ─ cumprimentou, recebendo-me com um abraço e dois beijos.

─ Tubbs? ─ interrogou um dos seus colegas.

Sónia olhou para ele e explicou de forma sucinta o porquê de nos tratarmos assim.

─ Também gostava muito dessa série. ─ retorquiu ele.

A jovem a seu lado, denunciando o quão mais nova era, confessou que não se lembrava da série.

─ Lacunas de quem só tem vinte e dois anos. ─ constatou Sónia num tom brincalhão. Depois, olhou para mim e iniciou as apresentações. ─ Este é o Marques. ─ Era um dos pilotos dos barcos, um homem forte, sorriso fácil e rosto de marinheiro. Mais velho que nós, descendia de uma família de pescadores, mas fugira a esse desígnio com uma carreira de piloto de excursões. ─ A Ruth. ─ Rapariga alta, cabelo comprido escuro e olhos frios. À primeira vista não captava grande simpatia, mas considerá-la antipática ou arrogante seria injusto. ─ E aquele é o Delfim. ─ Findou Sónia, apontando para outro marinheiro que se aproximava vindo da pequena casa onde guardavam os equipamentos.

Tal como Marques, Delfim também pilotava os barcos. No entanto, tinha uma imagem diferente, mais parecido com um surfista que com um “lobo-do-mar” como Marques. Cerca de dez anos mais novo que o outro, constituição magra e cabelo comprido desordenado e quase descolorado.

Já que estávamos todos ali e com fome, Sónia sugeriu que fossemos almoçar juntos ao Clube Náutico da Horta, a poucos metros dali.

O ambiente na esplanada do clube era muito agradável e as refeições, para além de saborosas, tinham uma característica muito importante, eram baratas. Por isso, era usual eles comerem por ali.

Sentámo-nos à volta de uma mesa e pedimos o prato do dia.

─ Vocês também são do Faial? ─ questionei.

─ Sim, eu sou faialense. ─ confirmou Marques. ─ Nasci na freguesia de Flamengos.

─ Eu também. ─ disse Delfim. ─ Mas a minha família é do outro lado da ilha, de Praia Norte.

─ Fica perto dos Capelinhos. ─ explicou Sónia, sabendo que eu não fazia a mínima ideia onde ficava aquela localidade. ─ Na costa norte da ilha, a caminho vulcão.

─ Tens de levar o teu amigo lá. É um sítio muito bonito. ─ Fez uma pausa como se tivesse tido uma ideia. ─ Aliás, podiam ir lá jantar logo, ao restaurante dos meus pais.

─ Parece-me bem. ─ concordei, antes que Sónia pudesse responder. A seguir, olhei para a outra rapariga. ─ E tu? Também és de cá?

─ Não. Eu nasci nos Estados Unidos. Parte da minha família é que é de cá. Os meus avós emigraram para os states, quando a minha mãe era uma criança.

Sónia adicionou:

─ A Ruth vem para cá no Verão e paga as férias a trabalhar connosco.

Curiosamente, ninguém mostrou interesse em fazer perguntas sobre mim. Porém, a justificação para esse facto era simples, Sónia já deveria ter falado tanto da minha pessoa que já pouco deveria ter sobrado para questionar.

A meio do almoço, o patrão deles apareceu para falar sobre o plano da tarde. Aproveitou para me cumprimentar e recordar que tinha lugar reservado no barco de Sónia. Com ele vinham mais duas equipas de piloto e bióloga para, tal como nós, almoçarem ali.

─ A empresa é composta só por pilotos e biólogas?

─ Não. ─ respondeu Marques. ─ Para além do pessoal que está no escritório, temos também os vigias.

─ Vigias? ─ questionei, imaginando tipos da segurança a vigiar os barcos.

─ Sim. Os nossos colegas nos antigos postos de vigia da época da caça à baleia. É de lá que eles avistam os golfinhos e as baleias e nos comunicam para os barcos para nós sabermos para onde navegar para os observar de perto.

Logo que terminámos o almoço, regressámos às docas para que eles tratassem dos preparativos para as viagens da tarde.

 

 

 

Os barcos semirrígidos tinham um casco duro e uma superfície em toda a volta de borracha. Duas linhas de acentos permitiam aos passageiros sentarem-se de frente, numa posição semelhante a estarem a montar a cavalo. Cada lugar tinha um arco metálico defronte do passageiro, o qual servia de apoio para que o segurassem com as mãos. Exceptuando o de quem ocupava o primeiro lugar de cada linha, todos os outros eram também o encosto do passageiro da frente.

Na traseira, dois potentes motores tinham a responsabilidade de mover o barco. Atrás dos passageiros ficava a roda do leme, lugar ocupado pelo piloto. Também na traseira, o barco tinha uma estrutura metálica, onde a guia se segurava, a qual tinha a antena do rádio e luzes.

Andar naqueles barcos não era novidade para mim, pois eram semelhantes aos usados em alguns trabalhos oceanográficos que eu incorporara. Claro que aquela actividade obedecia a várias regras de segurança para que os turistas só pudessem obter daquela aventura boas recordações. Assim, quando os turistas começaram a aparecer à hora marcada, as biólogas começaram a distribuir coletes a todos, pois era obrigatória a sua utilização.

Apesar de ter experiência, esqueci-me de vir preparado para o passeio, perante a eventualidade do clima piorar, por isso, pedi a Marques que me emprestasse um impermeável para vestir por baixo do colete. Com toda a simpatia, ele entregou-me um igual ao seu.

No nosso barco, Marques era o piloto e Sónia a bióloga. Para além de mim, oito turistas, mais de metade dos quais eram estrangeiros.

Sónia pediu ao grupo que se distribuísse pelos lugares, alertando que quem fosse susceptivel a enjoos deveria optar pelos lugares de trás e quem gostasse de uma experiência mais radical fosse para a frente. Claro que eu me sentei logo na ponta, mas ninguém teve coragem de se sentar a meu lado.

Os barcos iniciaram a sua marcha pela água de forma lenta, respeitando os limites de velocidade dentro da zona portuária. Ao todo, quatro barcos partiram para observar os mamíferos.

Marques manobrou o barco sem escolher as mesmas direcções dos colegas e iniciando o contacto com os vigias da ilha para saber qual a rota a tomar na saída para o canal. Nesse período de tranquilidade, Sónia veio sentar-se a meu lado.

─ O aventureiro do Tubbs tinha de vir logo para a frente. ─ disse ela, sorrindo.

Eu retribuí o sorriso.

Sem perder tempo, ela voltou a passar pelos passageiros, falando em inglês e espanhol, explicando o que se seguiria.

Os únicos portugueses do grupo eram dois irmãos que se sentaram atrás de mim.

Assim que saímos do porto, Marques aumentou a velocidade. Como estávamos no canal entre as ilhas, a ondulação não era significativa, mas assim que saímos para o mar aberto, a ondulação aumentou e o impacto do barco na água a cada passagem pelas ondas tornou-se mais violento. E era neste ponto que fazia uma grande diferença entre ir atrás ou à frente, pois quanto mais nos sentássemos para a rectaguarda, menos se sentia o impacto. Como eu ia na frente…

Apesar do barulho do vento com a deslocação do barco e o ruido do motor, dava para perceber que o piloto estava em constante comunicação com os vigias, daí que a rota do barco se alterasse com frequência, seguindo as indicações do pessoal em terra perante o avistamento de golfinhos ou baleias.

Os barcos seguiam rotas próprias, não havendo a preocupação de seguirem os mesmos caminhos por serem da mesma empresa. E também havia mais barcos de outras empresas de excursões. Ao todo, deveriam estar uns seis ou sete barcos naquela aventura. Claro que as indicações dos vigias do patrão de Sónia só davam informações aos seus barcos, havendo outros vigias para as outras empresas.

Quando Marques alcançou o sector indicado pelo colega, desacelerou o barco e ficámos a aguardar. Ele recebera a informação que andava por ali uma baleia-azul. Como os mamíferos não andavam por ali para se pavonear para nós, havia que aguardar com paciência que ela se mostrasse.

Esperámos alguns instantes, mas nem sinal. Porém, algumas milhas a estibordo, um esguicho de água chamou a nossa atenção. Marques voltou a acelerar para ir ao seu encontro.

Sempre com a máquina fotográfica na mão, fui fazendo algumas fotos de teste, afinando as medições de luz e as melhores definições para um ambiente nublado.

Os abrandamentos e acelerações repetiram-se algumas vezes até conseguirmos ver um vulto por perto que nos pareceu uma baleia. Infelizmente não tivemos direito à célebre imagem da enorme cauda a sair do mar.

Perante novas indicações do vigia daquele lado da ilha, Marques acelerou para norte, onde a cinco milhas um grande grupo de golfinhos fora avistado. Enquanto o barco galgava as ondas, eu fotografava a costa do Faial, onde se destacava o vulcão dos Capelinhos.

Quando chegámos ao novo sector, o espectáculo de golfinhos a saltar na água foi fenomenal. Deveriam ser mais de meia centena a saltar pelas ondas, deslocando-se a grande velocidade, com os barcos a seu lado. Até parecia que se estavam a exibir para nós. Fiz fotos espantosas.

Durante todo este tempo, Sónia explicava tudo o que avistávamos aos turistas, sempre em três línguas. Descreveu a baleia, as suas características, alguns dados curiosos. Depois falou dos golfinhos… E pelo meio respondia às questões dos passageiros mais curiosos.

Ao fim de mais de uma hora no mar alto, após o vislumbre de uma baleia e um sensacional cenário de dezenas de golfinhos em grande actividade, Marques iniciou o trajecto de volta. Como não havia muito a explicar no regresso, Sónia veio sentar-se no lugar vago a meu lado.

─ Gostaste?

─ Sim. Foi muito bonito. ─ confirmei, continuando a fotografar.

─ Já vi golfinhos e baleias centenas de vezes. ─ relatou, olhando para o mar infinito. ─ Mas nunca me canso. São animais extraordinários. E já cheguei a nadar com os golfinhos.

─ Dever ser fenomenal.

─ É indescritível. ─ confirmou. ─ Hoje, só mesmo por causa do tempo que está a piorar é que não permitimos que os passageiros que quisessem, dessem um mergulho no mar e, quem sabe, tentar nadar com eles.

De facto, mesmo com uma ligeira abertura das nuvens durante a nossa aventura, o gradual aumento da nebulosidade e as informações que Marques recebera da probabilidade de o clima piorar bastante fizeram com que regressássemos à Horta. Não valeria a pena correr o risco de enfrentar um temporal, só por um mergulho no mar alto.

A velocidade do barco foi grande até à entrada do porto da Horta, onde Marques abrandou e todos os quatro barcos seguiram em fila até aos seus lugares nos cais da marina.

Quando desembarcámos, os turistas traçaram muitos elogios ao passeio e agradeceram a Marques e a Sónia, enquanto lhes devolviam os coletes salva-vidas. Eu deixei-me ficar para último e entreguei o meu colete e o impermeável.

─ Vamos arrumar o equipamento. ─ informou ela, seguindo com os colegas para o pequeno armazém na marina, carregando os coletes e outros objectos para os guardar lá.

Eu fiquei à espera, junto ao cais, observando o mar e o céu cinzento. Quando voltei a olhar para o armazém, vi Sónia sair, despedindo-se dos colegas. Delfim recordou-lhe o jantar dessa noite e ela confirmou que iriamos lá estar, conforme combinado.

─ Vamos, Tubbs? ─ disse ela, ao aproximar-se de mim.

Assenti com a cabeça e caminhei a seu lado até ao seu carro que ficara estacionado na rua, perto da marina.

Enquanto seguimos para casa dela, a seu pedido, relatei‑lhe a minha manhã. Falei dos sítios que visitara, por onde passeara, as fotos que captara. Claro que não falei na holandesa.

Sónia estacionou o carro à entrada do seu bairro e percorremos os poucos metros até casa a pé.

 

 

 

Uma hora mais tarde, eu substituíra os calções por umas calças, a camisola de manga curta por outra lavada e os chinelos por umas sapatilhas. E quando saí do quarto, encontrei Sónia vinda do seu, trajando um vestido escuro fresco de alças sem abdicar de um casaco de malha que segurava na mão oposta à da mala e calçava sandálias. Será necessário dizer que estava linda?

Por mais voltas que desse na minha cabeça, não conseguia contrariar o facto de estar tão apaixonado por ela. E essa paixão era de tal forma dolorosa que talvez não tivesse vindo ao Faial, se imaginasse que me iria sentir assim. Jamais me passara pela cabeça que quinze anos não apagavam uma paixão de adolescência.

A nossa amizade era forte como pedra. No entanto, a ideia de lhe revelar os meus sentimentos levava-me a pensar que teria um efeito pulverizador tornando a pedra em pó e a nossa amizade num sentimento estranho.

Talvez por ir com a mente envolta nestes pensamentos, não disse uma palavra em todo o caminho até casa dos pais dela.

─ Está tudo bem? ─ indagou com estranheza, ao parar o carro. ─ Estás tão calado.

─  Não é nada. ─ respondi com um sorriso. ─ Estou só a pensar na vida.

─ Que se passa? Trabalho?

─ Sim. ─ menti.

─ Singapura?

Abanei a cabeça afirmativamente. Estava tão preocupado com a ida para Singapura quanto me preocupava se estava a chover no mar.

Sónia saiu do carro e eu copiei o seu movimento.

─ Devias aceitar. É uma grande oportunidade.

─ A vida não é só trabalho, Crockett. ─ contrapus, deixando-a com um semblante de confusão no rosto.

Antes de subirmos as escadas, ela parou em frente a mim e questionou:

─ Que se passa, Ricardo? O que é que não me estás a contar? ─ Eu encolhi os ombros. De súbito, ela riu com gosto. ─ Já sei. Como não percebi antes? Tu estás apaixonado.

Arregalei os olhos. Fora descoberto. Não sabia como ela tinha percebido, mas fora descoberto. Melhor assim. Ela perceber que eu estava apaixonado por ela tornava mais fácil falar no assunto. Ainda para mais, chegando ela àquela conclusão com um sorriso tão satisfeito.

─ Quem é ela? ─ interrogou, quebrando o meu entusiasmo. ─ Tens namorada no continente e eu fiz-te vir para cá para me aturares. Podias ter dit…

─ Não é nada disso. ─ neguei com rispidez. ─ Não tenho nenhuma namorada no continente. Já te disse várias vezes que estou sozinho.

─ Pronto. Não precisas ficar assim.

─ Desculpa!

─ Não percebo a tua hesitação, Ricardo. É uma óptima oportunidade. E, se estás sozinho, nada te prende.

Com toda a honestidade nos olhos, enfrentei os seus e confessei:

─ Eu tenho alguém que me prende. Tu!

A confissão pareceu chocá-la. Desviou os olhos e abanou a cabeça. De seguida, ofereceu-me um sorriso carinhoso e contrapôs:

─ Somos amigos há mais de vinte e cinco anos, já estiveste mais longe que Singapura e a nossa amizade nunca se perdeu. Isso não irá acontecer agora, se fores para lá.

Infelizmente, ela não estava a perceber a dimensão do que eu estava a dizer. Respirei fundo e ganhei coragem para o dizer com todas as letras:

─ O problema é que eu estou…

─ Ora viva! ─ exclamou uma voz a interromper-me. Olhei para o cimo das escadas e vi o senhor Alfredo a cumprimentar-nos. Olhou para a filha. ─ A tua mãe está a acabar de arranjar a Clarinha. Subam!

Talvez não fosse com intensão, mas Sónia evitou continuar o assunto e subiu as escadas. Após dar um beijo ao pai, entrou e foi ao encontro da mãe e da filha. Eu fiquei na companhia do senhor Alfredo.

Meia hora mais tarde, partimos para o restaurante.

O clima nos Açores é sempre uma surpresa. E naquele fim de tarde, a perspectiva de um temporal dera lugar a um Sol brilhante que fazia a sua trajectória descendente quase sem nuvens a atrapalhar.

Já com Clarinha a fazer-nos companhia, deixámos o Varadouro para ir até Praia Norte. Seguimos pela estrada costeira quase até Capelo, onde desviámos para o interior da ilha, cortando caminho para a localidade na costa norte do Faial.

O restaurante da família de Delfim localizava-se na estrada principal que atravessava Praia Norte. Um edifício térreo com um pequeno parque em frente à entrada.

Um dos proprietários que estava ao balcão reconheceu logo Sónia e cumprimentou-a, quando entrámos. Ela apresentou-me e o senhor conduziu-nos a uma mesa bem localizada e com uma vista fenomenal, no lado oposto ao da entrada. Como o edifício ficava na encosta, aquelas janelas viradas a noroeste permitiam observar uma vista magnífica e, àquela hora, um pôr-do-sol fenomenal.

Logo que me sentei, peguei na máquina fotográfica e registei os últimos momentos do astro rei a mergulhar no mar.

─ Lá em baixo há uma praia muito bonita. ─ informou ela, apontando pela janela para uma zona inferior junto ao mar. ─ Bom… As praias são todas bonitas, mas é uma das que mais gosto. Tenho de te levar lá.

Nesse instante, um empregado entregou-nos as ementas e colocou alguns aperitivos na mesa.

A luz alaranjada do ambiente, provocada pelo pôr‑do‑sol deu lugar às lâmpadas brancas do tecto, quando o exterior ficou cada vez mais escuro. Analisei a minha ementa, enquanto Sónia ajudava Clarinha a escolher o seu prato.

Poucos minutos depois de termos feito os nossos pedidos, Delfim apareceu no restaurante. Cumprimentou o pai atrás do balcão e acenou-nos, antes de ir á cozinha para dar um beijo à mãe. Ao voltar, aproximou-se da mesa para saber se estava tudo bem.

─ Não queres fazer-nos companhia? ─ convidou Sónia.

Ele olhou para mim, como se o facto de aceitar o convite pudesse não ser do meu agrado. Eu sorri e repeti o convite dela. Delfim sentou-se ao meu lado.

─ Estava a falar ao Ricardo na praia lá em baixo.

─ Eu gosto muito daquela praia. ─ disse Delfim. ─ E é lá que fica a minha adega.

─ Adega? ─ interroguei. ─ Produz vinho?

Tanto Delfim como Sónia sorriram e ela explicou:

─ Adega é o nome que nós damos às casas de praia. Há muitas pessoas que vivem mais para o interior ou na Horta e depois têm pequenas casas junto ao mar. A essas, chamamos adegas.

Após ter pedido o que queria jantar, Delfim falou sobre trabalho e em alguns acontecimentos no seu barco, durante a excursão da tarde. Aliás, essa aventura e os nossos conhecimentos de fauna marítima foram o tema central do jantar, o que deve ter deixado a pequena Clara enfadada.

No fim do jantar, Delfim quis oferecer o jantar, mas eu recusei, pois não achei justo. Contudo, o seu pai fez questão de insistir na oferta do filho e recusou qualquer pagamento sob pena de ficar muito ofendido. Nós agradecemos.

Na viagem de regresso à Horta, Sónia optou por conduzir pela estrada junto à costa, indo passar ao lado do Vulcão dos Capelinhos. Aí, desviou para a estrada que terminava quase junto ao mar, onde não havia uma ponta de luz. Parou o carro no fim da estrada, desligou a ignição e apagou as luzes.

Convidando-me a acompanhá-la, saiu do carro e disse à filha que viesse também. Cá fora, a escuridão era tanta que não via ambas, mesmo estando elas a meu lado.

─ Já viste o céu?

Eu olhei para cima e observei o céu estrelado mais espectacular que alguma vez vira em toda a vida. As estrelas eram tão nítidas que parecia ser possível tocar-lhes se esticasse o braço.

─ A minha terra é muito bonita. ─ disse ela com orgulho. ─ Mas mesmo assim, ainda sobra espaço para um céu maravilhoso como este.

Ao longe, no imenso mar negro, pequenas luzes perdiam-se no negrume, pequenos barcos de pescadores em actividade.

─ Tudo aqui é lindo. ─ concordei. ─ Até quando não vemos nada, nos sentimos cercados de beleza. Nunca vi nada assim.

Senti a sua mão procurar a minha no escuro. E quando a encontrou, Sónia apertou-a e disse:

─ Ainda bem.

De súbito, uma estrela cadente cruzou os céus.

─ Pede um desejo! ─ incitou ela. ─ Eu também vou pedir.

Ficámos em silêncio, apertando a mão um do outro com ternura e carinho. Quem me dera que o tempo parasse e aquele momento se prolongasse pela eternidade.

Contudo, ele só durou até Clarinha reclamar que queria ir para casa, o que fez com que voltássemos ao carro e retomássemos o caminho para casa. Não sei o que Sónia desejou, mas o que eu desejei pareceu demasiado improvável de se realizar.

VII

 

A conversa na rua estava animada, entre a vizinhança de Sónia. No meu quarto com janela para aquele lado, eu vestia a roupa que iria usar, baseando a escolha nas intensões de passeio para esse dia.

Na noite anterior, quando chegámos a casa, Sónia sugeriu que fizéssemos um passeio em volta da ilha para me mostrar alguns sítios interessantes que ainda não vira. Aconselhara-me roupa fresca sem esquecer os calções para um mergulho.

Não tive dificuldade em dormir, ainda extasiado com aquele magnifico céu estrelado. No entanto, naquele instante em que me preparava, não pude deixar de pensar em como estivera perto de lhe confessar o meu amor. O que sentia por ela estava a tornar-se tão forte que seria impossível partir da ilha sem o confessar. Só que sempre que tentava fazê-lo, o medo de estragar a amizade tinha mais força. E nos poucos momentos em que me preparava para a confissão sem pensar nas consequências, algo me interrompia e impedia de falar.

Vesti uns calções de banho e umas calças leves por cima. Juntei-lhe uma t-shirt clara e calcei chinelos estilo havaiano. Guardei nos bolsos a carteira e o telemóvel e coloquei às costas a mochila com a máquina fotográfica e a toalha de praia.

Pronto para a aventura do dia, saí do quarto e encontrei mãe e filha prontas para sair. Sónia no seu típico ar singelo, humilde e veraneante, conseguia surgir sempre deslumbrante. Vestia um top esverdeado que lhe cobria todo o tronco, deixando os ombros nus e prendendo-se em volta do pescoço por duas finas tiras de tecido que se juntavam num nó perto da nuca e era comprido o suficiente para deixar a barriga e o umbigo a descoberto. O nó atrás do pescoço tinha a companhia de outro nó de outros dois fios de outra cor que reconheci como sendo do biquíni dela. A acompanhar, uma saia escura curta, larga e lisa que apertava em volta da cintura com dois botões no lado direito, perto da anca. Por fim, as sandálias que moldavam os seus pés com pequenas tiras, as quais findavam em volta dos tornozelos e se seguravam com um fecho de mola.

O nosso passeio só começou depois de deixarmos Clarinha em casa dos avós, como era costume. Desta vez, para não perdermos muito tempo, nem cheguei a subir e acenei um cumprimento à mãe de Sónia. Esta também não se demorou.

A manhã estava bastante quente, talvez mesmo a mais quente desde que chegara ao Faial. Sónia conduziu o carro no sentido oposto ao que nos trouxera.

─ Vou levar-te a conhecer o Morro de Castelo Branco. ─ informou, apontando para o enorme penhasco no mar.

Alguns quilómetros pela estrada principal até desviarmos na direcção apontada por uma placa castanha com as letras “Morro de Castelo Branco”. Só circulámos alguns metros, uma vez que a estrada era ingreme. Sónia estacionou em frente a um pequeno condomínio com meia dúzia de casas de construção recente, muito coloridas.

A partir daquele ponto, a estrada era uma mera linha estreita de alcatrão maltratado. A vista do mar era tão maravilhosa como todas as outras que a ilha nos oferecia.

─ Anda! ─ convidou ela, dando passos cuidadosos naquele piso descendente.

Não conseguia ficar indiferente ao seu aspecto atraente, sedutor de mulher linda que era e por quem estava tão apaixonado. De máquina na mão, fotografei a paisagem envolvente, fotos sempre intercaladas por registos da minha modelo preferida. Toda aquela beleza envolvente, o ar puro, a tranquilidade do local, pensei se não seria uma boa oportunidade para retomar a questão da tarde anterior e do porquê de hesitar em ir para Singapura.

Sónia continuava envergonhada com a lente. Porém, em vez de reclamar, optou por caminhar ao seu ritmo sem esperar se eu a acompanhava. Isso fez-me ser mais criterioso nas fotos para que ela não ficasse longe.

A estrada descia, entrando na vegetação não muito alta. Naqueles campos verdes, as vacas passeavam e pastavam livremente, indiferentes a quem quer que por ali passasse. Não avistámos uma única pessoa, apenas um motociclista que se cruzou connosco numa luta intensa com a mota para conseguir subir o caminho.

O morro era uma formação rochosa imponente, mas quanto mais nos aproximávamos, mais espantados ficávamos com a dimensão daquela rocha saída do mar, pois o terreno descia até determinado sítio, local onde começava a subir em direcção ao topo do morro, como se fosse uma ligação da ilha ao rochedo branco.

Após umas centenas de metros, o alcatrão deu lugar a um caminho de terra batida, muito poeirenta.

Não havia muito a fotografar por ali, nada de muito diferente ao que já registara antes. Por isso, caminhámos lado a lado.

─ Então? Já te decidiste? ─ interrogou Sónia, quebrando o silêncio. ─ Vais aceitar o cargo em Singapura?

Senti-me grato por ser ela a retomar o assunto, mas ao mesmo tempo amedrontado com a forma como deveria encarar a conversa.

─ Ainda não.

─ Devias aceitar. É uma excelente oportunidade.

Curioso, o facto de ela repetir exactamente a frase que dissera na tarde anterior e que despoletara a minha quase confissão de apaixonado. No entanto, notei que ela se furtou a referir o facto de eu ter justificado a minha hesitação com ela. Por isso, fui eu quem o recordou:

─ Já te disse o que me faz hesitar.

Sónia olhou para mim e ofereceu-me o seu sorriso encantador.

─ Não percebo porque sentes esse medo, Tubbs, quando estivemos tanto tempo longe e nunca deixámos de ser amigos.

─ Não sei explicar. ─ disse eu, evitando confrontar o seu olhar. ─ Voltar a estar contigo ao fim de quinze anos deixa‑me… Como hei-de explicar? Parece que se voltar a partir te vou perder para sempre.

─ Que parvoíce, Tubbs. ─ contestou, abanando a cabeça. ─ Que vais fazer? Deixar tudo e vens viver para o Faial?

Não respondi, pois ela colocara a sugestão como se fosse o maior absurdo que alguma vez ouvira.

O caminho descendente terminou e parámos numa pequena clareira. Convidei-a para uma foto juntos com o morro atrás. Ela acedeu. Depois, subimos alguns metros pela estreita linha de terra que só terminaria no topo do rochedo.

─ É melhor não passarmos daqui. ─ sugeriu, apontando para as escarpas perigosas de ambos os lados do caminho.

Eu concordei.

Sónia sentou-se numa grande pedra rectangular, enquanto eu aproveitei para fotografar a perspectiva do enorme Pico visto dali. Após alguns cliques, guardei a máquina e sentei-me ao lado dela.

─ Tu és muito importante para mim, Crockett! ─ afirmei, fitando o mar, tal como ela fazia.

─ Tu também és muito importante para mim, Tubbs. Sempre foste. Mas, não quero que a nossa amizade te prenda, te faça recusar algo que eu sei ser do teu desejo.

─ Há coisas que eu desejo mais e que me fariam mais feliz que ir para Singapura.

─ O quê? ─ interrogou, desviando o olhar para mim.

Eu olhei-a nos olhos, sentindo o coração a bater com muita força. Quase engasgado, respondi:

─ Será assim tão difícil de perceber?

O olhar dela revelou uma enorme confusão. Contudo, antes que dissesse uma palavra, o seu telemóvel tocou. Sónia procurou o aparelho no bolso da saia, retirou-o e olhou para o visor, dizendo:

─ É o pai da Clarinha.

Levantou-se da pedra e afastou-se alguns metros. Atendeu num tom que procurava parecer indiferente, mas que ainda denotava uma mistura de raiva e mágoa. Consegui perceber no início que ele deveria ter perguntado pela filha, pois ela respondera que a Clarinha estava bem. Depois disso, a distância tornou a conversa inaudível.

Aborrecido por mais uma vez a revelação dos meus sentimentos ter sido impedida por factores externos, fiquei a olhar para o mar. No entanto, o seguimento do diálogo entre eles transtornou de tal forma Sónia que ela se esqueceu que eu estava ali.

─ Tens a certeza que é isso mesmo que queres? ─ ouvi, quando ela se reaproximou, sem o perceber. ─ Queres mesmo o divórcio? ─ Uma pausa em que ele deveria estar a reafirmar as suas intensões. ─ Não consigo perceber. Sinceramente, não consigo perceber. ─ Nova pausa. ─ Sim, eu sei. Sim, sei que foi por isso. Mas, não penses que isso faz de ti um homem melhor. Queres a separação só para não cometeres adultério… Na prática, o resultado é o mesmo. ─ Silêncio com um pequeno ruido resultante do som distorcido da voz dele no outro lado da linha. ─ Claro que não. Claro que não preferia que continuasses casado comigo e tivesses amantes. Pensas que sou o quê? Hum… Eu estou calma… Não estou a gritar. ─ Nesse instante, levantou o olhar e percebeu que eu estava a ouvir. Voltou a afastar-se, baixando o tom de voz.

Quando regressou, logo que desligou o telefonema, vinha a soluçar e com o rosto lavado em lágrimas.

─ Filho da puta! ─ vociferou, quando a confortei, abraçando-a com força. O choro tornou-se mais intenso. ─ Quer agendar a oficialização do divórcio… Cabrão… Filho duma grande puta.

─ Tem calma. ─ disse eu, apertando-a contra mim.

─ E fala comigo como se me estivesse a fazer um favor. ─ Acariciei-lhe o cabelo, sentindo-a balbuciar. ─ E sabes o que mais me irrita nisto tudo? Sou eu. É sentir que sou uma parva porque continuo a gostar dele e a sentir-me infeliz por ele me ter deixado.

Como poderia eu esperar que ela retribuísse a paixão que eu sentia por si, se ela revelava continuar apaixonada pelo ex-marido? Foi muito duro ouvir aquilo, momentos depois de quase ter tido a coragem de lhe revelar os meus sentimentos. Procurei confortá-la com carinho, mas não consegui dizer uma palavra.

Não sei se foi propositado ou não, mas Sónia não mostrou qualquer intensão em retomar o assunto antes do telefonema. Por mais transtornada que tivesse ficado, não teria esquecido que estávamos a conversar. E se não se lembrasse do assunto, seria natural que dissesse “estávamos a falar de…”. Porém, recompôs-se do choro e sugeriu que voltássemos ao carro.

Foi estranho, caminhar em silêncio a seu lado, sentindo que havia coisas importantes que ficaram por dizer e perceber que a sua mente estava muito distante de mim e muito próxima da pessoa que desprezara o seu amor.

Sónia só voltou a falar no carro, de volta à estrada, para me sugerir a visita a umas piscinas naturais, perto do Aeroporto. Vai para onde quiseres, foi o que disse a minha mente, quando um assentir de cabeça concordou com a sua ideia.

Antes de chegar ao Aeroporto do Faial, existia uma estrada estreita que na altura até estava em obras. Sónia desviou para aí e tivemos de suportar os solavancos causados pelo mau estado do piso por arranjar. A estrada contornava a vedação do Aeroporto e permitia ver o fraco movimento do local, onde o tráfego aéreo era tão calmo quanto o ritmo da ilha.

A vedação mostrava o enfiamento da pista por onde os aviões levantavam ou aterravam e prosseguia no seu contorno paralelamente à pista até o desnível do terreno deixar a estrada abaixo da pista e já não ser possível ver para lá. A linha de alcatrão maltratado terminou junto a um pequeno parque para carros.

Desta vez, saímos do carro e levámos as mochilas.

─ Preciso de um mergulho. ─ disse ela, abrindo caminho pela zona bem cuidada para utilização de banhistas que ia desembocar nas piscinas naturais.

Eu estava aborrecido por aparentemente ela não se interessar pelo que conversávamos. Daí que me limitei a segui-la sem proferir um som.

Aquelas piscinas não eram tão procuradas quanto, por exemplo, as de Varadouro. E quando lá chegámos nem lá estava ninguém. Sónia pousou a mochila no chão, retirou a toalha e estendeu-a perto da água. Descalçou as sandálias e arrumou-as ao lado da toalha. Desapertou a saia e despiu-a, ao que se seguiu o desfazer do nó atrás do pescoço e o retirar do top pela cabeça, ficando em biquíni. Só nesse instante, ela percebeu que eu me sentara à sombra e não fizera o mínimo gesto para a acompanhar no mergulho.

─ Não vens? ─ inquiriu com surpresa.

─ Não me apetece.

Percebendo pelo meu tom que algo não estava bem, insistiu:

─ Que se passa? Estás chateado? Querias ir a outro sítio?

─ Não. ─ neguei, forçando um sorriso. ─ Está tudo bem. Só não me apetece ir à água, agora.

Sónia encolheu os ombros, respeitando a minha vontade e saltou para dentro de água. Eu fiquei a tirar fotografias aleatoriamente, pensando em como era absurdo julgar que entre nós poderia haver mais que aquela amizade.

─ Está uma maravilha. De certeza que não queres experimentar? ─ voltou a convidar, quando a sua cabeça saiu da água. ─ Olha que na costa norte, o mar não está assim, é bem mais bravo.

Eu fotografei-a sem mudar de opinião.

Durante alguns minutos, ela nadou tranquilamente. Sempre se sentira como um peixe dentro de água. E naquela manhã, nadar era o melhor antidoto para o telefonema que a afligira.

Como não me convenceu a nadar com ela e a chegada de um grupo barulhento tirou algum encanto ao lugar, Sónia saiu da água, envolveu-se na toalha, secou-se e voltou a vestir a roupa. Uma vez que estava molhada, não guardou a toalha na mochila, trazendo-a na mão. Atirou-me um sorriso e disse:

─ Vamos, Tubbs?

E não disse nada e coloquei a minha mochila às costas, seguindo-a para o carro.

─ Estás estranho! ─ afirmou, já a conduzir pela estrada em direcção à Horta. ─ Estás assim desde que recebi o telefonema.

Voltei a forçar um sorriso, desvalorizando a sua sensação.

─ Custa-me ver-te sofrer, Crockett. ─ justifiquei sem que fosse essa a verdadeira razão.

─ Acredito. Mas tu ficaste tão calado, desde essa altura.

─ Estou só a pensar na vida. ─ voltei a mentir. ─ Estes dias contigo têm sido muito agradáveis, mas começa a chegar a hora de regressar, por isso, sinto-me um pouco triste.

─ Oh… És um querido. ─ disse ela, acariciando-me o braço. ─ Eu também vou ter pena quando te fores embora. Mas a vida é mesmo assim. Só espero que voltes em breve.

─ Vai ser difícil, uma vez que irei para Singapura.

As minhas palavras pareceram causar-lhe alguma surpresa.

─ Então já decidiste. ─ Não me manifestei. ─ Vais ver que vai correr bem. E mesmo longe, nós continuaremos em contacto, Tubbs.

─ Sim…

─ Tu não me vais perder. ─ insistiu ela, sentindo alguma descrença no meu “sim”. Procurava falar com satisfação, mostrando-me que era uma coisa boa para mim.

─ Eu sei, Crockett. ─ concordei, inexpressivo. ─ Só que custa muito voltar a ficar longe de ti.

─ A mim também me vai custar voltar a ficar longe do meu melhor amigo.

Sentindo o que eu sentia por ela, ser identificado como “melhor amigo” era irritante.

─ Vem passar uns dias comigo a Singapura. ─ convidei num impulso. ─ Sónia sorriu como se isso fosse uma brincadeira. ─ Estou a falar a sério.

─ Não posso, Ricardo.

─ Eu pago-te a viagem.

─ Não é isso. Bom… Também é isso, não tenho dinheiro para a viagem. Mas, não posso ir assim passar uns dias a Singapura. Tenho o meu trabalho aqui, a Clarinha, os meus pais…

─ Traz a Clarinha também.

Durante a nossa conversa, Sónia conduziu até ao topo do Monte da Guia, uma formação montanhosa, outrora vulcânica, com o formato de cratera que perdera metade da sua estrutura. Ao estacionar o carro, ela olhou para mim com um sorriso muito carinhoso e uma expressão de ternura no olhar.

─ Nós temos uma amizade muito forte, muito especial. Vai custar a ambos, quando partires. Mas, vão ser só os primeiros dias. Depois, verás que a nossa amizade continuará forte. E isso vai descansar-te e poderás retomar o teu ritmo como sempre fizeste nestes últimos quinze anos que estivemos longe.

Não argumentei nada, pois ela não conseguia perceber. Ou talvez não quisesse perceber.

A estrada para o Monte da Guia terminava num portão que não permitia avançar, pois eram instalações de acesso reservado. Ao lado, uma larga escadaria subia até uma pequena capela com um miradouro com uma vista soberba para a cidade da Horta e para a baía de Porto Pim. Com a máquina fotográfica na mão, registei a magnífica paisagem. Depois, pedi a Sónia se poderíamos tirar uma das usuais fotos lado a lado. Ela concordou. Estava tão triste que já não procurava surpreendê-la com cliques inesperados. Coloquei‑me encostado a ela e abracei-a pela cintura, absorvendo o seu delicioso cheiro. Apontei a lente para nós, pensando por momentos em roubar-lhe o beijo que revelaria o que sentia por si. A ideia não passou disso mesmo e continuei triste. E hoje, quando olho para aquela foto connosco, tirada no miradouro, vejo que o meu rosto é bem revelador dessa tristeza.

Ao descer as escadas, registei outro pormenor maravilhoso da paisagem, a baía envolvida pela Caldeira do Inferno que fazia um desenho semelhante a um “8” decapitado.

A nossa viagem continuou junto ao mar, atravessando a Horta logo que descemos o Monte da Guia. Recordo-me que repetimos a passagem pela Ponta da Espalamaca e pelo miradouro de Nossa Senhora da Conceição, bem como o cruzamento com estrada para a Almoxarife. A partir daqui o trajecto era novo.

O Sol aproximava-se do seu ponto mais alto.

Sónia trouxera piquenique para o almoço.

Sempre com o mar a acompanhar a estrada, atravessámos Pedro Miguel, Ribeirinha, Espalhafatos e parámos em Salão.

─ Também tem umas belas piscinas naturais. ─ explicou, após estacionar num pequeno parque junto a um jardim. Ainda com a recordação do meu desinteresse quando mergulhou na outra piscina, lançou-me um sorriso e avisou. ─ Prometo que desta vez não vou nadar.

Ao contrário do que acontecia nas anteriores, estas piscinas ficavam num enorme desnível em relação à estrada. Para chegar até lá, tivemos de descer umas escadas construídas ao longo da escarpa até ao mar, onde uma língua de pedra terminava numa formação rochosa em forma de “C”.

As ondas entravam pelas rochas e espalhavam-se pelas piscinas naturais reforçadas na sua estrutura pela mão humana. Só de olhar, dava vontade de mergulhar naquela água, apesar de se notar um mar mais bravio.

Nas zonas mais ingremes, um corrimão permitia alguma segurança a quem subia e descia pelas escadas. Esse corrimão terminava quando a escada se tornava mais larga e menos ingreme, até o chão se tornar quase plano até às piscinas.

Aquela paragem serviu somente para conhecer o lugar e fazer algumas fotos.

Na continuação do nosso passeio, atravessámos a localidade de Cedros e alguns quilómetros depois, Sónia parou o carro junto ao miradouro de Ribeira Funda, um parque de merendas com uma vista espantosa, onde ela planeara fazer o piquenique.

─ Quanto tempo vais ficar lá? ─ perguntou, entregando‑me uma das sandes que preparara de manhã.

─ Onde?

─ Em Singapura.

─ Não sei bem. Talvez um ano ou dois.

─ Quando voltares, vens visitar-me outra vez?

Não respondi logo. Senti que quando partisse e voltasse a arquivar aquele amor não quereria tornar a despertá-lo. Seria doloroso ao início, mas o melhor era manter a nossa amizade como nos últimos anos.

─ Sim. ─ acabei por dizer, quando engoli um pedaço de pão.

─ Espero não ficar mais quinze sem te ver.

Podias ver-me todos os dias para o resto da vida, pensei, e o mais certo será nunca mais me veres quando voltar a embarcar no avião de regresso ao continente. Forcei o sorriso e interroguei:

─ Achas?

─ Espero que não. ─ repetiu.

Enquanto mastigava, observei a paisagem que se avistava do miradouro, onde o terreno parecia ter sofrido um golpe da lâmina de um machado gigante que abrira uma fenda na ilha. Duas escarpas rochosas enfrentavam‑se separadas por uma ribeira lá em baixo que se perdia no mar atlântico.

Como não havia muito a dizer, permanecemos em silêncio a desfrutar do ambiente e da refeição. Foi Sónia quem quebrou esse silêncio:

─ Tem sido maravilhoso ter-te cá, Tubbs.

─ Tem sido maravilhoso cá estar, Crockett.

─ Vai ser agora que me acompanhas num mergulho?

─ Daqui? ─ interroguei, como se pensasse que ela queria saltar dali para o mar, o que significaria morte certa.

─ Não, parvo. Vou levar-te àquela praia que te falei ontem no restaurante.

─ Ok. Vamos lá. Desta vez, nadamos juntos, Crockett.

Novamente na estrada, reconheci Praia Norte quando por lá voltámos a passar. A estrada deixou de ter casas e entrou numa zona mais arborizada, à qual chamavam Zona do Mistério. No cruzamento, Sónia virou à direita e o caminho fez-se por outra estrada com um piso em piores condições, sempre a descer até ao mar. Árvores de um lado e do outro, até surgirem as primeiras casas que se multiplicaram por ali abaixo até o alcatrão terminar junto à praia.

Saímos do carro, levámos as toalhas ao ombro e caminhámos de mão dada pelo areal até pousarmos num espaço menos denso de banhistas, uma vez que a praia tinha muita procura. Despi a roupa, observando as ondas fortes do mar a embater na areia. Era sem dúvida um mar mais bravo que os anteriores, o qual era aproveitado por vários surfistas para a prática de surf.

Deixámos a roupa sobre as toalhas estendidas na areia e corremos de mão dada para o mar agreste. Só nos largámos para esticar os braços e investir por entre a espuma da ondulação.

VIII

 

O parque de estacionamento era recente, pois tinha um desenho preocupado em parecer moderno. Bem diferente era o farol meio enterrado desde a erupção dos Capelinhos.

A nossa paragem na praia não se estendera demasiado, o suficiente para um banho e secar ao Sol. Sónia queria que eu conhecesse o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos e toda a história que envolvia o evento do século passado, ocorrido entre 1957 e 1958.

Sendo assim, quando partimos da praia, só voltámos a parar no parque empedrado à entrada do acesso ao farol.

O vulcão dos Capelinhos era imponente. Contudo, o que me causava mais espanto era pensar que cerca de meio século antes aquela montanha não estava ali.

Deixámos o carro e caminhámos por uma linha de lajes enterradas no chão, delineando o percurso até um grande círculo.

─ O que é aquilo? ─ perguntei, apontando para o círculo que parecia a tampa de um enorme poço.

─ Aquilo é o topo do centro de interpretação. A estrutura está enterrada no chão.

Concordo que para a paisagem, terem construído um edifício ali teria sido chocante. Por isso, aprovei a opção de uma estrutura construída no subsolo.

Após caminharmos pelas lajes, observei os vidros que se escondiam numa espécie de fosso e que permitiam a entrada da luz natural no interior. Depois, continuámos a andar pelo chão de terra até ao edifício do farol desactivado desde a erupção. O farol da ponta dos Capelinhos era a imagem de marca do local. Observei as janelas do rés-do-chão e achei curioso não ver nenhuma porta até me aperceber que estava a olhar para o que fora o primeiro andar, uma vez que os andares abaixo haviam ficado enterrados pela chuva de cinza e poeiras.

O farol estava abandonado. Na minha opinião, pareceu‑me pouco cuidado para um marco tão importante da história do local. Contornámos o edifício e eu fiz algumas fotografias.

Olhando de uma forma abrangente para a paisagem desde aquele ponto para o interior da ilha, o contraste de cor entre o verde da vegetação e o solo coberto de poeira da zona envolvente ao vulcão era bastante grande, dando uma sensação de terra sem vida, o que não era o caso. Na realidade, aquele era um bom exemplo do que foi a formação do planeta após toda a cobertura de lava começar a dar lugar à vida. Ali, ainda só tinha passado pouco mais de meio século.

Logo que circundámos o velho farol, Sónia indicou-me a descida para a entrada no Centro. Todo o solo estava forrado por areias escuras.

O acesso parecia a entrada de um túnel descoberto. Existia uma outra estrada por ali, a mesma por onde havíamos passado na noite anterior e que ia desembocar num largo de alcatrão junto ao mar, onde vi o céu estrelado mais bonito da minha vida. O piso em pedra em frente à entrada ligava-a ao parque numa linha que, vista de cima, fazia um ângulo de quarenta e cinco graus em relação ao passadiço de lajes que nos levou ao farol.

O Sol permanecia intenso e brilhante, continuando o dia quente. Soube bem entrar na sombra das paredes que furavam o monte em direcção ao edifício escondido. Ao fundo, duas portas de vidro.

O edifício estava submerso nas areias vulcânicas e pretendia ser um percurso pela história da erupção do Vulcão dos Capelinhos.

Ao entrar, observei o interior que parecia uma nave espacial. Fotografei o espaço circular com um pilar central que parecia abrir em forma de funil para o tecto.

Este primeiro espaço interior era enorme, um pavilhão circular, o espaço exacto do círculo que vira lá em cima. À nossa direita, as escadas para descer, uma vez que as portas ficavam no equivalente a um piso acima do interior da exposição. À esquerda, a descida fazia-se por uma rampa que acompanhava a parede numa curva de quase metade da área total até virar num ângulo de cento e oitenta graus para nova rampa mais pequena, encostada à primeira. Pretendia-se que a percentagem de inclinação não fosse muito grande para quem tivesse que descer por ali, por exemplo, numa cadeira de rodas.

Descemos as escadas e reparei num balcão e vários sofás e mesas junto à parede, à direita da entrada. A luz passava pelos vidros colocados em toda à volta do topo do círculo. Havia diversos suportes informativos, desde jornais, revistas ou ecrãs com imagens do local. Para lá do pilar, fora colocada uma réplica do farol para os visitantes poderem observar numa perspectiva superior a estrutura e como ela se posicionava na costa, antes do evento. Pelo meio do recinto, diversos cartazes continham textos com curiosidades acerca do local e de pessoas famosas da região que tiveram papéis importantes ao longo da História. Quase em posição oposta aos sofás, num espaço já fora do sector circular, um balcão com duas funcionárias encarregues da bilheteira.

Sónia comprou dois bilhetes para visitarmos o Centro de Interpretação. Uma das senhoras explicou como deveríamos percorrer o percurso da exposição, entregando os bilhetes e o folheto informativo do que iriamos ver. Por fim, abriu a porta e nós entrámos para um corredor.

O Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos é, na minha opinião, um local fundamental a visitar na ilha. O seu objectivo principal é fazer uma exposição interpretativa do que acontecera na altura da erupção e como se formara aquela zona. Vimos apresentações multimédia com a recriação do evento, onde se pode perceber como as primeiras erupções formaram pequenas ilhas até à ilha maior que por fim se ligou ao Faial. Tinha descrições das principais actividades vulcânicas do planeta e como se formara o arquipélago.

Parámos no auditório para assistir a um filme sobre os Açores, ficando eu a conhecer mais alguns dados acerca da região.

Numa outra sala, diversos painéis com fotos de lugares emblemáticos de cada uma das ilhas do arquipélago, acompanhadas de descrições e sempre com um convite a uma visita.

Por fim, tal como acontece em todos estes locais, a visita terminava na loja de recordações, onde se poderia comprar desde os postais, a livros, canetas, pins… Um sem número de objectos alusivos ao Vulcão dos Capelinhos, ao Faial e aos Açores.

A visita ainda incluía uma subida ao farol. No entanto, a hora a que terminámos já não nos permitiu subir, pois o Centro ia fechar.

Novamente cá fora, Sónia interrogou:

─ Gostaste, Tubbs?

─ Sim. Muito. E agora, Crockett?

Sónia olhou em volta. O Sol já não estava tão forte e o calor tornara-se mais suportável.

─ Podíamos subir ao vulcão. ─ sugeriu. ─ Existe um caminho que se pode percorrer até lá acima.

Eu concordei com a sugestão e caminhámos para lá do farol, onde o terreno descia para o mar. Ao fim de uns bons quinhentos metros, vi um caminho ladeado por paus espetados na terra, ligados entre si por cordas, delimitando a área para onde não se deveria passar, pois o solo era mais instável e quem o fizesse correria o risco de cair para as rochas fustigadas pelo mar.

Quase não havia vegetação por ali, somente rochas enterradas na areia vulcânica mortiça. A cerca de paus e cordas terminou quando a proximidade do mar deixou de ser perigosa. Prosseguimos a nossa caminhada até o percurso se tornar numa rampa pela encosta do vulcão.

─ Tens a certeza que queres subir? ─ questionei, olhando para as suas sandálias.

─ Sim. Não é tão difícil quanto parece. ─ Sorriu divertida. ─ Em casa lavo os pés.

Por mais cuidado que tivéssemos a andar, os passos nas areias levantavam pó e os nossos pés começaram a mudar de cor.

A dimensão do vulcão tornou-se mais evidente quando reparei em meia dúzia de pontos que não eram mais que pessoas a subir o traçado que nós estávamos a iniciar.

Aquela escalada levou alguns minutos, não sei bem quantos, mas não houve preocupação em sermos rápidos. O vulcão formara uma estrutura rochosa que pareciam três ou quatro montes em volta de um ponto central, o qual alcançáramos após a subida. O solo era tão despido de vegetação que parecia a superfície lunar, ou o que eu imaginava ser a superfície da Lua. Dali de cima, tirei uma foto panorâmica do mar com a costa da Ponta dos Capelinhos e o pequenino farol a vincar a sua posição na paisagem.

Os nossos passos levaram-nos por um vale no coração da montanha, onde caminhámos com o Sol e o azul do mar pela frente. O caminho rasgava o terreno vulcânico onde milhares de pequenas rochas de diferentes tamanhos pareciam ter sido atiradas indiscriminadamente. Esse caminho terminou num penhasco, onde se avistava o mar infinito e as rochas altas. Tivemos cuidado, pois um passo em falso poderia atirar-nos para uma queda fatal.

Quem quer que nos tivesse precedido na subida não seguira o mesmo rumo que nós, optando por outras vistas.

─ O pôr-do-sol daqui deve ser lindíssimo. ─ calculei, observando o astro cada vez mais perto da linha do horizonte.

─ É magnífico. ─ concordou, observando o mesmo que eu. ─ Podemos ficar aqui a ver. ─ Olhou para mim e sorriu divertida. ─ Tubbs e Crockett a partilhar o momento tão romântico como o Sol a pôr-se no mar. ─ Ignorei o seu tom gozão e ela voltou a olhar para o mar. ─ Só espero que no fim não digas “que nojo”.

Percebi de imediato ao que se referia ela. Sónia recordava o momento, quando eramos crianças, em que me roubara um beijo nos lábios, curiosa com a sensação de beijar um rapaz, após ter visto um filme. Como já vos relatei, a minha reacção foi um “que nojo”.

─ Já não somos crianças. ─ disse eu, fotografando o horizonte. ─ E foi uma forma estupida de reagir ao teu beijo. ─ Baixei a máquina e olhei para ela. ─ Pensar que depois, fui eu que desejei beijar-te.

Sem tirar os olhos do horizonte, Sónia confessou:

─ Acredito. Eu própria voltei a ter esse desejo contigo. ─ Fiquei surpreso com a revelação. ─ Eras o meu melhor amigo. Por isso, talvez a melhor pessoa para testar um beijo. Tinha a certeza que se corresse mal, não me irias ridicularizar. ─ Sorriu com a lembrança. ─ Só que tu reagiste daquela forma… “Já viste o Crockett e o Tubbs aos beijos?”

─ Era um puto… ─ justifiquei, sem ter noção que a olhava atentamente. ─ Podias ter tentado roubar outro.

Ela dirigiu os seus olhos para os meus.

─ Nessa altura, não era um toque de lábios. Nessa altura, queria experimentar um daqueles beijos com língua. ─ Sorriu como se se sentisse ridícula por revelar aquilo. ─ Não podia roubar-te um beijo assim. Teria de ser dado de comum acordo. Era uma adolescente a começar a conhecer o meu corpo, os meus desejos… Era insegura e não suportaria ser recusada. Nem mesmo por ti.

─ Não te teria recusado.

─ Teria sido absurdo, Tubbs! ─ afirmou, desviando de novo o olhar para o horizonte. ─ Somos como irmãos.

Procurei calcular quanto tempo demoraria o Sol a tocar no mar, sentindo uma mistura de paixão com raiva por ela me comparar a um irmão e eu não ter coragem de lhe revelar os meus sentimentos. Agia como se tivesse treze anos.

─ Nós não somos irmãos!

─ És o meu melhor amigo. ─ corrigiu com naturalidade.

Como um puto apaixonado ao lado da amiguinha que adora, disse das coisas mais parvas que poderia dizer:

─ Há amigos que se cumprimentam assim.

Quase que parecia que estava a implorar o beijo.

Sónia pensou que eu estava a brincar, uma vez que justificara da mesma forma que ela fizera em criança. Não acredito que em momento algum, ela tivesse ponderado a hipótese de eu continuar a desejar aquele beijo.

─ Deixa lá. Não aconteceu porque não teve de acontecer.

Voltei a olhar para ela e retorqui:

─ O que não quer dizer que eu não o lamente.

Sónia abandonou a observação do horizonte para voltar a encarar-me. Notei que, de alguma forma, se sentiu confusa por eu dizer aquilo.

─ Não me digas que ao fim de vinte anos ainda pensas nisso. Ainda o sentes como uma falha entre nós?

─ Não é uma falha. ─ corrigi. Olhei para o vazio, procurando as melhores palavras. ─ É daquelas coisas que recordas da juventude e lamentas não ter feito. ─ Sorri. ─ Acho que preferia ter a recordação de um estalo teu por te tentar beijar, a esta de nunca o ter feito.

─ Nunca te daria um estalo por me quereres beijar, tonto.

─ Pois… Acredito. Só que agora… Já não sou adolescente para te roubar um beijo.

Sónia virou-se para mim. Senti o seu olhar profundo nos meus olhos. Nesse instante, reparei como o meu coração batia descompassadamente. Num acto reflexo, virei-me para ela.

─ Não quero que isso seja uma lacuna entre nós. ─ disse ela num tom neutro que não me permitiu perceber se falava a sério ou não. ─ Estamos aqui os dois, cara a cara um com o outro. Vamos esquecer que passaram vinte anos. Podemos matar a curiosidade de saber como será beijarmo-nos.

─ Não me gozes!

─ Não estou a gozar, Ricardo! ─ exclamou, séria. ─ Queres beijar-me? Estou aqui.

─ E tu, Sónia? Queres beijar-me?

─ Não estaria a propô-lo, se fosse contra vontade.

O Sol quase tocava o mar e tudo aquilo parecia surreal. A mulher por quem me apaixonara na juventude e por quem continuava apaixonado ao fim de quinze anos distante, ali estava, perante mim, com os lábios prontos a receber os meus. Não parecia possível.

Não pensei nas consequências de sucumbir ao desejo. Sónia nunca imaginou nas consequências que teria aquela experiência. Sim, para ela era só uma experiência. A que saberiam os lábios do amigo de sempre? Como seria beijar o Ricardo? Era mera curiosidade. Se ela por algum momento, nos instantes que antecederam o beijo, ponderou como seria, deveria ter pensado num toque de lábios, um beijo carinhoso na boca um do outro, quase fraternal. O resultado? Bom…

Os nossos lábios tocaram-se e o sabor que senti nos dela foi mais doce que algum dia poderia imaginar. Sabia o quanto a amava da mesma forma que tinha a certeza que não era correspondido. Daí que a reacção esperada fosse quase um “toca e foge”. Porém, ela beijou-me com carinho, com o mesmo carinho com que agia comigo, fosse num abraço ou numa carícia. Beijou-me lentamente e, sem pensar, colocou os braços à volta do meu pescoço. Eu envolvi o seu tronco com os meus, mantendo a máquina fotográfica na mão.

Foi um beijo de olhos fechados, os sentimentos à flor da pele, cheio de atracção. Prolongou-se por alguns segundos até se tornar mais intenso, mais profundo. As nossas línguas tocaram-se, a saliva misturou-se, o abraço ficou mais apertado.

Sónia parou, abriu os olhos e os braços, afastando-se um passo. Olhou para mim, surpresa e sem saber o que dizer. Depois, olhou para o horizonte e alertou:

─ Se não aproveitares agora, vais perder o pôr-do-sol.

Encolhi os ombros.

─ Não existe nada mais bonito, para mim, que a pessoa que está agora na minha frente.

Sónia voltou a olhar para mim. Ia a falar, mas hesitou. Abanou a cabeça, confusa.

─ Que aconteceu aqui? ─ interrogou, fugindo aos meus olhos.

─ Demos um beijo.

─ Sim… Eu sei. Mas…

Apaguei o passo que nos separava e voltei a beijá-la da mesma forma. E ela correspondeu da mesma maneira. Afinal, a paixão entre nós não existia só em mim.

Não sei quanto tempo demorou o beijo, ou os beijos. Sei que o Sol já se escondera no mar, quando ela interrompeu o momento de forma abrupta. Parecia arrependida.

─ Que foi?

─ Temos que regressar. ─ disse ela, meio transtornada, virando-me as costas e iniciando o caminho de regresso.

Eu segui atrás de si, optando por não dizer nada. Descemos em silêncio, aproveitando os últimos focos de claridade do ambiente.

Subitamente, formara-se uma barreira de gelo invisível.

Onde estava a paixão dos beijos? Onde estava o desejo correspondido de minutos antes? Sónia quebrara o momento como se tivesse tido um súbito rebate de consciência.

Mesmo com cuidado para não escorregar, ela procurava manter-se à minha frente, evitando confrontar o meu olhar ou ter o seu rosto observado por mim. A sua abrupta alteração na forma de agir acabou por me deixar também confuso.

Respeitei o seu silêncio durante todo o retorno ao parque de estacionamento deserto, no regresso ao carro e na viagem até casa dos seus pais.

Não sei o que a teria perturbado mais, se perceber o quanto eu era apaixonado por ela ou constatar que também o era por mim.

O silêncio dentro do carro só se extinguiu com a presença de Clarinha, após a termos ido buscar a casa dos avós. A pequena foi relatando mais um dia com as amigas ao longo do caminho até à Horta.

Em casa, as cenas dos dias anteriores repetiram-se, tomar banho, fazer o jantar, pôr a mesa… Tudo sem Sónia e eu voltarmos a trocar uma palavra que fosse.

Durante o jantar, Clarinha notou que algo não estava bem, pois ninguém falava. Na sua honestidade de criança, confrontou-nos com isso. Sónia respondeu que estava tudo bem e, para o provar, começou a relatar o nosso dia de passeio.

Eu ajudei no relato com a noção que Sónia evitava encarar os meus olhos, concordando com o que eu dizia sem virar o pescoço.

Naquela noite, tudo me pareceu irritantemente padronizado, todas as tarefas domésticas dela se revelavam um refúgio para me evitar. Como sempre fizera, ajudei a limpar a louça sem receber um olhar que fosse.

Chegou a hora de Clara parar de ver a novela e ir para a cama. A mãe dissera-lhe duas vezes para ir lavar os dentes e ir deitar-se. Dei por mim a ansiar ficar de novo sozinho com Sónia, o que costumava acontecer após deitar a filha.

Clara deu-me um beijo e recolheu ao quarto na companhia da mãe. Quando Sónia voltasse, tínhamos de falar.

Esperei a olhar para a televisão sem ver o que estava a passar na imagem. Pensava no que havia de dizer para quebrar aquele fosso que surgira entre nós.

Quando voltou, aproximou-se do sofá e disse:

─ Vou para a cama. Boa noite, Ricardo!

Só o simples pormenor de me tratar pelo nome próprio, e não pela alcunha, era revelador de como se queria manter distante.

─ Espera! ─ pedi, levantando-me do sofá. ─ Temos de falar.

─ Não, Ricardo. ─ recusou com um esforço para não desviar os olhos. Receava tudo o que eles pudessem denunciar. ─ Por favor, hoje não.

─ Temos de falar, Sónia. ─ Foi a minha vez de a tratar pelo nome, pois nunca usávamos as alcunhas em assuntos sérios. ─ Não consigo ir para a cama sem conversarmos sobre o que aconteceu.

Sónia abanou negativamente a cabeça.

─ Estou a pedir-te, Ricardo. Hoje não! Estou confusa e tenho medo do rumo que possa seguir a nossa conversa.

─ Somos… ─ As palavras morreram-se na minha boca. Ia a dizer “amigos”, mas esse conceito pareceu-me inoportuno para o diálogo. No entanto, ela encarou-me com maior firmeza, esperando que completasse. ─ Somos pessoas que gostam muito uma da outra.

─ Isso não está em causa.

─ Então o que está em causa?

─ Aquilo que aconteceu.

─ Aconteceu um beijo… vários beijos.

─ Por favor, Ricardo. ─ reclamou. ─ Hoje não!

─ Do que tens medo? ─ inquiri, procurando perceber. ─ Receias o que o beijo possa ter trazido ao de cima entre nós?

─ Não! ─ negou meia confusa. ─ Receio o que ele possa ter apagado entre nós. ─ As suas palavras fizeram-me arregalar os olhos. Não esperava aquela resposta. ─ Estás a ver? É por isso que não quero falar hoje. Não quero que a conversa nos leve a dizer coisas sem retorno. Por favor, Ricardo! Deixa-me ir, deixa-me ir dormir. Preciso de descansar para pensar em tudo isto.

─ Em nós?

─ Em ti e em mim.

Não fui capaz de dizer mais nada para além da retribuição dos votos de boa noite. Corrigir um “nós” com um “tu e eu” não era um bom pronúncio para quem estava apaixonado.

Sónia afastou-se para o corredor. Doía observá-la tão linda, tão sensual, tão querida e tão apaixonante sem poder amá-la como desejava. Antes de voltar a entrar no quarto, parou como se tivesse esquecido algo. Regressou à sala.

─ Ricardo! Gosto muito de ti.

─ E eu amo-te, Sónia!

Vi-a abanar a cabeça em desalento e a afastar-se para desaparecer atrás da porta do quarto.

Fiquei sozinho na sala, envolvido pelo som dos diálogos pouco criativos da telenovela. Decidi desligar tudo e também recolher ao meu quarto.

Na cama, não consegui dormir, pois a incerteza do futuro com Sónia atormentava-me a mente. Mesmo com as luzes apagadas, a escuridão não ajudava a trazer o sono e com o passar dos minutos, o quarto pareceu menos escuro, revelando os vultos provocados pelos móveis. Temia o que os beijos poderiam ter feito à nossa relação, à nossa amizade. No entanto, nem mesmo com a possibilidade de perder a amiga, eu me arrependia de a ter beijado.

Para ver se estimulava o sono, peguei no telemóvel e fui consultar o meu correio electrónico, saber se haveria alguma novidade. Talvez isso me distraísse e me fizesse dormir.

Não havia quase nada de novo, apenas uma mensagem de um colega a perguntar se já decidira aceitar o projecto de Singapura. Não sabia. Naquele momento, nem eu sabia o que iria fazer em relação a isso. Escrevi uma mensagem como se estivesse bem-humorado, a informar que estava a gozar as minhas férias e não queria pensar em trabalho.

Contudo, aquilo que era um facto consumado, tornava‑se agora uma incógnita. Iria para Singapura sem qualquer hesitação se não tivesse acorrido ao chamado da minha amiga, aquela que já não tinha dúvida que era a mulher da minha vida. E como se pode ir para o outro lado do planeta e deixar o amor da nossa vida para trás? Não se pode. Não se consegue.

Singapura era uma grande oportunidade profissional, já para não falar em rendimento. E valeria a pena recusar isso por alguém que não me pareceu tão entusiasmado com a ideia do amor do amigo de sempre? Tornava-se complicado obter respostas sem conversar com Sónia, olhos nos olhos, e esclarecer a verdadeira essência dos nossos sentimentos.

Sempre pensei que a revelação do meu amor fosse como uma pedra que se atira à água. Criava o impacto, distorcia a superfície plana e esperava. Depois a água voltaria ao que era, mas a pedra continuava lá. Em parte, até fora isso que acontecera. O conhecimento do que sentia por si, ficou em Sónia. Só que ao contrário da água, a distorção continuava infinitamente, sem saber se voltaria a ficar tranquila com esse amor ou em constante sobressalto e renúncia.

Não sabia o que fazer. E naquele instante, mergulhado na insónia, nada poderia fazer para além de esperar o novo dia e nova oportunidade para conversar.

Talvez não devesse ter acontecido… Não. Ainda bem que aconteceu. Foram beijos tão bons. Poderia beijá-la para toda a eternidade sem me cansar. Nunca senti nada como as sensações que se espalharam pelo meu corpo, quando trocámos aqueles beijos. Em nenhuma relação que tivera, houvera uma noção de encaixe tão perfeita, uma fusão de espíritos, uma entrega tão profunda. Se aquilo era o amor, então Ricardo, tu nunca amaste ninguém.

IX

 

A cerimónia tornou-se demasiado morosa. Não me parece que seja fácil encarar um funeral com simplicidade, mas aquele estava a ser longo. As minhas pernas começavam a fraquejar, pois ainda não estava restabelecido dos problemas físicos resultantes do acidente.

A manhã amena, iluminada pelo Sol de Verão, corria com a mesma paz de sempre na ilha do Faial. Se a morte é paz, quem ali encontrava a sua última morada deveria ter o seu espírito tranquilo para toda a eternidade.

O caixão desceu e as primeiras pás de terra foram atiradas sobre ele. Nunca é fácil despedirmo-nos de quem sabemos que nunca mais iremos ver. E a sua filha Clara soluçou naquele instante, no último adeus, entre duas doses de solo fofo.

As pessoas começaram a dispersar. Eu proferi uma oração mental, desejando paz à sua alma. De súbito, o ruído de uma travagem na estrada chamou a atenção de todos. Alguém não respeitara um sinal de trânsito e quase houvera um acidente. Não, pensei, outro não. Nem mesmo somente como testemunha suportaria ver dois carros colidirem, não depois daquele… Meu Deus! Sónia…

Mais ao longe, a sirene de uma ambulância apitou pelas ruas da Horta, cortando de forma dilacerante a tranquilidade do ambiente. E a minha memória retornou, fazendo-me pensar nas últimas horas antes de…

 

 

 

Aquela noite em que não conseguira falar com Sónia fora um tormento e mal dormi nas primeiras três horas que estivera na cama. Em consequência disso, quando despertei na manhã seguinte, já era quase hora de almoço.

Não se ouvia nada em casa e nem lá fora as vozes das vizinhas ecoavam pelo exterior. Levantei-me da cama a tentar adivinhar onde estaria Sónia. Estaria ainda a dormir? Estaria na sala à espera que eu acordasse? Vesti uma camisola e saí do quarto para obter a resposta.

Todo o interior estava tão silencioso que não me pareceu que estivesse mais alguém em casa para além de mim. Pensei em ir espreitar ao outro quarto, mas uma folha de papel sobre a mesa da sala chamou a minha atenção. Caminhei até lá e li a mensagem que Sónia me deixara, informando que só voltaria após o almoço e que me deixara comida no frigorífico para eu almoçar.

Não tinha dúvidas que ela continuava a fugir de mim.

Larguei a folha onde a encontrara e fui tomar um banho, pensando sempre no que haveria de dizer quando a voltasse a ver. Sónia poderia tentar adiar o assunto, mas não poderia fugir eternamente a ele.

Nesse dia, vesti umas calças de ganga e uma camisola larga de manga curta. Não me preocupei com calções de banho, pois era pouco provável que o dia incluísse algum mergulho.

Almocei sem dar pelo tempo passar, lavei a louça que sujara e sentei-me no sofá olhar para a televisão, mudando de canal de forma aleatória e quase inconsciente.

Cerca de uma hora mais tarde, senti uma chave entrar na fechadura da porta da rua. Esta abriu-se e por ela entrou a mulher que eu amava de uma forma que se arriscava a transformar em dor. Sónia parecia ter vindo da praia, pois trazia um vestido fresco e o cabelo húmido despenteado.

─ Olá! ─ cumprimentou com pouca entoação e rosto triste.

─ Olá! ─ retribuí com um sorriso para quebrar o gelo. ─ Foste à praia?

Sónia passou pelo sofá sem ter intensão de me dar um beijo como fazia todas as manhãs. Largou a mochila com a toalha no chão e respondeu:

─ Aproveitei para passar a manhã com a Clarinha, no Varadouro.

─ Vi o teu bilhete, quando acordei.

─ Estavas a dormir, quando saímos.

─ Sim… Não dormi nada de noite.

─ Eu também não.

Ela continuava a furtar-se a encarar o meu rosto. Sentado, coloquei a mão no lugar do sofá ao meu lado e convidei-a a sentar. Sónia sentou-se, mas com espaço para duas pessoas entre nós.

─ Olha para mim! ─ pedi de forma carinhosa. Ela acedeu, apesar da dificuldade em o fazer, abalada por uma timidez que nunca existira entre nós ─ Estás com um olhar tão triste. ─ Encolheu os ombros e abanou a cabeça. Pareceu querer justificar, mas não encontrou palavras. ─ Sinto que sou a razão de toda essa tristeza.

─ Não! Pelo menos, não de uma forma intencional.

─ Não planeei nada do que aconteceu.

─ Eu sei. ─ concordou sem qualquer dúvida. ─ A grande responsável fui eu. Fui eu quem sugeriu que o fizéssemos.

─ E é por isso que estás triste?

Voltou a encolher os ombros.

─ Não sei explicar. Não consigo olhar para ti da mesma forma e sinto-me como se tivesse perdido um amigo.

─ Mas não perdeste.

─ Não consigo ver-te da mesma forma. ─ repetiu. ─ Éramos o Tubbs e o Crockett, duas crianças a fazer de adultos amigos para sempre. Não dois adultos apaixonados. ─ Olhou para o tecto. ─ Há coisas que nunca me passaram pela cabeça contigo. Há sentimentos que antes de ontem eram surreais pensar em partilhar contigo, Ricardo. E depois daquele beijo, foi como ter aberto a caixa de Pandora, revelou-se algo com o qual eu não sei lidar.

─ Que fazemos, então? ─ questionei, procurando compreendê-la. ─ Eu continuo a ser teu amigo, mas mentir‑te‑ia se dissesse que é só isso que sinto por ti.

─ Eu sei, Ricardo.

─ Porque é tão difícil de aceitar que possa existir amor entre nós? ─ A pergunta frontal fê-la retrair-se. ─ É por causa do teu ex? Ainda gostas dele? ─ Ela abanou negativamente a cabeça. ─ Então?

─ O difícil desta situação está entre tu e eu. ─ tentou explicar. ─ Está entre a forma como vamos lidar um com o outro, a partir de agora.

─ Por muito que me custe a acreditar, não deixarei de ser teu amigo, se o teu problema for não gostar de mim como eu gosto de ti. ─ Sónia olhou-me nos olhos, mas não se manifestou. ─ Sê sincera comigo, Sónia. Mesmo que isso me parta o coração, não deixarei de gostar de ti, nem de te apoiar como amigo, sempre que precisares.

Desviou o olhar para as mãos onde entrelaçava os dedos de forma nervosa. Dei-lhe o tempo que necessitou para falar. Por fim, voltou a encarar-me.

─ Conhecemo-nos há vinte e cinco anos. ─ lembrou, sorrindo. ─ És a pessoa que melhor me conhece, és capaz de me ler, saber o que estou a pensar sem que eu diga uma palavra. Queres que eu acredite que tu tens dúvidas em relação ao que sinto por ti? Tu sabes tão bem como eu, que o que aconteceu ontem foi surpreendente e recíproco. Se foi bom? Claro. Se gostei? Adorei. O problema é que consequência terá isso para o meu futuro ou para o teu futuro. ─ Eu ia a responder, mas ela fez um gesto para que não a interrompesse. ─ Sempre te vi como um irmão, um ombro onde me refugiar quando a vida se torna numa tempestade. Desde ontem, penso em ti como homem, penso no beijo, penso… Sim. Nisso também. ─ Não consegui evitar um sorriso por ela confessar que me desejava. ─ Mas… E depois? Daqui a uns dias tu vais embora e…

─ Vem comigo! ─ convidei com toda a certeza do que queria.

Sónia abanou a cabeça, agastada.

─ Sê realista, Ricardo. Tu tens uma vida diferente da minha. Vais para Singapura. Eu sou uma mãe, uma mulher que desde que voltou aos Açores, nunca mais saiu. Tenho a minha vida aqui. ─ A minha mente funcionava num ritmo alucinante na busca de argumentos para a convencer. Porém, a última frase arrasou-me. ─ Sejamos francos. Sei como és nos relacionamentos. Não quero ser mais uma das tuas conquistas. Sempre me orgulhei de ver as mulheres passarem pela tua vida e eu ficar. Não quero passar para esse lado.

─ Achas que é isso que significas para mim? Mais uma?

─ Não sei, Ricardo.

Sentado no sofá, aproximei-me dela até ficar quase sem espaço entre nós. Olhei-a nos olhos e acariciei-lhe uma madeixa de cabelo húmido.

─ Não percebes que em todas as minhas relações eu te procurava a ti? Sempre fui apaixonado por ti, Sónia. E mesmo parecendo um tipo confiante com as mulheres, sempre fui inseguro contigo. Tu sempre foste demasiado preciosa para me arriscar a perder-te com uma confissão de amor não correspondida. ─ Os nossos rostos encararam-se de forma tão próxima que lhe sentia a respiração. ─ Porque será que os meus namoros não duravam? Porque te procurava a ti neles e nunca te encontrei. Não existe ninguém como tu, ninguém que me faça sentir tão bem como tu. Ando há mais de vinte anos a esconder uma paixão e agora descubro que sou correspondido. Como achas que me sinto? Feliz, muito feliz. ─ O meu sorriso perdeu-se. ─ Só que depois essa felicidade morre porque te vejo encarar o meu amor com mágoa.

Se pensava que já nada me surpreendia, a lágrima que brotou dos seus olhos deixou-me confuso. Pensei que as minhas palavras só aumentavam a sua angústia, até ela dizer:

─ Nunca me disseram nada tão bonito.

Aproximei mais o meu rosto do seu e beijei-lhe a face riscada pelas lágrimas. Ela abraçou-me. Senti a sua boca procurar a minha. Os nossos lábios voltaram a tocar-se. O beijo teve um sabor salgado pelos restos das lágrimas.

Tombámos abraçados no sofá, trocando beijos apaixonados. Não pensámos em mais nada para além da paixão, do desejo, do carinho e do amor. Apesar de toda a excitação, suspendi o beijo.

─ Quero fazer amor contigo! ─ Ela hesitou, assustada. ─ Não queres?

─ Nunca estive com outro homem.

─ Nada tens a recear, comigo.

Ela tocou os meus lábios com a ponta dos dedos. A seguir, empurrou-me com suavidade para que a deixasse levantar.

─ Eu sei. ─ A ternura da sua voz era igual ao carinho da sua mão no meu rosto. ─ Aqui não.

Fiquei a vê-la levantar-se do sofá, expectante. Estendeu‑me a mão e convidou-me a acompanhá-la. Seguimos para o quarto onde eu passara as noites em sua casa.

Sónia conduziu-me para o interior e fechou a porta. Só me largou a mão quando me indicou a cama para que me sentasse. Não disse uma palavra. Observei os seus movimentos. Puxou o vestido até à cintura e sentou-se ao meu colo, de frente para mim. Percebi que estava tensa. Eu tremia com a ansiedade de estar com ela.

Coloquei as mãos nas suas pernas. Sónia observava-me com um olhar vulnerável, como se ponderasse a cada gesto se aquilo seria correcto. Voltou a acariciar-me o rosto e as nossas bocas tocaram-se, reiniciando a partilha de paixão.

A nossa respiração ofegante era reveladora do desejo que se espalhava pelos nossos corpos. Sónia voltou a levar as mãos ao vestido e despiu-o, puxando-o pela cabeça. Pela primeira vez, vi o seu corpo em biquíni sabendo que o podia acariciar sem receio.

Logo que atirou a peça de roupa para o lado, travou as minhas mãos que lhe subiam pelas ancas. Sorriu e mordeu o lábio inferior. As suas mãos seguraram a parte inferior da minha camisola e puxaram-na para cima. Eu levantei os braços, facilitando a sua acção para me despir.

Em tronco nu, aguardei que ela contemplasse o meu corpo. Acariciou-me os ombros, o peito… O seu toque era suave, cheio de ternura. Voltou a olhar-me nos olhos. Novo sorriso. Sem nunca desviar o olhar, as suas mãos afastaram-se para se esconderem atrás da sua cabeça, por baixo do cabelo. Percebi que estava a desapertar o nó que sustinha a parte superior do biquíni. Quando as suas mãos voltaram a aparecer, traziam as pontas dos fios libertas do nó. Sem hesitar, o rosto fez uma expressão languida e os dedos largaram os fios, deixando-os cair desamparados e levando com eles os dois triângulos de tecido que lhe cobriam o peito. Perante os meus olhos revelavam-se os seios mais perfeitos que alguma vez observara.

Aquilo que partilhámos nos minutos seguintes foi demasiado íntimo e profundo para poder descrever com justiça. As sensações de prazer ultrapassaram em muito, qualquer ideia que pudesse ter feito em toda a minha vida de como seria fazer amor com Sónia.

O nosso envolvimento naquela cama foi tão apaixonante, tão carregado de desejo e ternura que percebi que pela primeira vez, eu estava a fazer amor. Tantos relacionamentos e nunca atingira a profundidade de sensações que encontrava ali. Fora sempre sexo, fora sempre procura de prazer. Nunca houve a troca de olhares que tive com a mulher da minha vida, como se visse a minha alma espelhada nos olhos dela, enquanto a sentia a receber-me.

Não fomos só nós que nos amámos, os nossos espíritos fizeram amor, as nossas almas fundiram-se quando os nossos corpos suados se colaram um sobre o outro, movendo-se à força da paixão.

Parecia uma fantasia, mas nenhuma das que tivera na juventude alcançara o encanto que a realidade me oferecera.

Transcendental. Não consigo descrever de outra maneira, o orgasmo que explodiu em nós.

Não sei quanto tempo passou. Não fora só uma vez. Uma paixão aprisionada em tantos anos não sacia a sua sede de liberdade num único momento. Os seguintes não foram tão atléticos, tão vibrantes na descoberta da novidade. Foram mais amorosos, mais carinhosos, mais prolongados e suaves, sem perder o prazer do auge.

Deitados na cama, nus, olhávamos o tecto sem dizer nada. Ficámos assim alguns minutos, recuperando o fôlego.

─ Falei com a minha mãe, hoje de manhã. ─ informou Sónia, quebrando o silêncio. Eu olhei para ela. ─ Precisava de falar sobre o que tinha acontecido ontem.

Aquilo não me surpreendeu. Sónia sempre fora muito próxima da mãe e encontrava nela uma conselheira quando procurava tomar decisões.

─ E então?

─ Só lhe falei no beijo. ─ continuou. ─ Não quis adiantar mais nada, só que nos tínhamos beijado e que tinha sido estranho. ─ Virou a cabeça para mim, empurrando a almofada para que não lhe tapasse a visão. ─ Contei-lhe que tu estavas apaixonado por mim.

─ E que disse a tua mãe?

Sónia voltou a olhar para cima.

─ Perguntou-me o que sentia por ti.

─ E tu?

─ Não lhe soube responder. ─ Olhou de novo para mim. ─ Tinha de conversar contigo primeiro.

─ E ela?

─ Sorriu. Disse que sempre gostara de ti e que eu deveria refazer a minha vida. ─ Ofereci-lhe um sorriso, feliz por saber aquilo. ─ Só que não lhe contei que vais para Singapura.

─ Depois do que aconteceu, aqui, esta tarde, não penso ir.

Sónia encarou-me quase zangada.

─ Achas que eu quero isso? Achas que quero que desperdices a tua vida profissional para ficares aqui comigo?

─ Então vem comigo. ─ sugeri com toda a calma. ─ Tu e a Clarinha podem vir viver comigo para Singapura.

Sem responder, ela levantou-se da cama e procurou a roupa espalhada pelo chão. Agarrou no vestido e voltou a enfiar-se nele.

─ Não posso fazer isso, Ricardo. Não posso largar tudo para ir contigo. Não posso afastar assim a Clara dos avós, de a submeter a uma realidade nova num país diferente só para ficarmos juntos.

─ Que sugeres que façamos? ─ questionei, pensando que a conversa tinha o objectivo de planear o nosso futuro em conjunto.

Sónia não respondeu, mas o seu rosto triste não deixou dúvidas. Não havia futuro em conjunto. Aquela tarde fora um momento para recordar. Percebendo isso, saltei da cama e coloquei-me na sua frente.

─ Eu amo-te, Sónia! Não vou para Singapura se tu não fores comigo.

─ Eu não vou contigo.

─ Então, continuarei no meu cargo em Lisboa. ─ informei, adaptando o futuro a uma vida em comum. ─ Tu e a Clarinha ficarão a duas horas e meia dos teus pais. Podem vir cá todos os meses, se quiseres.

─ Não vou viver às tuas custas.

─ Também existem empregos em Lisboa.

─ Com a minha idade…

─ Eu arranjo-te um emprego na minha empresa.

─ E ser a amante do patrão?

─ Não digas disparates! ─ irritei-me por ela só me retribuir obstáculos ao nosso amor. ─ Tens qualificações suficientes para trabalhar na nossa área.

Sónia abanou a cabeça e disse:

─ Isto não é uma telenovela, Ricardo. Nem este é o último episódio em que milagrosamente tudo se encaixa para vivermos felizes para sempre.

─ És tu quem não deixa as peças encaixar.

─ Sou realista.

─ Podes ser o que quiseres. ─ lamentei. ─ Mas, garanto‑te que não vou desistir de ti. Não esperei vinte anos para te amar e agora partir sem lutar por ti.

─ Não podes fazer nada para alterar a realidade das coisas.

─ Casa comigo! ─ O pedido atingiu-a com toda a força da surpresa. ─ Não estou a brincar, Sónia. Eu amo-te! Queres casar comigo?

Por alguns instantes, ela não foi capaz de articular as palavras. O espanto, a confusão, a dificuldade em saber o que responder mergulharam-na num completo desnorte. Meio engasgada, sussurrou:

─ Eu sou casada.

─ Vais divorciar-te. ─ lembrei, mantendo-me firme. ─ Eu espero. Esperei vinte anos, posso esperar mais umas semanas.

Parecia uma estátua a olhar para mim. Eu avancei alguns passos até ela, segurei o seu rosto nas minhas mãos e voltei a encontrar a minha alma espelhada no seu olhar.

─ Queres casar comigo? ─ Ela continuava a não responder. ─ Tu és mais importante que qualquer outra coisa na minha vida. Nada faz sentido se for para ficar novamente longe de ti. Adaptarei o que for preciso para que possamos ser felizes juntos. ─ Uma pausa. ─ Sónia! Casas comigo?

Os nossos olhos observaram-se mutuamente. Dos seus, as lágrimas voltaram a surgir, uma em cada canto, escorrendo devagar pelo rosto. Sorriu como uma menina frágil e respondeu:

─ Sim… Sim!

Selámos o desenlace com um beijo apaixonado.

A tarde ia bem avançada e a hora de ir buscar Clarinha a casa dos avós aproximava-se. Fomos tomar banho, em separado, pois o contrário poderia levar a um atraso ainda maior.

Quando nos reencontrámos na sala, Sónia vinha ainda mais deslumbrante que o habitual.

─ Quando penso que não é possível ficares mais linda, tu surpreendes-me.

Ela sorriu, envergonhada com o elogio.

─ Ricardo! ─ chamou, como se quisesse dizer algo antes de sairmos.

─ Sim.

─ Queria pedir-te que não disséssemos nada aos meus pais. ─ Percebendo que eu poderia não compreender aquele pedido, justificou. ─ Quero falar com eles com calma. Não que possam discordar, bem pelo contrário. Mas, isso vai causar mudanças nas nossas vidas…

─ Eu entendo. Faremos ao ritmo que pretendes.

─ Obrigado… amor.

Abracei-a com ternura e dei-lhe um último beijo, antes de deixarmos casa e caminhar até ao carro.

O fim de tarde no Faial estava ameno e agradável. O Sol despedia-se de nós com a mesma passividade de sempre, inundando o ambiente com tons alaranjados.

Na rua não havia tanto movimento como durante o dia. Não que a Horta tivesse assim uma grande movimentação de pessoas, mas de manhã e à tarde, via-se sempre mais gente por ali. Com o anoitecer, só perto da marina e nos restaurantes o fluxo humano era mais significativo.

Conduzindo o carro, Sónia levou-nos pela estrada de sempre, rumo a Varadouro. Como sempre fazia, circulámos tranquilamente a uma velocidade de passeio.

─ Há pouco, menti-te. ─ revelou, quando passámos Castelo Branco. Franzi o rosto. Ela sorriu com carinho. ─ Quando te contei a conversa com a minha mãe. Ela perguntou‑me o que eu sentia por ti.

─ E tu disseste que tinhas de falar comigo.

Sem tirar os olhos da estrada, ela abanou negativamente a cabeça, confessando:

─ Eu disse-lhe que também estava apaixonada por ti.

Passámos a zona do aeroporto e entrámos numa longa recta.

─ E ela?

─ Como qualquer mãe que ama uma filha, ficou feliz por eu amar e ser amada.

Em todo o trajecto, não vimos mais que dois carros no sentido inverso ao nosso. Ao fundo da recta, uma curva à esquerda.

─ Eu amo-te, Sónia!

─ Eu também te amo, Ricardo!

Entrámos na curva, ao mesmo tempo que vimos um carro vindo do outro lado aproximar-se. Quase nem reparávamos nele, não fosse ele guinar subitamente, tendo o condutor perdido o controlo do carro.

As recordações seguintes são algo confusas, mas lembro‑me que, mesmo tentando, Sónia não se conseguiu desviar. O carro desgovernado acertou em cheio no nosso, mesmo na porta do lado de Sónia, projectando-nos para fora da estrada. Houve pancadas, vidros partidos, barulho de chapa amassada até o carro parar no terreno lateral, junto a grandes rolos de pasto, arrumados a poucos metros.

Tentei ordenar as ideias, depois de tanto rodopiar. Porém, o pânico foi avassalador, quando olhei para Sónia. O seu rosto estava coberto de sangue que lhe escorria por uma ferida na cabeça. Perdera a consciência e quase me pareceu morta, antes de lhe confirmar os sinais vitais. Também sangrava do braço e da perna, devido a bocados de chapa da porta que a tinha atingido.

Fiquei tão desesperado que a minha única preocupação foi encontrar o meu telemóvel no bolso das calças. Os movimentos eram dolorosos, quando o puxei para fora e marquei o 112. Enquanto aguardava, vi o outro carro para lá da estrada, todo amolgado e com o condutor caído sobre o volante.

Atenderam-me. Tropecei nas palavras com o desespero pelo estado de Sónia. Tentei explicar o melhor que consegui a nossa localização. A senhora da emergência pediu que eu me mantivesse calmo que já iria uma ambulância a caminho.

Enjoo e tonturas, foi o que me fustigou nos segundos seguintes. O estado de Sónia pareceu-me tão grave que me esqueci de mim próprio. Também estava a sangrar, mas não me preocupei. Olhava para Sónia inanimada e a sangrar. As lágrimas começaram a correr pelo meu rosto. Como poderia a vida ser assim tão cruel ao ponto de me deixar amar a mulher da minha vida para a ver morrer logo a seguir?

Comecei a ouvir a ambulância ao longe. Os minutos tinham passado e o arrefecimento das feridas trouxera as dores.

O acidente fora num sítio tão isolado que ninguém se apercebera. Ali à volta era terreno de pasto, onde só andavam as vacas a passar o tempo. A casa mais próxima ficava mais para cima a uns quinhentos metros da estrada. Se não estivessem à janela e a olhar para ali, jamais teriam noção do acidente.

O som da sirene aumentou, mas eu comecei a ver tudo a andar à roda. Usei todas as forças para me manter consciente ao lado de Sónia, só que também eu perdi os sentidos.

X

 

Ao acordar, percebi que estava deitado numa cama de hospital. Tinha dores, mas não me pareceu que tivesse qualquer osso partido. Para além dos arranhões, hematomas e escoriações, o sinal mais evidente do acidente era a ligadura á volta do braço, onde um pedaço metálico se espetara e provocara a perda de sangue que levou à minha perca de sentidos.

Alguns minutos após o meu despertar, uma enfermeira surgiu no meu campo de visão. Veio ver como eu estava e sorriu por constatar que eu acordara.

─ Bom dia! Como se sente?

─ Dorido…

─ Não se preocupe. Não tem nada de grave.

─ E a Sónia? ─ A enfermeira franziu o sobrolho, não reconhecendo o nome. ─ A outra pessoa que vinha no carro?

─ Não lhe sei dizer. Ela não está neste sector. ─ explicou, preocupando-se em ver se estava tudo bem à minha volta. O meu rosto deveria ser revelador da preocupação. ─ Vou chamar o médico para falar consigo e informá-lo do estado da sua amiga.

─ Obrigado.

Penso que a enfermeira deve ter ido logo procurar o médico e talvez nem tenha passado muito tempo até ao momento em que ele veio falar comigo. No entanto, a ansiedade era tanta que tive a sensação de estar horas à espera. Ao chegar, lançou-me um sorriso tranquilizador e repetiu o mesmo que a enfermeira.

─ Não estou preocupado comigo, doutor. ─ expliquei, assustado. ─ Quero saber como está a minha amiga que vinha no carro comigo.

─ A outra senhora está na Unidade de Cuidados Intensivos. ─ informou, alterando o semblante para um ar consternado. ─ O seu estado é muito grave. Sofreu um traumatismo craniano e várias hemorragias. Continua em coma.

Tentei articular alguma palavra sem sucesso. Acabei por balbuciar:

─ Sobre… vive?

─ As próximas horas serão cruciais. Não lhe vou mentir. O estado dela é muito grave.

─ Poss… Posso vê-la?

─ Não, enquanto estiver na UCI.

Perante a questão da minha permanência ali, o médico disse que eu tinha que continuar em observação mais algum tempo e que depois teria alta. Solicitei o meu telemóvel para contactar o escritório e avisar Milu que o meu regresso iria sofrer um atraso.

O acidente acontecera no fim da tarde anterior à manhã em que acordei no hospital. A meio dessa mesma manhã, liguei para a minha secretária em Lisboa. Após os cumprimentos e a conversa circunstancial, pedi-lhe que adiasse o meu voo para a capital indefinidamente. Relatei-lhe que tinham acontecido alguns imprevistos e que eu iria permanecer por ali mais algum tempo. Não falei no acidente, pois isso geraria apreensão na minha equipa e colocaria os directores em sobressalto.

No fim de ouvir todas as minhas indicações, Milu lembrou que eu ficara de dar uma resposta à Administração, quando voltasse, acerca da minha ida para Singapura. Uma vez que o meu regresso era indefinido, inquiriu-me o que deveria fazer, caso fosse confrontada com isso.

O meu impulso foi dizer-lhe que lhes comunicasse a minha recusa, só que nesse instante, uma possibilidade me assolou a mente. Se Sónia morresse… Se Sónia morresse, eu iria querer ficar bem longe de tudo o que me pudesse fazer lembrar de como estivera perto da felicidade e como a perdera tão tragicamente. Ir para longe poderia ser uma boa forma de me embrenhar no trabalho e usar o tempo para ultrapassar a minha dor. E por mais dolorosa que a realidade pudesse ser, eu tinha que ter noção, após as palavras do médico, que esse era o cenário mais provável.

Perante a insistência do que deveria fazer, pedi a Milu que se houvesse urgência na minha resposta, ela dissesse que dentro de uns dias eu comunicaria a decisão, mesmo que ainda não tivesse regressado.

O aspecto do quarto do hospital era frio, apesar de sentir calor. Ao lado da minha cama estava outra, vazia, onde eu alimentava a secreta esperança de que a qualquer momento trouxessem Sónia recuperada para convalescer ali a meu lado.

Os minutos pareceram horas a passar sem nada para fazer além de recordar os momentos vividos com Sónia. Cada vez que uma enfermeira passava pelo quarto, sentia a esperança de receber novidades acerca do estado de saúde de Sónia, sentindo logo de seguida um estremecimento pela possibilidade de me virem dizer que ela falecera. Nenhuma das duas aconteceu nesse dia.

No dia seguinte, recebi a minha primeira visita no hospital.

O senhor Alfredo e a senhora Emília deslocaram-se ao meu quarto para saber como estava. Pediram desculpa por não ter vindo antes, mas tinham passado o dia anterior nas imediações da UCI a aguardar as melhorias do estado da filha.

─ Não tem importância. ─ descansei-os. ─ É natural que queiram estar junto dela. Eu próprio estaria lá, se não estivesse aqui. Como está ela?

A senhora Emília abanou a cabeça com o rosto choroso. Foi o marido quem respondeu:

─ Continua em coma. Os médicos mantêm muitas reservas em relação à evolução do estado clínico dela. ─ O sofrimento de pai travou-lhe o discurso. Suspirou. ─ É muito grave.

Não fui capaz de dizer uma palavra.

─ Ela gosta muito de si. ─ afirmou a senhora Emília, limpando uma lágrima com um lenço de papel.

─ Eu sei. Eu também gosto muito dela.

─ Vá! ─ exclamou o senhor Alfredo. ─ Vamos ter esperança! Deus é grande. Temos de ter fé que ela vai recuperar.

A visita não demorou muito mais tempo. Despediram‑se com a promessa que voltariam assim que possível. Porém, eu disse-lhes para não se preocuparem comigo, pois o importante era a Sónia.

Antes de saírem, o senhor Alfredo sugeriu que eu ficasse em casa deles, quando tivesse alta. Agradeci o convite, mas pedi que me permitissem ficar em casa de Sónia, pois era mais perto do hospital e eu queria ficar o mais perto possível dela. Ambos compreenderam e ele deixou-me ficar a chave da casa.

Recebi alta do hospital a meio da tarde. Ainda pensei em deslocar-me à UCI para saber de Sónia, mas o médico que me dera alta também me dera a informação que não havia alterações.

O hospital não ficava longe do bairro de Sónia. Ao sair do perímetro do edifício, bastou-me descer a rua para alcançar a entrada do bairro, onde tantas vezes ela deixava o carro. Foi estranho regressar ali.

Algumas vizinhas, apesar de nunca terem falado comigo, ao reconhecerem-me perguntaram com ela estava. Informei-as da gravidade do estado de Sónia e todas lamentaram que uma pessoa tão maravilhosa tivesse tido aquele trágico desfecho.

Sei que não fizeram por mal, mas parecia que já lhe estavam a fazer o funeral, ao referirem-se a ela como se já tivesse partido.

Entrei na casa com a dor de quem estava a perder a mulher que amava. Olhei para o sofá onde a beijara com tanta paixão, depois para a porta do quarto aberta, vendo a cama onde fizera amor com ela. Tudo era recordação, tudo era dor.

Eu podia adiar o regresso. No entanto, não podia adiar a coordenação das minhas equipas de consultores. E, por isso, por muito que não tivesse cabeça para trabalhar, tive de fazer da casa de Sónia um escritório temporário para gerir o meu cargo.

Na tarde seguinte, a seguir ao almoço, pouco antes de me preparar para sair de casa e ir ao hospital, ouvi bater à porta. Ao abrir, vi os pais de Sónia. Quase temi o pior, mas o seu sorriso esforçado revelou que eu não deveria temer más notícias. Pelo menos, por enquanto.

─ Viemos ver como estava. ─ disse o senhor Alfredo. ─ Se precisa de alguma coisa.

─ Não, obrigado. Como está a Sónia?

─ Ainda não há alterações. Falámos com o médico de manhã. E agora, aproveitámos para passar por aqui para saber como estava o Ricardo.

─ Eu estou bem. ─ Apontei para a ligadura no braço. ─ Isto não é nada. ─ Convidei-os a sentar. ─ E a Clarinha?

─ Ficou no Varadouro. ─ disse a avó. ─ Está muito triste e preocupada com a mãe, mas não queremos que ela passe o tempo no hospital connosco. Por isso, deixámo-la com as amiguinhas.

Assenti com a cabeça, concordando com aquela opção.

─ Pensei que pudesse estar com o pai. ─ sugeri. ─ Que ele tivesse vindo ver a Sónia. ─ Nesse momento, equacionei a hipótese de ninguém lhe ter contado. ─ Ele sabe, não sabe?

─ Sim. ─ confirmou o senhor Alfredo. ─ Eu liguei-lhe no dia a seguir ao acidente. ─ Vi a senhora Emília abanar a cabeça descontente. ─ Disse que viria visitá-la quando pudesse. ─ Encolheu os ombros. ─ Posso estar a ser injusto, mas não notei que tivesse ficado muito abalado.

─ Não pensem nisso. ─ desvalorizei. ─ Nós estamos cá para o que for preciso.

Como eu também me preparava para ir ao hospital, acabámos por seguir juntos para lá, sempre com a secreta esperança de receber boas notícias. No entanto, para ser sincero, grave como era o estado de Sónia, já era bom não receber más notícias.

─ Não houve alterações no boletim clínico. ─ informou o médico ao ser interpelado por nós, à chegada ao hospital. ─ O pós-operatório está a evoluir bem. ─ Sónia fora operada na noite do acidente, devido às hemorragias internas. ─ O que nos preocupa é os danos causados pelo traumatismo craniano.

─ Ela continua em coma? ─ indagou o pai. O médico confirmou. ─ E ainda corre risco de vida?

─ A sua filha está estável, mas o seu estado ainda inspira muito cuidado. Enquanto estiver na UCI, temos de ser muito reservados com a evolução do seu estado clínico.

─ Só sairá de lá quando sair do coma? ─ questionei.

─ Não necessariamente. Logo que esteja estável e não corra risco de vida, ela poderá sair da UCI. No entanto, a duração do estado de coma é uma incógnita.

A pergunta seguinte que se impunha assustou-me de tal forma que não fui capaz de a fazer. Porém, a mãe teve essa coragem:

─ Ela pode nunca acordar?

O médico hesitou, talvez procurando a forma mais eufemística de explicar, o que acabou por resultar em:

─ Não vamos pensar nisso agora. Temos de ter esperança.

Nessa tarde em que estivera perto da UCI, fazendo companhia aos pais de Sónia e aguardando novidades, o patrão e os colegas dela vieram saber como ela estava. Assim que souberam, cancelaram os passeios da tarde e deslocaram‑se ao hospital para a verem.

Foi o senhor Alfredo quem explicou a todos o estado da filha. Os semblantes ficaram carregados, confrontados com a gravidade da situação.

Delfim olhou para mim e perguntou como acontecera o acidente. Eu fiz uma descrição breve, escudando-me no facto de que não me lembrava muito bem, uma vez que não era um momento que quisesse estar a reviver com o relato.

Curiosamente, Marques lembrou-se de fazer a pergunta que eu ainda não tivera interesse em saber:

─ E o condutor do outro carro?

─ Morreu. ─ respondeu o senhor Alfredo. ─ Não resistiu aos ferimentos.

Nesse instante, o meu telemóvel tocou. Era uma chamada da minha secretária, a comunicar que CEO da minha empresa pedira para eu entrar em contacto com ele.

Como todo o grupo estava a conversar de vários assuntos à volta do sucedido, avisei-os que ia até à cafetaria do hospital e já voltava.

Alguns minutos mais tarde, após pedir um café e sentar‑me ao lado de uma pequena mesa, na cafetaria, peguei no telemóvel e liguei para o meu patrão.

─ Como estás, Ricardo? ─ perguntou, ao atender, com o seu tradicional tom bem-disposto. ─ Ainda em férias. Quando voltas?

─ Ainda não sei.

─ Não te quero pressionar, mas preciso de saber se vais avançar para a chefia do projecto de Singapura.

─ Posso dar-lhe a resposta dentro de dois dias?

Ele era um homem que já me conhecia havia muitos anos. Naquela altura já andava na casa dos cinquenta anos, a caminho dos sessenta, e fora ele quem me convidara pessoalmente para o cargo que eu ocupava na empresa. Por isso, a sua astúcia apercebeu-se que algo não estava bem comigo:

─ Que se passa, Ricardo? A tua voz está estranha. Aconteceu alguma coisa?

─ A minha amiga, aqui do Faial, teve um acidente. ─ informei, sem me incluir no evento. ─ Está muito mal. Ela é uma pessoa muito especial para mim. Por isso, lamento, mas não tenho tido cabeça para pensar nisso.

─ Lamento isso, Ricardo. E faço votos para que ela fique bem. Só que tu sabes que estes assuntos não podem ser paralisados indefinidamente.

─ Sim, eu sei.

─ Tu és a minha escolha! ─ afirmou sem qualquer dúvida. ─ No entanto, se tu não avançares, terei de convidar outro para o projecto.

─ Eu compreendo. Só que não consigo dar-lhe uma resposta agora.

Ouvi um suspirar do outro lado da linha.

─ Dois dias, Ricardo. Quero uma resposta dentro de dois dias.

Houvesse ou não evolução no estado de Sónia, daí a dois dias, eu tinha de dar a resposta, se iria ou não para Singapura.

No tempo que se seguiu, aproveitei para telefonar aos chefes de equipa que lideravam alguns dos projectos de consultoria que tínhamos em mãos.

Numa análise resumida, todos os trabalhos estavam a correr bem. Tinha uma equipa a trabalhar na construção de um viveiro no centro do país, uma obra que inicialmente tinha dado grandes problemas, uma vez que o meio ambiente não parecia propício ao que se pretendia para a instalação do viveiro. Felizmente para a empresa que nos contratara, lá se conseguiu fazer uma adaptação à arquitetura inicial, de forma a ser possível dar forma ao investimento.

Uma outra equipa estava em Angola a estudar o impacto ambiental na construção de uma nova barragem. Eu assistira às negociações com a empresa angolana que nos contratara e quase que fui levado a pensar que eles tinham uma fonte de dinheiro algures, pois não mostraram qualquer problema com o valor elevado do orçamento. E de facto, eles têm uma fonte de dinheiro, em forma de petróleo e diamantes.

Em tempos, chegámos a trabalhar com o Estado português em vários estudos de impacto ambiental. Sempre fomos muito imparciais nos projectos, mas havia sempre muita pressão por parte dos ambientalistas e as empresas públicas não gostavam das nossas conclusões. Não se podia agradar a gregos e a troianos. E nós não agradávamos aos dois. Tornou-se uma opção não trabalhar para o Estado.

Em Portugal, para além do viveiro, só tínhamos a construção de um resort no Algarve. O resto eram empreendimentos no Brasil, México e Canadá. E agora íamos abrir uma nova janela comercial na Ásia com o projecto de Singapura.

Terminados os telefonemas, liguei-me à internet pelo telemóvel para consultar o meu correio electrónico. Como era habitual, tinha várias mensagens de trabalho que analisei ao pormenor e respondi às que a isso obrigavam. A seguir, debrucei-me sobre as mensagens particulares.

O dono da galeria que me convidara a expor as minhas fotos enviara-me uma mensagem a sugerir a alteração da data prevista para a exposição. Reenviei a mensagem para a minha secretária para que definisse uma nova data, mediante a disponibilidade da minha agenda. E respondi ao senhor a solicitar que entrasse novamente em contacto com ela.

A mensagem seguinte era de uma amiga australiana que eu conhecera quando estivera em Sidney. Fora mais que uma amiga. Nunca houve um compromisso oficial, apenas uma amizade colorida, pois sabíamos que um dia eu partiria de Sidney e as nossas vidas levariam caminhos diferentes. E foi o que aconteceu. Naquela mensagem, informava-me que vinha a Portugal e que gostaria de me ver para matar saudades.

Independentemente do que pudesse suceder a Sónia naquele hospital, a minha resposta foi uma recusa devido a estar de férias com a minha namorada.

Por último, a mensagem do meu amigo da agência de modelos a perguntar quando estaria disponível para mais uma sessão de fotos com modelos novos da agência. Respondi que era complicado e que o contactaria quando voltasse ao continente.

Quando olhei à minha volta, a tonalidade de luz na cafetaria era bem diferente. Olhei para o relógio e fiquei abismado. Ficara mais de três horas ali.

Olhei para o exterior, constatando que o Sol se encontrava na sua preparação para mergulhar na água. Isso trouxe-me à memória os beijos trocados com Sónia no Vulcão dos Capelinhos. Todas as boas recordações provocavam dor, perante a luta que ela travava pela sobrevivência.

Como não tivera qualquer novidade dos pais dela, concluí que o seu estado não se deveria ter alterado. Porém, não quis ir embora sem ir falar com eles.

Ao levantar-me da cadeira, raparei numa revista esquecida sobre outra mesa. A capa mostrava uma figura pública a passar férias na neve, algures no hemisfério sul. A notícia era mesmo essa singularidade, estando Portugal em pleno Verão, ela optara por fazer férias na neve. No entanto, o que despontou a minha atenção foi a neve e a recordação da minha velha “máxima” de que nunca nevava no meu aniversário. Parecia que isso se tornara o meu destino, pois quando estiver tão perto de ver a felicidade do amor nevar sobre mim, o destino parecia querer impedir que isso sucedesse, afastando Sónia de mim daquela forma trágica.

Caminhei pelos corredores do hospital até ao elevador. Ia irritado com a vida, interrogando-me pelo porquê de aquilo ter acontecido. Seria algum género de castigo por todas as mulheres com quem fora para a cama e que nunca amara verdadeiramente? Se assim fosse, deveria ser eu a estar naquela cama de hospital e não ela que não tivera culpa nenhuma e sempre fora íntegra no seu casamento. Sónia era uma pessoa tão extraordinária, um ser humano tão terno e amigo. Não era, é! Lutava com os meus pensamentos perante a ideia de ela poder partir para sempre.

O elevador subiu vagarosamente. A minha cabeça passava recordações da menina Sónia na sala de aula, quando nos conhecemos. Recordei a adolescente que eu observava com tanta paixão, a qual escondera todos aqueles anos. Revi a mulher que reencontrei no Faial, quinze anos após a última vez que estivera com ela, surpreendendo-me por ainda sentir uma paixão tão forte, um amor que jamais poderia ser arquivado num qualquer arquivo do subconsciente. Fechei os olhos, procurando reviver as sensações dos beijos trocados ao pôr-do-sol, da partilha de emoções quando nos tornámos um só na envolvência da paixão de uma tarde íntima de amor e sexo.

Como pôde um homem abrir mão de uma mulher como ela? Como pode o pai de Clarinha seguir a sua vida com naturalidade, tendo a sua mulher… ex-mulher numa cama de hospital a lutar pela vida?

Nunca neva no meu aniversário, mas nevou no dele. E ele o que fez? Deitou fora a neve que eu gostaria de conservar para o resto da minha vida. Sacana. Era muito bem feito, se ele se arrependesse, quando ela recuperasse e casasse comigo. Parei de falar mentalmente, concluindo que isso não tinha interesse nenhum. O importante era Sónia recuperar e podermos retomar o nosso amor a partir do ponto em que aquele trágico acidente o suspendera.

No momento em que atravessei o último corredor em direcção à sala de espera, perto da Unidade de Cuidados Intensivos, ouvi um choro abafado de criança. Quase de forma inconsciente, acelerei o passo até entrar na sala donde saíra horas antes.

As minhas pulsações triplicaram com o que vi. A senhora Emília e o marido abraçavam Clarinha com muita ternura. A criança chorava de forma desesperada. Junto deles estava uma senhora que reconheci como sendo a mãe de umas das amiguinhas dela que costumava tomar conta das crianças nas piscinas. Tanto ela como o senhor Alfredo revelavam consternação no rosto, enquanto a mãe de Sónia não conseguia conter as lágrimas perante o choro da neta.

Tanta tristeza só poderia ter um significado. Só uma novidade trágica justificaria o facto de a outra senhora ter vindo ao hospital trazer a pequena aos avós.

Naquela fracção de segundo, as lembranças de Sónia passaram pela minha mente a uma velocidade vertiginosa. Dizem que quando estamos à beira da morte, revemos toda a nossa vida em poucos segundos. Comprovei que isso também sucede, quando estamos à beira de ver o nosso amor morrer, pois eu vi todos os momentos da minha vida que partilhara com Sónia em meia dúzia de segundos.

Ao ver-me, o senhor Alfredo afastou-se da esposa e da neta para se dirigir a mim. O seu rosto de pesar era um pronúncio do que aí vinha. A cada passo que ele dava, o meu pensamento implorava para que não fosse verdade, para que ele me viesse dizer qualquer outra coisa, menos que Sónia morrera.

Clarinha chorava, a avó chorava, a outra senhora escondia o rosto com a mão, o senhor Alfredo dirigia-se a mim e o meu mundo desabou perante a iminência da confirmação de que Sónia sucumbira aos ferimentos do acidente.

XI

 

Uma nuvem branca cobriu o Sol, atenuando a sensação de calor e retirando brilho às flores espalhadas um pouco por cada campa. O funeral chegava ao fim e Clarinha recebia o consolo da tia, irmã do seu pai, que viera acompanhar o irmão ao último descanso.

Não quis perturbar o momento partilhado entre elas e aguardei que Clarinha viesse até mim. Nunca conhecera pessoalmente o seu pai, cujo corpo descera ao descanso eterno num caixão que começava a ficar coberto pela terra que o coveiro atirava de forma desprendida. Lamentava a sua morte, mas não evitava a recordação de alívio no fim da tarde anterior.

Quando o senhor Alfredo viera ao meu encontro, após eu entrar na sala e ver Clarinha num choro desesperado, a minha única reacção foi balbuciar:

─ A Sónia…

─ Continua em coma. ─ disse ele com um semblante agastado. Eu fiquei confuso. No entanto, ele explicou antes que eu pudesse perguntar o que quer que fosse. ─ Parece que esta família está apontada à tragédia. ─ Abanou a cabeça. ─ O pai da Clarinha.

─ Que aconteceu? ─ indaguei com a sensação de alívio por Sónia estar viva.

─ Teve um enfarte, ontem à noite. ─ informou com tristeza. ─ Faleceu esta manhã no hospital em Ponta Delgada. A irmã ligou, a meio da tarde, para informar a Sónia. ─ Fez um esgar de incompreensão. ─ Nem sabia o que acontecera à cunhada. O irmão não lhe dissera.

─ Mas o enfarte foi por causa do estado da Sónia? ─ inquiri, como sendo uma consequência natural, mesmo sendo ex-marido.

─ Não! ─ exclamou o senhor Alfredo com um sorriso irónico. ─ Estava numa noite de copos com amigos. ─ Abanei a cabeça, incrédulo. Ele apontou para a outra senhora. ─ Como não queríamos deixar o hospital, pedimos-lhe que trouxesse a Clara até nós para lhe darmos a notícia.

Então o choro desesperado de Clarinha era por causa da morte do pai. Nada mais natural. Senti uma enorme compaixão pela criança que perdia o pai e corria o risco de também ficar órfã de mãe.

─ O funeral vai ser aqui na Horta. ─ continuou o senhor Alfredo. ─ Nós não temos cabeça nenhuma para lá ir, mas a Clarinha…

─ Claro. É a filha. ─ concordei com a sugestão de que Clara deveria ir ao enterro do pai.

─ Sei que é uma situação complicada, mas será que o Ricardo podia fazer-nos esse favor? ─ O meu rosto revelou toda a surpresa com o pedido. ─ Poderia acompanhar a Clarinha no funeral?

Que podia eu responder? O pobre casal que já tinha de lidar com o facto de a filha estar em coma no hospital, via-se perante a exigência de acompanhar a neta ao funeral do pai. Por mais difícil que a situação também fosse para mim, aceitei o seu pedido e descansei-o, encarregando-me de ir ao funeral com Clarinha.

Assim, ali estava eu a um metro da campa do homem que desprezara a mulher que eu amava com tanta intensidade. Vi a tia de Clarinha trazê-la até mim pela mão. Era uma mulher mais nova que eu, rosto parecido com o do falecido irmão e uma postura fria sem ser antipática.

─ Obrigado por ter vindo. ─ agradeceu, não escondendo os olhos inchados pelas lágrimas, ao retirar os óculos escuros. ─ E obrigado por ter trazido a Clarinha.

─ Lamento a sua perda!

Ela assentiu com a cabeça em forma de agradecimento.

Quando chegara, procurei-a entre os presentes e apresentei-me, explicando as razões da ausência dos sogros do falecido, pela qual eu viera em representação. Notei que essa ausência não lhe agradara, mas se tinha algo a dizer não seria a mim.

─ Espero que a Sónia recupere! ─ desejou, estendendo‑me a mão em despedida. ─ Dê cumprimentos aos avós da Clarinha.

E com aquelas palavras afastou-se, recolocando os óculos na face.

Clarinha segurou a minha mão, ainda com uma lágrima a escorrer no rosto. Tentei confortá-la e ela abraçou-me com muita força, quase como se tivesse medo que também eu partisse.

Ao sairmos do cemitério, perguntei-lhe se ela queria alguma coisa ou que eu a levasse a algum lugar. Clara pediu apenas que eu a levasse até aos avós, ao hospital, para estar perto da mãe.

Perto dos portões do cemitério, conseguimos apanhar um táxi que nos transportou dali até ao hospital. Caminhei pelo edifício com Clarinha pela mão, procurando dar-lhe algum conforto com sorrisos, quando ela olhava para mim.

Ao chegarmos ao piso da Unidade de Cuidados Intensivos, não encontrei nem o senhor Alfredo, nem a senhora Emília. Interpelei a primeira enfermeira que vi e perguntei-lhe por Sónia.

A sua resposta foi música para os nossos ouvidos:

─ O estado da paciente evoluiu favoravelmente e, por isso, foi transferida para outra unidade.

─ Saiu do coma? ─ questionei com um largo sorriso.

─ Não sei pormenores. ─ respondeu a enfermeira. ─ Mas se saiu da UCI é porque está melhor e já não corre risco de vida.

Agradeci a informação e olhei para Clara, dizendo:

─ Ouviste? A mamã está melhor.

O seu rosto choroso ofereceu-me um ténue sorriso.

A enfermeira explicou-me para onde ela tinha sido transferida e nós circulámos pelos corredores do hospital para a encontrar. Quando chegámos ao local descrito, encontrámos os avós de Clarinha junto à porta do quarto. Ambos sorriram à neta que correu ao seu encontro.

─ Quero ver a minha mãe. ─ pediu Clarinha à avó.

A avó assentiu e explicou-lhe que deveria ter calma, pois a mãe estava muito fraca.

─ Como está ela? ─ inquiri a ambos.

O senhor Alfredo fez-me sinal para aguardar e disse à esposa que levasse a neta até à mãe.

─ Como está ela? ─ repeti.

O rosto do pai de Sónia era revelador da satisfação pelas melhoras da filha. Explicou-me que durante a noite, o seu estado de saúde apresentara melhorias significativas que levaram os médicos a transferi-la da Unidade de Cuidados Intensivos para ali, uma vez que já não apresentava risco de vida, apesar de se manter em coma. No entanto, para felicidade de todos, Sónia despertara do estado de coma nessa manhã. Aqui, o rosto do senhor Alfredo alterou-se e com uma voz meio atormentada, disse:

─ O traumatismo craniano provocou-lhe amnesia.

─ Não se lembra de nada? ─ inquiri, surpreso.

─ Não se lembra das últimas semanas. ─ explicou melhor. ─ Por exemplo, não se lembra que o Ricardo tem estado cá com ela.

─ E essa amnesia é permanente?

─ O médico diz que é uma incógnita. Tanto pode recordar tudo já hoje, como pode nunca vir a recuperar essas lembranças.

Senti uma enorme amargura por ela não se lembrar dos momentos mais bonitos que alguma vez partilháramos em conjunto. Abanei a cabeça, sendo inundado por uma mistura de sentimentos tão paradoxais como era a alegria por ela estar melhor e a tristeza por não se recordar do nosso amor. Concluí que Sónia sobrevivera ao acidente, mas aquela que me amara poderia ter morrido nele.

─ Ela já sabe da morte do ex-marido?

─ Sim. Não queríamos contar-lhe, mas seria difícil para a Clarinha esconder isso da mãe, por isso, optámos por lhe contar.

─ E ela?

─ Uma grande tristeza. ─ relatou o pai. ─ Foi um casamento de muitos anos e era o pai da filha.

Assenti com a cabeça, concordando que não era uma realidade fácil de encarar.

─ Posso vê-la?

─ Sim, claro.

O senhor Alfredo acompanhou-me na entrada para o quarto. O espaço era idêntico àquele onde eu ficara a seguir ao acidente. Paredes frias, ambiente abafado e duas camas, onde a segunda estava vaga.

Não consegui evitar o choque de ver Sónia deitada numa cama de hospital, ainda com a agulha do soro espetada no braço e as marcas do acidente no rosto. Tinha os olhos inchados e as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Quando me viu, sorriu e exclamou:

─ Tubbs!

Forcei um sorriso e disse:

─ Olá… Crockett!

Aproximei-me da cama e dei-lhe um beijo na testa, segurando ao mesmo tempo a sua mão. Ela retribuiu a carícia, apertando a minha mão com ternura.

─ Desculpa, olhar assim para ti. ─ disse ela, observando‑me como se não me visse desde a juventude. ─ A minha mãe já me contou o que aconteceu… Desculpa, mas não consigo lembrar-me de nada destes últimos dias.

─ Não te preocupes com isso. ─ retorqui. ─ O importante é que estás melhor.

A senhora Emília, apesar da oposição da neta, achou que deveríamos ficar sozinhos a conversar e saiu do quarto com Clarinha.

─ Estavas a chorar? ─ inquiri, assim que ficámos sozinhos.

Sónia confirmou com a cabeça e fechou os olhos, voltando a soluçar com tristeza. Depois, balbuciou:

─ O pai da Clarinha… Coitado… Pobre Clarinha! ─ Limpou as lágrimas com a mão. ─ Obrigado, Tubbs! Os meus pais disseram-me que acompanhaste a Clarinha ao funeral. ─ Encolhi os ombros, não dando importância a isso. ─ Deves estar a odiar-me por não me lembrar dos dias passados juntos.

─ Não digas tolices. Tivemos um acidente muito grave. Ficaste muito ferida. Tenho a certeza que com o tempo, vais recordar-te de tudo.

─ Podes falar-me do que aconteceu?

─ Do acidente?

─ Não. ─ Forçou um sorriso irónico. ─ Essa parte, dispenso. Fala-me do que fizemos, desde que chegaste.

De tudo o que acontecera, o mais importante eu não poderia contar. Seria decerto uma grande confusão para ela, saber que se apaixonara pelo amigo de infância e fizera amor com ele, sem se recordar dos sentimentos que haviam despertado nela após o beijo apaixonado trocado sob o testemunho do Vulcão dos Capelinhos. Sendo assim, optei por fazer um resumo dos nossos passeios nesses dias.

─ Quando voltas? ─ questionou, após eu terminar o relato aleatório dos locais que ela me levara a visitar.

─ Ainda não defini. Depois do acidente, adiei o regresso a até tu ficares bem.

─ És um querido! ─ afirmou com ternura. De súbito, voltou a chorar. ─ Não sei o que vai ser de mim. Agora com a morte do pai da Clarinha. Ai, Tubbs… Apesar do divórcio, tinha a esperança que ele voltasse para mim. Mas agora… Meu Deus, ele está morto. ─ Apertou a minha mão em busca de consolo. ─ Eu amava-o tanto!

Aquelas palavras destroçaram-me o coração.

─ Tem calma! ─ pedi, procurando parecer tranquilo. ─ Tu vais ultrapassar isso. Primeiro tens que ficar boa. Depois, irás refazer a tua vida.

Sónia abanou a cabeça descrente.

─ Tenho de ir andando. ─ despedi-me, procurando sair dali antes que revelasse todo o meu desespero por ver o nosso amor assassinado por aquela amnesia. ─ Amanhã venho visitar-te outra vez.

Despedi-me dela com mais um beijo na sua testa e saí do quarto. Passei por Clarinha e pelos avós sem dizer muito mais que as despedidas. Estava destroçado e sentia-o de uma forma mais dolorosa que as dores provocadas pelo impacto do acidente. Afinal, as mazelas mais graves eram invisíveis e incuráveis.

Abandonei o hospital, procurando convencer-me de que as brumas da amnesia se iriam dissipar na cabeça de Sónia. Porém, nada me garantia que isso viesse a acontecer.

Caminhei pelo passeio paralelo à estrada, rumo ao bairro onde ela vivia. Iria para sua casa embebedar-me nas recordações dos momentos em que a amara com tanta paixão na cama do meu quarto. Só de entrar, ao passar a porta da rua, o cheiro que pairava no ambiente recordava o seu perfume, o aroma da sua pele.

Apesar da incerteza do futuro, não estava disposto a desistir facilmente daquele amor. Como me comprometera a dar uma resposta acerca de Singapura, aproveitei para ligar ao meu patrão e informá-lo que declinaria o convite. A resposta não lhe agradou, mas não havia nada a fazer, senão encontrar outra pessoa para o lugar que eu recusara. No entanto, avisou-me que eu não podia ficar no Faial indefinidamente e que deveria regressar a Lisboa rapidamente, pois a minha presença era necessária para uma reunião com um novo cliente.

Perante isto, liguei à minha secretária e pedi-lhe para me reservar um lugar no voo para Lisboa, daí a três dias.

A noite que se seguiu foi muito mal dormida. A cabeça não parava de ver e rever os momentos com Sónia. Antes de ter ido para a cama, observei todas as fotos que fizera durante a estadia nos Açores, vendo tantos registos de felicidade de ambos pela companhia partilhada. O meu maior desejo era poder entrar nas fotos e viajar no tempo até alguns dias antes para modificar o que acontecera na estrada para Varadouro.

E foi a olhar para as fotos que surgiu na minha mente uma possibilidade de recuperar a memória de Sónia. Na tarde seguinte, iria ao hospital com a máquina fotográfica para lhe mostrar as fotos e tentar reavivar-lhe a mente.

 

 

 

─ Lamento, Ricardo! ─ exclamou Sónia com ar triste, quando lhe mostrei dezenas de fotos nossas em vários pontos do Faial e do Pico. ─ Estou a olhar para uma mulher como se ela não fosse eu, pois não me recordo de nenhum desses momentos.

Talvez não sejas mesmo tu, foi o que pensei, pois aquela era a mulher que me amara.

No quarto de hospital, segurando a máquina no colo de Sónia, constatei a dura realidade do fracasso daquela tentativa para pôr fim à sua amnesia.

Nunca fui pessoa de desistir. Porém, confesso que naquele momento foi essa a minha vontade, pois não encontrei nenhuma solução para além da espera indefinida de que Sónia se recordasse do nosso amor.

─ Vou regressar ao continente. ─ informei, ao desligar a máquina. ─ Precisam de mim na empresa.

─ Tenho pena que tenhas de ir. ─ lamentou. ─ Sei que passámos vários dias juntos, mas na minha cabeça, nunca estive contigo. Lamento que não possas ficar mais algum tempo.

─ Eu também.

─ Quando partes?

─ Daqui a dois dias. Mas despeço-me hoje de ti.

Sónia franziu o rosto com estranheza e interrogou:

─ Não voltas cá até partires?

─ Não. ─ O seu rosto foi revelador da confusão pela minha atitude. ─ Tenho esperança que um dia recuperes as memórias dos momentos que passámos juntos. E nessa altura, perceberás porque o estou a fazer.

Pensei que ela ficasse ainda mais confusa por eu dizer aquilo e questionasse ao que me estava a referir. No entanto, a sua reacção foi aceitar com um simples lamento.

─ Espero que voltes a visitar-me. ─ pediu, quando lhe dei um beijo de despedida no rosto.

Sem conseguir encarar o seu olhar, justifiquei:

─ Sabes como a minha vida é complicada para ter disponibilidade para férias. Mas, farei os possíveis.

Sónia esboçou um sorriso.

Com a máquina na mão, lutei com o meu corpo para sair dali. Não conseguiria deixar de amá-la. Nunca o conseguira em tantos anos e não iria certamente consegui-lo depois de sentir o sabor da felicidade do seu amor. Contudo, por mais que isso fosse doloroso, suspirei um “até um dia destes” e caminhei para a porta.

─ Gosto muito de ti, Ricardo!

─ E eu de ti, Sónia!

─ Boa sorte em Singapura! ─ desejou.

─ Obrig…

O agradecimento morreu nos meus lábios, antes de terminar a palavra. A revelação atingira-me de tal forma que quase me desequilibrou. Parei a minha passada e olhei para trás como se não fosse possível, aquilo que estava a imaginar.

─ Como te recordas de Singapura?

O rosto de Sónia mudou de cor. Procurou uma rápida resposta, o que a fez engasgar-se. Eu poderia ter pensado que aquilo fora um foco de luz na escuridão da amnesia. Só que conhecia demasiado bem a minha amiga de infância e o seu rosto revelou-me algo impensável.

─ Foi a minha mãe que me disse.

Se ela me tivesse dito que não sabia como dissera aquilo, eu seria levado a crer que fora de facto um sinal de recuperação. Porém, ao mentir, notei que procurava dar continuidade à amnesia.

─ Ninguém sabia que eu ia para Singapura, além de ti.

─ Eu devo ter contado à minha mãe. ─ insistiu.

─ Antes do acidente, tu disseste que não tinhas contado à tua mãe. ─ Sónia procurou argumentar, mas eu continuei. ─ E sabes porque disseste isso? Porque tinhas contado à tua mãe que estávamos apaixonados e não lhe quiseste dizer que eu ia para longe.

Sónia reagiu como quem fora descoberta e não com surpresa.

─ Ricardo…

─ Eu não acredito nisto.

─ Ricardo…

─ Tu estás a fazer de conta que não te lembras do que aconteceu entre nós? Estás a fingir a amnesia?

Sónia não conseguiu responder, limitando-se a baixar o olhar.

O choque e a mágoa que senti foram tão brutais que não soube o que dizer ou fazer. Quis sair dali e desprezá-la, mas quem consegue fazer isso à mulher que ama? Apertei o queixo, boquiaberto com a sua capacidade de me enganar. Baixei o olhar para o chão e abanei a cabeça. Por fim, voltei a virar-me para me ir embora.

─ Espera! ─ pediu. ─ Por favor, ouve-me! Não te vás embora assim.

Eu parei sem voltar a olhar para ela. Não conseguiria encarar o seu rosto sem a olhar com raiva por ela desprezar o meu amor de uma forma tão desonesta.

─ Não quero falar, Sónia. Não quero dizer coisas de que me possa vir a arrepender. E, para além disso, por mais que me sinta magoado, não quero prejudicar a tua saúde.

─ Por favor, Ricardo!

─ Eu vi-te chorar…

─ Estava a chorar por ter de fazer esta representação.

─ … a dizer que amavas o teu falecido marido.

─ O que disse não é o que sinto.

Soltei um riso irónico e contrapus:

─ Sim… Já percebi que tens grande capacidade para representar. ─ Houve um silêncio em resposta à minha crítica. Não me mexi. ─ Não percebo o que sentes. Pensava que te percebia, mas desde aquele beijo, já subi ao céu e desci ao inferno.

─ Desculpa! Espero que me possas perdoar. Foi a maneira que encontrei para te afastar. Foi errado, eu sei. Não posso deixar que me ames e coloques em causa tudo aquilo pelo qual lutaste toda a vida.

Nesse momento, voltei-me para ela e fulminei-a com o olhar.

─ Quem julgas tu que és para decidires a minha vida? ─ questionei irritado.

─ Sou a mulher que te ama. ─ respondeu com calma. ─ Ao ponto de não deixar que te prejudiques por amares alguém que não se pode adaptar a ti.

Não fui capaz de argumentar nada. Naquele momento, amava-a tanto quanto a odiava. Ponderei o melhor que consegui em meia dúzia de segundos e a minha reacção foi sair do quarto sem dizer mais nada. Sónia chamou-me, mas nada travou o meu movimento. Nem os seus pais no corredor do hospital.

Caminhei tão absorvido nos pensamentos que nem me recordo do percurso que fizera até casa dela. Percorrera a distância entre o hospital e o bairro automaticamente, como um avião a voar em piloto automático.

Ao entrar em casa, sentei-me no sofá e deixei-me ficar parado, matutando em tudo o que acontecera. O tempo passou sem que eu me mexesse. De tal forma que anoiteceu e eu permaneci na escuridão da casa, distraído pelos focos de luz ténues dos humildes cadeeiros de rua.

Só teria de passar mais um dia no Faial. A minha vontade era partir daquela ilha imediatamente. O cenário de múltiplas boas recordações transformara-se num álbum de imagens que me alfinetava a alma. Se pudesse, teria regressado essa noite ao continente, nem que fosse a nado.

Em momento algum coloquei a hipótese de voltar ao hospital, nem sequer falar com Sónia. Sabia que ela iria tentar voltar a falar comigo, quando a poeira da amargura assentasse, mas seria difícil que a nossa bonita amizade voltasse ao que era. Com a dor ainda quente, o meu desejo era nunca mais saber dela. O meu último contacto seria para devolver a chave de casa. E mesmo nisso faria os possíveis para a evitar, deixando a chave aos pais.

Para minha surpresa, o senhor Alfredo veio visitar-me após o almoço do meu último dia na ilha. Convidei-o a entrar e foi ele que me disse que Sónia iria ter alta do hospital nessa tarde.

─ Pensei que talvez quisesse ir lá falar com ela, antes de se ir embora. ─ sugeriu. ─ Ela não agiu bem, mas amigos como vocês são… Enfim… O Ricardo não pode partir sem uma última conversa.

─ O senhor sabia? ─ questionei. O seu silêncio confirmou. ─ A senhora Emília?

─ A Sónia pediu-nos para confirmar a amnesia. Não concordei, nem a mãe, mas…

─ É vossa filha. ─ completei. ─ Eu compreendo e não vos guardo rancor por isso.

─ E também não deve guardar rancor à Sónia.

─ Não se trata de rancor. ─ corrigi. ─ Estou magoado. Nada que possamos falar poderá atenuar a mágoa que sinto. E tenho o dever para comigo de me proteger.

─ Compreendo… Se mudar de ideias, sabe onde a encontrar. Se não, quando partir pode deixar a chave aqui com a vizinha do lado. ─ Estendeu-me a mão. ─ Faça boa viagem, Ricardo! E espero que esta não seja a última vez que o estou a ver.

Nessa tarde, Sónia teve alta do hospital e foi para casa dos pais para dar seguimento à recuperação. Enquanto isso, eu arrumava as minhas coisas em sua casa, sem dar grande atenção ao que fazia, pois a minha cabeça parecia um martelo. Não! Não iria falar com ela. Porém, logo de seguida, constatava que não podia partir sem falar uma última vez com a mulher da minha vida.

Não sabia bem o que esperar de um último reencontro. Não queria desistir assim dela, mas sentia-me tão magoado que me era difícil confrontá-la. Eu que me orgulhava de sair das relações sem cicatrizes, ali estava a sofrer de múltiplos cortes de amor. Afinal, eu nunca amara mulher nenhuma, só partilhara paixão e prazer, relações que duravam entre o pouco e o quase nada, pois não me completavam, não me realizavam, não me faziam sentir aquela dor na alma que a recordação de Sónia me provocava.

Tantas mulheres, Ricardo, tantas relações… Penitenciei‑me por as ter magoado, se bem que nem todas saíram assim tão magoadas das relações. Houve muitas que procuraram em mim unicamente aquilo que eu procurava nelas, sexo e adeus.

Sónia era diferente de todas, era aquela pessoa que me conhecia na perfeição, que me lia os pensamentos, que completava as minhas frases. Era a pessoa que me aquecia só com o seu sorriso, que me fazia perder no seu olhar com a certeza de que nele só encontraria o reflexo da minha alma. Ela era a mulher com quem desejava estar encostado no sofá a ver as novelas que não gosto, que gostaria de levar a conhecer todos os locais que eu conhecera, com quem quereria adormecer todas as noites e acordar todas as manhãs. Por mais que tentasse convencer-me do contrário, eu nunca iria encontrar ninguém como ela. E por isso, não podia desistir assim, sem tentar uma última vez.

Assim, nessa noite, saí de casa e fui até à estrada principal para chamar um táxi e pedir que me levasse a Varadouro.

XII

 

A noite estava amena como era habitual. Soprava uma brisa lenta, no momento em que saí do táxi, em frente à casa dos pais de Sónia. O taxista fora muito simpático durante a viagem e procurou fazer assunto para conversar. No entanto, a minha cabeça estava preocupada com outras conversas e não dei muito seguimento ao diálogo.

O veículo partiu. O ruido do motor a afastar-se foi o único som por ali, até não haver som algum. Um cadeeiro iluminava-me, enquanto eu olhava para o pequeno portão que antecedia as escadas de acesso até à casa. Olhei para a campainha e estiquei o dedo para carregar nela. Contudo, fui fustigado por uma sensação de incerteza, se deveria de facto fazer aquilo. Tal como dissera ao senhor Alfredo, eu tinha de me proteger, não podia deixar o coração continuar a ser massacrado pela recusa ao meu amor. Pensei em desistir.

Estás parvo, Ricardo? A minha consciência indignou-se comigo. Viera até ali para voltar para trás sem tentar? Não. E eu não sou pessoa de desistir. Podia perder aquele amor em definitivo, mas venderia cara a derrota.

Toquei no botão e ouvi a campainha ecoar no interior da casa. Na janela da cozinha, vi o rosto da senhora Emília espreitar para ver quem era. Ouvi-a dizer ao marido, em voz alta, que era eu.

A porta da casa abriu-se e por ela apareceu o senhor Alfredo. Com um ar de surpresa que não escondia a satisfação por me ver, convidou:

─ Olá, Ricardo. Entre!

Passei o portão e subi as escadas, sentindo as pernas a tremer. O pai de Sónia ofereceu-me um sorriso rasgado.

─ Peço desculpa por aparecer assim tão tarde.

─ Não tem nada que se desculpar. ─ retorquiu. ─ O Ricardo é sempre bem-vindo a esta casa.

Apertei a mão que me estendera e acompanhei-o para o interior. À entrada da sala, vinda da cozinha, a senhora Emília cumprimentou-me com a mesma simpatia e satisfação do marido.

─ Vim falar com a Sónia. ─ informei, sendo conduzido para o sofá da sala.

─ Ela foi deitar a Clarinha. ─ relatou o pai, sentando-se na poltrona. ─ Já desce.

A mãe de Sónia sentou-se ao meu lado no sofá e, envergonhada, pediu:

─ Desculpe, Ricardo! Peço que nos desculpe por termos sido cúmplices daq…

─ Não pense mais nisso. ─ interrompi, sorrindo-lhe e demonstrando que não estava aborrecido com eles. ─ Já disse ao senhor Alfredo, ela é vossa filha, é natural que a apoiem. ─ Alterei o semblante para algo conformado. ─ Mesmo que ela não tenha as atitudes mais correctas.

─ Não foi para o magoar. ─ disse o senhor Alfredo, procurando desculpar a filha.

─ Eu sei. Pelo menos, sei que não foi essa a sua intensão principal. Mas mentir-lhe-ia se dissesse que não foi isso mesmo que ela conseguiu.

A senhora Emília deu-me uma palmada carinhosa na perna e lembrou:

─ Ela gosta muito de si.

─ Não tanto, quanto eu gosto dela. ─ ripostei.

─ Estás enganado! ─ afirmou Sónia que, entretanto, descera e ouvira as minhas palavras, à entrada da sala.

Ao verem-na, o senhor Alfredo e a senhora Emília levantaram-se dos seus lugares para nos deixarem sozinhos na sala.

Sónia surgiu de rosto fechado, ainda muito marcado pelo acidente, mas sem perder um milímetro de beleza. O cabelo estava penteado de forma escorrida, como se tentasse tapar as escoriações. Vestia um casaco de malha fina sobre uma camisola justa e calções estilo safari. Caminhou sobre as havaianas até mim. O seu olhar era defensivo.

Numa atitude automática, levantei-me do sofá. Ela parou em frente a mim. Notei que ficou hesitante, não sabendo se haveria ou não de me cumprimentar com um beijo no rosto. Não lhe facilitei a vida, permanecendo impávido.

─ Não esperava voltar a ver-te, antes de partires. ─ disse ela num tom calmo e defensivo. ─ O meu pai disse-me que não querias falar comigo.

─ Sim, é verdade. Eu disse-lhe isso. ─ Desviei o olhar do dela, temendo que ele me atraiçoasse. ─ Mas, não podia ir embora sem… sem…

─ Sem…?

─ Tinha de voltar a falar contigo. O assunto não é agradável para nenhum de nós, mas não podia partir sem nos dar uma última oportunidade. ─ Fiz uma pausa para ela reagir. Ela não reagiu. ─ Porém, não me pareceu que o hospital fosse o local ideal para conversarmos.

─ E que oportunidade é essa que nos queres dar? ─ interrogou quase de forma altiva.

─ Temos de falar do que sentimos um pelo outro.

Sónia baixou o olhar. A seguir, caminhou até à janela e ficou a olhar para a noite escura. Por fim, concluiu:

─ Vamos repetir aquilo que já dissemos, Ricardo? Que queres falar? Nós sabemos bem o que sentimos um pelo outro, da mesma forma que sabemos que somos incompatíveis.

─ Tu é que nos tornas incompatíveis. ─ acusei, olhando para as suas costas. ─ Tu é que recusas dar uma oportunidade àquilo que sentimos um pelo outro.

─ Queres fazer de mim a culpada? Sou culpada, sim. Culpada de ter o discernimento para além da cegueira da paixão.

─ Não estou a fazer de ti culpada. ─ argumentei, dando um passo na sua direcção. ─ Não vim aqui para te acusar de nada. Nem mesmo da forma cruel como me quiseste afastar.

Sónia voltou-se e encarou-me o olhar.

─ Não me orgulho do que fiz. ─ confessou, não deixando depois de afirmar com grande segurança. ─ Mas lamento que não tenha resultado. Teria sido uma despedida muito menos dolorosa que aquela que estamos a ter.

─ Só é dolorosa porque queres. ─ redargui, sem fugir ao seu olhar seguro, sempre defensivo. ─ Eu pedi-te em casamento. E continuo a querer casar contigo. Tu aceitaste! E, até ao acidente, estavas tão feliz com isso quanto eu.

Voltando a esconder-se na observação do exterior, Sónia contrapôs:

─ Talvez o acidente tivesse sido um sinal de como eu estava a agir de maneira errada.

─ Por amor de Deus, Sónia! ─ insurgi-me perante o que acabava de ouvir. ─ Não venhas com argumentos de folhetins novelísticos. Se o acidente fosse para não ficarmos juntos, um de nós teria morrido.

Sónia não disse nada. Virou-se novamente para mim e caminhou até ao sofá, sentando-se no lugar onde estivera a sua mãe.

─ As nossas vidas são demasiado diferentes para podermos ficar juntos. ─ voltou a lembrar. O seu rosto revelou-se mais amistoso, tentando reencontrar a nossa amizade. ─ Eu tenho a minha vida aqui no Faial. Tu vais para Singapura.

─ Eu já recusei Singapura!

A notícia surpreendeu Sónia. Por breves instantes, pensei que isso a fizesse abrir todas as defesas que continuava a levantar ao nosso amor. Percebi que estava errado.

─ Fizeste mal! ─ exclamou com desprendimento. ─ Se o fizeste a pensar que isso mudaria a minha posição, lamento dizer-te que fizeste mal. Isso em nada muda a minha decisão.

─ Não o fiz por ti. Fi-lo por mim. ─ corrigi, sentando-me a seu lado. ─ Não te menti, quando te disse que estou cansado de andar em trabalhos pelo Mundo. ─ Os seus olhos observavam-me quase sem expressão. ─ Para além disso, não conseguiria ir para tão longe depois de saber que sentimos o mesmo um pelo outro. ─ Ela sorriu com ironia, agastada pela insistência. ─ És capaz de me olhar nos olhos e dizer que não me amas?

─ Não! Claro que não, Ricardo. Tu sabes que eu te amo. ─ confessou irritada. ─ O problema não está aí. Será que não consegues perceber que não se trata de haver ou não amor? ─ Bateu com as mãos nas pernas, frustrada. ─ Eu tenho a minha vida aqui. Não vou largar tudo para ficar contigo. Não vou afastar a Clarinha da vida que tem, dos avós, para ficar contigo. Não te amo ao ponto de te pôr à frente de tudo. Percebes?

─ Eu vou continuar em Lisboa. ─ expliquei, esforçando‑me por ser calmo. ─ Tu e a Clarinha ficam a duas horas dos teus pais. Com a idade da Clarinha, tu foste para o continente estudar. Não me parece que os teus pais aceitassem mal que refizesses a tua vida, vindo viver comigo.

─ A Clarinha tem uma relação muito próxima com os avós.

─ Eu conheço os teus pais, Sónia. Eles gostam de ti ao ponto de não querer que sofras em prol deles.

─ Estiveste longe nos últimos quinze anos. ─ recordou, transformando a postura defensiva em ofensiva. ─ Quem pensas tu que és para chegar aqui e achar que sabes tudo sobre todos? O Mundo não gira à tua volta.

─ Que queres, então? Que venha viver para o Faial?

─ Não. Não quero isso. Não suportaria a ideia de te fazer abdicar da tua vida profissional por mim. Aliás, não suportaria a ideia de que tivesses abandonado qualquer dos teus sonhos por mim.

─ E, no entanto, aceitas facilmente que eu abandone o meu maior sonho, que és tu!

Sónia não foi capaz de responder. Em vez disso, escondeu a face nas mãos, os braços apoiados nas pernas. A seguir, passou os dedos pelos cabelos e voltou a olhar para mim.

─ Tenta perceber uma coisa. ─ pediu como uma exigência. ─ Entre nós só haverá uma amizade. A amizade que sempre partilhámos e com a qual sempre nos sentimos muito felizes.

─ Achas que isso é possível, depois do que aconteceu entre nós? ─ Sónia sabia que não, mas não pareceu importar‑se. ─  Achas que podemos voltar a ser o Tubbs e o Crockett da infância, ao mesmo tempo que me recordo do momento em que fiz amor contigo?

Sónia levantou-se do sofá. Eu repeti o seu movimento. Ela respondeu:

─ Eu gostava que isso fosse possível. Será muito difícil para mim se, para além de não te poder amar, também não continuares a ser meu amigo.

─ Não me podes amar porque não queres!

─ Não vou repetir as minhas razões. ─ avisou cansada. ─ Não vale a pena. ─ O seu rosto escondeu-se do meu. ─ Alguém dizia que a amizade valia mais que o amor porque a amizade não exigia nada em troca.

─ Era eu quem te dizia isso na adolescência. ─ disse eu, mostrando que sabia ao que ela se referia. ─ Era uma forma de atenuar a paixão que sentia por ti. Repetia a mim mesmo que o amor só servia para estragar e, por isso, era preferível sermos só amigos.

─ Estás a ver…

─ Nessa altura eu não sabia que tu também me amavas. Quando sofremos por amor usamos todos os argumentos para justificar a incapacidade de enfrentar os nossos sentimentos.

Ela voltou a encarar-me, dizendo:

─ Vês algo mais, neste amor, que a morte da nossa amizade?

─ Sim. ─ confirmei com toda a sinceridade. ─ Vejo a felicidade que tu estás a desprezar.

─ Não tenhas ilusões, Ricardo! Nós nunca seriamos felizes como casal. ─ disse ela num tom maternalista. Afastou‑se de mim, andando pela sala. ─ Sei bem como tu és nas relações. Quanto tempo duram elas? Quanto tempo durou a maior? ─ Parou para me encarar de longe. ─ Queres que mude a minha vida para me arriscar a ser mais uma?

─ Estás a ser muito estúpida, ao dizer isso. ─ vociferei, irritado. ─ Tu sabes bem porque é que elas não duravam. Ainda no outro dia te disse. Não duravam porque eras tu quem eu procurava nelas. ─ Abanei a cabeça, desconsolado. ─ E na altura, tu achaste isso muito bonito. Lembras-te? ─ Sónia reagiu com um aceno de irrelevância, o que me irritou ainda mais. ─ Pelo menos, foi bonito o suficiente para te levar para a cama.

A reacção dela foi um arregalar de olhos ofendida. Apesar de eu estar magoado, senti que fora longe demais e acabei por lhe pedir desculpa.

─ Talvez tenhas razão. ─ ripostou. ─ Fui mais uma que levaste para a cama.

─ Não, não foste. ─ contrariei. ─ Foste a única com quem fiz amor.

Mais uma vez, ela abanou a cabeça. Estava cansada.

─ Esta conversa não nos vai levar a lado nenhum. ─ concluiu, caminhando para perto da porta. ─ Lamento, mas o nosso amor não tem futuro. Gosto muito de ti e gostava que continuasses a ser o amigo que sempre foste para mim. ─ Não me manifestei, limitando-me a vê-la sem saber que palavras usar para travar a sua saída da sala. ─ Será que podemos voltar ao que éramos?

Respirei fundo. Se já era difícil lidar com o facto de que não iriamos amar-nos, mais difícil seria encarar isso, continuando em contacto com ela. Respondi simplesmente:

─ Lamento.

Durante alguns segundos, Sónia ficou a olhar para mim. Não disse nada, apenas olhou até os seus olhos pestanejarem e deixarem escapar uma lágrima. Ambos sentíamos que era uma despedida para sempre.

─ Não lamentas mais que eu. ─ soluçou.

Sem dizer mais nada, desapareceu pelo corredor. Ouvi os seus passos a subir as escadas para o piso de cima. Eu permaneci estático, perdido pelo desenlace da conversa.

Os pais de Sónia, percebendo que a filha abandonara a sala, vieram ao meu encontro. Revelavam no rosto a tristeza pela suspeita de que não tinha havido entendimento entre nós.

Ao vê-los, pedi:

─ Desculpem ter vindo! Sinto que só vim perturbar-vos. E à Sónia. ─ Eles procuravam confortar-me, mas não sabiam o que dizer. ─ Ainda está a recuperar e eu vim cá para a transtornar com um assunto que não nos leva a lado nenhum.

─ Temos pena que vocês não se tenham entendido. ─ partilhou a senhora Emília. ─ Você é boa pessoa. E só não sei como não descobriram mais cedo o que sentiam um pelo outro.

Encolhi os ombros, sorrindo-lhes com um semblante vencido.

─ Sentimos algo que não é suficientemente forte. ─ desabafei. ─ Pelo menos, não para a Sónia.

─ Na manhã do dia em que tiveram o acidente, ela contou-me que vocês estavam apaixonados.

─ Eu sei.

─ Eu fiquei muito contente e disse à minha filha que o Ricardo era um bom homem e que se esse amor se concretizasse ela deveria refazer a sua vida.

─ No entanto, ela acha que os senhores iriam encarar mal que ela fosse viver comigo.

─ Se isso a fizesse feliz. ─ continuou a mãe. ─ Não escondo que teríamos pena em ver filha e neta partir. Mas…

O senhor Alfredo concluiu a frase:

─ Que pais miseráveis seriamos nós, se puséssemos os nossos interesses à frente da felicidade da nossa filha?

A senhora Emília assentiu em concordância com o marido.

Apesar de perceber que os receios de Sónia em relação aos pais não tinham fundamento, não pensei que isso pudesse fazer diferença perante tantos obstáculos que ela colocara.

─ Seja como for, a Sónia fez a sua opção. ─ finalizei. ─ Não há mais nada a fazer.

Não me demorei mais por casa deles. Fora a minha última tentativa na luta pelo amor da minha amiga de infância e sairia de lá com uma derrota dolorosa.

O senhor Alfredo ofereceu-se para me levar de carro até à Horta. Inicialmente recusei, não querendo dar-lhe esse trabalho. Contudo, ele insistiu deixando bem claro que não seria nenhum incómodo e eu não tinha necessidade de ir procurar um táxi que seria difícil de encontrar tão tarde.

Com a simpatia que lhe era característica, a senhora Emília despediu-se de mim, desejando-me uma boa viagem e muitas felicidades na vida, não deixando de lamentar mais uma vez a forma como as coisas resultaram entre mim e a filha. Mesmo sabendo da improbabilidade de isso acontecer, pediu que os voltasse a visitar, talvez quando a mágoa estivesse arquivada.

Não fui embora, sem lhe deixar um beijo endereçado à pequena Clara.

Ao longo do percurso até à Horta, o senhor Alfredo respeitou o meu silêncio. A minha cabeça fervilhava num turbilhão de amarguras, percebendo que cada quilómetro percorrido era um quilómetro mais longe de Sónia, um quilómetro que jamais seria recuperado.

Ao chegarmos ao bairro, o senhor Alfredo despediu-se, reiterando o convite da sua esposa para que os voltasse a visitar.

─ Talvez um dia… Quem sabe? ─ respondi, não querendo fechar a porta a essa possibilidade.

─ E não guarde rancor à Sónia. ─ pediu, procurando atenuar a raiva que eu pudesse sentir pela filha. ─ Tenho a certeza que ela vai gostar sempre muito de si.

Esbocei um sorriso que vinha envolvido numa mistura de derrota e desilusão. Expliquei:

─ Não lhe guardo rancor. Seria impossível ter por ela qualquer sentimento negativo. Estou apenas magoado.

─ O Ricardo desculpe a minha sinceridade, mas não me parece que a vossa relação volte ao que era. E é pena que uma amizade como a vossa se perca assim.

─ Não deixei de ser amigo dela. Vou apenas afastar-me para ser menos difícil encarar tudo isto. Se ela precisar de mim, sabe onde me encontrar, mas nada voltará a ser como antes.

─ Compreendo. ─ Estendeu-me a mão. ─ Faça boa viagem, Ricardo! Felicidades. E espero que um dia volte ao Faial.

Apertei a sua mão e despedi-me.

Após sair do carro, o senhor Alfredo partiu de regresso a casa, enquanto eu caminhei pela rua deserta onde Sónia morava. Olhei para o céu e vi as estrelas menos nítidas que aquele cenário nocturno perto do vulcão, uma vez que os candeeiros de rua prejudicavam a sua observação.

Entrei em casa, analisando mentalmente como seria o futuro com Sónia. Seria impossível voltarmos a ser os amigos de sempre. Ela e eu abrimos uma porta que não conseguimos fechar, ou pelo menos, fechar e esquecer o que acontecera.

Deixei-me cair no sofá e olhei para o vazio, recordando os momentos passados com ela na ilha. Teria sido mais fácil nunca termos sabido que nos amávamos? Talvez. Naquele momento, a frustração de sair da ilha sem lhe confessar o meu amor pareceu menos dolorosa do que partir a saber que ela me amava, mas não queria dar continuidade a esse amor. Anos e anos a pensar que ela só me via como amigo e afinal…

No entanto, não havia nada a fazer, a não ser partir e esperar que o tempo cicatrizasse as feridas daquele amor. Sabia que ela também estaria a sofrer. Sofria por culpa própria, mas isso não me fez sentir melhor. Aliás, senti que mesmo com toda a intransigência dela, eu deveria mostrar algum altruísmo. Por isso, peguei no telemóvel e enviei-lhe a seguinte mensagem: “Nunca vou deixar de te amar, mas dá‑me algum tempo e eu tentarei voltar a ser o teu amigo de sempre”. Não obtive qualquer resposta.

Não sabia muito bem o que ia ser o meu futuro, quando chegasse a Lisboa. Recusara Singapura, mas não estava arrependido, pois já não me sentia com disposição para mudar radicalmente o meu dia-a-dia por causa de um projecto. Financeiramente era aliciante, porém isso não era tudo. Concluí que tinha de abrandar um pouco no trabalho e dedicar mais tempo a mim, a fazer coisas que tanto gostava e às quais dispensava tão pouco tempo, como a fotografia.

Levantei-me do sofá e caminhei até ao quarto. Os meus olhos circularam pelo espaço que fora o ninho de amor mais bonito que conhecera até àquele dia. Observava a realidade que me envolvia com aquela sensação de despedida, de quem vai partir para nunca mais voltar. Convenci-me que um dia conheceria alguém que me fizesse esquecer aquela mágoa, que fechasse todas as feridas que trazia no coração.

Não acreditei que isso pudesse suceder.

Ao fundo da cama, a bagagem estava pronta. Tudo arrumado para a viagem. Esperava conseguir dormir bem para que a última noite no Faial não fosse uma lembrança infeliz.

Configurei o alarme do telemóvel para que nenhuma inesperada preguiça matinal me fizesse dormir para além do desejado e atrasar-me. Deixei-o junto à cabeceira da cama e permaneci acordado algum tempo, com a luz acesa, na esperança de obter uma resposta à mensagem que enviara a Sónia. Ao fim de alguns minutos, apaguei a luz e adormeci sem que isso acontecesse.

XIII

 

Quando acordei na manhã da partida, esfreguei os olhos para despertar e vi o telemóvel a piscar com a indicação de mensagem nova. Peguei no aparelho e vi que tinha uma mensagem de Sónia enviada durante a noite, já depois de eu ter ido dormir. Abri-a para ler o seguinte: “Também não deixarei de te amar e tenho esperança que com o tempo venhas a compreender a minha decisão. Leva o tempo que precisares. Eu esperarei pelo meu amigo”

Sem saber bem porquê, até ler aquela mensagem, tinha esperança que Sónia voltasse atrás. Por vezes, dava por mim a imaginar um daqueles finais dos filmes românticos com o par amoroso a ficar junto no fim da pelicula e com aquele presságio de felizes para sempre. Infelizmente, a minha vida não era um filme, era bem real. E na realidade existe muito pouco espaço para finais bonitos.

Por mais doloroso que fosse, tomei consciência que já nada me prendia ali. O Faial era uma ilha lindíssima para visitar, mas jamais me deixaria vontade de voltar, sabendo que poderia reencontrar a única mulher que me fizera sofrer por amor.

O meu voo estava agendado para antes de almoço. Olhei para o relógio e vi que ainda tinha bastante tempo. Sentia-me fresco pelo banho e de estômago confortado pelo pequeno‑almoço que arranjara para mim. Pequenos prazeres de quem se sente algo perdido nos trilhos da felicidade.

Coloquei a bagagem para a viagem perto da porta da rua e observei a sala. Em silêncio, fiz uma despedida visual dos cantos da casa, como se dissesse adeus a cada pedaço do local que me alojara nos últimos dias. Iria ter saudades, muitas saudades, principalmente dos primeiros dias. A partir do acidente, desejava ter a capacidade de poder apagar tudo da minha memória. Não era fácil lidar com a recordação do acidente que matara a mulher que me amava e me deixara no seu lugar uma que dizia que me amava e agia de forma inversa. Na minha mente circulava o pensamento de que não conseguiria ser amigo de uma mulher que simulara uma amnesia para me afastar.

Tal como fizera num dos primeiros dias ali, voltei a observar as fotos colocadas na estante da sala. Tinha de conseguir livrar-me daquele arrepio que sentia na barriga, ao olhar para a imagem de Sónia. É certo que já antes sentia uma sensação particular ao ver fotos dela, mas depois do que sucedera entre nós, isso tornou-se mais intenso e mais difícil de ultrapassar.

Ainda faltavam cerca de três horas para o avião partir. Porém, não tinha vontade de ficar ali em casa mais tempo, cercado de lembranças de Sónia. Por isso, peguei na bagagem e saí de casa.

Quando bati na porta da casa ao lado, uma senhora muito simpática abriu e cumprimentou-me com um sorriso. A vizinha reconheceu-me de imediato e aceitou a chave que lhe entreguei com o compromisso de a fazer chegar à dona. Sempre sorridente, desejou-me uma boa viagem.

Caminhei até à estrada e entrei no táxi que se dirigia para a Horta. Era cedo, daí que tenha optado por ir até ao centro da cidade para passar o tempo. Pedi ao taxista que me levasse até à marina e este deixou-me junto a um café com esplanada perto do mar.

Com as malas ao lado da cadeira, pedi um café e fiquei a olhar para a outra ilha, para lá do canal, com a sua imponente montanha, onde o topo se escondia numa coroa de nuvens. Deste lado, o Sol banhava o Faial com os seus raios brilhantes, suficientemente quentes para se tornar agradável sentir a brisa fresca.

Com o olhar perdido no mar, pensei nas pessoas que conhecera na ilha e nos últimos momentos que partilhara com cada uma delas. Deveria ser bom, viver por ali, talvez um pouco calmo demais e, quem sabe, um pouco deslocado para quem procura certas futilidades que estão tão acessíveis no continente. Onde há ali um centro comercial? Onde se encontra um cinema com as últimas estreias? Enfim, coisas a que damos tanto valor em detrimento daquele mar azul, daquelas colinas verdes, daquela paz e tranquilidade onde o tempo parece não passar.

Eu conhecia-me suficientemente bem para saber que por muito que valorizasse a natureza, não era homem para viver a minha vida por ali. No entanto, saía dali com a vontade de conhecer as outras ilhas daquele arquipélago tão bonito como é o dos Açores.

Fiquei mais ou menos uma hora na esplanada a pensar na vida. Nesse tempo, ainda liguei a Milu para lhe pedir que preparasse alguns papéis que eu iria necessitar para a reunião do dia seguinte. Quando chegasse a Lisboa já não iria ao escritório, mas queria ter tudo pronto na manhã seguinte para a recepção ao novo cliente da empresa.

Olhei para as horas uma última vez antes de deixar a esplanada. Chegara o momento. Peguei nas malas sabendo que quando entrasse no próximo táxi seria o início da etapa final da partida para, muito provavelmente, nunca mais voltar. Subi as escadas até à estrada e fiz sinal a um táxi para parar. Ainda com mais simpatia que o anterior, este ajudou‑me a colocar as malas na bagageira e ambos entrámos no carro ao mesmo tempo. Pedi que me levasse ao aeroporto.

─ De partida? ─ indagou o taxista, iniciando a marcha o veículo.

─ Sim. ─ confirmei. ─ O trabalho chama.

─ É sempre assim, quando as férias estão a saber bem, o trabalho chama. ─ Desviou o olhar da estrada para mim. ─ E gostou da nossa ilha?

─ Muito.

─ Então tem de voltar. ─ sugeriu, circulando pelas ruas da Horta em direcção a saída da cidade pelo lado do bairro de Sónia. ─ As pessoas voltam quase sempre. Nunca levei ninguém ao aeroporto que fosse insatisfeito com os dias passados cá.

─ Isto é uma pequena maravilha, esta ilha.

O taxista conduziu pela estrada que tantas vezes eu atravessara com Sónia, ligando a Horta até Castelo Branco, local onde se situava o aeroporto. Entrou na zona de parque automóvel e parou junto à entrada do terminal. Por fim, auxiliou-me na retirada das malas e despediu-se de mim, recebendo o pagamento e desejando-me uma boa viagem.

Segurando a bagagem, passei as portas automáticas da entrada e caminhei pelo corredor até ao balcão da companhia aérea para fazer o check-in.

Uma menina muito afável recebeu a documentação necessária e entregou-me o meu bilhete. De seguida, fez a recepção das malas, identificando-as e fazendo-as seguir para os colegas que as embarcariam no avião. Ofereceu-me um último sorriso e indicou-me a zona de embarque com um “boa viagem”.

O meu passo seguinte seria dirigir-me à zona de embarque, fazendo a passagem pelos seguranças para as verificações normais antes de passar à sala de embarque. No entanto, a minha passada foi suspensa ao ver Sónia na companhia dos pais e da filha junto a um dos cantos daquele espaço de balcões de companhias aéreas. Reagi com um ar enfadado, pois dispensava com agrado aquela última despedida.

O senhor Alfredo e a senhora Emília permaneceram com a neta no mesmo sítio. Só Sónia se moveu na minha direcção, o que me levou a crer que nos estavam a dar privacidade para aquele instante final.

─ Olá Ricardo! ─ cumprimentou, meio tímida.

─ Olá! ─ retribuí sem grande simpatia.

─ Passei por casa, mas já não te encontrei.

─ Saí mais cedo. Decidi dar uma última volta pela Horta.

A forma como eu falava era tão pouco amistosa que devo ter condicionado o discurso de Sónia, pois ela ficou sem saber o que dizer.

─ Recebeste a minha mensagem, ontem à noite? ─ Assenti com a cabeça. ─ E então?

─ Então, o quê?

─ O que achaste do que escrevi?

─ Que não é nada de novo. ─ retorqui sem expressão.

Sónia desviou o olhar, perdendo a coragem de me encarar. Permiti-me uma última observação da minha amiga que tanto me apaixonava, elegante e sensual, mesmo vestida de forma casual com calças de ganga e uma túnica colorida de manga curta. Ela estava tão nervosa que nem reparou que a sua sandália direita estava a pisar a esquerda.

Acabei por ser eu a falar:

─ Se esperas que te dê um prazo para voltar a ser tudo como era entre nós, lamento que tenhas vindo em vão. Não sei quando conseguirei voltar a lidar contigo sem sentir a amargura daquilo que sinto por ti.

─ Não foi para isso que vim.

─ Então, não percebo. ─ contrapus, interrompendo as suas palavras seguintes. ─ Esta despedida no aeroporto era dispensável.

─ Não podia deixar-te partir sem…

─ Mas devias! ─ exclamei, estafado com aquele assunto que me fazia sofrer. Eu só queria partir o mais depressa possível e deixar que o tempo me lambesse as feridas. ─ Por favor, Sónia. Não me apetece ouvir mais conversa de que me amas muito, mas é melhor cada um seguir o seu caminho. ─ Suspirei. ─ Eu sei que o teu maior medo é perderes a nossa amizade. Só que não precisas de ter esse receio. Eu vou continuar a ser teu amigo e estarei sempre presente quando precisares de mim. Agora, não faças isto! Não venhas falar dos nossos sentimentos só para me agradar.

As pessoas foram chegando para seguirem os mesmos procedimentos que eu, junto do balcão da companhia aérea. Percebi que viera em boa hora, pois começava a formar-se uma fila para o atendimento.

─ Não falo do que sinto para te agradar, Ricardo. Falo porque é verdade.

─ E de que me serve isso, se és tu quem não quer ser correspondida nesse amor?

Um casal passou junto a nós, desviando-se no último momento, pois iam tão distraídos que nem nos viam.

─ Tu és uma das pessoas mais importantes da minha vida. ─ reafirmou, dividindo o olhar entre mim e a família ali perto. ─ Quero tanto a tua felicidade quanto a da Clarinha ou a dos meus pais. Por isso… Por isso, tenho tanto medo de te prejudicar com o meu amor, medo que um dia olhes para mim como um peso por ter cortado as asas aos teus sonhos.

Sem tirar os olhos dela, abanei a cabeça e argumentei:

─ Já te disse muitas vezes que tu és um dos meus sonhos. Neste momento, talvez sejas aquele que mais ambiciono. Não antevejo objectivos profissionais que me estimulem mais, agora que vou a caminho dos quarenta, que estabilizar e formar a minha família.

─ Tu não és homem de assentar, Ricardo. ─ lembrou Sónia num tom carinhoso. ─ Tiveste tantos romances…

─ Se o que pretendes com isso é que eu repita o que já disse outras vezes, eu repito: Foste tu quem eu sempre procurei nas minhas relações, daí que nenhuma resultasse. Não tenho nenhuma dúvida de vou amar-te para o resto da vida, seja contigo ou sem ti.

Sónia sorriu com um semblante carinhoso, meio envergonhado. Colocou a mão no meu peito de forma inconsciente, deixando o olhar perder-se naquele gesto. A seguir, voltou a encarar-me e disse:

─ Será que me podes perdoar o que fiz? A forma como te tentei afastar?

Abanei a cabeça num movimento cansado e sorri com alguma ironia.

─ Fiquei magoado, mas tu simbolizas demasiado para que não te perdoe. Não precisavas de vir aqui para obter esse perdão. ─ Foi a minha vez de a tocar, acariciando-lhe o ombro. ─ Posso estar a sofrer por não te poder amar, mas nunca deixarás de fazer parte da minha vida. ─ Observei o ambiente a nossa volta. A fila junto dos seguranças começava a aumentar. ─ Estou a sentir-me como quando me despedi de ti, em Lisboa, há quinze anos. Os dois no aeroporto quase em lágrimas por nos irmos afastar. E nem fazíamos ideia do tempo que passaria até estarmos juntos, senão, acho que tinha chorado que nem o perdido quando partiste.

─ Eu chorei no avião. ─ confessou. ─ Senti que estava a deixar uma parte de mim para trás.

─ Por isso é que disse que esta despedida aqui era dispensável. ─ expliquei, levando a mão do ao seu rosto.

─ Esta é diferente. ─ disse ela, olhando para os pais.

─ Uma despedida é sempre uma despedida, sempre dolorosa. ─ acentuei.

─ Sim… E vai custar-me muito, despedir-me. ─ continuou, sem tirar os olhos dos pais.

Eu abri os braços, sentindo aquela dor, e apressei o momento, dizendo:

─ Então vamos despachar isto. Um último abraço?

Sónia virou o rosto para mim, fixando os olhos nos meus de uma forma muito intensa.

─ Tenho medo! ─ confessou, nervosa.

─ Não tenhas. É só um abraço.

─ Tenho medo que não sejas feliz comigo.

A sua frase deixou-me confuso. Tive receio que andássemos às voltas com aquele assunto indefinidamente. Baixei os braços, percebendo que ela não me ia abraçar. Sem fugir ao seu olhar, lembrei:

─ Tenho de ir. Tenho um avião para apanhar.

─ Temos. ─ corrigiu sem pestanejar. Hesitou. ─ Isto, se ainda me quiseres, claro.

─ Como assim? ─ interroguei atónito.

─ Eu amo-te, Ricardo! Por mais que resista, é incontornável. Pediste-me em casamento e eu quero casar contigo. ─ Esboçou um sorriso, receoso da minha resposta. ─ Se ainda me quiseres, eu e a Clarinha partimos contigo.

Estava tão aparvalhado com ela que só me lembrei de dizer:

─ E os teus pais?

─ Querem que eu seja feliz! ─ exclamou de imediato. ─ Foram eles que me ajudaram a decidir.

─ E a Clarinha?

─ Nervosa como a mãe. Mas, entusiasmada por ir conhecer a capital.

De súbito, dei por mim a sentir o receio de não estar à altura do momento, de não ser capaz de concretizar a felicidade que lhe prometera. Respirei fundo perante uma Sónia expectante pela forma como eu iria reagir.

─ Estás a fazer de mim o homem mais feliz do Mundo.

Ela abriu o sorriso, deixando escapar uma lágrima. Envolveu o meu pescoço com os seus braços e beijamo-nos com todo o amor que partilhávamos.

Clarinha foi a primeira a aproximar-se, ao que se seguiram os avós. A senhora Emília vinha emocionada com uma mistura de alegria pela felicidade da filha e a tristeza de a ver partir. O senhor Alfredo partilhava as mesmas emoções, procurando ser menos lamecha.

Sónia despediu-se dos pais com muitas lágrimas. A neta fez uma despedida mais contida, ainda sem grande noção da distância a que iria ficar dos avós. Eu despedi-me deles com um agradecimento pela confiança que depositavam em mim e com a promessa de que não deixaria passar muito tempo sem regressarmos ao Faial.

Apesar de saber como o meu amor por si era grande, Sónia correra algum risco em comprar os bilhetes e fazer o check-in, antes de eu chegar ao aeroporto. Durante muito tempo eu brinquei com ela, questionando como seria se eu tivesse rejeitado o seu amor naquele momento. Ela respondia sempre que sabia que eu não era tolo ao ponto de desperdiçar uma mulher como ela. E tinha razão.

Na noite anterior, Sónia quase não dormira, não conseguia deixar de pensar em mim e naquilo que sentíamos um pelo outro. Tão depressa considerava ser melhor ficar e eu partir como sentia que só seria feliz a meu lado. Logo pela manhã, procurou nos pais algum conselho que a ajudasse na solução. O resultado foi a decisão de ir a casa para falar comigo e baixar as defesas que levantara ao nosso amor.

Quase desesperou, quando percebeu que eu já havia saído de casa e deixado a chave com a vizinha. Esteve para desistir, não fossem os pais terem sugerido que fizesse a sua mala e a da filha e ambas partissem comigo.

Sei como deve ter sido difícil para o senhor Alfredo e a senhora Emília, mas ser pai e mãe é isto mesmo, colocar a felicidade dos filhos à frente.

Feitas as despedidas, seguimos para a sala de embarque, passando pela revista dos seguranças. Sónia não conseguia parar de chorar e pedia-me desculpa por isso. Eu confortava‑a e justificava que era normal, pois estava a afastar-se de pessoas que amava e a amavam. Clarinha debelava a tristeza com o entusiasmo de criança que vai viajar de avião pela primeira vez.

Lá fora, o Sol brilhava radioso.

Na sala de embarque ouviu-se o aviso para que os passageiros do nosso voo seguissem para o exterior, rumo às escadas de acesso ao avião.

Seguindo as indicações do pessoal de pista, contornámos os pinos que marcavam o percurso até ao veículo do aeroporto que transportava as escadas que encostara ao avião. Enquanto caminhámos pelo asfalto, sentimos a brisa do mar a despedir‑se de nós.

Os pais de Sónia subiram até ao piso superior do edifício, onde existia um terraço com esplanada, para nos acenarem até entrarmos no avião.

O voo de ligação entre o Faial e Lisboa partiu quinze minutos depois, descolando sobre o olhar do morro de Castelo Branco e sobrevoando o magnânimo Pico até toda a paisagem se tornar num tapete azul infindável.

A realidade parecia ter pouco espaço para finais felizes. Porém, naquela manhã, nós tivemos a sorte de conseguir um desses pequenos espaços, o qual representou o princípio de uma relação que juntou amizade e amor de uma forma única, pelo menos para nós.

Esta nova fase na minha vida obrigou a algumas mudanças, a começar pela casa onde eu vivia, a qual arrendei e comprámos uma maior para a nova família.

Sónia e eu casámos no Faial um ano depois. Escolhemos o dia em que fazia exactamente um ano que trocámos aquele beijo apaixonado no coração do Vulcão dos Capelinhos.

Apesar de ter essa possibilidade, Sónia recusou trabalhar na mesma empresa que eu, optando por investir numa carreira de empresária, abrindo uma loja de artigos dos Açores em Lisboa.

Eu continuei no meu cargo de líder de equipas de consultores, mas nunca mais abracei nenhum projecto que me obrigasse a ausentar do país. As minhas ausências resumiam‑se a meia dúzia de dias, quando tinha de viajar em trabalho.

As saudades do Faial eram colmatadas com visitas periódicas à ilha, cerca de três a quatro vezes por ano. Por outro lado, também passei a ir mais vezes à aldeia visitar os meus pais. Tenho muito orgulho na minha família, no meu casamento e, talvez por isso, encarava com maior gosto aqueles momentos de reunião familiar, fosse na aldeia ou na ilha do Faial.

Clarinha passou a ser uma filha para mim. Nunca quis substituir o seu pai e ela sempre me tratou pelo nome e não por “pai”. No entanto, sempre me acolhera muito bem como marido da mãe e um amigo em quem podia confiar.

Sónia e eu tivemos dois filhos após o casamento que nasceram com um intervalo de cinco anos. Clara fora uma grande ajuda para a mãe a cuidar dos irmãos.

Agora, que estou a terminar esta história, penso como tive sorte na vida e que nunca é tarde para encontrar o amor verdadeiro, ou no meu caso, consumar o amor de tantos anos. Não sei o que o futuro reserva, mas sei que ao longo deste tempo, Sónia tem sido feliz a meu lado e eu ao lado dela. E com dias melhores e outros piores, temos a certeza que continuaremos sempre a encontrar o amor nos olhos um do outro.

 

 

FIM