TROVOADAS DE VERÃO

I

Atlântico Norte, 14 de Agosto de 2008. A noite estava escura, mergulhada na completa ausência de luar. Um cargueiro navegava pelo extenso oceano acompanhado pelo ruído do cortar da ondulação e o som ténue dos motores. Era um navio comprido, carregado com dezenas de contentores de várias cores. Deixara o porto de Lisboa e navegava para o Canadá com escala prevista no porto de Ponta Delgada na ilha de São Miguel nos Açores.

Xavier olhava o vazio negro em redor, debruçado no parapeito a bombordo, com a mente a perder-se em memórias. Trinta e seis anos e o sentimento de não ter construído nada na vida para além da sobrevivência diária. Indivíduo esforçado e trabalhador, deixara as suas origens no Alentejo, perto de Évora, para se empregar numa fábrica em Palmela. Vivia sozinho na Quinta do Anjo, a poucos quilómetros do emprego que fora o seu ganha-pão durante vários anos até a falência o atirar para o desemprego. Consciente das dificuldades de arranjar um novo emprego quando se tem mais de trinta e cinco anos e uma vida sem laços que o prendessem, acabou por optar pela emigração.

Afectivamente, Xavier não ia além das relações ocasionais. Não era homem de querer partilhar a vida com ninguém, pois os elos sentimentais vislumbravam-se na sua mente mais como um peso que como um benefício.

No seu íntimo sempre tivera um espírito aventureiro, daí que emigrar não era mais que uma aventura de quem nada tinha a perder. Ouvira falar em boas oportunidades para os portugueses no Canadá, mas faltava-lhe o dinheiro para a viagem e para um novo começo de vida numa terra estranha.

Numa das suas últimas tentativas de arranjar emprego em Portugal, foi até Lisboa e procurou trabalho no porto da capital. Após algumas recusas, avistou um cargueiro ancorado junto à doca.

A manhã ia a meio, mas o Sol estava já bastante agressivo. O calor e o desalento de quem não conseguia o objectivo deixavam Xavier agastado. Começava a acreditar que ter saído de casa bem cedo para apanhar o comboio em Coina e vir a Lisboa fora um desperdício.

Uma longa prancha ligava o navio à doca. E junto a ela, um homem forte e alto escrevia num bloco preso numa placa rija, enquanto ia gritando ordens para alguns marinheiros. Não saberia dizer que idade tinha, contudo parecia-lhe mais velho que ele.

― Bom dia! ― disse Xavier, aproximando-se.

― Bom dia! ― retribuiu o outro num tom neutro sem grande simpatia, mas sem ser antipático.

― Estou à procura de emprego. ― explicou Xavier. ― Posso falar com a pessoa que contrata? Pode ser que…

― Estás a falar com ele, rapaz. ― cortou o homem, olhando para Xavier e avaliando-o, pois parecia-lhe suficientemente encorpado para o trabalho duro do navio. ― Estou a precisar de mais um par de braços, mas vamos navegar para longe.

― Vão para onde?

― Canadá. Montreal, mais precisamente.

Xavier sorriu perante a oportunidade e respondeu:

― Isso para mim não é problema. Estou a pensar emigrar para o Canadá.

― Mas isto não é um barco de viagem. ― retorquiu o outro. ― É para trabalhar.

― Eu trabalharei.

O homem sorriu-lhe com alguma ironia e disse:

― Espero que sim, senão atiro-te borda fora. Estás contratado!

Foi desta forma que Xavier encontrou um emprego e um meio de transporte para o Canadá. Entrou ao serviço ao fim dessa tarde, levando consigo um longo saco estilo militar com o máximo de coisas que lá coubessem, tudo o que fosse imprescindível a esta nova empreitada da sua vida. O resto ficaria para trás.

Assim, naquele instante, após tanto trabalho, Xavier aproveitava a pausa a repousar olhando o mar. O futuro era uma incógnita, mas ele não o receava, apenas estava ansioso por algo novo, algo que o estimulasse como nada o estimulara nos últimos anos. Parecia quase uma irresponsabilidade, deixar tudo pelo desconhecido, só pela aventura.

Xavier tinha uma aparência robusta, nada de exageradamente forte, mas notavam-se os músculos dos braços e o tronco imponente. Contudo, nunca tivera um trabalho que requeresse tanto esforço físico como aquele, daí que sentisse todos os membros doridos.

A sua concentração no horizonte vazio foi interrompida por uma voz que o chamou. Xavier rodou a cabeça e viu o comandante do navio aproximar-se e colocar-se a seu lado.

― Dia duro, rapaz?

― Não, capitão. ― Ninguém sabia o nome do comandante do navio e todos o tratavam por capitão. ― Apenas um dia de trabalho.

― Devias ir descansar… Amanhã será mais um dia duro, quando chegarmos a Ponta Delgada. Já alguma vez estiveste nos Açores?

― Não. Nunca saí do continente.

― É muito bonito. Eu só não estive nas ilhas do Corvo e Flores. ― contou o comandante, olhando também ele para o negrume envolvente. ― Mas as que visitei apaixonaram-me. Um dia que tenhas essa oportunidade, visita-as.

― Talvez um dia… Agora, estou mais preocupado em chegar ao Canadá.

― Desejo-te sorte, rapaz.

― Capitão! ― chamou uma voz perto dos enormes contentores.

O homem afastou-se de Xavier e foi ver o que se passava.

Por momentos, o seu olhar ficou sobre os homens a conversar até regressar à escuridão do mar nocturno, altura em que um bocejo atraiçoou a sua resistência ao sono. Decidiu recolher ao dormitório.

A camarata onde os marinheiros descansavam era composta por diversos beliches encostados às paredes e presos por abraçadeiras que os impediriam de baloiçar em caso de o mar se apresentar demasiado agressivo.

Muitos camaradas de Xavier dormiam tranquilamente nos seus colchões, enquanto ele apenas se deitara no seu para esperar o sono. Deu por si em memórias, lembranças dos tempos de miúdo nas planícies alentejanas, correndo com os amigos do seu universo infantil, jogando à bola... Enfim, coisas normais da infância. As recordações nem vinham nada a propósito, mas soube-lhe bem recordar essa fase em que os problemas se resumem a nada. De tal forma divagou nas lembranças que acabou por adormecer sem se dar conta.

Se sonhou, a sua mente não registou. Xavier acordou sobressaltado com o som violento de uma explosão a bordo. Logo de imediato, uma sirene alertou a tripulação que já abandonava os colchões para se inteirar do sucedido. Aparentemente não se passava nada que fosse visível do exterior.

No entanto, o problema era bastante grave. Não comprometia a integridade do navio, mas impedia-o de avançar. Xavier não conhecia as causas, apenas sabia que algo fizera explodir uma caldeira que por sua vez danificou o motor, deixando o cargueiro paralisado no alto mar.

O sector dos motores ainda estava com muito fumo quando Xavier desceu ate lá para ver o que se passava. O fogo que a explosão ateara já estava extinto, mas quase tudo em redor se queimara ou chamuscara. Xavier ouviu a voz do comandante:

— Qual é a gravidade?

Os olhares de todos voltaram-se para um homem que Xavier ainda não conhecia, o chefe de máquinas do cargueiro.

— Para já, estamos à deriva. — respondeu o outro. — Vou tentar reparar, mas não sei se tenho tudo o que preciso a bordo.

— Tenta, pelo menos, colocar-nos em marcha para chegarmos a Ponta Delgada. — pediu o comandante. — Lá, conseguiremos reparar o que não conseguirmos aqui.

— Certo, capitão.

O chefe das máquinas, excelente mecânico para quem já servia no navio há bastante tempo, concentrou-se na reparação do motor, ajudado por alguns tripulantes da sua equipa responsável pela mecânica.

Para Xavier, a situação tornara-se complicada, pois estava retido no mar alto sem previsão de sair dali.

 

 

 

 

II

 

A vivenda Vilaça era uma luxuosa moradia em Cascais, pertença da família Vilaça. Quase se poderia considerar um palacete, tal era a dimensão do imóvel com três pisos, vários quartos, dois enormes salões e inúmeras divisões de utilidade dos donos ou para as funções dos empregados. A casa era rodeada por uma propriedade de muitos metros quadrados cercados por altos muros forrados por vegetação. Lá dentro, um enorme jardim, piscina privativa e até court de ténis.

O patriarca da família e dono daquele local era um multimilionário de oitenta anos que falecera uma semana antes, deixando viúva a sua jovem esposa de trinta e três anos, com quem estivera casado pouco mais de quatro.

Ana Valquíria, mulher com uma figura fascinante, tinha tanto de esbelta como de fria. Quem lhe encontrasse o olhar só receberia uma de duas mensagens, “quero-te” ou “desprezo-te”, sendo que a segunda era a mais usual. Pouco se sabia do seu passado, antes de conhecer o falecido marido. Para quase todos, ela era uma predadora de maridos ricos que casara por interesse. No entanto, quem a via com ele, via a perfeita interpretação da esposa apaixonada e dedicada.

A verdadeira história de Ana Valquíria era uma incógnita e só ela sabia a mágoa que lhe consumia a alma havia cerca de cinco anos.

Nessa altura, conhecera o amor da sua vida, Bernardo Vilaça, o belo filho do velho Vilaça. Cruzaram-se por coincidência numa festa e encantaram-se um pelo outro, nascendo entre eles uma afinidade que levou à amizade que rapidamente se tornou em algo parecido com amor.

Ana Valquíria era uma aspirante a actriz que ganhava a vida com pequenos trabalhos de modelo e como empregada numa loja de roupa num complexo comercial. Quando se apaixonou por Bernardo, a vida parecia-lhe um conto de fadas, pois para além de a amar, ele era herdeiro de uma imensa fortuna. Claro que ela sempre acreditou que o dinheiro não fazia diferença, pois seria capaz de o amar mesmo que ele não tivesse um cêntimo. Porém, a vida colocou-a à prova...

Ana Valquíria e Bernardo Vilaça namoraram alguns meses, tempo durante o qual ela pouco sabia da família Vilaça para além da sua enorme riqueza e património. Tal como desconhecia a terrível relação que existia entre Bernardo e o seu pai, o velho Vilaça, que ele sempre responsabilizara pela morte da mãe.

Felizes na relação, Bernardo decidiu dar o próximo passo: pedir Ana Valquíria em casamento. No entanto, antes de o fazer, cometeu o maior erro da sua vida, levando a bela namorada a conhecer o futuro sogro.

O velho Vilaça ficou encantado com Ana Valquíria. Não como um pai ficaria por conhecer a futura nora, mas sim como um homem se encanta ao ver uma mulher linda e sensual na sua presença.

Bernardo Vilaça não percebeu, mas Ana Valquíria ficou desde logo incomodada com a forma como o velho a observava, quase como se a tentasse despir com o olhar.

A tensão entre pai e filho era evidente e o ambiente de cortar à faca. Felizmente o encontro não acontecera numa refeição, fora meramente uma visita de cortesia ao casarão dos Vilaça, para Bernardo apresentar Ana Valquíria ao pai que mais não era que atirar-lhe à cara a imensa beleza da sua namorada.

Foi um erro, um trágico erro.

O encontro não durou mais que uns quinze minutos e Ana Valquíria sentiu-se aliviada quando abandonou a propriedade na companhia do namorado, longe de saber que aquele momento mudaria a sua vida para sempre.

Dois dias mais tarde, enquanto trabalhava na loja, recebeu a visita de um homem com ar formal que a interpelou:

— É a Ana Valquíria?

Surpresa, ela anuiu com algum receio.

— Sou o advogado do Dr. Vilaça. — apresentou-se com rosto fechado sem manifestar intenção de lhe estender a mão.

— Do Bernardo? — questionou.

— Não. Sou o advogado da família Vilaça e foi o pai do Bernardo que me mandou cá.

Ana Valquíria não conseguiu esconder o ar de estupefacção.

— Será que podemos conversar? — inquiriu ele.

— Neste momento estou a trabalhar. — retorquiu ela, colocando uma postura mais rude, adivinhando que aquele homem fora enviado para a confrontar com qualquer tentativa da sua parte de querer tirar dividendos da relação com o herdeiro do património Vilaça. — Não é oportuno.

O homem assentiu e deixou a sugestão que fez parecer como uma ordem:

— Estarei aqui à sua espera quando sair. Acredite, é um assunto do seu interesse.

E com aquelas palavras, abandonou a loja.

Ana Valquíria ficou transtornada o resto do dia. E a sua apreensão só aumentou quando viu novamente o homem, esperando-a à saída da loja. Dirigiu-se a ele com ar altivo.

— Bom, diga lá o que tem a dizer.

— Pode acompanhar-me? — sugeriu o advogado.

Hesitante, Ana Valquíria olhou em redor e recusou com a justificação:

— Este sítio parece-me tão bom como qualquer outro para ouvir o que tem a dizer.

— Quero apenas levá-la até ao Dr. Vilaça. — explicou o homem num tom seco. — O carro dele está lá fora. Ele veio propositadamente para conversar consigo.

Apreensiva, ela acabou por concordar em acompanhá-lo.

A noite já caíra por completo no exterior do centro comercial e o vento soprava com alguma intensidade. O parque de estacionamento estava quase lotado.

O percurso foi feito sem que fosse trocada qualquer palavra entre eles. A cerca de vinte metros da saída, Ana Valquíria viu um luxuoso Mercedes preto parado atrás dos carros estacionados, como alguém que não pretendia demorar-se.

O advogado parou junto à porta de trás do lado direito e deu um toque ligeiro no vidro. Parada ao lado do homem, ela não conseguia vislumbrar nada no interior do carro.

O vidro abriu com uma lentidão irritante. Atrás, surgiu o rosto taciturno do velho milionário.

— Boa noite, Ana! — cumprimentou num tom frio. — Não a farei perder muito tempo. Queria apenas dar-lhe uma palavrinha acerca da sua relação com o meu filho.

— Já calculava. — retorquiu com um sorriso sarcástico. — Veio ameaçar-me? Está com medo que eu esteja com o seu filho pelo dinheiro?

— Não. — interrompeu Vilaça. — Não me interessam as razões que a ligam ao imprestável do meu filho. Se é o dinheiro, perde o seu tempo. O Bernardo nunca herdará nada daquilo que é meu.

Ana Valquíria controlou o choque pela informação e, adoptando uma postura agressiva, lembrou:

— Ele é o seu único filho. Não pode impedir que ele herde...

— Você não sabe nada! — afirmou com autoridade. — Um homem como eu, um homem com o meu poder, pode fazer o que quiser. — Forçou um sorriso que lhe atirou com semblante de desejo que a enojou. — Sabe, Ana, você é uma mulher bonita, muito bonita mesmo. Devo concordar que é demasiado boa para o meu filho. Uma mulher como você pode chegar longe.

A irritação crescia no espírito dela.

— Se não se importa, agradecia que dissesse o que quer. Tenho mais que fazer que ouvir elogios de um velho gagá.

Vilaça ofendeu-se e fulminou-a com o olhar. Mas, logo depois sorriu-lhe e olhou-a de alto a baixo.

— Como lhe disse, o Bernardo não herdará nada.

— Não me interessa, eu amo o seu filho, não o seu dinheiro.

A gargalhada de escárnio ecoou dentro do Mercedes.

— Adoro estas jovens que acreditam na fábula de amor e uma cabana. — Ana Valquíria fez um movimento para se afastar. — Espere, Ana! Ouça o que tenho para lhe dizer. — Ela voltou a encará-lo. — O Bernardo não herdará nada, mas a Ana poderá ter tudo.

— Como assim?

— Afaste-se do Bernardo!

— E quanto me quer pagar para eu o fazer? — interrogou com desdém.

— Não pretendo pagar-lhe para isso. — refutou o velho. — Ou melhor, não da forma que está a pensar.

— Então?

— Proponho-lhe que se torne na nova senhora Vilaça.

Ana Valquíria ficou incrédula e boquiaberta com o choque da proposta.

— Case-se comigo, seja minha esposa dedicada. — adicionou. — Como já percebeu, não conto viver muito mais tempo. E após a minha morte, a Ana Valquíria ficará como toda a fortuna Vilaça.

— O senhor é nojento!

— Pense nisso, Ana. Não preciso que me dê uma resposta já. Mas, imagine a fortuna que ficará nas suas mãos.

— A qual poderei obter igualmente ao casar com o Bernardo, o qual irá herdar tudo isso quando você morrer.

— Ana! — exclamou novamente Vilaça. — Acredite no que lhe digo. O Bernardo nunca herdará nada. Para alguém com o dinheiro e o poder que tenho, há muitas formas de o fazer. Ainda lhe digo algo mais para a ajudar a uma decisão. Ninguém a obriga a nada, mas quero que saiba que cada uma das hipóteses tem as suas consequências. A primeira, já lhe disse: Case comigo e será uma mulher riquíssima. Se optar por ficar com o Bernardo, farei tudo para tornar a vossa vida miserável.

— Eu amo o seu filho! — insistiu. — Prefiro mil vezes passar fome com ele do que ser rica consigo.

— Talvez acredite nisso agora.

— O senhor é execrável.

Vilaça voltou a fulminá-la com o olhar. Contudo, ela era um prémio do qual não queria abrir mão. E habituado como estava a ter tudo o que queria, jogou a cartada final:

— Se Ana não ficar comigo, também não ficará com o meu filho.

— Por muito dinheiro que tenha, não pode controlar o sentimentos dele e os meus. — retorquiu ela com segurança.

— Talvez não, mas posso mandar alguém fazer com que o meu filhinho tenha um acidente e vá fazer companhia à mãezinha dele no Inferno.

Desta feita, o choque foi mais intenso, de tal forma que ela não foi capaz de proferir nada, para além de:

— O senhor não seria capaz...

O velho Vilaça concluiu:

— A decisão é sua.

O vidro voltou a subir e ele desapareceu. O advogado entrou para o lugar ao lado do motorista, o qual ligou o motor.

Estupefacta, Ana Valquíria ficou a ver o carro afastar-se.

Aquele encontro atormentou-a toda a noite. E no dia seguinte, foi surpreendida por um Bernardo desesperado que lhe telefonou a meio da tarde.

— O meu pai expulsou-me de casa. — informou-a. — Aquele filho da puta nem foi capaz de mo dizer na cara. Mandou o advogado informar-me que deveria abandonar a casa e que tinha sido demitido das minhas funções na empresa. E vinha acompanhado por seguranças para que eu não contestasse. Tentei ir à empresa falar com aquele pulha, mas não me deixaram entrar.

Apesar de toda a conversa com o pai de Bernardo não lhe sair da cabeça, ainda não tomara uma decisão concreta em relação ao que iria fazer. Porém, não esperava que os acontecimentos se tivessem desenrolado tão depressa.

— Posso ficar em tua casa até organizar a minha vida? — questionou ele.

Ana Valquíria viu-se confrontada com o momento da verdade. Ela amava-o com toda a força do seu ser. Porém, algo a levava a acreditar que o velho Vilaça seria capaz de mandar assassinar o próprio filho. Temeu por ele. Não conseguiria suportar ser a causa da sua morte.

— Agora estou a trabalhar. Podemos falar mais tarde? — sugeriu para ganhar tempo.

A relutância em o ajudar, que Bernardo sentiu na resposta, surpreendeu-o.

— Sim, claro. — concordou. — Mas, posso passar por aí para ir buscar a chave e esperar-te em tua casa?

Houve um silêncio de três segundo que pareceu uma eternidade. Por fim, Ana Valquíria respondeu:

— Acho que estamos a avançar muito rápido. Talvez seja melhor procurares outro sítio onde ficar.

— O quê? — questionou incrédulo. — Val! Estou na rua, sem dinheiro. O meu pai conseguiu tirar-me tudo. Estou a pedir-te ajuda.

As lágrimas escorriam pelo rosto de Ana Valquíria com o coração partido por estar a desprezar o amor da sua vida, crente que só assim o poderia proteger da maldade do seu pai.

— Não posso, Bernardo. Perdoa-me! — E desligou a chamada.

Bernardo insistiu, mas ela não voltou a atender e acabou por desligar o telemóvel. Pediu à colega que tomasse conta de tudo e foi refugiar-se alguns minutos na casa-de-banho, onde chorou compulsivamente.

Recomposta, voltou ao trabalho e tentou sem sucesso esquecer o que estava a acontecer.

Só voltou a ligar o telemóvel quando entrou em casa. O aparelho apitou cinco tentativas de chamada e uma nova mensagem escrita. Com as mãos a tremer, carregou no botão e leu a mensagem: "Enganaste-me bem. Não passas de uma vadia que só estava comigo para chegar ao dinheiro do meu pai. Lamento ter-te amado verdadeiramente, a ti que não passas de uma puta atrás de um qualquer estúpido rico."

Destroçada, deixou-se cair no sofá, completamente lavada em lágrimas.

 

Na manhã que se seguiu àquele rompimento com o homem que tanto amava, Ana Valquíria informou a sua chefe que não iria trabalhar nesse dia, pois encontrava-se indisposta. De seguida, procurou na Internet a morada da sede do império Vilaça e deslocou-se a Lisboa.

Quando se apresentou na recepção dos escritórios para falar com o todo poderoso Vilaça, a recepcionista recusou-se a anunciá-la, tomando-a por alguém que apenas queria importunar o patrão.

— Aconselho-a a informar o seu patrão de que eu estou aqui para falar com ele. — insistiu Ana Valquíria com arrogância. — Caso contrário poderá vir a perder o emprego.

Não estando disposta a correr o risco, a funcionária pegou no telefone e comunicou a sua presença. Sem conseguir disfarçar a surpresa, desligou e pediu-lhe que aguardasse um pouco que viria alguém para a levar ao patrão.

Após dez minutos, um indivíduo com postura de carregador armários, identificado com o dístico da empresa de segurança que assegurava a circulação no edifício, aproximou-se de Ana Valquíria e pediu-lhe que o acompanhasse.

Subidos vinte andares de elevador e atravessados dois corredores, o homem apontou-lhe a entrada da sala de espera, onde deveria aguardar que a chamassem.

Ana Valquíria sentou-se numa das cadeiras vazias daquela sala solitária. Envergava toda a sua elegância de modelo, vestindo calças de ganga azuis, uma camisa fina bege e um casaco formal escuro. Calçava sapatos de salto alto que a tornavam mais imponente e usava o cabelo louro solto sobre os ombros. Maquilhara-se para disfarçar o melhor que conseguiu o inchaço que envolvia os olhos verdes, resultante de uma noite em branco a chorar.

Ele fizera-a esperar mais de meia hora, altura em que uma senhora na casa dos cinquenta anos, muito bem aprumada, entrou na sala e pediu que a acompanhasse.

Quando entrou no gabinete, o velho Vilaça esperava-a com o olhar no exterior e de costas para a porta. Ao sentir a sua entrada, virou-se com um sorriso triunfante que só adensava a imensidão de rugas dos seu rosto.

— Que bela surpresa. — disse ele, apontando-lhe a cadeira em frente à secretária. — Apesar que tenho de confessar que não me surpreende que tenha vindo. — Ana Valquíria aproximou-se sem manifestar intenção de se sentar. — Calculo que afinal, a Ana perdeu a crença na fábula de um amor e uma cabana.

Ela ignorou o comentário e, num tom áspero, disse:

— O senhor fez-me uma proposta. Vim discutir os termos do nosso acordo.

Divertido, Vilaça virou-se para ela, altura em que revelou que se movia apoiado numa bengala.

— É justo. Gosto dessa sua postura de negociante, como se tivesse condições para negociar.

Sem desviar o olhar nem se mostrar insegura, contrapôs:

— Se é para ser tudo a seu gosto, acho que estou a perder o meu tempo. Talvez seja melhor ir embora.

— Não seja tola, Ana. — advertiu ele. — Ambos sabemos as consequências que isso poderia ter para o Bernardo.

— Eu e o Bernardo já não temos nada um com o outro. Pouco me importa o futuro dele.

O velho soltou uma gargalhada escarninha.

— Quase que acreditava, não fosse o facto de o seu rosto denunciar o quanto já não chorou desde ontem. — Ela desviou o olhar. — Pensava que conseguia esconder isso? Ana, já cá ando há muitos anos. Não sou enganado facilmente... Ou melhor, nunca sou enganado. — Caminhou com dificuldade, apoiado na bengala, e contornou a longa secretária que lhe servia de mesa de trabalho. — Mas, hoje sinto-me generoso. E estou disposto a ouvir as suas condições.

Ana Valquíria voltou a encará-lo.

— Quero que prometa e cumpra que não fará nada contra o Bernardo. E que lhe fará chegar o dinheiro suficiente para que possa sobreviver descansado. Quero um casamento com comunhão total de bens, não serei só a senhora Vilaça, passarei a ser dona de metade de todo o império Vilaça. E quero um lugar no Conselho de Administração.

Vilaça ofereceu-lhe um semblante de gozo e prosseguiu as suas lentas passadas até ficar defronte dela.

— Sempre gostei de uma boa negociação, por isso, vou fazer de conta que o acordo está dependente de algumas cedências. — disse, olhando-a com desejo. — Não farei nada contra o Bernardo, mas também não lhe darei dinheiro nenhum. Não teremos um casamento de comunhão total de bens, jamais aceitaria partilhar o meu património. Porém, estou disposto a apresentar-lhe o meu testamento formalizado em que a faço herdeira de tudo.

— O testamento pode ser alterado em qualquer momento.

— Sim, é verdade. Terá de confiar.

— Não chega.

Vilaça anuiu como se ponderasse uma solução. Por fim, propôs:

— Dou-lhe um prémio de assinatura de um milhão de euros, pagos no dia do casamento.

— E o lugar no Conselho de Administração.

Ele abanou a cabeça.

— Aquilo é um lugar para homens competentes, não para uma carinha bonita que pode ter jeito para muita coisa, mas não para gerir negócios.

— Não pretendo ser uma esposa doméstica ou uma mulher fútil a passear com o cartão de crédito do marido. Se não posso ser proprietária de metade do património, quero pelo menos estar nos momentos das decisões e ter opinião nelas.

Vilaça não respondeu. Ao invés, levantou a mão que não se apoiava na bengala e direccionou-a ao peito dela. Contudo, Ana Valquíria travou-o, segurando-lhe o punho.

— Nem pense. Não haverá intimidades antes do casamento.

O velho encarou-lhe o olhar com frieza, mas só encontrou desafio no dela. Fez tensão de afastar a mão e ela libertou-lhe o punho.

— Só após a minha morte, a Ana terá acesso ao Conselho de Administração para ocupar o meu lugar. Nunca antes.

— Já lhe disse que não pretendo ser uma esposa doméstica ou uma mulher fútil a passear com o cartão de crédito do marido.

— E eu não pretendo comprar o produto sem antes ver a mercadoria. — ripostou, apontando para o corpo dela.

— Está fora de questão. — recusou intransigente. — Não me tocará com a ponta de um dedo antes do casamento.

Vilaça concordou, assentindo com a cabeça. A seguir, propôs:

— O Grupo Vilaça tem uma empresa de moda, uma coisa mínima com um lucro irrisório, algo que até me esqueço que existe. Pode ficar com ela para se entreter e não ser uma doméstica com cartão de crédito. Honestamente, não estava a pensar dar-lhe nenhum cartão de crédito ilimitado, apenas uma mesada para os seus gastos. Mas, sendo assim, dou-lhe a direcção dessa empresa e o respectivo ordenado.

— Está bem. — aceitou.

— E aceito não lhe tocar antes do casamento, mas vou querer ver.

— Como assim?

— Quero que se dispa.

Houve um momento de hesitação. Porém, Ana Valquíria acedeu a despir o casaco e a abrir a camisa, revelando o soutien que lhe destacava o volume dos seios.

— Não vou tirar mais nada! — exclamou com altivez.

O velho não insistiu e fez-lhe um gesto com a mão para que se vestisse, enquanto pedia à secretária, pelo intercomunicador, que chamasse o advogado para que o acordo fosse formalizado.

 

 

 

 

III

 

Naquele início de tarde, algumas pessoas estavam reunidas no salão da casa, pois fora agendada para aquela data e lugar a leitura do testamento do falecido. Sentados nos sofás, alguns directores das empresas que constituíam o império financeiro Vilaça, os quais estavam curiosos com a última vontade do multimilionário. Não existiam descendentes presentes, uma vez que o único descendente dele, o filho, desaparecera sem deixar rasto após ter sido expulso da casa pelo pai.

O advogado da família foi recebido pela governanta da casa e encaminhado para o salão, sentando-se numa cadeira atrás de uma pequena mesa. A sua chegada foi anunciada e pouco tempo depois surgiu nas escadas a viúva.

Ana Valquíria apresentou-se tal e qual como no funeral, revelando um rosto agastado e choroso. Lágrimas de crocodilo, diziam as más-línguas. Vestia um vestido negro bem delineado, pois nem com luto ela deixava de realçar as curvas do seu corpo. O preto assentava-lhe bem, já que contrastava com o cabelo louro e os olhos verdes. Por mais que não se gostasse dela, era impossível não lhe reconhecer a sua extraordinária beleza.

O advogado cumprimentou Ana Valquíria, renovando o pesar pela morte do marido.

― Uma dor profunda. ― retorquiu ela, acentuando o tom com um leve soluçar. ― É difícil ultrapassar a morte de alguém que se amou tanto.

Se fosse possível ler os pensamentos de todos, seriam irónicos os rostos de compreensão que lhe devotaram.

Desde que se tornara na senhora Vilaça que se esforçou por fazer crescer a sua influência. Atirou-se de corpo e alma à gestão da empresa de moda que o marido lhe oferecera. Aliás, o velho Vilaça cumprira todos os termos do acordo. Somente duas dúvidas lhe ensombravam a mente: se ele cumpriria a palavra no testamento, deixando-lhe todo o património, e se de facto nunca fizera nada contra Bernardo, uma vez que nunca mais soubera dele, desde aquela cruel mensagem enviada para o telemóvel.

A sessão de leitura do testamento foi então iniciada.

A viúva fizera crer a todos que os bens materiais não lhe interessavam. Além disso, durante o casamento, ela soube gerir os seus bens e tudo o que acumulara fruto do seu trabalho já seria suficiente para uma vida tranquila sem precisar da fortuna do marido. Porém, a mágoa pela perda do seu grande amor e tudo o que o velho Vilaça a fizera passar eram razão mais que suficiente para ser credora daquela herança.

Ana Valquíria, com o casamento, tornara-se uma mulher distante e solitária. Enquanto o advogado seguia o protocolo da leitura, a sua mente vagueou nas recordações dos momentos felizes que vivera com Bernardo, no amor sincero e avassalador que haviam partilhado. Nunca o conseguira esquecer, não houvera um dia que não pensasse nele.

O seu olhar cruzou-se com o olhar da figura pintada num quadro gigante pendurado na parede do salão que ilustrava o velho Vilaça numa pose de senhor todo poderoso. Aquela imagem trouxe-lhe à lembrança a mórbida intimidade que fora obrigada a partilhar com o velho. Obrigou-se a despertar do pesadelo.

De volta ao salão, todos ouviam com atenção a leitura do testamento, a qual era executada formalmente pelo advogado e para que não subsistissem dúvidas. A ansiedade era grande e finalmente ele chegava à parte que mais interessava:

― … assim, é minha última vontade que todo o meu património fique para a minha querida e amada esposa Ana Valquíria. ― O advogado fez uma ligeira pausa, como se desse tempo a que a decisão fosse assimilada. Depois prosseguiu ― Todo, excepto uma verba de cem milhões de euros, a qual deverá ser entregue ao meu querido e desaparecido filho Bernardo. É minha vontade também que caso ele não seja localizado no prazo de cinco anos, este dinheiro reverta para a criação de uma Fundação com o seu nome de ajuda aos mais carenciados.

Os olhos de Ana Valquíria arregalaram-se. Cem milhões de euros era uma fatia pequena comparada com tudo o que herdara. A sua surpresa era o facto de o velho ter enunciado o filho no testamento, alguém que ele sempre dissera que nunca haveria de herdar nada.

A leitura terminou. Todos se levantaram e cumprimentaram a viúva em despedida, não deixando de proferir mais uma palavra de pesar.

Ana Valquíria levantou-se e chamou o advogado à parte. Ele era o único que conhecia todos os pormenores do casamento dela, uma vez que fora ele que a interpelara na loja e juntamente com o falecido a afastara do amor da sua vida.

— Que me está a escapar? — interrogou, quando ambos ficaram sozinhos na sala. O advogado olhou-a confuso. — O meu marido nunca gostou do filho. Você sabe que até ameaçou matá-lo. Só Deus sabe se não o terá ordenado, já que nunca mais ninguém soube nada do Bernardo. E agora deixa-lhe cem milhões de euros?

O ódio entre a viúva e o advogado nunca esmorecera, desde que o conhecera.

Sem dizer nada, o advogado entregou-lhe uma folha dobrada.

— O que é isto?

— A minha carta de demissão. — respondeu ele. — Estou certo que seria uma das suas primeiras acções como dona do império. Assim, poupo-lhe o trabalho.

Ana Valquíria confirmou o teor da carta e atirou-a para cima da mesa com desinteresse.

— É verdade? Ele mandou matar o Bernardo? — questionou a viúva.

O advogado sorriu com desdém e lembrou:

— A confidencialidade entre cliente e advogado não me permite comentar.

— Se lhe deixou o dinheiro é porque não o fez. — constatou ela.

— Eu não teria tanta certeza. — contrapôs o outro, deixando a viúva à beira das lágrimas. — O Dr. Vilaça sempre soube que a senhora nunca deixara de amar o filho. Talvez esta seja uma forma de a deixar numa constante dúvida. Se o Bernardo não for encontrado num prazo de cinco anos, fazem uma Fundação com o seu nome. O que na prática não será mais que uma forma de o império Vilaça obter dividendos fiscais, uma vez que a Fundação será gerida pelo Grupo Vilaça. Como vê, até na morte o seu marido foi esperto. Deu a entender que estava a deixar uma fortuna ao filho, mas afinal estava a deixar uma ferramenta ao património para combate aos impostos.

— A menos que o Bernardo apareça. — lembrou Ana Valquíria.

O advogado sorriu com ar malévolo.

— Acha mesmo que o seu falecido marido permitiria que isso acontecesse?

A viúva percebia o que as palavras do homem deixavam a entender, que o marido ordenara mesmo o assassinato do próprio filho. Porém, recusava-se a aceitar isso até que se confirmasse.

— Eu hei-de encontrá-lo.

— Tal como tentou fazer nos últimos tempos? — A pergunta deixou-a perplexa. No último ano, com o acentuar da debilidade do marido, Ana Valquíria contratara uma empresa de investigação para localizarem o enteado. — Sim, nós sabíamos disso. Por isso, o Dr. Vilaça pagou à empresa para lhe ir dando pistas falsas e não perderem tempo com essa busca. Eles é que levaram o lucro todo, receberam de dois lados e não fizeram nada.

Possessa, Ana Valquíria ordenou:

— Ponha-se na rua! Fora daqui, seu crápula!

Sem perder o ar triunfante, o advogado pegou na maleta e foi-se embora.

Rica e destroçada, a viúva era consumida pela raiva de até na morte o marido ter levado a melhor com aquele último golpe. Contudo, até que existissem provas irrefutáveis de que Bernardo estava morto, ela iria continuar a procurá-lo.

E após tomar posse da herança que lhe deixara, processou a empresa de investigação que a enganara e contratou outra para dar continuidade à busca.

 

Durante algumas semanas, a busca pareceu não vir a trazer qualquer resultado. Todas as informações que lhe chegavam eram inconclusivas e desde que ele desaparecera, após a mensagem enviada para o seu telemóvel, parecia que se evaporara pois não havia uma pista que desenvolvesse algo mais.

De tal forma se sentiu derrotada que Ana Valquíria começou a encarar com mais realidade a hipótese de Bernardo ter falecido. Daí que pediu aos investigadores que ponderassem essa mesma hipótese. Pelo menos, queria sossegar a sua alma, sabendo o que acontecera, mesmo que o desfecho fosse trágico.

No entanto, numa tarde quente de meados de Agosto de 2008, o chefe da equipa de investigação telefonou à viúva com novidades.

— Encontrámo-lo. — disse ele, deixando o coração da cliente aos pulos.

Porém, a forma sucinta da informação deixava inúmeras interrogações, levando os receios de Ana Valquíria conduzirem-na para os piores cenários.

— Está...

— O senhor Bernardo Vilaça está vivo.

A alegria inundou-a de tal forma que as lágrimas lhe brotaram dos olhos, sendo que pela primeira vez em muitos anos eram de felicidade.

— Onde está ele? Está bem?

— Localizámo-lo nos Açores, na ilha de São Miguel.

— São Miguel? — questionou sem saber muito bem o que dizer. — Vivo e em Portugal? Como foi possível demorar tanto para o encontrar?

— Só regressou a Portugal há uns meses. Ainda temos poucos pormenores. Mas, ao que sabemos, o senhor Bernardo Vilaça esteve estes anos em missões humanitárias pelos cantos mais esquecidos do Mundo. E agora encontra-se a viver perto de Ribeira Grande, na ilha de São Miguel.

Quando terminou o telefonema, o seu rosto tinha diverso carreiros de lágrimas. Sentada na cadeira do gabinete mais poderoso do Grupo Vilaça que outrora fora o trono do velho Vilaça, Ana Valquíria recompôs-se apesar de toda a ansiedade que a invadia. Chamou a sua secretária, a mesma que trabalhava para si na pequena empresa de moda e que a viúva levara consigo para substituir a antiga secretária do marido, e encarregou-a de lhe marcar viagem e estadia em São Miguel o mais rapidamente possível.

 

 

 

 

IV

 

Por vezes tornava-se difícil acreditar que se estava em pleno Verão, pois a noite estava fresca e a memória de noites amenas de Agosto parecia algo distante.

O Estádio da Luz não tinha as bancadas esgotadas, mas não ficara longe disso. Muitos benfiquistas quiseram comparecer ao jogo de apresentação do seu clube, em vésperas de se iniciar uma nova época de campeonato. Uma dessas pessoas era Joaquim, adepto dos encarnados desde miúdo, que ocupava uma cadeira das zonas mais altas de uma das bancadas centrais. Talvez por isso, a frescura da noite era mais intensa devido ao vento que soprava lá no alto. Tinha vinte e oito anos e estava acompanhado do seu filho de seis, o qual presenciava pela primeira vez um jogo de futebol ao vivo. Ele adorava aquela criança, mas a sua vida de pai era no mínimo complicada.

Joaquim sempre adorara o mar, um autêntico peixe na água. Nascera e vivera a sua infância em São Martinho do Porto, sempre com o mar bem perto e sem passar um dia em que não fosse nadar no meio das ondas. Acabou por fazer o curso de marinheiro numa escola náutica. Aos vinte anos surgiu-lhe a oportunidade de ir trabalhar para os Açores, como piloto de uma empresa de turismo, especializada em observações de golfinhos e baleias. Foi assim que conheceu a mãe do seu filho.

Três anos mais velha, espanhola e bióloga, a mãe da criança que o acompanhava também encontrara nos Açores a oportunidade de se desenvolver profissionalmente. Ela já lá trabalhava havia quase um ano e formou com ele a equipa de uma das embarcações de turistas que são sempre compostas pelo piloto e pela guia intérprete de observações.

O contacto constante e a proximidade de relacionamento resultaram num envolvimento sentimental. Contudo, existiam diferenças na forma como cada um encarava a relação. Para ela era apenas um relacionamento sem compromisso, apesar de não ter interesse em mais ninguém, enquanto ele estava verdadeiramente apaixonado por ela.

Algum tempo passado, o inesperado aconteceu e ela ficou grávida.

Quando soube, Joaquim ficou radiante e de imediato a sua cabeça fez planos para o futuro e uma vida em comum com a mulher que amava e com o filho de ambos. Porém, a sua felicidade sofreu um rude golpe quando ela o informou que não pretendia partilhar o resto dos seus dias com ele. Estava decidida a ter a criança, mas não queria Joaquim na sua vida e se possível nem na vida da criança. O seu relacionamento amoroso terminou nesse instante.

No entanto, Joaquim não desistiu do filho e quis cumprir a sua função paternal. Não conseguiu acompanhar a gravidez, mas esteve presente quando ele nasceu. Sempre que possível, visitava-o na casa da mãe e todos os meses entregava à espanhola uma pensão de alimentos para o menino.

A vida dele ainda se complicou mais quando perdeu o emprego e só arranjou meio de subsistência como empregado num café, ganhando muito menos. Passou fome, mas nunca deixou de entregar o dinheiro para o filho. Quando a criança atingiu o quarto aniversário, Joaquim obteve uma proposta de trabalho no continente e regressou. Foi uma decisão terrível e difícil, mas a que lhe poderia valer alguma qualidade de vida, perante aquela que tinha naquele momento.

Mudou-se para a Gafanha da Nazaré para trabalhar como consultor marítimo de uma empresa de navegação. O seu ordenado passou a ser o melhor de sempre e permitia-lhe ir todos os meses aos Açores ver o filho. Apesar de difícil, conseguiu que a mãe da criança deixasse o menino passar quinze dias de Agosto no continente com o pai.

Neste ano, Joaquim tivera o filho consigo na primeira quinzena de Agosto. E em vésperas de o pequeno regressar a casa, decidiu levá-lo a ver o Benfica a jogar com o Inter de Milão.

O jogo terminou empatado a zero e só mesmo os pontapés da marca de grande penalidade decidiram a quem entregar o troféu disputado. Joaquim ainda quis permanecer para a entrega do prémio, mas o rosto do filho revelava todo o cansaço.

― Vamos embora, filho? ― disse-lhe, abraçando-o.

O pequenito João (ou Juan como lhe chamava a mãe) assentiu com a cabeça.

Muitos milhares de adeptos caminhavam na área envolvente ao estádio, quase na sua totalidade da equipa da casa. O jogo fora amigável, não havia adeptos rivais nem perigo de confrontos. Joaquim carregava o filho ao colo, pois o sono pesava na criança. Caminhava na direcção do Centro Comercial Colombo, onde deixara o carro nessa tarde.

Quando alcançou a viatura, João já dormia tranquilamente. Joaquim sentou-o na cadeira no banco traseiro e ajeitou-o de forma a ficar seguro. Por muito que evitasse, não conseguia deixar de sentir a tristeza por estar em vésperas de ver o filho regressar à mãe.

Foi preciso alguma paciência para ultrapassar o trânsito à volta do complexo desportivo e ainda por algumas ruas fronteiriças. Porém, meia hora bastou para que ele entrasse na autoestrada A8 e rumasse a norte.

O percurso não era completamente estranho, uma vez que eram frequentes as deslocações a Lisboa por motivos de trabalho. Optava por aquele percurso por ser mais barato em portagens, mas tinha a contrariedade de uma estrada bastante maltratada entre a capital e Torres Vedras. Aliás, ele costumava ter como referência a forma da pera junto à estrada como divisória entre a boa e a má estrada.

Antes de passar Torres Vedras, João acordou.

― Pai!

― Sim.

― Tenho fome.

Joaquim sorriu, olhando o filho através do espelho retrovisor. Era natural, pois as sandes compradas num “fast-food” do Colombo, antes do jogo, não enchem a barriga de ninguém. Pediu ao filho que esperasse um pouco e parou na estação de serviço seguinte.

Pai e filho entraram na zona de refeições, onde não havia muita gente. Existia uma área de cafés e bolos e outra de sandes. Joaquim dirigiu-se à segunda trazendo João pela mão. Pediu duas sandes ao gosto de ambos, mas tiveram de se contentar com o que havia, uma vez que a cozinha já estava a fechar.

Não havia muita gente por ali, mas curiosamente não seria difícil adivinhar donde vinham, já que ou tinham um cachecol ou uma camisola do Benfica. Não havia dúvidas de que muitos adeptos tinham vindo um pouco de todo o país para assistir ao jogo de futebol.

Quinze minutos passados e já estavam novamente na estrada com Joaquim a conduzir e João a dormir.

Até Leiria ainda havia alguma movimentação de carros no asfalto. Contudo, uma vez entrado na A17, foram raros os veículos que ele avistou até chegar a Aveiro. Aí, nova mudança de autoestrada e após um pequeno troço da A25 estavam a chegar a casa.

Pai e filho despediram-se quando o mais novo já estava confortavelmente deitado na cama. Estava completamente ensonado.

― Pai!

― Sim.

― É amanhã que a mãe me vem buscar?

― Sim. ― confirmou Joaquim, notando uma estranha tristeza no olhar da criança.

― Porque não posso viver contigo?

A pergunta era complicada de explicar a uma criança de seis anos. E falar no assunto só acentuava a amargura que ia na alma do pai.

― Sempre viveste com a mãe.

― Mas se quisesse viver contigo?

― A tua mãe gosta muito de ti e ficaria triste se não quisesses viver com ela.

João ficou em silêncio. Parecia querer dizer algo, mas ficou calado. Porém, agarrou a mão do pai com força e disse:

― Gosto muito de ti, pai.

― E eu de ti, filho. És o que mais adoro nesta vida. ― retribuiu, evitando não derramar uma lágrima que quase o atraiçoara.

A conversa ficou a remoer-lhe o pensamento toda a noite. Dormiu mal e acordou massacrado pelo sono atribulado.

Nessa manhã ensolarada de sábado, conforme combinado, a mãe de João e o seu companheiro chegaram a casa de Joaquim num táxi. Pelo pouco que sabia, tinham aproveitado os quinze dias sem o filho para fazer férias algures. Joaquim não perdia muito tempo a pensar no assunto, mas era estranho que um casal com aspecto de viver com dificuldades financeiras e com ela sempre a queixar-se com falta de dinheiro para o filho, tivessem possibilidades de viajar. Não lhe interessava saber como conseguiam, só lhe interessava o bem-estar do pequeno.

Naquela manhã, vindos sabe-se lá donde, passaram por ali para levar a criança.

Entre eles não existiam cumprimentos, nem conversas para além das cordiais que implicava o facto de terem um filho em comum. Joaquim desceu as escadas com o filho pela mão, vendo o casal na rua, junto ao carro. Agachou-se em frente ao filho, deu-lhe um beijo no rosto e abraçou-o. A criança abraçou-o com força e soluçou.

― Vá, em breve irei visitar-te. ― lembrou Joaquim, num esforço tremendo para parecer forte.

― Tenho medo. ― disse o filho.

― Medo? ― interrogou, afastando-se e olhando-o nos olhos. As lágrimas escorriam pelo rosto da criança. ― De que tens medo?

― Juan! ― chamou a mãe.

João olhou para a mãe e não disse nada.

― De que tens medo? ― repetiu Joaquim.

― Rápido, temos um comboio e um avião para a apanhar. ― avisou o homem que acompanhava a mãe.

― Ele já vai. ― gritou Joaquim, sem olhar para eles.

João abraçou o pai com muita força e disse:

― Gosto muito de ti.

― De que tens…

Antes que pudesse terminar a frase, o miúdo dirigiu o olhar para a mãe e para o companheiro. E depois tornou a olhar para o pai.

― Eles?

O rosto de João era tão triste que metia dó.

― Juan! ― gritou a mãe.

João abraçou o pai, deu-lhe um beijo e afastou-se sem dar oportunidade a mais questões.

Toda a situação apanhou Joaquim de surpresa e sem reacção. Viu-os partir no carro e só depois se deixou atraiçoar por duas lágrimas. Já não fazia mal denotar fraqueza, pois já não tinha ali o seu filho para a descobrir. Contudo, as palavras da criança não lhe saíam da cabeça. Teria ele medo da mãe? Seria difícil de acreditar, pois sempre notara que ela o tratava bem.

Ao entrar em casa, reparou no desenho que João lhe deixara. Sorriu para si próprio com aquela forma natural de desenhar as figuras humanas como se fossem feitas de palitos. Viu uma meia bola verde, desenhada sobre um risco azul, onde uma figura feminina dava a mão a uma criança e estavam acompanhadas por uma figura masculina que o filho desenhara estranhamente com um braço maior que o outro. No canto inferior da folha, um quarto de círculo cinza com o desenho de uma casa parecida com a de Joaquim e uma figura masculina ao lado.

A interpretação que fez do desenho foi a de João de mão dada com a mãe e com a companhia do homem que os viera buscar. Estavam todos sobre a meia bola que representava a ilha de São Miguel onde viviam. A casa no extremo da folha era a sua, bem como era ele o homem ao lado da casa que ficava numa terra que não era uma ilha. No entanto, Joaquim só percebeu a verdadeira mensagem um dia depois, o que o deixou à beira do desespero. No desenho a mãe não dava a mão a João, estava a agarrá-lo, a prendê-lo para que não fosse para o pai. E o homem não tinha um braço maior que o outro, tinha um pau na mão. Rapidamente, na mente de Joaquim se edificou a ideia de que o filho era maltratado. Tinha de fazer alguma coisa. Tinha de ir atrás dele.

 

 

 

 

V

 

A Quinta do Cavalo era uma extensa propriedade na região de Idanha-a-Nova, pertença de uma das famílias mais ricas e tradicionais da zona. Os terrenos estendiam-se num vale, donde se poderia admirar as zonas mais montanhosas em volta, as casas de Idanha-a-Nova, o monte alto onde Monsanto brilhava com o seu castelo à noite, tudo no meio de uma paisagem onde a vegetação e rocha se misturavam numa imagem deliciosa para o olhar.

Cassandra era uma jovem de vinte e três anos, estudante de sucesso e recém-licenciada em Turismo. Herdeira natural de sua mãe que era uma mulher de sucesso, a qual se viu viúva bem nova e com a administração dos bens da família em mãos.

Adorava viajar, talvez por isso a sua inclinação para o Turismo. Agora que se licenciara, negociava com a mãe a possibilidade de edificar na propriedade uma zona para Turismo Rural.

As actividades da família eram a criação de cavalos, produção de vinho e azeite, para além das vacas e das ovelhas que não tinham uma expressão tão grande na riqueza do seu património. Por isso, o Turismo Rural não era uma prioridade para a mãe de Cassandra. Contudo, ouvira a sua proposta e tinha-a em consideração, uma vez que era o projecto da filha e a demonstração dela em querer trabalhar e construir algo, não ficando à sombra do que já iria herdar um dia.

Naquela manhã de sábado, Cassandra fazia uma das coisas que lhe dava mais prazer, andar a cavalo. O Sol brilhava, mas o calor ainda não era tão intenso. Parecia uma deusa a cavalgar com o cabelo escuro a ondular ao sabor da brisa e do galope. A roupa justa que usava para passear no dorso do cavalo revelava um corpo bem delineado. O seu rosto era hipnotizante com o olhar esverdeado inocente muito sedutor e uns lábios que proferiam uma voz meia rouca. Era tão linda como inteligente e muitos garantiam que já apaixonara todos os corações dos rapazes da região. No entanto, o seu coração era de um jovem de Lisboa que conhecera na Universidade. E naquela altura, após alguns dias de descanso em Idanha-a-Nova, preparava-se para viajar com ele durante uma semana para a ilha de São Miguel, nos Açores.

Deveriam encontrar-se na noite do dia seguinte, mas Cassandra decidira antecipar o encontro para essa noite, de forma a fazer uma surpresa ao namorado. Por isso, fazia uma última volta a cavalo pela propriedade, antes de partir para Lisboa depois do almoço.

Quando terminou o passeio, Cassandra encontrou a mãe perto dos estábulos a falar com o responsável da gestão dos empregados da quinta. Quase sem tirar os olhos dela, entregou o cavalo a um funcionário e caminhou pelo piso cimentado, fazendo ecoar os saltos das botas de cavalgar até parar junto da mãe. Cumprimentou ambos, dando um beijo à mãe. O homem afastou-se, deixando-as a sós.

― Então? ― interrogou Cassandra.

A mãe sorriu, percebendo de imediato ao que a filha se referia.

― Ainda não tomei uma decisão. Não penses nisso agora. Aproveita as tuas férias com o teu namorado. Quando voltares, conversamos.

― Mas, mãe…

― Aprende a ser paciente, Cassandra. ― atalhou a mãe. ― Nunca deixes que o desejo te cegue a razão. Estamos a falar de um projecto interessante, como já te disse outras vezes, mas que tem de ser bem analisado.

Cassandra assentiu com a cabeça.

― A Genoveva disse que ias partir hoje?! Não era só amanhã?

― Quero fazer uma surpresa ao Diogo. ― explicou a filha.

A senhora sorriu, dizendo:

― Vocês já namoram há mais de um ano, tu e ele já se formaram, tu tens este projecto, ele vai trabalhar no próximo mês, as vossas vidas estão bem encaminhadas…

― Mãe, por favor. ― interrompeu Cassandra. ― Não vamos voltar ao assunto casamento.

― Não vejo qual o mal. Com a tua idade já tinha casado com o teu pai.

― Mas as coisas são diferentes nos dias de hoje. Não penso casar antes dos trinta.

Ao início da tarde, o calor tornara-se intenso como habitualmente. Cassandra partiu no seu carro em direcção a Lisboa. Teria de percorrer alguns quilómetros nos caminhos alcatroados da localidade até chegar à estrada nacional que a levaria até à A23. Era uma estrada sempre complicada com aumento de trânsito na aproximação da A1. Para além disso, complicando ainda mais o cenário, um acidente meia hora antes provocou uma longa fila de carros, o que a fez estar num pára e arranca de mais de uma hora e meia, ao Sol e fustigada pelo calor que o ar condicionado apenas atenuava, até alcançar a principal auto-estrada nacional.

Cassandra sentia a roupa toda colada ao corpo. Tinha vontade de se despir por completo, o que seria uma delícia para o olhar dos condutores que à sua volta aguardavam parados no trânsito. Felizmente optara pela saia quando se estava a vestir para a viagem, queria estar terrivelmente sedutora quando encontrasse o namorado. Puxou o tecido quase todo até à cintura para refrescar as pernas, porém, isso não evitava que se sentisse colada ao banco. Por muito que custasse, tinha que se aguentar.

Os carros avançavam lentamente e a cerca de dez quilómetros da junção dos dois caminhos, já era possível ver as luzes azuis das ambulâncias e carros da BT junto ao acidente.

O aparato era bastante grande, adivinhando-se que as consequências do acidente tinham sido bem graves. Passar a zona mais apertada onde só a berma do asfalto permitia a passagem às duas filas de carros que se intercalavam e entrar na A1 levou mais uns vinte minutos, principalmente porque a maioria dos automobilistas passava pelo acidente muito lentamente para conseguir observar alguma coisa.

O resto do percurso foi feito com normalidade e antes da hora do jantar, Cassandra chegava a Lisboa, estacionando em frente ao prédio onde o namorado vivia. Antes de sair, retocou a maquilhagem e ajeitou a camisa de algodão de manga curta, preocupando-se em que nada estivesse fora do lugar. Saiu do carro, endireitou a saia que lhe terminava acima dos joelhos e colocou os óculos escuros sobre a cabeça, segurando o cabelo. Deitou um último olhar ao espelho retrovisor e, de mala ao ombro, caminhou para o edifício.

O namorado dera-lhe uma chave, mas ela tocava sempre à campainha. Contudo, o seu objectivo era a surpresa. Se ele não estivesse em casa, iria esperá-lo completamente nua sobre a cama do quarto. Mas se ele já lá estivesse, atirar-se-ia ao seu pescoço, iria beijá-lo e atiçá-lo, deixando-o louco de desejo para que lhe tirasse a roupa.

Logo que saiu do elevador já trazia na mão a chave. Tentou não fazer barulho para que não existissem suspeitas da sua chegada. Abriu a porta e encontrou silêncio. Fechou-a atrás de si e andou alguns passos até parar com um som que a deixou desorientada. Ouvia gemidos fortes de mulher e um ofegar menos imponente de homem. A sua mente apressou-se a justificar com a possibilidade de o namorado estar a passar o tempo a ver um DVD pornográfico, já que não era segredo o seu apreço pelo género.

No entanto, avançando mais alguns passos, viu roupa de mulher espalhada pelo chão e alguma de homem mais à frente. E o som vinha do quarto…

Só por si, a suspeita já provocava um impacto brutal no espírito de Cassandra. Mesmo assim, continuou. Largou a mala no sofá deu algumas passadas silenciosas até ao quarto. Abriu a porta e foi como se lhe espetassem uma faca no coração.

Uma jovem loura estava completamente nua sobre a cama com as mãos e joelhos apoiados no colchão com o namorado de Cassandra atrás de si, também ele completamente nu, segurando-lhe as ancas e investindo vigorosamente com prazer entre as suas nádegas. Foi ela quem primeiro viu Cassandra.

O esforço para não desabar em lágrimas foi sobre-humano. Confrontou o olhar da desconhecida com ódio, chamando-lhe a atenção o sinal que tinha acima do lábio superior. O seu namorado estava tão empenhado que continuava, sendo ela a parar e a chamar a sua atenção.

― Cassandra!

Ela nem lhe respondeu, dando meia volta e regressando ao local onde deixara a mala.

― Cassandra!!! ― voltou ele a chamar, saído do quarto com uma peça de roupa na mão, de forma a cobrir as intimidades.

Cassandra olhou-o, chocada e com a cólera a subir pelo seu corpo. Tinha vontade de lhe gritar, de lhe bater, de o magoar tanto quanto ele a acabara de magoar.

― Não é o que estás a pensar. ― disse ele.

Ela não conseguiu evitar um sorriso de estupefacção e disse:

― A justificação mais velha da História.

― Mas é verdade. ― insistiu. ― Não é nenhum caso. É só uma prostituta.

― O quê? ― inquiriu ela ainda com mais ódio. ― Uma prostituta? ― Abanou a cabeça, incrédula. ― O que te leva a recorrer a uma puta? Não podes passar uns dias sem mim?

― Não é isso. ― disse ele, mantendo a calma.

― É o quê então?

― Novas experiências.

A resposta foi tão absurda para Cassandra que ela olhou para o ar e sorriu para não desatar num choro desesperado.

― Novas experiências?

― Sim, amor.

― Não me chames “amor”! ― ordenou ela, perdendo o sorriso e irradiando ódio no olhar. ― Perdeste esse direito.

― Ouve-me. ― pediu. ― Tenho a necessidade sexual de fazer outras coisas. Tu sabes. Já falámos sobre isso.

― Ir ao cu a uma puta deve ser uma dessas necessidades, pelo que vi aqui.

― Sim.

― Olha, vai-te foder! ― vociferou ela. ― Pensas que sou o quê? Esperas que te encontre a enrabar uma puta e ache tudo normal porque tens “necessidades sexuais”?

Ele abanou a cabeça e respondeu:

― Se não fossem as tuas lacunas…

― “Lacunas”?? ― interrompeu. ― Que lacunas?

― Tu sabes bem ao que me refiro. ― lembrou ele, usando um tom como se tivesse toda a razão do seu lado. ― Nunca estás disposta a fazermos coisas novas. Bolas, Cassandra, sexo contigo é sempre a mesma merda.

Aquilo não podia estar a acontecer, pensava ela. Aquele não podia ser o homem com quem namorava havia mais de um ano, não podia ser aquele por quem o seu coração batia. Aquele homem não podia ser o mesmo a quem se entregava sempre que faziam amor.

― Sempre a mesma posição. ― continuou. ― Sempre da mesma forma. Nunca quiseste fazer anal.

― Sabes que não me sentia à vontade a fazê-lo. ― contrapôs ela. ― Esperava alguma compreensão da tua parte.

― E tiveste.

― Nota-se.

― Não tenho a culpa que sejas frígida, Cassandra. ― resumiu ele com enorme insensibilidade.

― Frígida? ― interrogou ela com espanto. ― Tu é que não sabes dar prazer a uma mulher. Tu a fazeres sexo pareces um cavalo a cobrir as éguas.

Diogo encolheu os ombros. Nesse instante, a prostituta com quem ele estava surgiu na porta do quarto, coberta pelo lençol da cama e sugeriu:

― Talvez seja melhor eu ir.

― Sim, põe-te andar. ― concordou Cassandra sem tirar os olhos do namorado.

― Calma! ― exclamou a outra. ― Não é preciso essa agressividade, querida.

Cassandra olhou-a com desprezo e respondeu:

― Olha, podes meter o “querida” no mesmo sítio onde ele estava a foder-te. Pensas que sou da tua laia? Não sou nenhuma puta.

― Se fosses, o teu namorado não tinha tantas razões de queixa. ― ripostou a outra com desdém.

Com a mala na mão, Cassandra avançou para ela. No entanto, o namorado segurou-a.

― Larga-me, estupor! ― ordenou.

― Tem calma, Cassandra. Por mais que ache interessante duas mulheres à estalada, agora não me dá muito jeito.

― É melhor ir andando. ― voltou a sugerir a prostituta.

― Não! Tu ficas! ― ordenou Diogo. ― Paguei uma fortuna por ti, quero o serviço todo. ― Seguidamente olhou para a namorada, largando-a. ― Tu é que vais. Esta relação já deu tudo o que tinha a dar. Acabou.

Cassandra não sabia o que dizer. Traída, humilhada e por fim desprezada. Nem o direito a ser ela a pôr fim à relação lhe foi concedido. Atrás de Diogo, a loura sorria pela vitória, o que a irritou ainda mais.

Contudo, não havia mais nada a fazer, mais nada a dizer. Permanecer ali só prolongaria a humilhação e nada que dissesse o magoaria mais a ele que a ela. Virou as costas a ambos, atirou a chave do apartamento para o chão e saiu batendo com a porta.

O esforço para não chorar foi heroico e assim se manteve até alcançar o carro. Entrou e ligou a ignição. O rádio despertou, ao mesmo tempo que o motor do automóvel, e fez ecoar pelo interior uma música que nada tinha a ver com o seu estado de espírito.

Cassandra desabou num choro desesperado.

Não sabe quanto tempo chorou debruçada sobre o volante, mas terá sido certamente todo o tempo da música. Sentia que a vida se desmoronara de um momento para outro ou pelo menos a sua vida sentimental. Por instantes, ficou perdida e sem saber ao certo o que fazer. Baixou o espelho escondido atrás da pala do para-sol e olhou-se, vendo um rosto borrado da pintura que se desvanecera por entre as lágrimas. Não, ordenou a si própria, ele não teria mais essa vitória de a transformar numa figura vencida. Limpou o rosto o melhor que conseguiu e arrancou daquele local de má memória, seguindo para Sintra, onde viviam os seus tios. Não tinha grandes certezas do futuro, mas mantinha uma vontade incondicional, pois estava decidida a manter a sua viagem aos Açores.

 

 

 


18 de Agosto


 

 

 

 

VI

 

Lisboa era uma cidade brilhante com os raios solares a beijar toda a sua área. O calor não era demasiado, apenas o suficiente para deixar as pessoas confortáveis.

No Aeroporto da Portela, em frente ao Terminal 1 na zona de Partidas, um táxi juntou-se a outros que também haviam suspendido a sua marcha por ali para deixar passageiros. Neste, saiu uma jovem de rosto fechado parcialmente coberto pelas grandes lentes dos óculos escuros. Cassandra usava-os para proteger os olhos do brilho do Sol e para disfarçar o inchaço provocado por uma noite inteira de lágrimas pelo fim da sua relação com o namorado. Vestia roupa informal, umas calças de ganga e uma camisa fresca de manga curta e com três botões desabotoados. Viera de Sintra naquele transporte que não ficava nada barato, mas mais económico que trazer o seu carro e deixá-lo uma semana no parque do aeroporto.

Cassandra carregava a sua bagagem numa mala de viagem com rodinhas que lhe permitia arrastá-la quase sem lhe tomar o peso. Já não viajava de avião havia algum tempo e nunca mais estivera por ali, desde que as obras no aeroporto tinham começado. Por isso, quando entrou, a primeira coisa que fez foi olhar para o quadro das partidas e procurar a porta de embarque.

O seu voo seria daí a cerca de duas horas. Cassandra gostava de chegar cedo e fazer as coisas com calma. Leu a lista de voos e reparou que o seu tinha embarque no Terminal 2. Não fazia a menor ideia onde ficava, mas logo reparou que o chão tinha setas pintadas a assinalar o caminho. Novamente puxando a sua mala, Cassandra seguiu as indicações.

O trajecto levou-a novamente à rua e a atravessar toda a fachada do Terminal 1 até curvar na direcção das paragens de autocarro, onde reparou que um desses veículos fazia a ligação entre os dois terminais. Puxando a mala, subiu o degrau do autocarro e entrou, reparando que no interior não estavam mais de meia dúzia de pessoas, metade das quais eram tripulantes de uma companhia aérea. Deslocou-se até ao fundo e sentou-se num dos últimos bancos, equilibrando a bagagem à frente das pernas.

Lá fora, o Sol deixou-se esconder por algumas nuvens que passavam. Cassandra olhou para o exterior e reparou que no céu o azul começava a dar lugar ao cinzento. Atrás do local donde o autocarro partiria, alguns estrangeiros descansavam sentados no chão, carregando enormes mochilas. Até o veículo se colocar em marcha, apenas mais três pessoas entraram.

A distância que separava ambos os terminais não era grande e o motorista percorreu-a com tranquilidade. Cassandra distraiu-se dos seus pensamentos olhando pela janela e vendo o Sol teimar em furar as nuvens que subitamente apareceram para o intimidar. Obrigou-se a não pensar nele, Diogo não lhe merecia essa perda de tempo, nem o gasto da sua memória em lembranças de um amor que fora uma fraude. Mas, era complicado…

O autocarro contornou a praça frontal, seguindo depois por uma estrada estreita de dois sentidos. Não era muito perceptível, mas as pistas dos aviões ficavam a escassos metros e esta estrada até passava por baixo de um viaduto que era também parte da pista. O Aeroporto da Portela, com a evolução dos anos desde a sua inauguração, parecia afunilado numa cidade que se expandia descontroladamente à sua volta.

O trajecto não era muito comprido, mas para quem o fazia pela primeira vez parecia sempre maior. O autocarro seguiu pela estrada que terminava numa pequena rotunda desenhada no alcatrão, parando antes de a alcançar, junto à entrada do Terminal 2.

Esta entrada era semelhante à outra, porém menor. Normalmente era utilizada para voos domésticos. Cassandra desceu do autocarro e caminhou para o interior, sempre com o som das rodinhas a acompanhar. Logo após a entrada, o espaço era amplo com lojas, gabinetes das agências de viagem, de rent-a-car, de algumas companhias aéreas, posto de turismo, entre outras coisas. O primeiro local onde ela se dirigiu foi ao quadro com as indicações dos voos e respectivos balcões de check-in. Mesmo faltando bastante tempo para o seu embarque, optou por fazer o check-in de imediato de forma a livrar-se da bagagem. Sendo assim, o seu objectivo seguinte foi o balcão correspondente.

Uma jovem com a farda da companhia aérea atendeu-a com a simpatia habitual e obrigatória àquela função. Cassandra entregou o bilhete juntamente com o documento de identificação. Pegou na mala e colocou-a sobre a passadeira ao lado do balcão. Aguardou um pouco e por fim recebeu da funcionária o bilhete com o seu lugar no voo e o talão da bagagem para o caso de esta se perder.

As entradas para a sala de embarque ficavam logo ao lado. Era um outro espaço tão grande ou maior que o primeiro. Cassandra deslocou-se até aos seguranças que controlavam a passagem e seguiu os procedimentos habituais, colocando a sua mala de senhora num tabuleiro e passando por uma arcada metálica que não era mais que um detector de metais. A sua mala também passou num outro detector, rolando numa passadeira lateral. Como nada fora detectado, o segurança retirou a mala do tabuleiro e devolveu-lha, desejando-lhe uma boa viagem.

A sala de embarque tinha uma altura superior a dois andares e quase todo o espaço central era ocupado por filas de cadeiras onde os passageiros aguardavam a chamada à porta de embarque. Do lado direito existiam algumas lojas com produtos isentos de impostos, enquanto do seu lado esquerdo ficavam as várias portas de embarque que faziam uma parede envidraçada para o exterior. Ao fundo, um pequeno bar que servia pequenas refeições, um espaço amplo ocupado pela metade por mesas e cadeiras e uma caixa multibanco. Por cima das lojas estava um varandim de acesso reservado ao pessoal do aeroporto.

Cassandra passeou pelo local e reparou nos vários televisores espalhados pela enorme sala, pendurados no ar para que fossem visíveis a quase todos os passageiros que ali aguardavam. E já eram muitos para os diversos voos programados. Todos os ecrãs transmitiam imagens em directo das provas de atletismo dos Jogos Olímpicos de Pequim. Nunca fora grande fã de provas desportivas, ao contrário do namorado… ex-namorado. Não conseguiu evitar a constatação de que se ele ali estivesse com ela, teria os olhos vidrados naqueles ecrãs.

O bar foi o primeiro sítio onde parou. Pediu um café e um bolo para aconchegar o estômago até à hora em que servissem a refeição no avião. Escolheu uma mesa e sentou-se na cadeira durante alguns minutos a apreciar o bolo e o café.

A espera não deixava de ser aborrecida, ainda mais para quem está sozinha como acontecia com ela. Cassandra ocupou parcialmente o seu tempo a visitar as lojas de tax-free. Começou por uma papelaria que tinha revistas e jornais do dia e alguns livros de literatura. Folheou algumas revistas, mas pouco ligou aos jornais. Procurou na estante dos guias de turismo um dos Açores, mas quase todos os do território português ou eram dedicados ao Algarve ou a Lisboa ou à Madeira. Dos Açores… nem um.

Saiu da loja como entrou e visitou a seguinte, uma espécie de local com ofertas variadas, desde chocolates, vinhos, perfumes, artigos de higiene pessoal (um óptimo negócio desde a proibição de transportar lâminas de barbear, corta-unhas ou embalagens grandes com líquidos), souvenirs, entre outras coisas. Também aqui não comprou nada.

Ainda faltava uma hora para o seu embarque. Regressou à papelaria e comprou uma revista para passar o tempo. Sentou-se numa das cadeiras vagas das longas filas ao centro da sala e folheou as páginas de crónicas cor-de-rosa, as quais nem apreciava.

Na rua, as nuvens teimavam em persistir e mesmo sendo claras não deixavam o Sol passar, continuando a entregar ao ambiente uma tonalidade fria, apesar de estar calor. Soprava uma brisa mais forte e o som dos aviões a aterrar e descolar eram uma constante.

Em frente à fachada do Terminal 2, um luxuoso Mercedes parou logo a seguir a mais um autocarro que viera deixar passageiros. O motorista do carro saiu e contornou o veículo para vir abrir a porta traseira do lado contrário.

Por essa porta saiu Ana Valquíria com uma postura altiva e o toque arrogante que cultivara ao longo dos últimos anos. Mantinha o seu estilo formal, elegante num vestido preto de viúva pesarosa. Segurava o telemóvel numa mão e a mala de uso diário na outra. O seu motorista retirou a bagagem da bagageira do Mercedes e acompanhou-a ao balcão de check-in, onde colocou a bagagem no tapete rolante, recebendo depois a ordem da patroa para que se fosse embora.

Após as formalidades, Ana Valquíria seguiu para o controlo de acesso aos voos, seguindo os procedimentos de inspecção obrigatórios.

Aquele não seria certamente o melhor momento para fazer uma viagem, afastar-se da liderança presencial do grupo Vilaça. Desde que assumira a sua posição resultante da herança, a viúva deparou-se com múltiplos obstáculos, velhos costumes e interesses instalados nas empresas, os quais não viam com bons olhos a nova líder, uma mulher que sempre fora vista como caçadora de fortunas.

Durante todo o tempo que passou na sala de embarque, o telemóvel esteve sempre encostado à sua orelha, em contacto permanente com a sua secretária e com algumas pessoas posicionadas em vários sectores do Grupo Vilaça em quem confiava minimamente. Decorria uma verdadeira purga nas cúpulas.

Ana Valquíria descobrira em si uma líder nata ao assumir a pequena empresa que o velho lhe oferecera com desdém. Transformou e reorganizou um negócio que duplicou os lucros num ano. Por isso, ela não era meramente uma mulher que usara todo o seu encanto para "caçar" a fortuna de um velho, era uma empresária de sucesso empenhada na sua nova função e decidida a afastar todos os que lhe quisessem fazer frente.

Se houvesse uma altura pior para se afastar da sede era aquela. Contudo, a descoberta do paradeiro de Bernardo, ao fim de todos aqueles anos, falou mais alto. E Ana Valquíria tinha de ir ao seu encontro.

 

 

 

 

VII

 

Joaquim quase não dormira nessa noite, tal era a ansiedade pela partida na manhã seguinte. Conseguira um lugar no voo da hora de almoço que partiria de Lisboa para Ponta Delgada, mas ainda tinha de viajar entre a Gafanha da Nazaré e Lisboa de comboio. Por isso, bem cedo pela manhã, saiu de casa e foi de carro até à estação ferroviária de Aveiro, onde partiria no Alfa-Pendular com destino à Estação Oriente na capital.

Naquele instante, sentado no seu lugar junto da janela da carruagem, observava a paisagem exterior sentindo os olhos a serem intolerantes com a luminosidade matinal, muito à custa da noite mal dormida. Daí a alguns minutos, o comboio chegaria a Pombal. Por mais que tentasse repousar o espírito, não conseguia deixar de pensar no filho e naquilo que ele poderia estar a passar.

Na verdade, Joaquim sentia-se “às escuras” nesta sua missão. Não sabia muito bem o que iria fazer, tendo apenas como ideia fixa o objectivo final que era salvar o filho, caso as suas suspeitas se confirmassem. Por isso, cada etapa era pensada faseadamente. O seu primeiro objectivo seria chegar a Ponta Delgada. Depois logo veria o que iria fazer a seguir.

O conforto do seu lugar no comboio e o cansaço acumulado fizeram com que ele adormecesse durante a viagem. Teve sonhos atribulados, mas que não ficaram registados na sua memória. Também sonhou com as paisagens junto à linha ferroviária, o que o levou a crer que estava acordado. Vislumbrava montes verdes e planícies ora verdes ora castanhas, edifícios junto da linha, pequenos focos habitacionais ao longe, outros a serem atravessados pelo trajecto. Viu o rio paralelo à linha, o mar, o oceano a envolver a ilha… O oceano a envolver a ilha? Algo não batia certo. Ouviu uma voz dizer:

— Ei! Senhor!

A voz repetiu-se algumas vezes e o seu ombro sentiu um toque semelhante a um abanão. Subitamente, Joaquim abriu os olhos e viu o interior da carruagem que o transportara e um funcionário da CP a olhar para ele.

— Já chegámos? — perguntou com um olhar pesado e ensonado.

— Sim, há já algum tempo. — respondeu o homem.

Joaquim olhou pela janela e estranhou a estação.

— Já estamos na Estação Oriente?

— Não. Estamos em Santa Apolónia.

— Bolas! — exclamou Joaquim atrapalhado. — Eu devia ter saído na Estação Oriente. Que horas são? — Antes que o funcionário tivesse tempo de responder, Joaquim olhou para o relógio. — Ai meu Deus, como estou atrasado.

Sem mais palavras, pegou na bagagem e saiu do comboio a correr.

Não conhecia muito bem a estação. Mantendo um ritmo elevado, procurou a saída e uma praça de táxis. Sair na Estação Oriente implicava uma pequena viagem de táxi até ao aeroporto e chegar com toda a calma para os procedimentos de embarque. Sair em Santa Apolónia, com o atraso de só ter acordado muito depois da chegada e porque o funcionário que inspeccionava as carruagens dera com ele, implicaria uma viagem de táxi a atravessar a cidade de sul a norte. Normalmente, o trânsito seria uma loucura, mas valia o facto de estar em Agosto.

Quando entrou no táxi, deparou-se com um daqueles taxistas com aspecto de reformado que faz uns biscates a conduzir um táxi.

— Para o aeroporto. — pediu Joaquim. — O mais rápido possível.

A segunda parte pareceu não ter chegado aos ouvidos do homem, o qual conduziu sem nunca passar dos 50 quilómetros por hora.

— Não pode ir um bocadinho mais depressa? — interrogou Joaquim, quase desesperado com tanta lentidão.

— O limite é 50. — respondeu o condutor sem simpatia. — Não quero arriscar-me a uma multa.

O homem não só conduzia devagar, como era raro o semáforo onde não parasse. Mesmo que a luz amarela acendesse quando estivesse a um metro do sinal, ele abrandava mais e parava no vermelho.

— Podia ter passado. — disse-lhe ao quinto sinal luminoso.

— Isto não é nenhuma corrida. — ripostou o velho. — E eu não quero ficar sem carta.

Entretanto, no Terminal 2 do Aeroporto da Portela, um sinal sonoro acompanhado por uma voz feminina alertou os passageiros que se iria iniciar o embarque para o voo com destino a Ponta Delgada. Lá fora o céu continuava triste, sem raios solares e com um tecto cinzento que ameaçava poder chover. As pessoas dirigiram-se para a porta de embarque, umas mais depressa que outras, sem que se pudesse perceber bem o porquê daquelas que quase corriam para chegar primeiro.

No pequeno balcão junto à porta para o exterior da grande sala, dois funcionários da companhia aérea, um homem e uma mulher, faziam o controlo dos documentos e bilhetes para embarque. Ela tinha uma função mais permanente, junto daquele posto, tendo ele uma função de apoio de forma a agilizar o processo de confirmação de bilhetes. Ambos fardados, ele era alto, porte recto, bem penteado e um rosto necessariamente simpático. Já ela era mais sorridente com um olhar bastante expressivo e azulado, cabelo claro todo penteado para trás e preso atrás da nuca.

Não fugia em nada à imagem da hospedeira curvilínea e sensual. Podia ser e era uma mulher muito bonita, a tripulante, mas viu a sua beleza ofuscada quando Cassandra passou por sim com o bilhete na mão. Foi o seu colega quem confirmou os dados e lhe indicou o autocarro com um sorriso bem aberto.

Os passageiros foram-se sucedendo e o primeiro autocarro partiu rumo ao local onde o avião estava estacionado. Poucos segundos depois, um outro estacionou junto à porta por onde os passageiros saiam.

Enquanto isso, o táxi que transportava Joaquim chegava finalmente ao Terminal 2. Pagou a viagem sem dar gorjeta e tentou controlar-se para não desabar no homem toda a raiva pela postura que este tivera ao longo do trajecto. Já lhe chegava o atraso que levava para conseguir apanhar o avião para Ponta Delgada. Entrou no edifício e lançou um olhar ao quadro com as indicações do check-in. Deu uma corrida para o balcão correspondente, quase deixando cair a bagagem.

— Está muito atrasado. — disse-lhe a funcionária ao atendê-lo. — O embarque para este voo está quase fechado.

— Tive um contratempo. — justificou.

Ela tratou do processo o mais rápido que pôde e entregou-lhe os documentos. Joaquim agradeceu e correu novamente até à entrada do salão de embarque. Passou pelo controlo de metais e outros objectos potencialmente perigosos e entrou. Procurou o quadro com a indicação do seu voo e o número da porta de embarque. Sempre em passo de corrida e já ofegante, encontrou a indicação e viu uma porta já quase sem ninguém para embarcar.

A separá-lo do funcionário, somente uma senhora idosa. Após a verificação, a senhora seguiu para o autocarro. Joaquim puxou do Bilhete de Identidade e do bilhete de voo e entregou-o ao homem fardado. Este confirmou os dados e disse:

— O seu BI caducou.

— O quê? — interrogou Joaquim, surpreso. — Caducou?

— Está aqui. — apontou o outro, virando o documento e mostrando-lhe a parte de trás. — Válido até 17 de Agosto de 2008.

— Isso foi ontem. — lembrou Joaquim. — Há algum problema?

— Não podemos deixar embarcar ninguém sem os documentos em ordem.

— Ó meu amigo, eu preciso de embarcar naquele voo.

— Lamento, mas…

— Eu nem reparei que tinha caducado. — interrompeu Joaquim. — Caducou ontem, bolas. Isso faz de mim um fora da lei? Além disso é um voo para os Açores, nem é para o estrangeiro.

— Regras da empresa.

— Não me lixe. — protestou ele, levantando o tom de voz.

Alertada pela voz alta, a hospedeira regressou ao balcão, indagando:

— Que se passa?

— O seu colega não me deixa embarcar. — atalhou Joaquim, nem dando tempo ao outro para responder.

— O BI está caducado. — informou o funcionário, entregando o documento à colega. Ela olhou para a data e confirmou o facto.

— Mas eu tenho de seguir neste voo… — insistiu Joaquim.

— Talvez seja melhor pedir indicações… — sugeriu ela ao colega.

— Faz como quiseres, Eva!

Sem lhe dar tempo de argumentar o que quer que fosse, o indivíduo afastou-se até outro sector. Ela ficou irritada, tinha um autocarro cheio de passageiros e um avião à espera com muitos mais.

— Por favor! — exclamou Joaquim. — Eu tenho de embarcar. Não posso perder este voo.

Com um tom muito calmo, Eva explicou:

— Sabe, é uma regra da companhia… Aliás, acho mesmo que não é só nossa, é de todas.

— Mas caducou ontem, podiam dizer que não tinham reparado, que pensavam que era no mês que vem… Qualquer coisa.

— As coisas não podem ser feitas assim. — contrapôs ela. — Depois, nós é que somos responsabilizados.

— Ouça! — insistiu, quase desesperado. — Eu tenho de ir a São Miguel. O meu filho está lá e acho que sofre maus tratos da mãe. Estou em pânico só com a possibilidade… Tenho de ir lá. Não posso ficar e ir tratar dos documentos… Bolas, só Deus sabe quando terei hipóteses de voltar a partir.

— Numa semana deve…

— Eu não posso esperar uma semana. Por favor! Eu imploro-lhe.

A hospedeira hesitou por instantes e acabou por dizer:

— Venha!

Entregou-lhe o documento e o bilhete, fazendo-o acompanhá-la até ao autocarro onde ambos entraram.

O trajecto não demorou mais de dois minutos. As pessoas saíram do autocarro e tiveram de aguardar um pouco até seguir para as escadas do avião. Joaquim perdeu completamente o contacto com a hospedeira. Em fila indiana, os últimos passageiros foram entrando.

Não era um voo lotado, pois ainda existiam lugares vazios. Cassandra ficou junto a uma janela sem ninguém a seu lado. Joaquim e um senhor de sessenta anos iam quase ao fundo do avião nos lugares das filas centrais.

O sinal para apertarem os cintos acendeu e os passageiros cumpriram a formalidade. Do tecto da aeronave desceram uns monitores com o mapa da Europa Ocidental, Norte de África e quase perdidos no oceano, os arquipélagos. Tempo previsto da travessia, cerca de duas horas. Os compartimentos de bagagem de mão, por cima dos lugares, tinham as portas todas abertas e era possível ver algumas das pequenas malas ou outros pertences ali guardados. A tripulação atravessou o avião desde a proa até à cauda, verificando cintos e fechando todas as portas dos compartimentos. Seguidamente, também as hospedeiras tomaram os seus lugares e apertaram os cintos. Pouco depois, o avião iniciou a sua marcha pela pista.

A voz do comandante surgiu nos altifalantes com uma mensagem de boas-vindas. Apresentou-se a ele e à sua copiloto que iria ficar encarregada de controlar a aeronave durante a viagem. Seguidamente, repetiu tudo em inglês.

O rugido dos motores ecoou lá fora e sentiu-se o aparelho a avançar mais rapidamente. O processo de subida quase não se notou, mas mesmo assim Joaquim sentiu um frio no estômago.

Ganhando altitude, o Airbus guinou para um lado, depois para o outro, curvando para poente de forma a seguir a direcção do seu destino. O brilho do Sol voltava a ser visível, logo que o avião ultrapassou a altitude das nuvens.

Findo o processo de descolagem, o sinal de cintos apertados apagou-se. As hospedeiras deixaram os seus lugares e dirigiram-se para o sector intermédio, onde ficava a zona de preparação de refeições ou outros pedidos dos passageiros.

Nesse instante, Joaquim voltou a ver a funcionária que o ajudara. Desapertou o cinto e levantou-se. O ambiente era muito tranquilo e quase silencioso, ouvindo-se muito tenuemente uma ou outra conversa. Joaquim atravessou toda a classe turística até ao sector reservado aos tripulantes. Ao vê-la atarefada, disse:

— Desculpe…

— O quê? Posso ajudá-lo? — indagou ela, sem parar o que estava a fazer.

Uma outra hospedeira passou entre eles, procurando algo para levar para a primeira classe. Um outro tripulante intrometeu-se no espaço que os separava e foi buscar algumas bebidas para serem servidas mais tarde.

Aproveitando uma ligeira calma naquele sector, Joaquim voltou a falar:

— Queria agradecer-lhe a sua ajuda.

Eva lançou um sorriso simpático sem grande significado. Contudo, ele achou-a muito simpática, já para não falar na sua beleza. Ela colocou algumas coisas no carrinho de refeições e retorquiu:

— Eu acreditei no que me disse. Espero que não me tenha enganado.

— Não. Tudo o que lhe disse é verdade.

— Então faço votos para que o senhor consiga ajudar o seu filho.

— Eva! — chamou uma colega. — Dentro de dez minutos serviremos as refeições.

— Não imagina como o seu auxílio foi importante. — continuou ele. — Se não tivesse embarcado neste voo, teria de aguardar muitos dias até ter a documentação em ordem.

— Não pense mais nisso. — atalhou ela, preocupada com a falta de guardanapos.

— Gostava de lhe poder agradecer convenientemente. — insistiu Joaquim. — Talvez pudéssemos tomar um café mais logo? — Eva desviou a atenção do seu serviço para olhar irada para ele. — Isto se não estiver ocupada. Se calhar tem novo voo logo que chegarmos…

— Por quem me toma? — interrogou ela, reparando na colega que observava a cena e tentando controlar a voz para que não se elevasse ao nível da sua fúria. — Pensa que sou quem? Você deve ser daqueles que acham que as hospedeiras são umas… Agradeço que me respeite.

Surpreendido, Joaquim gaguejou um pedido de desculpas:

— Não… Eu… Eu não queria ofendê-la.

— Não me faça arrepender de o ter ajudado. — ripostou com rispidez. — Estou farta de receber convites insultuosos de homens que olham para mim como se fosse um pedaço de carne.

— Tenha calma! — pediu ele. — O meu agradecimento… Ou melhor, a forma como lhe queria agradecer nada tinha de mal-intencionada. Era um agradecimento, nada mais. — Sorriu-lhe para atenuar a sua frieza. — Eu tenho espelhos em casa. A Eva é uma mulher lindíssima que jamais se interessaria por um homem como eu.

— Eva! — chamou novamente a colega num claro sinal de que tinham que iniciar a distribuição das refeições.

Joaquim insistiu no sorriso e disse:

— Mais uma vez obrigado, a sério.

E afastou-se para voltar ao seu lugar.

Os lugares dividiam-se em três sectores, bombordo, central e estibordo. Os laterais tinham duas filas de lugares, enquanto o central tinha quatro. Entre sectores, dois corredores por onde tripulação e passageiros circulavam.

Em cada corredor, uma hospedeira empurrava o pesado carrinho de refeições e distribuía pequenas caixas de papel com sandes, talheres e uma sobremesa. A segunda apoiava a função servindo a bebida escolhida pelo passageiro.

Cassandra quase nem reparara no que estava a acontecer, tão distraída que estava a sua mente a observar o exterior e envolta em pensamentos. Foi despertada pela voz da tripulante.

— Senhora! A sua refeição. Que vai beber?

— Água.

Quando o carrinho de refeições do lado estibordo chegou junto de Joaquim, foi Eva que lhe entregou o pacote.

— Bom apetite! — disse ela automaticamente.

Ele recebeu o que ela lhe dera, quase receando que a comida estivesse envenenada, tal fora o ódio que emanara do seu olhar, momentos antes.

— Que vai desejar para beber? — perguntou a colega.

— Sumo.

As equipas desapareceram atrás das filas, logo que toda a distribuição foi completada.

Joaquim abriu a caixa e retirou um pão embrulhado em prata. Tinha recheio de carne e algum tempero. Retirou a sobremesa, uma embalagem redonda com gelado de baunilha, e o pacote de açúcar para o café que seria servido posteriormente. Havia também um toalhete para a limpeza das mãos e um papel dobrado. Este último causou estranheza a Joaquim, pois não fazia parte do conteúdo. Pegou-lhe e abriu-o. No interior, o texto “Desculpe a minha reacção. Se o café ainda estiver de pé, espere-me junto à entrega das bagagens. Eva”.

 

 

 

 

VIII

 

No Porto de Ponta Delgada, a visão do mar estava parcialmente encoberta pelo grande cargueiro que atracara ali naquela madrugada. A imponência dos contentores empilhados em vários níveis acentuava a dimensão do navio.

Junto à amurada, Xavier observava a cidade para lá do lençol de água que separava a posição do navio da zona costeira da capital do arquipélago. A cidade espalhava-se ao longo da costa e entrava pelo território ascendente. Apesar de longe, ele podia ver a movimentação de carros na marginal que se estendia de oeste a este.

No aglomerado de edifícios, destacava-se um com muitos pisos que surgia como um atentado visual à paisagem urbana rasa.

O braço portuário afastava-se da costa em direcção ao navio e envolvia-o em forma de L, protegendo-o do mar aberto que naquele momento se revelava tranquilo. O aglomerado de cimento e betão funcionava como uma muralha que protegia as embarcações que ali atracassem.

O ambiente calmo só era perturbado pelo som do trânsito citadino. Esse ruído foi abafado pelo som estridente dos motores de um avião a aterrar no aeroporto que ficava a oeste da cidade. Os olhos de Xavier seguiram o aparelho até ele tocar o solo e desaparecer do seu ângulo de visão.

No alto da amurada era possível observar os funcionários portuários a circular pelas imediações. O navio aguardava assistência mecânica desde que ali estacionara. Os homens da tripulação do sector das máquinas haviam conseguido manter os motores funcionais para chegar a Ponta Delgada, mas a reparação plena estava dependente da substituição de algumas peças. E só após essa reparação é que o navio poderia partir novamente pelo Atlântico.

Xavier, tal como toda a tripulação, aguardava o regresso do comandante do navio que fora a terra com o chefe dos mecânicos para resolver o problema da aquisição dessas mesmas peças.

Enquanto os seus olhos se perdiam na paisagem, a sua mente ponderava o futuro. Tomara a decisão de procurar uma vida melhor no Canadá, mas sentia o receio de não alcançar as suas expectativas e ver-se atirado para um destino ainda mais complicado que aquele que se lhe deparava em Portugal. O vento soprava forte e as pequenas ondas embatiam no casco do navio. O cheiro a maresia misturava-se com os odores da embarcação, uma mistela de óleos e lubrificantes. A sua atenção divergiu para um pequeno bote que entrava no porto, uma embarcação de turistas vinda do mar, mais um passeio de observação de golfinhos e baleias. Esse pequeno bote atravessou as águas e atracou na ponta oposta ao cargueiro.

O Sol brilhava, mas a ilha era sobrevoada por um manto ténue de nuvens. O clima nos Açores é sempre uma lotaria, tanto pode chover como estar um céu azul limpo e imaculado. Uma voz chamou Xavier. Ele olhou para trás e viu o homem que o contratara a aproximar-se, vindo da escada que subia até à ponte de comando.

— Receio não ter boas notícias. — disse o homem. — Não há peças para substituição aqui e teremos de as encomendar. Talvez uma semana até chegarem. Só depois poderemos proceder às reparações. Até lá, o navio terá de ficar retido aqui.

— Uma semana? — interrogou Xavier.

— Sim. — confirmou o outro com desânimo. — Talvez mais.

— E a carga?

— Pode aguardar o nosso regresso ao mar.

Xavier abanou a cabeça, ficando temporariamente sem saber o que fazer.

— Sei que vieste para trabalhar — continuou o chefe da tripulação. — e para teres um transporte para o Canadá. Receio que a segunda já não seja possível, uma vez que não te sei dizer quando zarparemos de novo.

— Não tenho nada previsto. Posso esperar.

— Seria um desperdício, rapaz. Não preciso de ti a bordo, nem te pagaríamos os dias em que estamos retidos aqui. Pago-te os dias que estivemos no mar e acho que deves seguir o teu caminho.

— Compreendo.

— Não estou a par das escalas aéreas, mas penso que talvez consigas apanhar um avião para os Estados Unidos, se não houver nenhum voo directo para o Canadá.

Xavier olhou para a costa. O outro, percebendo o seu olhar, sugeriu:

— É uma ilha bonita. Podes aproveitar para a visitar, já que estás aqui.

— Se me mantiver por cá, avisam-me quando partirem?

— Não sei quando isso acontecerá.

— Mas, podem avisar-me? E levar-me convosco, se ainda por cá estiver?

O homem encolheu os ombros, não vendo problema nisso. Porém, pareceu-lhe ilógico que ele ficasse indefinidamente à espera da reparação do barco.

— Temos o teu número de telemóvel. Quando o barco estiver reparado, eu ligo-te. — Fez uma pausa, procurando ser convincente. — Não me pediste a opinião, mas dou-ta mesmo assim. O dinheiro que vais receber não é tanto assim. Estar a desperdiçá-lo aqui é errado. Para esperares terás de conseguir alojamento na ilha.

— Não posso permanecer no navio? — insistiu Xavier.

— Não. Isto não é um hotel. — Suspirou. — Só mantemos quem precisamos para trabalhar. E com o navio parado no porto, temos mão-de-obra a mais. Lamento. — Xavier anuiu vencido. — Mas, comprometo-me a avisar-te quando a situação estiver ultrapassada. Porém, espero que já tenhas seguido o teu caminho. — Apontou com o olhar a estrutura de comando. — Vai até lá acima. Eles dão-te o dinheiro. Boa sorte, rapaz!

Xavier apertou a mão que o outro lhe estendera e agradeceu a oportunidade que lhe fora dada, apesar de o caminho se ter suspendido ao largo dos Açores.

Não sabia o que iria fazer. Receberia o dinheiro e o primeiro passo seria pisar o solo insular e analisar as possibilidades.

 

 

 

 

IX

 

O avião sobrevoava o oceano já com o arquipélago à vista. O céu estava limpo e radiante de brilho solar.

Cassandra ia tão absorta em pensamentos que raramente tirou os olhos do vidro, ficando a ver o exterior sem registar nada. A sua mente via e revia a traição do namorado e a forma com ele a desprezara e como de um minuto para o outro a relação que um dia poderia resultar em casamento se esfumou por completo. Cassandra planeara aquela viagem com empenho, uma espécie de lua-de-mel de namorados, a possibilidade de partilharem todos os minutos daquela meia dúzia de dias em férias. Fora ela quem escolhera o destino, pois nunca visitara as ilhas e sempre ouvira falar das magníficas paisagens da região. Foi ela quem escolheu o hotel, quem fez o plano geral dos locais a visitar. Ele concordou com tudo. E naquele momento, a sua concordância pareceu não ser mais que um consentimento só para não a ouvir ou ter de discutir ideias acerca do que fazer. Cassandra sempre fora uma amante da natureza, adorava explorar, conhecer lugares novos, viajar pelos quatro cantos do globo. Não queria ser mais um daqueles “tugas” que enchem a boca a falar de viagens ao estrangeiro sem terem conhecido cantinhos deliciosos do nosso território. Claro que ela também já viajara pelo estrangeiro, visitando algumas cidades europeias emblemáticas. Nenhum lugar substituía outro. E o importante era tentar passar pelo máximo de lugares ao longo da vida. Com os olhos vidrados na janela e no imenso lençol azul, Cassandra tinha a certeza que seria das viagens mais tristes da sua vida. Cada dia seria uma lembrança que outra pessoa deveria estar ali com ela, outra pessoa que ela amava, uma pessoa que a traíra e a desprezara.

Mais ao fundo, Joaquim sentia a ansiedade a crescer com a proximidade da chegada. Antes de partir, reservara quarto no hotel onde sempre ficava, quando vinha a São Miguel visitar o filho. Fora o único plano feito antes de partir. Agora que estava prestes a aterrar na ilha, confrontou-se com a perspectiva de não saber muito bem o que fazer para salvar o pequeno João.

Nos lugares VIP, Ana Valquíria sentia uma dupla ansiedade provocada por não ser permitido estar ao telefone com a empresa e pelo aproximar do reencontro com aquele que fora o homem da sua vida. Olhando para o manto marinho lá em baixo, a viúva questionou-se como estaria Bernardo, o que teria feito, como a iria receber. Só nesse instante ponderou que a recepção dele fosse um descarregar de toda a raiva que lhe sentiu na última mensagem que lhe deixara no telemóvel. Não o poderia condenar por isso, pois afinal ela abandonara-o.

Os seus pensamentos foram interrompidos pela voz do piloto do avião, alertando que se encontravam em rota descendente para aterrar na Ilha de São Miguel, pelo que todos os passageiros deveriam apertar os cintos de segurança.

 

Eva e outra colega da tripulação percorreram os corredores entre os passageiros para confirmar que todos tinham os cintos postos. Ao passar junto de Joaquim, o seu olhar foi frio, o que quase o fez duvidar se fora ela mesmo quem lhe deixara o bilhete.

Finda a verificação, também toda a tripulação se acomodou nos seus lugares e apertou os seus cintos.

O comandante corrigiu a rota, colocando o avião em linha com a pista do aeroporto. As condições climatéricas eram ideais, pelo que a aterragem foi tranquila, registando-se apenas alguma vibração nos metros finais da descida e com o toque do trem de aterragem na pista. Logo que os pneus tocaram o asfalto, os motores rugiram em força inversa, colaborando com os travões para imobilizar o aparelho na pista. Assim que isso aconteceu, o piloto aguardou a chegada do automóvel com as inscrições “follow me” e seguiu-o pela pista até ao local onde o Airbus estacionaria para permitir o desembarque dos passageiros.

O Aeroporto João Paulo II só tinha uma pista. O avião parara ao fundo, dera uma volta de 180 graus e seguiu o automóvel, percorrendo cerca de metade da pista até virar à esquerda e estacionar defronte do edifício rasteiro do aeroporto. Só depois do aparelho se imobilizar é que o sinal de apertar cintos se apagou.

No interior, os passageiros começaram a abandonar os seus lugares, carregando as bagagens de mão e caminhando em fila indiana para a proa, onde a tripulação abrira a porta. Duas hospedeiras junto à saída despediam-se dos passageiros com um sorriso automático e um agradecimento. Nenhuma delas era Eva.

Cassandra saiu do avião e sentiu o vento embater-lhe no rosto e despentear-lhe os cabelos. Cheirava a mar e a natureza. O edifício principal do aeroporto era humilde, se comparado com a complexa estrutura do Aeroporto da Portela. Com cuidado, em fila entre o grupo de pessoas que viajara com ela, Cassandra desceu as escadas que haviam sido acopladas ao aparelho. Quando os seus pés tocaram o solo, a sua atenção virou-se para a imensidão de mar que rodeava a costa insular, paredes meias com o aeroporto.

Alguns turistas começaram a tirar fotografias enquanto se dirigiam para o edifício. Porém, a segurança do local pediu-lhes que não o fizessem e encaminhavam todos pela linha demarcada com pinos às riscas laranjas e brancas.

Cassandra estava fascinada com o local e ainda poucos metros percorrera. Diogo fora um estúpido em desperdiçar aquela viagem… Fora um estúpido em desperdiçá-la a ela.

A fila de passageiros seguiu para o interior e as pessoas espalharam-se à volta da passadeira giratória por onde iriam ser distribuídas as bagagens.

A passadeira começou a rolar, sinal que as bagagens iriam começar a sair para o tapete. Curiosamente, uma das primeiras era a mala de Joaquim, talvez aquele que menos pressa tinha. Logo que retirou a mala do tapete, colocou-a no chão, apoiada nas rodas e afastou-se o suficiente para dar espaço aos restantes. Encostou-se à parede e aguardou por Eva, sentindo a incerteza da veracidade do bilhete que se escondera na sua refeição a bordo.

Os passageiros iam recolhendo as suas bagagens e afastavam-se para a saída da zona de desembarque. Aos poucos, a passadeira rolante ia ficando cada vez com menos pessoas à sua volta.

Cassandra retirou as suas malas do tapete no momento em que alguns elementos da tripulação passaram pela zona de bagagens.

Esse pequeno grupo fardado captou a atenção de Joaquim que aguardava já sem grande esperança de que o encontro com a bela hospedeira se realizasse. No entanto, a esperança ao vê-los deu lugar à decepção por não a ver entre os rostos do grupo.

Ana Valquíria voltara ao contacto telefónico com o olhar perdido nas malas que circulavam defronte de si. Desde que aterrara que ficara chocada com a simplicidade do local, habituada como estava a grandes aeroportos com fluxos de milhares de passageiros.

Entretanto, na zona das bagagens, Joaquim olhava para a passadeira rolante parada, pois já não havia qualquer mala para devolver aos donos. Naquele dia, já não iria ao encontro do filho, pois já era tarde e nem tinha transporte. Só mesmo por isso se permitira àquela perda de tempo. Desiludido, decidiu que não iria esperar mais.

Nesse momento, o som de saltos altos a embater no soalho ecoou aos ouvidos dele. Vinda do exterior, Eva compareceu ao encontro, ainda envergando a farda da companhia aérea.

— Desculpe! — pediu, oferecendo-lhe aquele sorriso protocolar que revelava indiferente a todos os passageiros. — Tive tratar de umas coisas… Fi-lo esperar muito tempo?

Fizera-o esperar muitíssimo tempo, mas Joaquim não lho disse, limitando-se a abanar a cabeça e a desvalorizar o facto.

— Lamento a minha atitude. — continuou com um semblante sério. — Infelizmente, somos confrontadas com… propostas indecentes, de vez em quando. Penso que o interpretei mal e espero que me desculpe.

— Tudo bem. — perdoou Joaquim. — Acho que eu próprio não me expressei muito bem. Só pretendia agradecer-lhe. Teria sido terrível não ter embarcado neste voo.

— Mas, tem de tratar do BI. — lembrou Eva com um sorriso. — Tomamos um café?

— Sim, claro.

O local escolhido foi uma cafetaria no próprio edifício do aeroporto. Escolheram uma mesa e sentaram-se frente a frente. Joaquim ofereceu-se para ir ao balcão buscar as duas chávenas.

O espaço tinha algumas pessoas, passageiros à espera da hora de embarcar e até alguns tripulantes de outros voos.

Joaquim regressou com os cafés, observando a hospedeira sentada a olhar distraída para o exterior. Era uma mulher linda, demasiado linda para lhe passar pela cabeça ter qualquer hipótese com ela.

— Então o seu filho vive em São Miguel?! — questionou Eva, sacudindo o pequeno pacote de açúcar.

— Sim.

— Com a mãe?

— Sim.

— Calculo então que seja divorciado. — adivinhou ela com os olhos assentes nele.

— Nunca cheguei a casar. A mãe do meu filho foi um relacionamento que tive, quando trabalhava cá.

— É micaelense?

— Não.

— Que fazia? — A pergunta não deu tempo para a resposta. Eva penalizou-se. — Desculpe. Parece que estou a interrogá-lo.

— Não faz mal. — descansou-a, contente por estar a conversar com ela. — Era piloto de barcos de recreio. Aqueles que levam os turistas a ver os golfinhos. — Eva anuiu. — A mãe do meu filho era a guia marítima.

— Posso fazer-lhe uma pergunta mais… pessoal? — pediu Eva, não querendo ser intrometida mas com a curiosidade a espicaçá-la. Ele assentiu. — Foi a gravidez que vos afastou? Deixou-se vencer pelo medo da paternidade?

— Não. — respondeu Joaquim com um sorriso doloroso no rosto. — Foi a gravidez que nos afastou, mas não por minha culpa. Não foi nada planeado, mas fiquei muito feliz por ser pai e pedi-a em casamento. Só que ela não queria o mesmo que eu. Passei da perspectiva de casar para o fim da relação com a mulher que amava. — Afectado pela beleza dos seus olhos, ele desviou os dele para os dedos que tamborilavam a mesa. — Passei um mau bocado. Mas, o pior foi não poder estar sempre com o meu filho. E ainda mais quando me mudei para o continente. — Abanou a cabeça como se se justificasse a si próprio. — Não tinha outra solução. Estava na miséria, aqui em São Miguel.

— Não imagino o quanto isso possa ter sido difícil. — constatou Eva. — E perdoe-me a sinceridade, mas a sua ex… a mãe do seu filho é… Bom, nem sei como a caracterizar.

— Isso é irrelevante. — contrapôs ele. — O importante agora é perceber o que se passa com o meu filho.

— Disse que ele sofre maus tratos?!

— Tenho essa suspeita por causa do desenho que me deixou, quando esteve comigo a passar férias, nas últimas duas semanas.

— Ele contou-lhe?

— Não, não me disse nada. Acho que deve ter medo de contar. Não sei...

— Que está a pensar fazer?

Joaquim encarou o olhar de Eva e com toda a honestidade respondeu:

— Não sei. Sinceramente, não sei.

— Espero que corra tudo pelo melhor. — desejou a hospedeira.

Ele agradeceu, reparando que ambas as chávenas estavam vazias, sinal que aquele encontro estava em vias de terminar.

— E a Eva? — interrogou, procurando manter a conversa e saber mais sobre ela.

Ela olhou para o relógio e respondeu:

— Tenho de ir andando.

Não era a resposta que ele esperara

Ao vê-la levantar-se, Joaquim copiou o seu movimento, dizendo:

— Já tem que ir?

— Sim. — confirmou sem intenção de dar qualquer justificação.

— Gostei de falar consigo. — confessou ele quase envergonhado. — Pena que o tempo tivesse passado tão rápido.

— Também gostei de falar consigo.

Numa tentativa a roçar o desespero, Joaquim disse:

— Acha…?

Eva abanou a cabeça, o que o fez travar qualquer outra palavra.

— Sou uma rapariga que passa a vida de aeroporto em aeroporto. Não queira nunca dar-se com alguém assim.

— Como se costuma dizer, sei que a Eva não é para o meu campeonato. Mas, mesmo assim, gostava de voltar a vê-la.

— O Joaquim já deveria saber que as mulheres não apreciam muito a autocomiseração nos homens. Pelo menos, eu não aprecio.

Ele ficou vermelho de vergonha com a forma cortante da reprimenda dela. Mesmo assim, por momentos, pensou que aquelas palavras indicassem que ela não estava assim tão longe do seu campeonato. Porém, Eva esclareceu:

— Você não faz o meu género. Já o percebeu. Mas, não deve dizê-lo na esperança de que ao sentir piedade por essa lacuna me interesse por si. — Joaquim ficou sem palavras. — Tenho mesmo de ir. — prosseguiu, olhando de novo para o relógio.

Ainda em choque, ele encarou-lhe os olhos sedutores.

— Apesar de tudo o que disse. Continuo a querer voltar a vê-la.

Houve uma segurança no tom de voz dele que o surpreendeu.

Eva hesitou. Era uma mulher de grande autoestima, confiante e quase arrogante. Porém, aquele tom seguro atingiu-a de surpresa. Deu por si a dizer:

— Amanhã, o meu voo parte para Boston.

Joaquim não soube o que responder ou o que Eva esperava que ele dissesse perante aquela informação.

— Em que hotel vai ficar? — questionou a hospedeira.

A confusão manteve-se e aquela pergunta só a aumentou. Meio engasgado, Joaquim deu-lhe o nome do hotel.

— Partimos de Boston depois de amanhã. Tal como hoje, passamos a noite em Ponta Delgada. Se houver oportunidade, nessa noite, eu procuro-o no hotel e bebemos qualquer coisa.

— Posso dar-lhe o meu número de telemóvel. — sugeriu ele.

— Sim. — retorquiu com desinteresse. — Eu não lhe darei o meu.

— Tudo bem. — concordou, soletrando-lhe depois os nove dígitos.

Eva apontou-os no seu telemóvel e despediu-se com um simples “até breve”.

Joaquim ficou com a certeza que ela jamais lhe telefonaria.

 

 

 

 

X

 

A bagagem de Ana Valquíria fora das últimas a surgir na passadeira, o que quase a levou ao desespero, uma vez que queria prosseguir para o hotel e talvez ainda ir ao encontro de Bernardo naquela tarde.

Arrastando a mala de rodinhas, avançou imponente pela saída dos passageiros.

A agência de investigação que trabalhava para ela tinha um agente na ilha, a pessoa responsável por seguir o rasto de Bernardo Vilaça. Essa pessoa deveria estar à sua espera na zona de chegadas do aeroporto. Essa mesma agência informara a viúva, através da sua secretária, que o agente estava encarregue de a acompanhar durante a estadia, pô-la a par de todos os pormenores da investigação e ser responsável pela sua segurança todo esse tempo.

A viúva não conseguiu evitar imaginar que o agente fosse uma espécie de James Bond, ao serviço de sua majestade, Ana Valquíria. Certo é que não lhe haviam dado grandes pormenores acerca dele.

Quando encarou a zona de chegadas, os seus olhos procuraram um sinal que lhe permitisse identificar o agente.

Nesse instante, uma mulher aproximou-se da viúva.

— Dra. Vilaça?

Ana Valquíria encarou a outra com o típico olhar de desprezo.

— Sim?!

— Bom dia! O meu nome é Calista. Sou a agente encarregue de a acompanhar.

Calista era sensivelmente da mesma estatura que a viúva. Vestia um fato formal de calça e casaco, como se estivesse fardada, e aparentava uma imagem falsamente frágil. A pele era cor de azeitona, o cabelo estava esticado e preso num carrapito, os olhos eram escuros mas havia neles um toque exótico proveniente das suas raízes africanas. A postura era protocolar, preocupada em seguir todas as regras profissionais da relação com o cliente. Esforçava-se por ser simpática, ao mesmo tempo que evitava sê-lo em demasia.

A viúva observou-a com surpresa.

— Então você é que é o meu James Bond... — suspirou com decepção.

— Como?

— Nada.

Calista apontou para a mala.

— Posso ajudá-la com a bagagem, Dra. Vilaça?

— Trate-me por Dra. Valquíria. — corrigiu com um toque de arrogância. — Sim, leve isso.

A agente segurou a pega da mala e puxou-a, dizendo:

— Pode acompanhar-me, Dra. Valquíria?

Sem responder, colocou os óculos escuros, pegou no telemóvel e seguiu a outra até ao carro que as esperava lá fora.

Calista encaminhou a cliente até um BMW azul escuro de gama alta, parou junto da porta de trás e abriu-a para que a viúva entrasse. Ana Valquíria, sempre ao telefone, voltou a surpreender-se por não encontrar um motorista no lugar do condutor, o que revelava que para além de detective e segurança, Calista seria também a sua motorista.

— Laura, entrega isso ao departamento de contencioso. — disse para o telemóvel, vendo pelo espelho a agente a guardar a mala na bagageira. — Sim... Eu sei... Vá, tenho de desligar.

Nesse momento, Calista entrou para o lugar do condutor.

— Também vai ser o meu motorista? — questionou, ouvindo a ignição ténue.

— Sim, Dra. Valquíria. — confirmou, olhando para a cliente pelo espelho retrovisor. — Fui destacada para estar ao seu serviço durante a sua estadia na ilha para tudo o que precisar.

— Então leve-me para o hotel.

 

O Sol brilhava e não havia muito trânsito em Ponta Delgada. Os primeiros minutos da viagem foram feitos em silêncio com Ana Valquíria a observar o exterior, procurando habituar-se ao ambiente, certa de que jamais viveria num lugar daqueles.

— Foi você que investigou o paradeiro do senhor Bernardo Vilaça? — questionou de súbito.

— Faço parte da equipa. Quando as pistas nos indicaram que ele poderia estar nos Açores, aqui na ilha de São Miguel, fui destacada para vir cá confirmar.

— Disseram-me que ele está em Ribeira Grande. É muito longe daqui?

— Estamos no sul da ilha. Ribeira Grande é na costa norte. — explicou Calista.

— Quero que me conte tudo aquilo que sabe.

— Claro, Dra. Valquíria.

 

O quarto no hotel junto à Marina de Ponta Delgada era um luxo. Situado no quinto andar do edifício junto ao parque de iates, aquela varanda possuía uma magnífica vista para o mar sem fim.

Ana Valquíria observava a imensidão oceânica, fustigada pela brisa marítima que se intensificara com o aumento de nuvens no céu. O cabelo esvoaçava livremente e o olhar mantinha a amargura que lhe percorria a alma.

Durante a viagem, Calista colocara-a ao corrente do que haviam descoberto. Não existiam muitos pormenores do que Bernardo Vilaça andara a fazer naqueles anos, apenas que circulara em missões humanitárias um pouco por todo o Mundo. Em momento algum haviam entrado em contacto com ele, pois essa era uma das imposições que Ana Valquíria colocara à investigação, queria ser ela a primeira a falar com ele, antes que Bernardo soubesse que o procuravam. No seu íntimo, Ana Valquíria temia que ele voltasse a desaparecer se a soubesse no seu encalço.

Calista deixara-a na recepção do hotel, juntamente com a bagagem, prontificando-se a levar a cliente até Rabo de Peixe, local onde Bernardo vivia. Porém, a viúva percebeu que ainda não se sentia preparada para o encarar e optou por descansar da viagem, dando indicações para que a viesse buscar ao hotel no dia seguinte. A outra acatou a ordem e deixou-lhe o seu contacto para qualquer necessidade que surgisse.

 

 

 

 

XI

 

O táxi parou à porta do hotel localizado no Largo Camões, uma rua estreita de dois sentidos, o que provocou algum congestionamento. Cassandra saiu do automóvel, enquanto o taxista contornava o veículo para abrir a bagageira onde vieram as malas dela. Ela pagou a viagem e puxou as malas atrás de si, entrando no prédio.

A fachada do hotel tinha três pisos e uma arquitectura antiga. Sobre a porta pendurava-se uma placa em forma de escudo com umas velas náuticas desenhadas. O aspecto vintage disfarçava a modernidade do interior, onde o hotel se erguia em mais pisos logo atrás do edifício principal.

Após as portas envidraçadas, a recepção surgia à esquerda para receber quem ali entrasse. Em frente às portas, duas arcadas em pedra, uma com um corredor e outra com uma escadaria em mármore para os andares superiores. No lado oposto ao balcão forrado a pinho, uma pequena zona de espera com dois confortáveis sofás.

Cassandra parou, deixando as malas sobre o tapete grosso que cobria o chão do átrio e dirigiu-se ao funcionário do hotel, entregando-lhe uma folha impressa com os dados da reserva do quarto feita na Internet:

— Boa tarde! Tenho uma reserva de um quarto duplo.

Com um largo sorriso, o recepcionista deu-lhe as boas-vindas à ilha e ao hotel e pediu-lhe um documento de identificação.

Com o Cartão de Cidadão na mão, ela disse:

— Será possível fazer uma alteração? É que o meu namorado não pôde vir. Uma complicação de última hora. Seria possível modificar a reserva para um quarto individual?

O funcionário consultou os registos do hotel e respondeu:

— Sim, temos quartos individuais vagos. Pretende então que faça a alteração?

— Sim.

Entregando-lhe uma ficha de registo, ele pediu-lhe que a assinasse.

Sempre com grande simpatia, o funcionário explicou-lhe que o quarto ficava no piso 2 e que poderia subir pelo elevador ao fundo do corredor. O pequeno-almoço era servido entre as sete e as dez horas da manhã no piso inferior àquele. O hotel também tinha restaurante, o qual ele aconselhou a previamente reservar, caso quisesse almoçar ou jantar lá. Por fim, entregou-lhe um cartão magnético e desejou-lhe uma boa estadia.

Puxando as suas malas de rodinhas, Cassandra avançou pelo corredor, o qual tinha uma parede e uma porta em vidro para uma sala ampla. Ao espreitar, ela viu que era a sala de convívio do hotel com um extenso bar, um ecrã grande e diversos sofás e mesas para os hóspedes.

Prosseguiu o seu caminho até ao elevador e carregou no botão. As portas abriram-se de imediato. Entrou e pressionou o botão com o número 2. As portas fecharam e ela sentiu-se ascender.

Ao sair do transporte, Cassandra deparou com uma decoração mais minimalista em comparação com o átrio. Caminhou pelo corredor com os passos abafados pela passadeira fofa. Ia olhando para a numeração dos quartos, procurando o seu. Encontrou-o duas portas após curvar à esquerda.

Inseriu o cartão na ranhura da fechadura. Ouviu um clique e a porta destrancou-se. Rodou o manípulo e abriu a porta pesada, a qual teve de empurrar com o corpo para conseguir passar a bagagem.

Quando a porta se fechou sozinha, Cassandra disse para si:

— Cheguei.

O quarto estava na penumbra, pois as senhoras responsáveis pela arrumação haviam deixado os cortinados cerrados. Ela deu alguns passos até à janela e correu-os, deixando a luminosidade exterior inundar o quarto. A vista de mar era parcial, já que a maior parte do ângulo de visão estava coberto por outros edifícios.

Cassandra colocou a mala maior sobre uma cadeira e a menor em cima da cama de solteiro. Abriu-a e retirou uma maleta pequena com os objectos de higiene pessoal, os quais levou para a casa de banho. Ao ver o seu rosto reflectido no espelho, percebeu que ainda trazia no olhar as marcas das muitas lágrimas vertidas por quem não as merecia.

Regressou ao quarto, decidida a desfrutar ao máximo daquelas férias. Despiu as roupas da viagem e substituiu-as por uns calções largos com bolsos e uma blusa escura. Calçou umas sapatilhas para que as suas caminhadas se tornassem mais confortáveis. Penteou o cabelo e retocou a maquilhagem para disfarçar qualquer sinal de tristeza. Por fim, passou protector solar nas pernas, nos braços e no rosto.

A seguir, abriu a mala grande e retirou uma mochila pequena para colocar às costas com os pertences essenciais como os documentos, a carteira e os guias que conseguisse arranjar na ilha. Guardou também o telemóvel, a pequena máquina fotográfica e a embalagem de creme para a proteger da radiação solar.

Antes de sair, deitou uma última olhadela ao espelho e com enorme humildade sentiu-se bonita. Colocou os óculos escuros no rosto e abandonou o quarto, levando consigo o cartão magnético.

O seu primeiro destino seria o posto de turismo. Como não sabia onde se localizava, pediu indicações na recepção. O simpático rapaz entregou-lhe um mapa da cidade e explicou-lhe onde o encontraria.

Nesse momento, Joaquim entrou no hotel.

Cassandra agradeceu as informações e saiu do hotel sem reparar no homem com quem se cruzara.

A beleza deslumbrante de Cassandra não passou despercebida a Joaquim, mas quase nem teve tempo para pensar nisso, preocupando-se em tratar da consumação da reserva de quarto que fizera no dia anterior.

— Olá, senhor Joaquim! Como está? — cumprimentou o funcionário, habituado às visitas periódicas do outro à ilha.

Joaquim retribuiu os cumprimentos e tratou dos procedimentos de forma automática, demasiado habituado a fazer aquelas etapas, cada vez que vinha visitar o filho. A única diferença era que daquela vez não vinha para o visitar, vinha para o tentar salvar.

 

 

 

 

XII

 

No céu sobre a ilha pairava um ténue manto de nuvens que cortavam a luminosidade solar. Por vezes, o Sol furava e acentuava a radiação para logo a seguir o manto se adensar, deixando o ambiente nublado.

Xavier abandonou o navio que o trouxera até ali sem saber se iria voltar. Não tinha especial interesse em atravessar o Atlântico num cargueiro, mas sempre seria mais barato que viajar de avião. É certo que tinha de trabalhar na viagem, só que era um trabalho pago. E fora o trabalho dos últimos dias que lhe permitia trazer algumas notas no bolso.

Mesmo assim, antes de desembarcar, ligou para uma companhia aérea para saber o preço do bilhete. A informação que recebera deixara-o apreensivo. Para além do custo da viagem, explicaram-lhe que teria de comprar viagem de ida e volta, uma vez que só o deixariam entrar no Canadá com a apresentação do bilhete de regresso ou um visto de trabalho. Para o visto, teria de se dirigir ao consulado e saber mais informações. Talvez tivesse mais hipóteses chegando ao país no cargueiro e pedir posteriormente um visto temporário. Sendo assim, a opção de voar para o Canadá seria colocada de lado, durante algum tempo.

Caminhando com calma pelo paredão portuário, Xavier olhava para a cidade que se aproximava. Nunca ali estivera, o que não impedia que tivesse ouvido falar na beleza das ilhas açorianas. No entanto, para o que a sua vista alcançava, a primeira percepção do lugar era a de um aglomerado citadino sem graça. A ajudar a essa fraca impressão, mais um rugido forte dos motores de avião rumo à pista do aeroporto.

O molhe do porto desembocava na cidade junto ao Forte de São Brás. Xavier não conhecia nada, mas optou por seguir ao longo das paredes da fortificação, contornando-a.

Parou para pensar um pouco. Precisava de informações. E o melhor lugar para obter informações seria num posto de turismo. Sem ponderar muito, interpelou a primeira pessoa que se cruzou com ele e perguntou:

— Sabe dizer-me onde encontro um posto de informação turística?

O homem olhou para leste e respondeu que ele deveria seguir naquela direcção pelo passeio marítimo, cerca de um quilómetro, até encontrar um edifício de arcadas logo após a torre com o símbolo de uma operadora de telecomunicações.

Xavier retomou a sua caminhada, vendo a Praça 5 de Outubro à sua esquerda. Logo depois, erguia-se o edifício da Capitania do Porto de Ponta Delgada. A calçada da zona costeira era larga e agradável para um passeio com aroma a maresia. O seu caminho começou a curvar ligeiramente para dentro, logo após o edifício da Alfandega. Nesse momento, já avistou a torre com o símbolo.

Enquanto andava, Xavier reparou que havia muitos autocarros com carreiras para várias localidades da ilha. Bom, pelo menos tinha como se deslocar se seguisse o conselho de aproveitar para fazer turismo.

As arcadas apareceram logo após a torre. Na fachada, o “i” e a palavra “TURISMO” identificavam o posto que ele procurava. Atravessou a rua e entrou.

O interior era semelhante a uma loja com porta e vitrinas em vidro. Duas mesas de atendimento serviam os turistas que ali entrassem. Xavier reparou num casal com ar nórdico a falar inglês com a funcionária.

No entanto, a sua atenção foi completamente arrebatada pela mulher que aguardava a sua vez, consultando os folhetos promocionais de passeios pela ilha ou passeios no mar para observação de golfinhos e baleias. Era uma mulher deslumbrante de cabelo negro escorrido, preso atrás das orelhas que também suportavam os óculos escuros acima da cabeça. Vestia uma blusa escura e uns calções que lhe terminavam a meio das coxas. O olhar que lhe lançou ao perceber que a observava foi frio.

Cassandra começava a ficar farta de esperar que a funcionária esclarecesse todas as dúvidas do casal estrangeiro. Parecia-lhe absurdo que um posto de turismo concorrido como aquele só tivesse uma pessoa a prestar informações. Passou os olhos por todos os folhetos, desde os roteiros, os passeios, os rent-a-car… Tudo o que havia para consultar, ela consultou para atenuar a espera. Porém, a sua atenção foi atraída pelo som da porta. Os seus olhos viram um homem alto e encorpado a entrar carregando um saco de viagem na mão. Cassandra achou-o atraente, mas lançou-lhe um olhar frio ao perceber que ele a observava.

Xavier aproximou-se de Cassandra.

— Trabalha aqui? — questionou.

— Não. — respondeu ela num tom distante. — Estou só à espera de ser atendida.

Xavier fez um ar envergonhado.

— Peço desculpa.