SANTIAGO
O vento embatia-lhe no rosto, como se o culpasse por algo. Era forte e traiçoeiro, trazendo grãos de areia invisíveis que perturbavam a visão. Não estava um dia frio, pelo contrário, apenas uma manhã de vento igual a tantas outras por ali. Sentado num banco de madeira, avistava o mar fustigado pelas vagas que as rajadas ventosas incitavam.
A tranquilidade do lugar era reconfortante, mas impotente para o seu espírito transtornado. Era cedo e quase não se via ninguém por ali, por aquele passadiço de madeira que ligava várias praias a sul do rio Lima. A linha do horizonte mal se distinguia entre azuis de céu e mar, onde ilhéus de espuma branca brotavam entre a ondulação.
A norte, Viana do Castelo lá estava, ao longe, ainda com a iluminação urbana alaranjada a reluzir, servindo de base a Santa Luzia lá no alto. Deste lado, aquele pequeno lugar balnear começava a desligar os candeeiros de rua…
Não devia ter passado mais de um mês, desde que Santiago ali chegara, vindo de um pesadelo para entrar noutro. Viera a guiar um carro com trinta anos, quase sem acreditar que ele aguentara uma viagem de centenas de quilómetros. Partira da Catalunha, da Ciudad Condal, Barcelona, dias antes da chegada ali, largando… Não, não estava a largar, estava a ser expulso de uma relação que jamais pensara terminar.
A relação durara cinco anos. Uma mão cheia de primaveras que se tornaram invernosas na sua memória.
Tudo começara… Já nem se lembrava bem quando realmente tudo começara. Ele era jovem ou pelo menos sentia-se jovem, o que não acontecia naquele momento em que o vento o alfinetava com areia. Tinha largado os estudos com o fim do secundário e conseguira um emprego de operário de armazém numa empresa de navegação espanhola que operava no Porto de Leixões. O trabalho não era certamente o seu sonho, mas pagava as despesas de alguém que se tornara independente de uma família que tinha tanta estima por ele como pelo lixo que proliferava pelo bairro miserável onde vivia.
Naquela época, tinha um amigo de infância, saído do mesmo destino urbano, com quem alugara um pequeno apartamento perto do porto. O amigo era um pouco mais velho e optara por outras vias de rendimento, o que fez com que passados alguns meses Santiago ficasse a viver sozinho e o outro ganhasse uma estadia de alguns anos na prisão. Porém, mesmo com este percalço, o que ganhava dava para as contas.
Fora uma fase em que os dias eram um disco riscado, sempre com os mesmos passos, monótonos e sem grandes recompensas. Não era feliz, mas dormia descansado todas as noites. E o seu coração ainda estava inteiro…
A sua vida mudou no dia em que a viu.
Mariana era espanhola e tinha mais uns anos que ele. Acabadinha de sair da Universidade, vinha iniciar o seu estágio profissional a trabalhar nos Recursos Humanos da empresa da família, a mesma onde ele trabalhava. Seria impossível ficar indiferente ao vê-la caminhar com uma elegância que a fazia deslizar sobre os sapatos de salto alto, sempre muito direita e quase que empinando o peito e o rabo. Talvez não o fizesse de propósito, talvez fosse a sua imaginação que a via assim. A função de Mariana era básica, mas comportava-se com arrogância, sem necessidade de lembrar aos colegas e chefes de quem era filha e neta. Como uma parte da função de Santiago implicava ir ao departamento dela, tornou-se inevitável que se cruzassem muitas vezes, apesar de só por duas terem falado um com o outro. Santiago sentiu o estômago na garganta, na primeira palavra que ela lhe dirigiu, olhando-o com os olhos verdes por detrás das lentes de uns óculos Armani de armação fina e sem aros. O seu rosto parecia o de uma boneca de porcelana com tez mediterrânica, sobressaindo a boca carnuda, contornada por um cabelo liso escorrido sobre os ombros e de franja bem acertada sobre as sobrancelhas. Vestia diariamente uma camisa clássica conservadora e saia comprida, ambas com as medidas bem tiradas.
Dizer que Mariana era uma mulher lindíssima era pouco. Para Santiago, a sua beleza era soberba e, se tudo isso não o deixasse já derretido, a sua voz rouca com sotaque espanhol arrumava com ele.
Apaixonou-se.
A quem o inquirisse, ele confessaria que se apaixonara desde o primeiro minuto. E no segundo teve consciência de que não tinha a mínima hipótese com ela. A realidade era cruel, mas ele não tinha defesas contra a espanhola que roubara o seu coração. Todas as pessoas que lidavam com ela a achavam fria e calculista. No entanto, consigo, ela mostrava algo parecido com simpatia. Ou talvez fossem os seus olhos que a queriam ver assim.
A meio do estágio, a empresa pediu a Santiago que fosse dar uma ajuda a tratar de papeladas para o departamento de Mariana. Certo era que ele a via todos os dias, mas ela ignorava-o completamente, falando com ele só para lhe dar papéis ou pedir papéis. Era doloroso porque a malvada não lhe devolvia o coração e de certeza que não lhe daria o dela.
No entanto, num memorável fim de tarde, o trabalho prolongou‑se demasiado. Só ficaram Santiago, Mariana, o director e duas secretárias. Quando o trabalho acabou, ela acercou-se dele e veio pedir‑lhe se a acompanhava ao carro, pois tinha medo de enfrentar sozinha o parque de estacionamento à noite. Que poderia Santiago responder, sentindo-se repentinamente um cavaleiro a auxiliar a donzela? No seu íntimo, sabia que seria descartável, logo que ela se sentisse na segurança do interior do carro e que nem se lembraria de agradecer.
Fizeram todo o trajecto, desde o corredor ao elevador, desde a recepção da firma até ao parque no mais absoluto silêncio. Pararam junto ao BMW dela e ele ficou com a garganta ainda mais seca, pensando no que havia de dizer. Se haveria de se despedir ou fazer um qualquer comentário espirituoso e dizer “até amanhã”.
Mariana era uma mulher nascida em berço de ouro, habituada a ter tudo o que queria. E vá lá saber-se porquê, naquele momento ela queria-o a ele. Foi tão directa, segura de si e peremptória, que o levou a questionar-se qual deles seria o cavaleiro e a donzela inocente.
Naquela noite não foram beber um copo, não conversaram, não tiveram um jantar romântico. Foram directos ao apartamento dela fazer sexo. Quase não houve palavras, foi chegar, tirar a roupa, ser atirado para cima da cama e ser… fodido por ela.
Foi bom… Bolas, foi mesmo bom. Só de se lembrar quase que conseguia sentir-lhe o cheiro… E Mariana também gostara e quisera mais, mais noites, mais vezes, mais posições, mais e mais e mais. Com o tempo, ela começou a perder a chefia do sexo e deixou-se possuir de corpo e… coração. Ou seria ele que queria acreditar que lhe chegara ao coração?
A relação era secreta e ela jamais permitiria que ele lhe chamasse namoro ou compromisso. Eram dois adultos em busca de prazer sexual um no outro. Durante o dia, ela permanecia dura, fria, arrogante. Mas, à noite só faltava ronronar no ombro dele. Seria impensável para Mariana que chegassem rumores da sua relação com um empregado menor da empresa aos ouvidos da família, em Espanha.
Ao fim de um ano em Portugal, o estágio de Mariana terminou e a família impôs-lhe o regresso ao país de origem. Santiago sentiu que a iria perder para sempre. Porém, ela ainda tinha o dom de o surpreender e quis que ele largasse tudo para ir viver com ela.
Mariana levou-o para Barcelona, apresentou-o à família, aos amigos, oficializou a relação, fizeram planos para o futuro, ele foi trabalhar para a empresa da família… Não, não. Em sonhos poderia ter sido assim. Na realidade não aconteceu nada disso.
Retornou ao presente, ao mar e ao vento forte. As barras de madeira começaram a magoar-lhe as costas cansadas de ali estarem encostadas. Não fazia a mínima ideia de quanto tempo passara naquele banco do passadiço adormecido em recordações. Mas, a dor nas costas avivou-lhe as outras dores que sofrera desde o dia em que chegara a Barcelona.
Mariana dizia que era só por uns tempos até contar aos pais. Alugou um apartamento para viverem, longe da região da elite onde as pessoas da sua classe social viviam. Havia sempre algo que escapava a Santiago, algo neles, como se faltasse uma peça naquela engrenagem que era a relação que partilhavam. Mariana não permitia que lhe faltasse nada, deixando‑lhe dinheiro para o que precisasse e não queria que ele trabalhasse. E contava aos pais que queria ter uma vida independente da família, a viver sozinha, apesar de trabalhar na sede da empresa deles.
Por incrível que pareça, a situação prolongou-se por quase quatro anos.
Para Santiago, estar com ela era bom. Nunca se sentiu amado, sempre se sentiu desejado. Nunca teve coragem de tomar uma iniciativa e deixou que aos poucos ela apagasse a sua personalidade, dignidade, carácter… Ele não passava de um peão para satisfazer os seus desejos. Hoje, olhando para trás, ele via-se como tendo sido um mero animal doméstico, um cachorrinho de estimação guardado num apartamento com a única função de lhe satisfazer o desejo.
Um dia, ou melhor, uma noite, Mariana chegou a casa e com toda a naturalidade disse que estava tudo acabado entre eles. Não o queria ver mais, pediu para que ele deixasse o apartamento e saísse da sua vida. Chocado com a sua atitude, Santiago tentou procurar uma justificação. A sua resposta foi um virar de costas. Sem saber como reagir, viu-a sair de casa para não mais voltar.
Dizer que ficara desesperado seria pouco para definir como Santiago se sentira, para além de ter um coração completamente despedaçado. Não tinha trabalho, não tinha amigos, conhecia poucas pessoas, um ou outro vizinho, e estava prestes a ficar a viver na rua. Não dormiu nessa noite.
Na manhã seguinte, ouviu tocarem na campainha bem cedo. Não era usual ser incomodado por ela e não tinha ninguém que o visitasse. Meio estremunhado e com o peso de uma noite em branco sobre si, foi ver quem ali vinha. Um espanhol com aspecto de jogador de râguebi encaixado num fato de executivo apareceu-lhe à porta. Com um rosto sem expressão, informou Santiago que vinha às ordens de Mariana dizer‑lhe que tinha até ao fim da tarde para deixar o apartamento. A forma fria como ela o dispensava era humilhante, fazendo-o sentir‑se completamente descartável. Ainda não decidira o que fazer, mas não iria permanecer onde não o queriam. O envio daquele armário com pernas revelou-se uma ameaça dissimulada, quase como um “sais a bem ou a mal?”. Ele iria sair. Sem querer perder muito tempo com o tipo, confirmou que assim o faria, mesmo que isso significasse dormir na rua. Contudo, Mariana deve ter sentido lá naquele coraçãozinho de gelo alguma culpa ou talvez só o tivesse feito para acentuar a humilhação, uma vez que mandou o tipo entregar-lhe cinco mil euros em dinheiro. Mariana apunhalava descaradamente a sua dignidade e Santiago sentiu‑se na merda porque se viu obrigado a aceitar, já que não tinha um cêntimo. Juntou as poucas coisas que lhe pertenciam. Não eram muitas, quase nada. Uma mochila às costas e um trolley enorme chegaram para levar tudo. Não fazia a mínima ideia do que fazer à sua vida e andou alguns minutos pela cidade sem rumo.
As recordações foram interrompidas pelo som de algumas pessoas a irem para a praia. Nesse instante, o Sol já brilhava forte e o horizonte era já uma linha bem definida ao longe. Os raios solares mais fortes massajavam-lhe o rosto, mas ele não os sentia demasiado quentes devido ao vento.
Quente era o Sol em Barcelona, quando ele vagueou pelos arredores da cidade. Só parou quando viu um carro muito velho estacionado à porta de um stand de venda de automóveis. Um Renault 5 com mais de trinta anos e com o preço de duzentos euros escrito no para‑brisas. Entrou no stand e perguntou ao vendedor se o carro andava. Ele encolheu os ombros e disse que sim. Que se lixe. Comprou o carro e fez-se à estrada de regresso a Portugal.
Se não tivesse vivenciado, não acreditaria que aquele carro aguentasse a viagem, mas, aguentou e trouxe-o de regresso ao seu país natal. Uma viagem de dois dias sem puxar muito pelo veículo, evitando portagens, dormindo no seu interior e parando nas estações de serviço para encher o depósito, comer qualquer coisa, fazer as necessidades fisiológicas e lavar a cara. Santiago tomara o rumo de Salamanca e entrou em Portugal por Vilar Formoso. Parou na primeira estação de serviço, só para ouvir alguém falar português. Bebeu um café, porque em Espanha aquela mistela não é café, e leu todos os jornais. Num deles, a sua atenção foi despertada para a notícia de uma fábrica de chocolates que fora inaugurada perto de Viana do Castelo. Talvez fosse um sinal. Regressou ao carro e partiu para o Minho. Sinal ou não, foi o que traçou o seu destino a partir daí. As auto-estradas levaram-no até Aveiro, depois até ao Porto, passou pela antiga zona onde vivera, vendo a placa com “Porto de Leixões” e seguiu rumo a Viana do Castelo.
Conduzia com todo o cansaço no corpo, fustigado por um calor não tão impiedoso como aquele a que se habituara em Espanha, mas mesmo assim era intenso. Santiago tinha vontade de um banho, voltar a molhar os pés na água do Atlântico. Faltavam alguns quilómetros para Viana do Castelo, quando viu a placa castanha de sinalização da saída da rápida via, indicando uma praia. Nunca ouvira falar em tal nome, mas não hesitou e conduziu rumo a Amorosa.
Fora cerca de um mês antes e, naquele instante, ali estava ele sentado a olhar para essa mesma praia. Virou a cabeça para a estrada e observou o local onde parara o carro. Não era uma lembrança longínqua, por isso, ainda estava tudo bem nítido na sua cabeça. Reviu-se a sair do carro, atravessar a estrada, tirar os sapatos velhos e entrar no passadiço descalço, caminhando até ao areal, enquanto sentia o vento forte. Haveria algum dia em que o vento não soprasse por ali? Acreditava que não. O seu aspecto era semelhante a um sem-abrigo, sentira-se imundo e molhar os pés no mar não resolveria o problema.
Aquele lugar era pequeno, nem lhe poderia chamar aldeia, era um lugar. Existiam moradias luxuosas e casas humildes de descendentes de gerações de pescadores. Mais longe da costa, vários prédios de apartamentos, na sua grande maioria de proprietários que só por ali passavam no Verão, gente a viver e a trabalhar no estrangeiro ou segundas habitações de outras a viver maioritariamente em Braga, cuja finalidade era ter um tecto perto da praia.
Os primeiros dias foram avassaladores. Instalou-se numa residencial e no dia seguinte foi à fábrica de chocolates para ser contratado como operador de uma das máquinas de bombons. Trabalho deprimente, mas não conseguira melhor e dava para pagar o quarto e uma semana depois o aluguer de um apartamento pequeno muito humilde que conseguira arrendar com a ajuda de uma imobiliária perto da praia.
Com emprego fixo e um sítio onde viver, Santiago poderia dizer que tinha algum conforto. No entanto, o coração continuava despedaçado e a mágoa pelo desprezo de Mariana continuava a ser uma ferida aberta e terrivelmente dolorosa.
O que ganhava na fábrica não passava do ordenado mínimo. Dava para os custos, mas não dava para mais nada. Começou a pensar em arranjar um segundo emprego, quando um colega seu lhe propôs algo do qual nunca ouvira falar, algo sobre ter um computador e ligação à Internet com o qual fazia uma fortuna todos os meses. Se o tipo ganhava assim tanto, que fazia ali na fábrica? Ele não deu justificação, limitando-se ao sentimentalismo que tinha pelo lugar. Tretas.
Pouco convencido, Santiago deixou-se entusiasmar pelos altos rendimentos. Essa empresa fornecia um computador e a ligação à Internet, o qual era descontado nos rendimentos mensais. Como operador virtual, ele só tinha que conversar com homens ou mulheres, por um programa de conversação online, onde falava sobre sexo, simulava sexo… Enfim, uma espécie de linhas telefónicas eróticas de nova geração. Os clientes pagavam um valor ao minuto e se quisessem com imagens de webcam, o pagamento era a dobrar. Mas, Santiago tinha de estar disposto a tudo em frente à lente. Escusado será dizer que o bolo maior ia para essa empresa obscura com website de encontros na Internet, mas mesmo assim os ganhos para os “operadores” eram interessantes.
Para Santiago, aquilo era prostituição em versão cibernética, mas quando o colega lhe disse quanto se poderia ganhar…
Não havia contacto directo, era tudo simulações. Porque não?
E foi assim que Santiago entrou naquela espécie de part-time.
Levantou-se do banco de madeira e caminhou pelo passadiço. Nessa noite não dormira. Perdera o sono depois de mais algumas horas a simular sexo. Já lá iam umas três semanas que o fazia e sentia-se reles. Parecia que já o fazia desde sempre e ao fim de cada noite, o seu estado de espírito estava violentado. Os operadores nunca viam os clientes, por isso, quando eram mulheres Santiago imaginava Mariana do outro lado. Mas, quando eram homens, simular sexo homossexual metia-lhe nojo. Recebia convites de alguns clientes, mas recusava sempre encontrar-se pessoalmente com eles ou elas, mesmo que isso lhe pudesse trazer uma soma adicional no rendimento.
O vento soprava forte, as ondas trovejavam contra a costa, os seus passos soavam secos ao embater na madeira do passadiço. Ali estava ele com uma vida sem sentido, coração em cacos, sem dignidade, humilhado pela sua consciência e com vontade de desaparecer. Ali estava ele a sair da praia para mais um dia de chocolates e mais uma noite merdosa de prostituição cibernética.
NATACHA
Que dor de cabeça horrível!
O seu primeiro pensamento, quando abriu os olhos pela manhã. Fora despertada pelo serviço de quartos do hotel e teve vontade de descarregar toda a sua raiva, pelo telefone, no funcionário que cumprira o seu pedido.
Natacha era uma supermodelo internacional, considerada uma das dez mulheres mais bonitas do Mundo com uma agenda de trabalho repleta de desfiles e campanhas publicitárias, o que lhe permitia acumular fama e fortuna. No entanto, por mais que se recusasse a aceitar a ideia, Natacha conquistara muita dessa fama com o facto de ser namorada de Carles Rúben, um dos melhores jogadores de futebol do Mundo daquela época, o que a projectara para o estrelato, e com quem mantinha uma relação havia três anos.
O que quase ninguém sabia era que essa relação não passava de um negócio. O namoro deles era tão quente quanto a Antárctica. Para as revistas e jornais e toda a máquina de folhetins da vida dos famosos, Natacha era a morena deslumbrante que namorava a vedeta do futebol, ocupando o lugar que muitas jovens sonhavam e com uma carreira profissional de fazer inveja.
Sim, Natacha era deslumbrante com o seu longo cabelo liso cor asa de corvo, que lhe chegava a meio das costas, o corpo atlético bem delineado, o rosto de traços europeus mas com um vislumbre meio asiático, os olhos penetrantes escuros, a boca simples de lábios apetitosos, o porte imponente, confiante, o peito generoso, a barriga lisa obrigatória a uma modelo de nível mundial, as longas pernas que pareciam ter sido desenhadas por um artista, as mãos de dedos longos, os pés dignos de uma divindade, as unhas bem pintadas em tons suaves. Sim, a sua beleza faria parar qualquer um, cativaria qualquer olhar, despertaria qualquer desejo, apaixonaria qualquer coração. Sim, era capaz de tudo isso, excepto com o seu namorado.
Com Carles a realidade era bem diferente. O namorado gostava tanto de mulheres como ela. E foram essas ténues suspeitas sobre ele que levaram àquele namoro. Uma noite, em mais uma festa de VIPs, Natacha conheceu-o casualmente e a simpatia foi recíproca, levando-os a conversarem bastante tempo. Esse encontro casual acabou por chegar às revistas corroborado por fotos tiradas por um telemóvel de alguém que também estava na festa. O boato surgiu. Uma semana após essa festa, o seu agente foi contactado pelo empresário do jogador com a proposta mais absurda que ela alguma vez ouvira, um contrato para ser a namorada oficial dele.
A sua primeira, segunda, terceira, aliás, todas as respostas que teve de dar a cada insistência, foram negativas. Natacha fora intransigente até ter sido o próprio jogador a ligar-lhe, durante a reunião dela com o agente e o empresário, a explicar-lhe as razões e a mostrar-lhe que ambos podiam lucrar muito com isso. Natacha acabou por aceitar e, de facto, lucrou muito com isso. Só que foi como vender a alma ao Diabo, pois deixou de ser dona da sua vida sentimental, uma vez que se fosse vista com outro homem ou, pior, ter um relacionamento com outra pessoa resultaria num processo que a poderia arruinar.
A sua irmã, que era também a sua melhor amiga, quase lhe deu um estalo quando soube. Como podia ela desperdiçar a sua vida em troca de uma proposta tão estúpida? Sim, poderia trazer muito lucro, mas… E o resto?
Natacha passara a noite anterior como tantas outras nestes últimos três anos, sozinha na companhia do álcool, a beber até cair para o lado. A dor de cabeça não a abandonara, nem iria fazê-lo com a ajuda dos comprimidos. Meio a cambalear, arrastou-se para o duche com a esperança de que a água lhe lavasse a merda da sua vida.
Quase que vomitou, quando se viu ao espelho. Dormira tantas horas e nem por isso deixara de ter aquelas olheiras tão profundas. A maquilhagem teria de fazer milagres para conseguir sair do quarto de hotel sem aquele rosto deprimente. Já nem se lembrava em que cidade estava, mas não esquecera que tinha um voo para embarcar nessa tarde, rumo a Portugal, para regressar a casa, descansar algum tempo e esperar que o seu agente e o do seu namorado agendassem um encontro entre o casal. Sim, não podiam deixar passar muito tempo sem se encontrarem, não fosse surgir um qualquer boato verdadeiro. E Natacha tinha a certeza de que em breve haveria marcação na agenda para mais um encontro romântico com Carles, pois havia que aproveitar a pausa na treta do futebol para alimentar os vampiros jornaleiros.
Que pesadelo de vida de sonho.
Enfiou-se debaixo do chuveiro e abriu a água fria, procurando despertar cada célula do seu corpo. Não conseguiu evitar um grito com o impacto frio. Quando se sentiu mais activa, doseou a temperatura e relaxou, fechando os olhos. A água morna escorria pelo seu corpo, sentia os fios líquidos deslizar por cada poro. O seu longo cabelo derramava-se encharcado sobre os ombros. Aquele falso romance transformara uma jovem modelo numa superestrela da moda, mas deixara o coração vazio e um corpo sedento de paixão. Nem por uma vez, ele lhe tocara, nem por uma vez a arrebatara para a cama e a amara, ou pelo menos desfrutara dela. Porra! Não a fodia nem a deixava foder.
Sentiu os rios singelos mornos escorrerem entre as pernas. Estava tão sedenta de sexo que quase sentia prazer com o ar a tocar na pele.
A sua irmã era mais velha e demonstrou ser bem mais lúcida que ela, pois logo vaticinara que Natacha seria tão rica quanto infeliz. Tinha a vida que miúdas em todo Mundo sonhavam e, se pudesse, trocaria tudo por um abraço quente de macho que a possuísse e a levasse às nuvens em cima de um colchão.
No duche, Natacha deixou-se hipnotizar pelo som da água a cair, a tocar-lhe o corpo. Deu por si com as mãos nos seios, tocando-se como gostaria que o namorado a tocasse. Queria prazer, precisava de prazer, estava a morrer por falta de prazer. Continuou a apertar os seios que os estilistas diziam ser um pouco grandes para as passerelles. Apertou-os e deixou que uma das mãos deslizasse pela barriga… Continuou a descer… Era melhor que nada. Tocou-se. Primeiro com carinho, depois mais depressa… Hum… Era bom. Quem melhor que ela para saber onde tocar naquela zona. Hum… Tão bom… Ooohhh… Quem lhe dera que o namorado… Foda-se… Quem lhe dera um gajo qualquer. Hum… Os dedos deslizavam cada vez mais depressa, massajando o clitóris, fazendo-a arquear as costas, apertar os seios, arfar como se o ar se tivesse extinguido naquele espaço. Soltou um gemido retraído por um súbito receio que alguém pudesse ouvir o desabafo de uma supermodelo a masturbar-se no banho.
O momento tão íntimo fê-la perder a noção da realidade à sua volta, daí que quando abriu os olhos parecia estar no meio das brumas, tal era o vapor no ar.
Após alguns minutos a tomar realmente banho, Natacha saiu do duche e embrulhou-se num roupão turco. Limpou o espelho com uma das mangas e observou o seu reflexo. Como era possível uma das mulheres mais bonitas do planeta ser obrigada masturbar-se para ter prazer? Quantas vezes não esteve à beira de se deixar envolver com alguém, borrifando-se para o contrato e para a penalização? Nessas alturas, valia-lhe a irmã que a acompanhava em todas as aparições públicas, desde o falso namoro, de forma a atribuir sempre um papel de namorada responsável que sem o namorado se fazia acompanhar da irmã. Tanta mentira que existia neste universo das figuras públicas.
Passados três anos, estava à beira de um esgotamento. O agente não a deixava propor a resolução do contrato com o jogador de futebol. Estava em causa demasiado dinheiro. Mas ela estava farta.
E depois havia aquelas notícias que, de tempos a tempos, surgiam nas revistas com fotos do “namorado” com novas amigas, quase sugerindo que ele a traía. Quando acontecia, lá tinha a Natacha de aparecer sorridente e confiante para mais um evento com o pontapeador de bolas que se não fosse o futebol andava em Espanha a transportar baldes de cimento nas obras.
Natacha só se poderia libertar do contrato de duas formas. Sendo apanhada com outro homem, o que implicaria uma indemnização que a arruinaria. Ou então, em comum acordo com ele. Porém, com a projecção que ele tinha, largá-la implicaria arranjar outra miúda para o seu lugar. E isso, segundo o seu agente, seria muito mau para uma supermodelo que já passara a idade do auge.
Já teria alcançado o auge? Bolas, só tinha vinte e seis anos…
No quarto, Natacha procurou recordar-se da noite anterior. Tentou refazer a linha de recordações desde que chegara ao quarto até se afogar na garrafa de vodka. Olhou em redor, a cama com os lençóis atirados para o lado, o chão com as roupas espalhadas, a garrafa caída ao lado do colchão, uma cadeira tombada, a mala aberta no chão, o computador portátil em cima de um sofá, largado de qualquer maneira com o ecrã aberto e desligado pelo esgotamento da bateria.
Ai… Que raio de dor de cabeça.
Que cidade era aquela? Que fazia ela ali? Trabalho. Sim, veio a trabalho. Caminhou lentamente até à janela do quarto de hotel, desviou o cortinado e olhou para o exterior. Paris. Sim, veio desfilar na Moda Paris. Como se alguém tivesse ligado uma televisão, as recordações dos dias anteriores deslizaram pela sua mente. Fora um sucesso, como sempre. Natacha fazia sucesso só por existir, só por estar presente. Porém, sentia‑se tão vazia por dentro…
O que acontecera antes de vir para o quarto? A dor de cabeça parecia um martelo a rechaçar as suas tentativas de pôr o cérebro a funcionar. Sim, estivera num jantar no salão do hotel com outros modelos e estilistas. Nada de importante que merecesse registo. Depois… Cansada, subira sozinha no elevador até ao piso do seu quarto… Passara pelo quarto da irmã. Pois… A irmã também lá estava, no quarto ao lado, viajava sempre com ela, era a sua irmã, melhor amiga e companheira de todas as viagens. Dera-lhe um beijo de boa noite e viera para ali.
Despiu o roupão que lhe secara a pele e permaneceu nua a olhar para o espaço que a rodeava. Teve um arrepio de frio com o toque do cabelo húmido nas costas. Tentou lembrar-se onde tinha guardado os comprimidos para as enxaquecas. Estavam na sua bolsa, a qual fora atirada para cima de uma pequena secretária de madeira que continha um minibar por baixo. Pois… Fora dali que retirara a garrafa de vodka. Voltou a abrir o minibar e serviu-se de uma garrafa de água para tomar um comprimido que lhe aliviasse a ressaca.
Logo que engoliu, o comprimido pareceu fazer efeito… durante cinco segundos. A cabeça latejava e Natacha procurava a roupa que iria vestir. Começou com cuecas fio-dental e um sutiã que lhe acomodava os seios de forma muito confortável. Só usava lingerie da marca que representava, não fosse dar-se o caso de algum paparazzi a apanhar desprevenida e lhe fotografar a roupa interior vendo-se a etiqueta da concorrência. Adorava olhar-se ao espelho e sentir-se sensual, cativante, apetitosa. Mesmo que ninguém fosse usufruir daquela visão para além dela.
És uma pobre coitada.
Reclamava para o espelho.
És uma pobre mulher cheia de fama que não passa de uma miúda triste que só quer ser amada.
As lembranças lutavam com as dores na sua cabeça. Havia algo que a mente teimava em querer trazer ao de cima. Quase desistiu de pensar, concentrando-se na escolha da restante roupa. Vestiu-se com a elegância que lhe era usual, quase natural de quem tem um corpo onde tudo fica bem.
O seu voo era daí a poucas horas. Sentiu o estômago vazio e pensou ligar para o serviço de quartos para lhe trazerem algo que colmatasse aquela fome, já que a outra…
Quando ia pegar no telefone junto à cama, voltou a olhar para o computador tombado no sofá. Houve um flash na sua mente. Que fizera com o computador? Ao lado, as cuecas que usara no dia anterior, esquecidas no braço do sofá. Que raio! A mente funcionou como um processador de pesquisa, procurando as imagens entre a bebedeira. O que era aquilo esquecido no sofá, quase escondido pela prega do tecido? Um objecto fálico, prateado… que vibrava. Tudo se tornou claro.
Natacha mergulhara na vodka para esquecer uma vida sem sentido, vazia de prazer, despida de pequenas coisas tão acessíveis, mas que continuavam a escapar-lhe. De garrafa na mão e gargalo nos lábios, ligou o computador e foi navegar por páginas ao acaso, até encontrar um sítio virtual onde poderia escolher um parceiro anónimo para prazer cibernético.
O que a sua mente tanto teimava em a fazer recordar era aquele local no universo online, onde pagara para ver no computador um tipo a despir-se e a masturbar-se para si. Mas… Isso valeria a pena ser recordado? Sim porque ela só conversara com ele, abdicando de o ver. Fora à procura de prazer e encontrara um ser anónimo com quem desabafar. Ele ouvira-a ou deve ter ouvido, pois as recordações eram difusas. Teria dito algo que não devia? Não, tinha a certeza que, apesar do álcool, não fizera a estupidez de se identificar.
O seu cartão de crédito pagou cada minuto daquela conversa e valera mais que muitas despesas que fizera em futilidades. Apesar de ter esse direito, não o quis ver, pois ficou tão cativada por ele que se sentiria desonesta a vê-lo sem que ele a visse a ela. Confessou-lhe que gostava de voltar a falar com ele e recebeu a explicação de como o poderia solicitar… pagando.
Parecia tão estúpido que uma das mulheres mais bonitas do planeta pagasse para conversar com um homem. No entanto, quando somos uma alma perdida, agarramo-nos a coisas aparentemente parvas para nos estimular. E foi esse desconhecido que a sua mente percebeu, enquanto delirava no álcool, que não poderia esquecer.
EVELINA
A sensação de conforto parecia estranha, quando avançou pelo palco do desfile de mais um catálogo de vestidos de uma das maiores marcas mundiais de roupa de luxo. À sua volta, a penumbra fazia um contraste estranho com o brilho do seu caminho. Evelina tentou reconhecer os rostos das pessoas, enquanto caminhava, mas tudo parecia distorcido. Tão estranho…
Desde pequena que queria ser modelo, uma vedeta das passerelles internacionais. No entanto, os genes não foram tão generosos consigo como foram com a irmã, não lhe permitindo crescer o suficiente para ambicionar ser modelo. Que fazia ela ali, então? Como poderia estar a desfilar num dos maiores certames de moda? Tão estranho…
Sentiu-se caminhar com os músculos doridos. As pessoas aplaudiam e os flashes multiplicavam-se no escuro. Outras modelos cruzavam-se consigo e Evelina foi atingida pela perplexidade de se ver alta e esguia como elas. Não era possível…
Parou na ponta do palco, no local onde faria aquele rodopiar cheio de glamour e voltaria para trás. Os músculos das pernas doíam, as virilhas pareciam magoadas. Mas ninguém percebeu e ela refez o trajecto inverso, ouvindo aplausos, tantos aplausos, demasiados aplausos… As palmas ecoavam de uma forma sonora irritante, de tal forma que já nem pareciam palmas, pareciam campainhas. A realidade à sua volta começou a piscar como um filme que bloqueia na bobine. Num ápice, a campainha tomou conta de tudo e o desfile desapareceu da sua visão.
Bolas! Estava a sonhar. Abriu os olhos e viu o tecto do quarto de hotel, percebendo que a campainha não era mais que o toque do telefone na mesa-de-cabeceira. Pegou no auscultador e atendeu. No outro lado, uma voz a falar francês ligava-lhe para a despertar, conforme ela solicitara na noite anterior.
O sonho estava a ser tão bom. Porém, a moda para si não passava disso mesmo, de um sonho. Tudo desaparecera com o telefonema, menos as dores nos músculos e nas virilhas. Olhou para o lado e viu um homem deitado na cama a seu lado. Houve um instante de surpresa, mas rapidamente se lembrou quem era, um criado do hotel que ela seduzira para lhe dar prazer nessa noite. E ele estivera à altura das expectativas, de tal forma que lhe soube bem adormecer com ele ali.
Tal como ela, ele estava nu por baixo dos lençóis. Tudo o que se dizia dos franceses era verdade, eram amantes magníficos. E aquele dera bem conta dela. Só que, naquele momento, ele já estava atrasado para desaparecer.
Evelina olhou para o lado oposto e confirmou que o serviço de despertar fora pontual. A seguir, olhou para o chão e viu um preservativo usado. E outro. E mais outro. E ainda outro. Quantas teriam sido? Perdera a conta aos orgasmos quando se deixou possuir de todas as maneiras. Ao início, quase que a noite lhe saía frustrada, quando a irmã lhe bateu à porta para lhe dar um beijo de boa noite, tinha ela a língua do francês entre as pernas. Pediu-lhe que aguardasse e despachou a irmã o mais rápido que conseguiu sem que ela suspeitasse que tinha companhia. Depois… Bom, por alguma razão estava tão dorida.
Evelina levantou-se da cama, caminhando confiante no seu metro e meio de mulher. O seu rosto era o espelho da irmã, mas o corpo era mais baixo e delgado, apesar de ser curvilíneo. Um dia dera um estalo num rapaz que a tentara seduzir, quando depois de recusar, este lhe disse que ela parecia a irmã em versão esborrachada.
Sempre que surgia nas colunas sociais, por causa da fama da irmã, era descrita como carismática e confiante, bonita para mulher normal, longe de se assemelhar a uma modelo. Isso magoava-a, pois era a constante confirmação de que nunca realizaria o seu sonho.
Olhou-se ao espelho, nua como viera ao Mundo. Mirou-se da cabeça aos pés e gostou do que viu. Adorava a moda, mas desprezava o conceito da modelo esquelética. Nisso tinha de fazer justiça à irmã, uma supermodelo com tudo no sítio. Continuou a olhar-se, as pernas estavam em forma, musculadas pelas idas ao ginásio, correr na passadeira ou pedalar na bicicleta ou a montar… o personal trainer. Sim, por vezes gostava de o incluir nos exercícios.
Sorriu como se estivesse a enlouquecer. Sucumbia aos encantos dos músculos para perceber que um orgasmo logo a fazia ter consciência de como eram homens insípidos.
Continuou a mirar-se, avaliando-se…
Continuas com um bom cú, Evelina.
Apertou as nádegas, satisfeita. Cabrão do descendente do Asterix quase a fizera sentir-se empalada por um menir, quando por ali andou.
A avaliação prosseguiu. Tinha de voltar à clínica de estética, em Lisboa, para tratar daquele pequeno pneu na cintura. Não queria ficar com a barriga flácida e a pouca altura parecia avolumar mais a gordura. Os olhos vidrados no espelho subiram mais pelo seu corpo. O peito estava caído, longe dos seios firmes da irmã. Por mais que tentasse evitar, a irmã era sempre o seu termo de comparação. Quase não se notavam diferenças nos rostos de ambas, quase gémeas que nasceram com três anos de intervalo. Porém, no resto, Evelina via-se como um exemplar falhado do projecto final que se personificava na sua irmã.
Desprezou o espelho. Havia coisas incontornáveis na vida. Podia fazer várias cirurgias estéticas, mas nenhuma lhe daria mais trinta centímetros de altura. E esse ponto era fundamental para o sonho que jamais realizaria.
Após alguns passos, sentou-se na cadeira onde pendurara a bolsa. O rabo doeu-lhe. Sacana do francês não lhe poupara nada. Levou a mão ao interior da maleta, retirou o maço de tabaco e o isqueiro. A seguir, prendeu um cigarro nos lábios e acendeu-o para saciar outro vício.
O desconhecido gaulês foi acordado pelo puxar do lençol. Indiferente a incomodar-lhe o sono, Evelina puxou o tecido para envolver o corpo. Deu uma baforada no cigarro. Ele sorriu-lhe e ela retribuiu-lhe em francês, dizendo que se pusesse a andar dali para fora, não o queria ver quando voltasse do banho.
E ele não a contrariou.
Aqueles dias em Paris tinham sido deprimentes. Tirando a queca daquela noite, só mesmo o tradicional glamour da cidade das luzes não a fazia desprezar as recordações. Começava a ficar farta do mundo da moda, sendo que só fazia parte dele como uma espécie de porta-chaves da irmã. Contudo, havia outra coisa que a irritava.
Nos últimos meses ganhara um novo passatempo, algo que surgira por acaso e que acabou por servir como escape à vida diária. Experimentou entrar numa sala de chat na Internet. Falar com desconhecidos que não a poderiam reconhecer funcionava como uma terapia. Em vez de ir à igreja confessar-se ao padre, ia para ali desabafar. Não ia para seduzir. A sedução era feita na vida real e não lhe era difícil arranjar parceiros de “uma noite”, pois se não houvesse mais encanto, o facto de poderem foder a réplica da supermodelo internacional, mesmo que fosse uma réplica em formato condensado, era o bastante.
No entanto, o mundo virtual fizera-a conhecer alguém, um ser humano que se escondia num avatar, tal como ela, e que se tornara no seu confidente preferencial e exclusivo. As últimas semanas tinham-na deixado convicta de que se formava uma amizade com bases sólidas para passar a barreira do virtual para o real.
Uns dias antes de viajar para Paris, fora ela quem lançara a sugestão: encontrarem-se e conhecerem-se pessoalmente, cara a cara. Só que na hesitação da resposta, o instinto de Evelina alertou-a para algo que não batia certo. Ele respondeu que tinham de combinar isso, despediu-se e não voltou a aparecer online. Essa atitude deixou-a confusa, irritada, decepcionada com a perspectiva de um bom amigo que fugiu quando ela quis mais que a virtualidade.
Vestida e maquilhada, Evelina fumou o terceiro cigarro desde que saíra da cama. Ainda só passara uma hora. Fumava demasiado e lixava-se para as consequências. A vida era para ser vivida com prazer e fumar sabia-lhe tão bem…
Saiu do quarto e bateu na porta ao lado. O corredor do hotel era tão impessoal como todos por onde passara. Também estava farta de hotéis, de viagens… Ouviu a voz da irmã perguntar quem era e respondeu que era ela.
Natacha abriu-lhe a porta com um sorriso e recebeu o beijo com hálito a nicotina no rosto. A irmã censurava-a sempre por fumar e Evelina retribuía com a lembrança das constantes bebedeiras de Natacha.
Evelina ficara tão irritada com o desaparecimento do seu amigo virtual que nem trouxera o seu computador na viagem. Arrependera-se logo que se tornou impossível voltar a casa para o ir buscar. Não conseguia esquecê-lo, sentia-se rejeitada e, acima de tudo, sentia-se órfã de alguém que parecia compreendê-la tão bem. Nunca se cruzara com ninguém assim, que parecia ler-lhe os pensamentos, decifrar as suas angústias, que a fazia sentir-se nua e sem defesas em todos os diálogos. Imaginava como ele seria, idealizava a cena de se encontrarem numa esplanada, olharem-se olhos nos olhos e saber se conseguiriam manter toda a frontalidade de sempre.
No quarto da irmã, Evelina viu a garrafa de vodka tombada. Começava a ser um hábito, as bebedeiras onde se escondia daquele romance/negócio que fizera com o jogador da bola que não tinha coragem de assumir a sua homossexualidade. Ao tomar conhecimento do acordo, quase que a esbofeteou por ter sido tão estúpida ao deixar-se convencer por eles, aceitar dinheiro em troca de poder viver livremente.
Natacha queixou-se com dores de cabeça e sugeriu que fossem dar um passeio pelos jardins do hotel para apanhar ar, antes de fazerem o check-out e seguirem para o aeroporto.
Ao ver o computador da irmã sobre a secretária, Evelina recusou e pediu-lhe se poderia usá-lo antes de irem embora.
Natacha concordou sem abdicar de ir espairecer, alertando-a que teria de o ligar à corrente, pois esgotara a bateria nessa noite.
Sozinha no quarto da irmã, Evelina aguardou pacientemente que todo o sistema operativo se iniciasse. Procurava convencer-se a si mesma que não estava ansiosa por ver uma mensagem nova no email, desse amigo desconhecido. A ansiedade aumentou a cada etapa que avançava no navegador até entrar no seu correio electrónico.
E a decepção repetiu‑se.
Que teria feito de errado? Por que razão se afastara ele só com a hipótese de se conhecerem? Estava provado que essa fora a causa do seu silêncio, por isso, num impulso, decidiu enviar-lhe uma mensagem a perguntar como estava, a confessar que tinha saudades de conversar com ele e a abdicar de se conhecerem, se essa não fosse a sua vontade. Evelina, tão confiante e tão carismática, olhava para o ecrã como uma menina frágil que só queria voltar a ter o seu amiguinho de volta.
Logo que fechou o seu email, Evelina procurou informações sobre os horários actualizados dos voos para Portugal, não fosse haver algum atraso. Ao digitar duas letras do endereço, surgiu como uma das últimas páginas a ser vista, um sítio virtual de conversa erótica.
Evelina ficou surpresa e curiosa. Entrou no endereço e navegou pelo espaço virtual, percebendo do que se tratava. Parou quando só poderia avançar utilizando um cartão de crédito. Aí, para além de ter de pagar, poderia escolher um operador aleatório ou colocar a referência de algum que fosse da sua preferência, alguém com quem já tivesse falado.
Bom, talvez a irmã tivesse ido ali parar por acaso e nem tivesse prestado grande atenção. Voltou a tentar escrever o endereço com a informação dos voos e confirmou que o horário se mantinha. Fechou o navegador e ia para desligar, quando reparou num ficheiro de texto sem nome perdido no “ambiente de trabalho”. Clicou duas vezes sobre ele e viu um código de operador do tal sítio virtual.
Aquilo era muito interessante. Copiou o endereço da página e o código nas costas de um cartão do hotel que guardou na bolsa. Retirou outro cigarro do maço, acendeu-o e ficou a pensar sorridente…
DIMAS
A janela era o seu ponto de descanso favorito. O único sítio onde passaria mais tempo, sem ser ali, seria no computador, o seu elo de comunicação para o Mundo. A janela do seu quarto, onde vivia, era por onde espreitava para recordar como era a vida para lá daquelas paredes ou do restante apartamento do seu tio.
Dimas tinha trinta e cinco anos. Sempre fora um homem bonito e atraente, cheio de confiança e bem-sucedido na vida. Crescera com tudo o que uma criança pudera desejar, tivera uma adolescência feliz cheia de amigos e namoros, fora um estudante de sucesso e entrara no mercado de trabalho para a área comercial, onde ganhava bem. Tudo na vida lhe corria muito bem até uma triste manhã de Outono, cerca de um mês após o seu trigésimo quarto aniversário.
Pela janela do seu quarto, Dimas observava a rua. Chovia lá fora e as pessoas circulavam em todas as direcções, umas com guarda-chuva e outras a correr para fugir aos pingos grossos.
A manhã que mudara a sua vida nada tinha de parecida com aquela. Estava Sol e parecia o Verão de São Martinho com uma brisa fresca, mas sem obrigar ainda a grandes casacos. No ar, o cheiro a castanhas assadas proveniente de uma banca de um vendedor ambulante com o seu assador. Dimas tinha uma deslocação a uma empresa no centro de Lisboa. Como habitualmente, envergava o fato formal e carregava na mão uma pasta de diplomata. Caminhou confiante e entrou no edifício de dez andares como se fosse um dos administradores, parando junto do segurança para ser anunciado. Esperou um minuto e ouviu a indicação do rumo a tomar para o elevador e qual o piso em que deveria sair. No instante em que saiu do elevador, sentiu um pequeno enjoo. Não ligou e recompôs-se rapidamente. Avançou pelo corredor e entrou no departamento onde encontraria o responsável a quem pretendia vender a sua oferta, sendo recebido por uma jovem simpática que o convidou a sentar‑se na sala de espera, enquanto ela iria comunicar a sua chegada.
Dimas sentou-se e observou indistintamente a decoração, aguardando ser chamado. De súbito, começou a ver a realidade andar à roda, sentiu um aperto no peito e a respiração a fraquejar. Em poucos segundos, estava a transpirar como se tivesse corrido vários quilómetros.
A secretária do homem com quem iria falar entrou na sala nesse momento e foi surpreendida pela figura alterada do visitante que ainda segundos antes ali surgira perfeitamente normal.
— Por favor, ajude-me! Não me sinto bem. — pediu Dimas, puxando o nó da gravata, quase em desespero. — Não consigo respirar.
A rapariga ajudou-o a tirar a gravata e aconselhou-o a encostar‑se. Ele parecia estar a ter um enfarte, por isso, a sua primeira reacção foi correr para o telefone e ligar para o 112.
— Que se passa? — questionou o chefe da rapariga, saindo pela porta, percebendo a agitação fora do seu gabinete.
— Este senhor não se está a sentir bem. — explicou ela, assustada sem saber o que fazer.
— É melhor chamar um médico.
— Já chamei o INEM.
Dimas nem os ouvia, aliás nem parecia ter muita noção da realidade. Sentia muito calor e uma sensação arrepiante de que ia morrer. Custava-lhe a respirar, mas não sentia nenhuma dor no peito semelhante a um ataque cardíaco como ouvira alguém referir. Mas, o coração batia descompassadamente.
Em poucos minutos, os médicos do INEM chegaram ao local. Um homem e uma mulher na casa dos trinta anos vestidos de branco com coletes azuis onde se destacavam as letras “INEM” a identificá-los.
— Como se chama?
— Dimas. — informou, sentindo a respiração recuperar a normalidade.
O médico fez-lhe algumas perguntas. Tentou perceber quais os sintomas e o que poderia ter causado aquilo. Rapidamente percebeu que não se tratara de um enfarte, pois o coração funcionava bem e a tensão arterial estava normal.
No entanto, por razões de segurança, os médicos levaram-no para o hospital para que fosse observado com maior rigor e pudesse fazer algumas análises.
Quando chegou ao hospital, Dimas sentia-se recuperado. No entanto, cada vez que relembrava o sucedido, sentia-se apavorado e com receio de que se voltasse a repetir. No hospital foi deixado nas Urgências para ser observado. A triagem colocara-o com uma pulseira verde, o que representava uma longa espera até ser recebido por um médico. A saúde mental ainda era atirada para segundo plano, viram-no como mais um maluquinho, um avariado cerebral, alguém que não tinha nada e queria ter alguma coisa.
Havia dezenas de pessoas por ali a aguardarem serem chamadas. Dimas sentia-se isolado e assustado com tanta gente. Nunca na vida fora atormentado pelas multidões, mas naquele fim de manhã as pessoas à sua volta pareciam a descida aos Infernos.
A tremer, pegou no telefone e ligou ao tio Orlando.
— Estás onde??? — interrogou o tio incrédulo quando Dimas lhe disse que estava no hospital.
Dimas não conseguiu dar grandes pormenores, limitando-se a pedir ao tio que fosse ao seu encontro. O tio deve ter demorado uns trinta minutos a chegar. Para Dimas pareceram horas. Ficara sentado numa cadeira a um canto, a tremer e com um medo brutal de que a cena da manhã se repetisse.
Orlando era um homem forte de pouca altura e a caminho dos cinquenta anos. Era irmão da falecida mãe de Dimas e o sobrinho era o único elemento familiar que tinha. Ao ver o seu estado sentado na cadeira, Orlando teve um choque e quase não o reconheceu.
Ao ver o tio, Dimas levantou-se e abraçou-o. Tentou falar, mas não conseguiu relatar o que acontecera. Orlando não forçou as respostas e ficou a fazer-lhe companhia até ser chamado.
Ao fim de muito tempo, Dimas foi observado. O médico leu o relatório dos colegas do INEM e examinou-o, auscultando-o, medindo‑lhe a tensão e verificando o ritmo cardíaco. Por fim, indagou:
— Alguma vez lhe tinha acontecido isto?
— Não.
O médico anuiu e continuou:
— Tem alguém consigo? Alguém o acompanhou aqui?
— O meu tio está lá fora.
— É melhor chamá-lo.
A frase do médico deixou Dimas apreensivo. Porém, levantou-se da cadeira e foi chamar o tio à sala de espera. Orlando acompanhou o sobrinho até ao gabinete e sentou-se em frente ao médico na cadeira ao lado de Dimas.
— Então, senhor doutor? Que aconteceu com o meu sobrinho?
— O seu sobrinho teve uma crise de pânico. — informou o outro com naturalidade. — Não é nada de grave.
— A mim pareceu-me bem grave. — recordou Dimas. — Senti que ia morrer.
— É normal. É o que as pessoas sentem perante um ataque de pânico.
— Mas, ele já está bem? — questionou Orlando.
O médico encolheu os ombros.
— Para ser sincero, ele nunca esteve mal. — prosseguiu. — Trata‑se de um distúrbio ao nível da mente.
— O quê? Estou a ficar maluco?
— Não. Nada disso. — O médico sorriu procurando apaziguar os receios de Dimas. — Significa que tem ou teve um problema psicológico. Não lhe posso garantir que não se repita. Vou receitar-lhe uns comprimidos para o caso de se repetir. É um calmante fraco. No entanto, recomendo vivamente que consulte um especialista.
A crise de pânico voltou a repetir-se mais que uma vez. E os calmantes pouco atenuaram aquele pânico imediato do tudo e do nada. Dimas consultou o especialista e sentiu-se defraudado nas suas expectativas de cura. Perdeu toda a confiança em si, tornou-se incapaz de estar sozinho e ganhou um medo enorme ao mundo exterior.
Em resultado disso, deixou a sua casa para ir viver com o seu tio, o qual tinha uma empregada que lhe fazia companhia nas ausências do outro. Deixou que o medo da rua tomasse conta de si e alcançasse tal dimensão que ele não saía de casa havia mais de um ano.
A janela do seu quarto tornara-se o seu ponto de tortura, onde ele observava um mundo onde outrora circulava livremente e onde já não conseguia regressar. Mesmo assim, passava muito tempo a espreitar pelas cortinas.
Dimas não trabalhava e sobrevivia com o dinheiro que juntara ao longo da carreira profissional, o qual ainda fazia render através de negociações em bolsa, as quais executava via Internet pelo seu computador. Aliás, o seu pequeno portátil no quarto era de longe o que mais lhe ocupava o tempo diariamente. Os seus dias e noites eram ocupados com o mundo virtual da Internet. Para além das negociações em bolsa, Dimas era viciado em apostas online e em jogos de poker. E conseguia ter muita aptidão para tudo.
No entanto, nem todos os seus vícios de Internet se resumiam a ganhar e perder dinheiro. O seu medo em sair à rua não lhe retirou a necessidade de falar com outras pessoas que não fossem o tio ou a senhora sexagenária que trabalhava como empregada doméstica lá em casa. Por isso, quando não estava nos seus vícios de jogo, Dimas “circulava” por salas de chat, metendo conversa com desconhecidos. Não tinha preferência se os seus interlocutores eram homens ou mulheres. Tinha sede de conversar, ouvir opiniões, debater gostos comuns, esgrimir argumentos sobre a actualidade, política ou futebol. Dimas conversava com muitas pessoas, a maior parte cruzava-se com ele para conversas de circunstância e os restantes mantinham um contacto regular. Dessas, muitas mantinham a relação virtual sem interesse em que passasse disso, mesmo que uma vez por outra levantassem a possibilidade de um dia tomarem um café. Outras insistiam permanentemente nessa hipótese, o que fazia com que Dimas se afastasse.
O último caso acontecera dias antes.
Dimas conhecera uma mulher numa dessas salas de chat. Era mais uma como tantas outras. Ele meteu conversa com ela e começaram a falar. Ao início, o diálogo parecia que não iria durar muito tempo. Porém, um assunto levou a outro e começaram a surgir vários interesses em comum. Passaram a noite inteira a conversar até ao amanhecer.
Houve uma química, entre Dimas e a sua nova amiga virtual. Trocaram emails e combinaram encontrar-se na noite seguinte na mesma sala virtual. Durante semanas, o contacto foi diário. Fosse apenas na troca de mensagens de email, fosse com longas horas de conversa online, eles tornaram-se muito próximos, tanto quanto o mundo da virtualidade permite. E ela demonstrava muita confiança nele, confidenciando-lhe tudo o que lhe ia na alma. Só nunca lhe revelou a sua identidade nem o nome verdadeiro. Dimas também nunca lhe pediu que ela o fizesse. Aliás, havia um acordo tácito de que não trocariam fotos nem números de telefone. Seriam o escape um do outro para fugir aos problemas da realidade.
Já ele não sentia a mesma confiança nela. Em momento algum se sentiu à vontade para lhe confidenciar o seu problema de saúde que o impedia de sair de casa. Tinha a certeza de que ela o veria como um maluquinho e, ou se afastava, ou passaria a ter pena dele. Dimas não conseguiria lidar com a segunda.
Dimas imaginava-a das mais diversas formas. A vantagem de não ver a sua interlocutora era poder imaginá-la da forma que mais lhe conviesse. Com o passar do tempo, ela passou a ser a sua amiga virtual mais importante e não conseguia passar um dia sem falar com ela.
O pior foi quando, dias antes, a meio da conversa, ela revelou que gostava muito de o conhecer pessoalmente. Referiu que ele se tornara muito importante na vida dela, era mais seu amigo que muitas pessoas que a rodeavam e desejava que ele passasse a fazer parte da sua vida real.
Dimas estremeceu. Jamais seria capaz de sair de casa para se encontrar com ela. E não lhe poderia falar do seu problema. Que faria ela se soubesse? Iria visitá-lo a casa do tio? Para quê? Para o olhar com piedade, olhar para o coitadinho que é maluquinho e tem medo do invisível?
Nessa última conversa, ele percebeu que ela notara a sua hesitação. Procurou parecer normal e respondeu que tinham de combinar isso. Contudo, o diálogo findou por ali, tendo Dimas a iniciativa de se despedir. Após esse diálogo, ele evitou-a e não voltou a falar com ela online ou a responder aos seus emails. Só que isso não evitava sentir a saudade que sentia dela, das longas horas a conversar sem dar pelo tempo passar.
Cansado de observar a rua, Dimas regressou ao computador. Iria analisar mais algumas cotações e talvez fazer umas apostas nos jogos de futebol dessa noite. Mas, antes foi ver o seu email.
Ao abrir, viu que tinha uma mensagem nova da sua melhor amiga virtual. Calculou que seria mais um texto de constantes interrogações acerca do seu afastamento. Abriu e leu:
“Olá, amigo. Como estás? Andas desaparecido, mas não vou voltar a perguntar porquê. Acho que sei. Tenho muitas saudades de conversar contigo. Percebo que não queiras transformar a nossa amizade de virtual em real. Tenho pena, mas respeito a tua decisão e não voltarei a falar no assunto. Sinto a tua falta e gostava muito que voltasses a falar comigo. Tens a minha promessa que não irei cobrar o afastamento ou fazer perguntas. Fico a aguardar a tua resposta para que nos voltemos a encontrar na sala do costume. Beijinhos.”
ORLANDO
As nuvens cinzentas pairavam no exterior e as primeiras gotas de chuva começaram a embater nos vidros da janela.
Na sua secretária, Orlando olhava lá para fora com a mente a funcionar na busca das palavras mais cortantes para criticar a vítima daquela edição da sua crónica semanal.
Na casa dos quarenta e muitos anos, Orlando trabalhava como cronista de uma das muitas “revistas cor-de-rosa” que proliferavam na comunicação social. Sempre se considerara um vanguardista por ter assumido a sua homossexualidade perante a família quando entrou na adolescência. Se esperava um qualquer galardão pela coragem, só conseguiu obter o desgosto da mãe e a ira do pai.
A sociedade sempre o olhara de lado e todas as suas relações eram vividas como se fosse um crime que jamais poderia ser descoberto. Sonhava um dia poder casar com um homem que o fizesse feliz, mas até isso a sociedade lhe negou, concedendo-lhe essa possibilidade quando ele já perdera a esperança de o conseguir.
No momento em que se preparava para destilar o seu veneno na vítima da semana, pensava que a única coisa que lhe restava de família era um sobrinho com problemas psicológicos que vivia em sua casa e insistia em esconder-se da vida refugiando-se no quarto.
Naquela tarde, o texto que iria enviar para a revista tinha como alvo uma senhora famosa que aparecia em tudo o que eram festas luxuosas. Ele conhecia muitos pormenores sobre a vida dela e sabia que cada aparição nessas festas era cobrada, sendo isso o seu ganha-pão. Orlando também tinha conhecimento da quantidade de dívidas que ela tinha e de como toda a sua imagem era um embuste à realidade em que vivia. Contudo, isso eram pormenores que ele só partilhava no seu blog, escondido numa identidade falsa que teve o cuidado de fazer saber que era dele por via indirecta. Claro, podia sempre dizer que não era ele quem escrevia todas aquelas palavras que pareciam vir directamente da sua bílis, mas obtinha um prazer sinistro em saber que os visados sabiam quem as escrevia.
Pelas suas fontes anónimas, Orlando aguardava uma notícia bombástica. A existência de fontes anónimas era maravilhosa por duas razões, primeiro porque lhe davam informações sem ele ser obrigado a revelar a sua identidade e segundo porque poderia sempre inventar um qualquer boato e escudar-se em “fontes anónimas”.
Eram poucas as pessoas que não obtinham de si raiva, ódio, inveja, ira… Enfim, um sem número de sentimentos negativos. Resumindo, Orlando era um homem em confronto com a sociedade, um homem ressentido com o Mundo. E tudo por causa da sua homossexualidade.
Orlando nunca teve dúvidas da sua orientação sexual. Desde muito novo que percebeu que partilhava com as meninas o gosto por coisas de raparigas, enquanto os meninos lhe despertavam atracção e paixão. Apesar de não encarar com agrado a sua opção, a sua única apoiante fora a irmã, a mãe de Dimas. Fora um apoio mais baseado na neutralidade que na solidariedade, mas mesmo assim foi a única pessoa da família com quem pôde falar sobre isso sem receber olhares que o tentavam exorcizar. No entanto, a sociedade sempre o escorraçou, sempre lhe negou os mesmos direitos que davam aos heterossexuais. Muito jovem, Orlando foi membro activo de organizações que lutavam pelos direitos de gays e lésbicas. Com o passar dos anos, Orlando encontrou no jornalismo o veículo para se vingar da comunidade envolvente, entrando na área das crónicas de sociedade, crítica e amesquinhamento das pessoas que representavam aqueles que sempre o olharam de lado. Não havia nada melhor que ver uma relação entre famosos terminar devido aos boatos ou revelações que ele fazia. Orlando coleccionava inimigos como um amante de filatelia junta selos. Se as leis não lhe permitiam o casamento, então ele esforçar-se-ia por ir acabando com o dos outros.
Nas relações, Orlando também não era estável. Parecia sempre que faltava algo aos seus parceiros, algo que o impedia de se sentir completo. Sim, conseguia ter bom sexo. Por norma, ele era o passivo e interessava-se por jovens robustos que interpretassem o papel activo na relação. Na adolescência, não se envolvera com ninguém, era gozado e ostracizado na escola pelas suas preferências, mas isso só serviu para endurecer o seu escudo contra a Humanidade. Na Universidade teve o seu primeiro namorado e, desde aí, os seus relacionamentos multiplicaram-se. Congratulava-se por ter atravessado a época do medo da SIDA, na altura muito conotada com os homossexuais, sem ter sido infectado.
A sua relação de maior duração terminara poucos meses antes de o sobrinho ter ido viver para sua casa. Namorava um rapaz de vinte e poucos anos que o fez acreditar que encontrara o amor. Porém, tudo se resumiu ao interesse daquele em obter benefícios profissionais e monetários, tendo abandonado Orlando à primeira oportunidade.
Assim, a sua vida resumia-se a uma trincheira figurada onde ele combatia a sociedade. Não tinha amigos e a única família era aquele seu sobrinho maluquinho. Contudo, nas últimas semanas, Orlando mantinha diálogos periódicos com desconhecidos na Internet. Desde que o sobrinho lhe falara em salas de chat (que ele inicialmente percebeu como salas de chuto), decidira experimentar. Ao início, todos os interlocutores lhe pareceram insípidos. Porém, ao fim de algumas tentativas, encetou diálogo com outro homem, o qual se revelou uma agradável surpresa e um bom parceiro de conversa.
Combinaram reencontrar-se online, mas por disponibilidade de horário, o encontro só poderia acontecer à noite, quando Orlando já estava em casa. Sentiu-se ansioso por voltar a falar com o desconhecido, saber mais sobre ele. Contudo, teria de esperar. Por isso, naquela tarde, a sua atenção teve de se dirigir para o trabalho e para a sua crónica semanal.
A famosa visada iria ver mais um artigo de escárnio à sua pessoa na edição daquela semana. Inicialmente, não era ela a vítima prevista. Orlando recebera a informação de uma novidade bombástica que viria ao conhecimento de todos, só que não pôde em tempo útil confirmar o que era. Segundo a sua fonte, Carles Ruben, o famoso jogador de futebol, iria anunciar algo à comunicação social que nada tinha a ver com o desporto. Seria o fim da sua relação com Natacha? A supermodelo internacional estava em Paris. Poderia lançar o boato, mas se a notícia não se confirmasse, ele iria cair no ridículo e facilmente se perceberia que se limitara a inventar algo numa aposta de adivinhar a revelação.
O que seria?
De súbito, ponderou a hipótese de que o jogador fosse assumir a sua homossexualidade. Sim, Orlando desconfiava disso, mas era algo que não conseguiria provar e também se tornaria ridículo noticiar isso perante a relação que Carles Ruben mantinha com Natacha.
Orlando decidiu então telefonar a uma pessoa próxima de Natacha, o seu agente.
Romano era um homem conceituado no mundo da moda e agenciava alguns dos mais famosos manequins internacionais. Tinha uma postura arrogante, mas ponderava sempre a melhor forma para encarar os outros, dependendo do seu interesse. Não tinha particular simpatia por Orlando, para não dizer que o odiava. No entanto, o cronista não era pessoa que se devesse ter como inimigo, a menos que as circunstâncias a isso obrigassem.
Ao ouvir a voz do outro, Orlando manteve um tom neutro. Romano tinha uma voz agreste e segura.
— Ouvi dizer que o Carles Ruben vai separar-se da Natacha?! — começou por dizer Orlando de forma cortante.
Romano ofereceu-lhe um riso cínico, retorquindo:
— Se isto fosse futebol, diria que você acabou de fazer uma entrada de carrinho. Lamento. Não sei onde foi buscar essa ideia, mas é totalmente falso.
Orlando não acreditou e insistiu:
— Fala-se por aí que ele vai fazer uma revelação bombástica.
— Não sei. Não ouvi nada. — mentiu o agente.
— Não me lixe, Romano. Você deve estar informado. Até porque a revelação deve estar relacionada com a sua modelo.
— Orlando! — chamou Romano num tom condescendente. — Você é um tipo talentoso na escrita. E talvez isso o faça ser tão criativo. Já ponderou começar a escrever livros de ficção ou telenovelas?
— Não. Mas poderia escrever a biografia do Carles Ruben.
— Isso é convosco.
— E consigo. Que iriam dizer as pessoas quando soubessem que a sua agenciada não é mais que uma peça do jogo de Carles Ruben para esconder que é gay?
Orlando continuava a “atirar o barro à parede”.
— Gay? O Carles Ruben? — interrogou Romano, atirando uma gargalhada estridente. — Acha que um homem que namora a Natacha pode ser gay? Você, melhor que ninguém, deveria perceber isso.
— Por isso mesmo é que o digo.
— Orlando! — voltou a chamar o agente, agora num tom mais sério. — Isso não me diz respeito. Não me interessam as orientações sexuais de cada um, apesar de me sentir na obrigação de lhe fazer notar o absurdo da sua suspeita. Em relação à Natacha, sou agente dela e interessa‑me a carreira profissional dela. Só isso.
— Tenho uma fonte anónima que me disse que a relação entre eles esfriou. Já não se encontram há alguns dias. — inventou Orlando, procurando desbravar algo.
— É natural que não se vejam há alguns dias. Ela tem estado em Paris na semana da moda.
— Certo. Vejo que não desmentiu o esfriamento da relação.
— Nem confirmei. — redarguiu Romano. — Mas, se lhe interessa saber, posso garantir que o namoro de ambos continua sólido como antes.
— Que haveria você de dizer?
— Que quer você que eu lhe diga?
— O que o Carles Ruben vai anunciar.
— Pergunte ao Carles Ruben. — respondeu, já agastado com a insistência. — Porque haveria eu de saber o que ele vai dizer?
— Se fosse o fim da relação com a Natacha, você saberia. — recordou Orlando. — Assim, de repente, isso seria trágico para a carreira dela.
— Está a insinuar que ela está com ele por interesse?
— Você é que o disse.
— Não sou parvo, Orlando.
— Pensando bem, é um bom título para a capa da minha revista. — sugeriu o cronista, usando um tom sarcástico. — Natacha mantém relação com Carles Ruben por interesse, diz o seu agente.
— Esteja à vontade, Orlando. O meu advogado ficaria satisfeito com a possibilidade de o pôr em tribunal.
Foi a vez de Orlando soltar uma gargalhada.
— Você já viu algum cronista condenado por difamação?
— Talvez não. Mas isso não iria beliscar a relação da Natacha com o Carles. E você iria sempre ter a chatice de comparecer em tribunal.
Orlando percebeu que dali não conseguiria saber nada. Não valeria a pena insistir. Tinha a certeza de que Romano sabia a razão da revelação, mas não iria dizer-lhe.
— Bom, não me parece que valha a pena continuar esta conversa. — constatou, passando depois a dizer com enorme hipocrisia. — Gostei de falar consigo. Talvez nos possamos entender melhor, quando me voltar a contactar para escrever uns artigos simpáticos sobre novas agenciadas suas.
Romano percebeu a indirecta. Muitas vezes, Romano telefonava a Orlando para que este escrevesse na sua revista sobre novos manequins agenciados por si, fazendo-lhes publicidade e ajudando-os a obter fama e a entrar no mercado nacional da moda, o que favorecia o agente. Não era bom entrar para a lista negra do outro, por isso, usou de um tom mais afável e quase de forma submissa, repetiu:
— Não sei mesmo nada, Orlando. Seja o que for que ele vai anunciar, não está relacionado com a Natacha.
Romano estava a mentir, tinha a certeza. Orlando fingiu acreditar. Porém, se desta vez não obtivera a informação que pretendia, também não valia a pena incompatibilizar-se com o agente, pois era alguém próximo de uma das pessoas mais famosas do Mundo e isso poderia trazer dividendos futuros.
O telefonema terminou. Orlando sentiu-se irritado consigo mesmo por não conseguir desvendar o segredo que iria ser revelado pelo jogador. No entanto, não valeria a pena continuar a martirizar-se com o assunto. Voltou a olhar para o computador e finalizou o artigo que estava a escrever.
Nessa noite, Orlando refugiou-se no seu quarto com o seu computador. Até nisso sentia a influência negativa da presença do sobrinho em sua casa, já não se sentia seguro na sua privacidade fora do quarto, mesmo que Dimas raramente abandonasse o seu. Mesmo assim, não queria ser surpreendido na sua conversa online pelo sobrinho, se estivesse na sala e este aparecesse de repente.
A única conversa que tivera com aquele novo amigo virtual durara horas. Encontraram muitos interesses em comum, o que tornou fluente o brotar de assuntos. O sexto sentido de Orlando inclinava-o a suspeitar que o homem que lhe respondia atrás do ecrã deveria ser gay, tal como ele. Seria? Apesar da facilidade como dialogaram um pouco sobre tudo, a orientação sexual não foi um dos temas.
À hora combinada, na sala privada acordada, Orlando entrou com o seu utilizador e encontrou Veneno de Amor já presente no espaço virtual. Tinha um nickname curioso, mas Orlando ainda não achara por bem questionar a razão da escolha.
Sentiu-se um adolescente nervoso com as possibilidades que poderiam advir dali.
“Olá”
O outro retribuiu o cumprimento, mas algo fez sentir ao cronista que havia qualquer coisa diferente no ambiente. Ia para escrever, lançar um tema, quando leu:
“Gostei muito de falar contigo no outro dia. Pareces ser bom tipo”
Orlando sorriu para o ecrã.
“Também gostei muito de falar contigo. Há muito tempo que não partilhava uma conversa tão agradável com alguém”
“Tenho de te contar algo, antes de continuarmos. Se estamos a construir uma amizade, não quero que haja esqueletos no armário”
Vais dizer-me que és gay!
“Força. Gosto dessa abertura, nada de segredos”
“Espero que isso não te faça afastar. Estou a gostar de te conhecer, mesmo que seja só na virtualidade”
“Para já, só na virtualidade”, adicionou Orlando divertido, ansiando pela confirmação de estar perante um dos seus pares.
“Não sei se quererás mais que a virtualidade, depois do que te vou dizer”
Anda lá, querido! A homossexualidade já não é esse bicho de sete cabeças.
“Estás a deixar-me preocupado”, mentiu, entrando naquilo que lhe parecia um jogo.
“Sou seropositivo”
Orlando encaixou o golpe com dificuldade, não esperava aquilo. Coisa rara na sua vida, não encontrou nada para escrever em resposta. Receoso que o seu silêncio fosse mal-interpretado, digitou:
“Tens SIDA”
“Sim”
Lá se ia possibilidade de encontrar naquele novo amigo algo mais que uma amizade. Num rasgo de lucidez, o cronista prosseguiu:
“Achas que isso me fará afastar de ti? Porque haveria de deixar de falar contigo por causa disso?”
“As pessoas são preconceituosas. Ainda há um grande estigma para com as pessoas com SIDA. Não te conheço o suficiente para formar uma opinião sobre ti acerca disso. Desculpa, se te julguei mal”
“Não sou preconceituoso. E já tive de lidar com o preconceito muitas vezes”
“Como assim?”
Orlando decidiu que deveria retribuir a honestidade do outro.
“Sou gay”
Aguardou a reacção do outro à revelação. Nesse momento, os segundos arrastaram-se. Contudo, o outro não demorou a retorquir:
“Não faço juízos sobre isso. A sexualidade de cada um só a si diz respeito”
“Então podemos concordar que nem eu me vou afastar por seres seropositivo, nem tu te vais afastar por eu ser gay”
“Sim”
Houve uma pausa no diálogo, como se a fluência de temas que existira antes se tivesse extinguido. Era uma espécie de anticlímax. Orlando calculou que o outro andara a matutar como deveria contar-lhe aquilo e, agora, feita a confissão, tudo parecia resultar num vazio.
Tomando a iniciativa, o cronista ligou o seu modo de entrevistador:
“Posso perguntar como aconteceu?”
“O quê?”
“Como foste infectado?”
Estaria a ser invasivo? Se estivesse, o outro que se queixasse. Se fosse preocupar-se com o efeito que as suas perguntas indiscretas faziam, não teria chegado onde chegou.
Para sua satisfação, o seu parceiro de conversa não revelou qualquer desconforto.
“Numa relação sexual”
Orlando esticou a corda, acicatado pela curiosidade e arriscou na pergunta seguinte:
“Com homem ou mulher?”
A resposta surpreendeu-o, pois trazia somente um emoji sorridente. Que quereria dizer aquilo? Seria uma espécie de “apanhaste‑me, também sou gay”?
“Achas que sou gay?”
“Não acho nem deixo de achar. És?”
“Não”, apareceu prontamente no ecrã.
No entanto, Veneno de Amor não deixava de surpreender Orlando. E antes que o cronista voltasse a pressionar uma tecla, o outro enviou:
“Sou bissexual. Sendo gay, penso que perceberás as pessoas que se sentem algo deslocadas das mentalidades tradicionalistas. Não me consigo definir como gostando mais de um ou de outro. Na verdade, tanto gosto de sexo com mulheres como com homens. Mas, também admito que me apaixono mais facilmente por um homem. Talvez porque quem me infectou foi uma mulher. Não sei”
“Tens alguém neste momento? Estás apaixonado?”
“Não, não estou apaixonado. Mas, também não sou celibatário, Orlando”
“:)”
“Qual a razão do emoji?
“Foi a primeira vez que me trataste pelo nome”
“A sério? Não tinha reparado”
“Ainda não me disseste o teu”
“Veneno de Amor”
“O verdadeiro”
“Felisberto”
“A que se deve a escolha de Veneno de Amor, Felisberto?”
“Fazes muitas perguntas. És jornalista?”
Orlando estremeceu. Apesar de tentar ser o máximo honesto possível, Orlando ainda não lhe dissera que era um Orlando conhecido cronista de língua viperina e comentador de sociedade.
“Não. Sou só curioso”
“Tudo bem, estava a brincar. És donde?”
Orlando reparou na súbita mudança de assunto, sinal claro de que Felisberto não queria revelar o porquê daquele nome. Também não tinha importância.
“Lisboa”
“Eu estou no Algarve”
“O Algarve é muito grande”
“Portimão”
“Eu gosto do Algarve, já não vou aí há algum tempo”
“Quando vieres, gostava de tomar um café contigo. Que dizes?”
Orlando sentiu um friozinho no estômago.
“Teria todo o gosto”
“Não te preocupes. Eu tenho todo o cuidado para não contagiar ninguém”
“A SIDA não se pega por se conviver numa esplanada a conversar e a tomar um café”
“Tu pareces encantador, Orlando. Não sei se quereria só um café”
Todo o corpo do cronista estremeceu de excitação.
Toma juízo, Orlando! Ele tem SIDA.
“Vamos com calma, Felisberto. Estou a gostar da amizade que estamos a construir”
“Eu também. E peço desculpa, se fui inconveniente”
“Não, não foste”
Naquilo que pareceu um acordo tácito, o assunto mudou para algo mais frívolo e eles continuaram a trocar mensagens na toada leve com que haviam feito na vez anterior.
TOPÁZIO
Topázio nascera havia quase trinta anos numa terra chamada Santa Coloma de Queralt, na província de Tarragona, mais ou menos a meio caminho entre as cidades de Lérida e Barcelona. Pertencia a uma família humilde e trabalhadora que projectava nela a vontade para que fosse alguém e tivesse um futuro melhor que os pais. E ela, aparentemente correspondera, ao conseguir ser uma aluna brilhante e ingressar no ensino superior na Universidade de Barcelona, onde se formou em Economia. Só que o curso não foi sinónimo de bom emprego e futuro assegurado. Bem pelo contrário...
Aquele amanhecer ameno trouxera um céu enevoado, o qual funcionava como um efeito estufa que abafava o ar e atribuía à realidade um aspecto doentio. Topázio nunca fora fã de Barcelona, mas teve de deixar a casa dos pais e fazer da cidade o seu lar. Se a viver ali já era difícil encontrar um bom emprego, se permanecesse em Santa Coloma de Queralt então é que poderia esquecer a hipótese do seu Curso de Economia servir para alguma coisa. Desde que se formara, Topázio saltara de emprego em emprego, trabalhos precários e mal pagos, que jamais a realizaram. Porém, algumas semanas antes, a vida atirou-lhe uma oportunidade e ela agarrou-a com todas as suas forças.
Topázio era uma mulher elegante, sempre preocupada com a imagem. Tinha duas características às quais não conseguia fugir, a ascendência índia dos seus avós bolivianos e a estrutura forte que a fazia parecer estar sempre acima do peso ideal. O olhar escuro profundo, a pele morena, o cabelo longo sempre preso no topo da cabeça eram outras das suas marcas. Considerava o seu rabo demasiado grande, mas orgulhava-se das pernas, das coxas roliças.
Olhou para o exterior, sentada no banco do autocarro que circulava pelas ruas de Barcelona. Deixou a mente vaguear em recordações, retroceder ao dia em que conhecera a patroa.
A função não era importante, a real oportunidade era o facto de poder trabalhar numa das maiores empresas de Espanha. Sim, teria sido maravilhoso ser contratada para um lugar ao nível das suas habilitações, mas talvez aquilo pudesse ser ainda melhor. Os donos eram famosos pela riqueza, pelo status, pela posição social, pela influência, pela proximidade com o poder... E Topázio respondera a um anúncio para ser assessora de direcção, uma espécie de secretária para múltiplas funções, longe de imaginar o que a aguardava. Candidataram-se dezenas de homens e mulheres. Isso não a desmoralizou, sempre fora uma lutadora, por isso, se algo a travasse não seria a sua vontade. Os candidatos foram diminuindo até somente meia dúzia se apurar para a entrevista final que aconteceria na presença do director para quem o escolhido iria trabalhar directamente.
No céu, as nuvens fracturaram-se e entre elas o Sol deu sinal de si. Contudo, não durou muito e a abertura fechou-se. Topázio observou os outros passageiros, tudo rostos taciturnos rumo aos empregos como quem caminha para a forca. Ela tornou a abstrair-se da realidade.
Fosse por mérito ou por uma decisão machista, as finalistas eram todas mulheres. E se estivesse perante um daqueles administradores de empresas que valorizam mais um bom cu e um bom par de mamas que um índice elevado de inteligência? Bom, então bem que Topázio poderia começar a pensar noutra candidatura.
No entanto, quando chegou a sua vez, Topázio entrou na sala de reuniões e foi surpreendida pela presença de três mulheres, a responsável pelo processo de recrutamento do grupo empresarial, a directora de recursos humanos com o protagonismo da entrevista, que ali estava para dar a sua quota de opinião, e a pessoa para quem a escolhida iria trabalhar. E aqui, o coração de Topázio bateu com mais intensidade, pois a vencedora não iria trabalhar para um director qualquer, iria ser assessora da herdeira de todo o império, a vice-presidente, a doutora Mariana.
O autocarro fez uma travagem brusca, provocando os protestos dos utentes e despertando-a das memórias. O motorista borrifou-se para a indignação deles, se não gostavam que fossem a pé.
Topázio conseguira o lugar, mas não gostava da patroa. Não gostava daquela postura arrogante a olhar tudo e todos de cima para baixo, da forma como ela falava sempre com distanciamento e a debitar ordens como se a existência dos outros não tivesse outra utilidade senão servi-la. Não era fácil trabalhar com a vice-presidente, ainda para mais porque parecia que, de dia para dia, o seu estado de espírito se tornava mais agreste e irrascível. A sua função de assessoria era mais bem descrita como "criada para todo o serviço", o que a assoberbava em tarefas e a fazia chegar a casa completamente arrasada.
No entanto, reconhecia na patroa o profissionalismo. Não era simpática, mas na sua autoridade sabia ver quem realmente trabalhava. Com o passar do tempo, percebeu que a doutora Mariana já não a via como a funcionária que se conseguira arranjar, mas sim como alguém competente em quem podia delegar tarefas com a certeza de que seriam cumpridas. Claro que isso nunca lhe trouxe um sorriso ou uma palavra afável da patroa.
O autocarro parou no meio do trânsito. Por qualquer razão que ela não conseguia observar, naquela rua os veículos não circulavam. Teria havido algum acidente? Não conseguia ver e lamentou que isso a fosse atrasar para chegar ao emprego. O Sol tornou a aparecer e os raios solares incidiram nela, através do vidro sujo. Olhou para o interior, sentindo que a temperatura aumentava ali dentro. Aos poucos, o longo transporte de passageiros retomou a marcha, enquanto a mente de Topázio equacionava uma desculpa para justificar o atraso.
E aquela não era uma época fácil, uma vez que a patroa andava com um feitio intragável. Topázio não fazia ideia porquê, não encontrara motivo algum no trabalho para resultar naquele temperamento diário que parecia vir directamente da bílis. Com o seu olhar feminino astuto, Topázio começou a suspeitar que a herdeira do império estava a ficar mais forte, ou melhor, mais gorda. Seria isso? Estaria a encarar mal o facto de estar a ganhar peso, gordura, um pneu? Bolas, com tanto dinheiro, o que não lhe faltariam eram meios de combater aquilo, se a estava a afectar tanto. Porque não ia ao ginásio? Quem lhe dera a ela, ter dinheiro e tempo para umas visitas ao ginásio, não tanto pelo exercício, mais pelo convívio.
Topázio era uma mulher solitária. Sem grandes amizades, sem pessoas com quem interagir um pouco no final do expediente, o seu escape fora a Internet. Aquilo que mais gostava de fazer era visitar websites de viagens, sonhar acordada com a possibilidade de viajar para um destino paradisíaco, ver fotos de locais maravilhosos...
O edifício de escritórios onde se situava a empresa que a empregava tinha vista para o Porto de Barcelona, um dos maiores em tráfego de navios de cruzeiro. Muitas vezes, Topázio dava por si a olhar para as embarcações gigantescas e a imaginar como seria viajar numa daquelas luxuosas cidades flutuantes.
Voltando ao seu escape, Topázio não era muito interessada em redes sociais ou em procurar gente virtual para desperdiçar conversas. Acontece que num desses websites ou blogs de viagens, Topázio encantou‑se com um jovem viajante português. Ele publicava fotos lindíssimas e fazia relatos das suas viagens, o que a transportava em sonhos acordada, imaginando-se naqueles mesmos sítios. A foto de perfil do autor não era muito nítida, um rapaz de mochila às costas em contraluz com o pôr-do-sol. Porém, era o suficiente para a fazer suspirar e imaginar que adorava explorar aqueles lugares com ele. Sim, nunca tivera paciência para redes sociais, mas sentia-se tão sozinha...
Como ele tinha um endereço de email, Topázio decidiu escrever‑lhe, usando o tradutor do Google para que o seu catalão saísse algo que um português entendesse. Ainda ponderou escrever tudo em inglês, mas arriscou no portunhol. Para sua surpresa, ele respondeu-lhe numa mistura luso-castelhana de palavras, agradecendo os seus elogios às fotos e perguntando se ela tinha Facebook para a adicionar e conversarem mais vezes.
Redes sociais. Parecia que a Humanidade já não sabia viver sem uma rede social virtual. É certo que isso nunca a atraíra, mas aquele rapaz mexia com ela, a sua vida de viajante atraía-a de uma forma que não sabia explicar. E estava tão extenuada e solitária com a sua vida que decidiu investigar a realidade das redes sociais, esse tal de Facebook.
Topázio queria cativá-lo, queria despertar-lhe tanto interesse quanto ele semeara em si. Porém, sentia-se insegura com a sua identidade. Por isso, ao invés de criar um perfil baseado em si, criou um perfil baseado em alguém clonado da sua patroa, alguém de nome Paloma, a filha rica de um industrial, uma mulher viajada, empresária, namoradeira e gastadora.
FELISBERTO
Os olhos da leoa tatuada nas costas observavam-no numa mistura de desafio e ferocidade. Felisberto respondia com um olhar irónico, congratulando-se por toda aquela segurança de olhar se desmoronar em breve.
A leoa agressiva estava tatuada nas costas da rapariga que ele conhecera na Internet e a quem dedicara as últimas semanas de um jogo de sedução com promessas de amor eterno. Finalmente, conseguira convencê-la a encontrarem-se para sexo. Já se haviam encontrado uma vez, mas apenas para tornar reais os anseios dela em namorar aquele sedutor. Mais tarde ou mais cedo, conseguiria levá-la para a cama. O principal desafio não estava aí, mas sim em ganhar a confiança dela de tal forma que se dispusesse a aceitá-lo dentro de si sem restrições. E isso seria o mais difícil, pois só assim conseguiria alcançar o objectivo máximo do seu prazer doentio, uma ejaculação que incluía de oferta o vírus mortal.
Assim, no quarto do apartamento que ela partilhava com uma amiga, a rapariga recebia-o com os joelhos e os punhos bem vincados no colchão. Era uma jovem de vinte e poucos anos de tronco encorpado e pele bronzeada sem marcas de biquíni. Felisberto tinha os seus joelhos ligeiramente atrás dos dela e as mãos seguravam as ancas da rapariga com vigor, puxando-a para si de forma ritmada.
A respiração ofegante dela, misturada com os gemidos de prazer, aumentava ao mesmo tempo que os impactos entre a cintura dele e as nádegas dela se tornavam mais ríspidos. Felisberto era pouco expressivo no sexo, pois o prazer soberbo só se tornava real quando se sentisse a vir dentro da vítima.
Estava quase, sentia-o cada vez mais próximo. Ouvia-a a implorar para que não parasse, enquanto os olhos tatuados da leoa o observavam em jeito de condenação, mas impotentes para o travar.
No auge, Felisberto atingiu o clímax e a rapariga sentiu o resultado quente a espalhar-se dentro si. Ele vibrou com a sensação de prazer, aquele momento ímpar em que o corpo confirma o objectivo alcançado.
Sem demora, empurrou-a para se libertar e a rapariga caiu de costas no colchão, extasiada pelo orgasmo que ele lhe oferecera. Sorriu‑lhe apaixonada. Ele retribuiu, simulando a paixão e congratulando-se interiormente por ter adicionado Diana à lista de pessoas a quem transmitira o vírus da SIDA.
Aquele prazer macabro não fizera sempre parte do carácter de Felisberto. Aliás, uns dois anos antes, ele era uma pessoa íntegra e muito correcta, a qual condenaria semelhante perversidade. No entanto, houve uma altura em que a sua vida mudou fatalmente.
Felisberto nunca conseguira definir-se sexualmente, desde novo que tanto se sentia atraído por rapazes como por raparigas. Não era um pervertido, não fazia uma vida de orgias com ambos os sexos. Tinha os seus convívios, as suas amizades e os seus namoros que nunca eram muito sérios, longe de se assemelharem a compromissos.
Essa vida livre e sem amarras terminou seis anos antes, quando Felisberto se apaixonou por um homem que o fazia verdadeiramente feliz. Aquele namoro fê-lo encarar a relação com um sentido muito diferente que tivera nos namoricos anteriores. Contudo, tal como a orientação sexual de Felisberto era dupla, também a sua vida se tornaria bipolar. Menos de um ano decorrido daquele namoro apaixonante, ele conheceu uma rapariga que fez estremecer o seu mundo. A empatia foi imediata, tornaram-se amigos e confidentes. Felisberto manteve-a sempre escondida do namorado. Ela sabia que Felisberto estava numa relação gay, mas isso não a impediu de o seduzir, raptando-o para o lado heterossexual da sua vida.
Durante três anos, Felisberto levou uma vida dupla, namorando um homem, o qual traía com uma mulher. Se ao início ela não revelava qualquer problema com isso, com o passar do tempo tornou-se possessiva e queria Felisberto só para si.
Intransigente, ele nunca lhe escondeu que jamais largaria o namorado. Se ela queria continuar aquela relação, seria nos moldes iniciais, sendo a amante, a outra, o elo mais fraco do triângulo amoroso.
A amante revelou aceitar a situação, manter-se escondida, inexistente do conhecimento do namorado, do homem com quem ia para a cama. Porém, toda a aceitação não passou de pura falsidade e a sua cartada decisiva foi fazer com que o namorado de Felisberto descobrisse a traição. Só que o golpe saiu-lhe furado.
Felisberto admitiu a culpa, quando o namorado descobriu e o confrontou com a situação. Não procurou desculpas, nem tentou enganá‑lo com tretas que só despoletariam a sua fúria e raiva. Admitiu a sua fraqueza, afinal nunca escondera dele que era bissexual. Pediu-lhe perdão em lágrimas e o outro perdoou-o também em lágrimas.
Sabendo quem provocara aquilo e com que intuito, não foi difícil a Felisberto cumprir o prometido ao namorado e terminar tudo com a amante, expulsando-a da sua vida incondicionalmente e lamentando o tempo que perdera com semelhante víbora que quase arruinara a sua relação com a pessoa que mais amava no planeta.
Qual viciado em droga, Felisberto lutou para não ceder à traição e não se deixar enredar novamente nos encantos de uma mulher. Não voltaria a ser bissexual, iria concentrar-se na vida comum que partilhava com aquele homem maravilhoso. E os dias pareciam vividos no paraíso durante os tempos que se seguiram àquele em que ele repudiara a amante. Felisberto era um homem apaixonado pelo namorado com quem partilhava cada vez mais sonhos e fins comuns. Planeavam casar, iniciar um processo de adopção de filhos, agora que a lei já o permitia aos casais homossexuais, e viverem felizes até que a morte os separasse.
Apesar de tudo, a ex-amante de Felisberto nunca o largou totalmente, continuava a envia-lhe mensagens, confessando saudades e que queria voltar a estar com ele, aceitando todas as imposições que ele quisesse. Felisberto ignorou-a sempre.
Certo dia, a ex-amante enviou-lhe um email e o seu mundo ruiu:
“Olá Berto! Nunca pensei que te transformasses no grande cabrão que tens sido para mim. Logo eu que te amei incondicionalmente, aceitando que me traísses com outro paneleiro como tu. Amei-te ao ponto de desvalorizar o quão fraco tu eras na cama. Sim, és medíocre como amante. Talvez tenhas jeito para ir ao cu ao teu homem, mas com mulheres… Comigo foste sempre muito fraco. Se não o tivesses sido, eu não teria tido necessidade de procurar noutros o que não tinha em ti. Nunca te disse, apesar de não me poderes condenar, já que também tu me traías, mas eu tive sexo com outros homens enquanto namorávamos. Para te ser sincera, tu nem mereces que eu tenha a consideração de partilhar isto contigo, talvez o faça por um sentido de dever para com a defesa de outros que pudesses vir a conspurcar. Tal como o fazia contigo, também com outros homens o sexo foi sem barreiras. Hoje, arrependo-me da estupidez de não usar preservativos. À conta disse, tive sexo com um canalha infectado com SIDA. Fiz o teste e deu positivo. Por isso, lamento meu querido, mas acho que também estás. Não mereces que te avise, nem tu nem o paneleiro do teu namorado. Por mim, bem podem morrer os dois. Só que sei que deves continuar a traí-lo, daí que não queira que andes a infectar inocentes por ignorância. Mesmo sabendo que estou condenada, não consigo deixar de sentir um gostinho especial de vingança pelo que me fizeste, ao ter-te transmitido o vírus e, consequentemente, ao paneleiro que te roubou de mim. Até nunca mais!”
Felisberto ficou em choque. A quente, clicou no responder e enviou-lhe uma mensagem a insultá-la com todos os impropérios que lhe vieram à cabeça, a ameaçá-la, a retribuir as queixas do desempenho na cama, tudo o que se lembrou… Mas, nada atenuava a dor do futuro que aí vinha.
Em lágrimas, temeu mais pelo namorado que por si. Não suportava a ideia de lhe ter transmitido o vírus, que aquele homem maravilhoso visse a sua vida irremediavelmente encurtada por causa dos seus actos, da sua traição. Como reagiria ele? Seria capaz de o perdoar novamente? Inúmeras perguntas sem resposta inundaram-lhe o pensamento.
A noite em que lhe contou foi a noite mais horrível da vida de Felisberto. Primeiro pelo desespero que leu no rosto do namorado, depois pela raiva que lhe viu no olhar, e por fim na forma intransigente como afirmou que estava tudo acabado entre eles. O grande amor de Felisberto abandonou a casa que partilhavam nessa mesma noite sem que ele conseguisse encontrar argumentos para o travar. E quando a porta se fechou, eles saíram da vida um do outro para não mais se reencontrarem.
A dor do fim da relação foi grande. Porém, Felisberto manteve a esperança de que, quando fizesse o teste, este desse negativo, o que significaria que o ex-namorado também estaria negativo, e Felisberto partiria na missão de o reconquistar. Sem o ónus da doença, ele estava crente que a relação poderia ser reatada.
A esperança de ter passado ao lado do vírus morreu quando leu o resultado do teste de HIV e confirmou os seus piores receios. Mesmo assim, teve a lucidez de desejar que o seu ex-namorado pudesse não ter tido o mesmo destino, mesmo sabendo que isso era quase impossível, uma vez que eram um casal bem activo e despreocupado. Ele gostaria de ter sabido o resultado do teste do outro, mas jamais o procuraria para isso, limitando-se ao desejo do milagre.
Para além de tudo isto, de um dia para o outro, Felisberto viu-se obrigado às regras impostas pelo médico e pela medicação, regras que lhe permitiriam viver mais anos. Tentou ter uma vida normal, quem sabe encontrar um novo amor, só que a raiva consumia-o a toda a hora, todos os dias. A raiva pela puta que lhe metera o vírus, uma raiva que se alastrou a todo o sexo oposto. E o único caminho que encontrou para atenuar o ódio que lhe enegrecia a alma foi aquele prazer macabro de infectar outras mulheres com o vírus.
Tornara-se um jogo, um jogo real, um jogo em que acumulava pontos, um por cada vítima, pontos que teriam bónus quando elas, sem saberem, propagassem a “prenda” que ele lhes deixara. Claro que os bónus ele não podia contabilizar. Restava contar os seus pontos. Em cerca de dois anos… tinha já muitas dezenas de pontos.
No “currículo” havia de tudo. Tinha um gosto especial pelas prostitutas, pois eram as melhores para as conquistas de bónus. A princípio, recusavam sempre, mas perante mais uma nota, lá conseguia que o preservativo ficasse guardado. No entanto, o que lhe dava mais prazer era seduzir raparigas ainda com a ilusão do grande amor e do romantismo bem vincados na mente. Adorava fazê-las acreditar que ele era “o tal”, mostrar-se tão ou mais apaixonado que elas, ganhar-lhes a confiança, levá-las a entregarem-se por completo, possuí-las na cama e marcar mais um ponto.
Depois… Depois desaparecia, destroçando-lhes o coração. Por vezes, ainda as encontrava uma última vez para terminar a relação e contemplar com sadismos as lágrimas que elas vertiam por ele. Só tinha pena de não poder estar presente quando se começassem a sentir doentes, quando a suspeita do médico as levasse a fazer o exame e tivessem conhecimento de que haviam sido infectadas. Felisberto tornara-se um demónio na terra, a encarnação humana do vírus que o seu corpo alimentava e propagava.
Diana fora fácil de conquistar, a conversa de galã do costume e ela estava caidinha por si. Era mais nova e ele representava aquela personagem do homem mais velho engatatão. O único inconveniente era ela morar em Castelo de Vide, longe para ele que morava em Portimão. Contudo, depois de muitas horas de conversa online, ele jogara a carta da fase seguinte. Inventou uma treta de que tinha de ir a Portalegre em trabalho e sugeriu que, em caminho, se encontrassem. Ofereceu-se para um desvio a Castelo de Vide para a conhecer. Ela aceitou.
Se Diana era fácil na Internet, não o era na vida real. E aquele primeiro encontro ficou muito aquém dos planos de Felisberto que contava marcar o ponto nessa tarde. Ao invés, encontrou uma rapariga com ar de roqueira, mas de personalidade recatada, travando as investidas dele. Só lhe conseguiu um beijo, nada mais.
Felisberto teve de replanear tudo, quando regressou a sul, logo que a deixou para trás. Poderia desistir, mas era um desafio. E o gosto do jogo também era esse, o desafio. Continuaram a falar nas salas de chat, ela cada vez mais apaixonada, ele simulando estar em sintonia. Ao fim de mais algumas semanas, Felisberto jogou a cartada decisiva.
“Quero voltar a ver-te. Estou a pensar ir novamente a Portalegre. Posso passar por aí…”
Ela respondeu imediatamente que sim.
No entanto, Felisberto não estava na disposição de fazer nova despesa para nada. Fingiu um amor incandescente por ela, mentiu que ela era a mulher da vida dele e findou com a vontade de assumirem um compromisso e o desejo imenso de fazer amor com ela.
Diana não era fácil, podia ser uma aventureira na Internet, mas na vida real… ia com calma. Em resposta, mostrou-se interessada em assumir um compromisso, mas a intimidade requeria algo mais que conversas numa sala de chat. Felisberto fez de conta que compreendeu e ausentou-se da realidade virtual de Diana por algum tempo.
Receosa de o perder, ela declarou a derrota sem o saber, quando lhe mandou mensagens a estranhar não o encontrar online e a confessar a saudade que sentia. Felisberto fê-la sofrer uns dias e depois respondeu através de email confidenciando que sentia que talvez o seu amor não estivesse a ser compreendido.
Diana caíra que nem uma patinha e deixou-se convencer a aceitar a visita dele a Castelo de Vide, ao apartamento que partilhava com a amiga e à sua cama. Sabendo como a tinha na mão, Felisberto inebriou-a de tal forma na teia de um amor tão sôfrego que ela se deixou possuir sem a segurança de um preservativo.
Deitada de barriga para cima, nua, com os seios a subir e a descer rapidamente, motivados pela respiração acelerada em recuperação, Diana observava-o completamente apaixonada. Felisberto contemplou-a como um actor digno de uma telenovela, convencendo-a de que era recíproco.
— Passa a noite comigo. — convidou ela.
Ele sorriu e aceitou.
Quase não dormiram nessa noite, Felisberto aproveitou para se certificar que o vírus não falhava, repetindo o acto anterior mais três vezes.
Na manhã seguinte, bem cedo, partiu de regresso ao Algarve com a promessa de que lhe ligaria assim que chegasse. Não o fez. Diana tornou‑se em mais um nome na sua lista e foi atirada para os arquivos da memória.
DIANA
— A qualquer dia, a qualquer hora. Vou estoirar, p’ra sempre. — cantava ela feliz. — Mas entretanto, enquanto tu duras. Tu pões-me tão quente.
Diana adorava todas as músicas dos Xutos e Pontapés. E naquela manhã, depois de uma noite tão maravilhosa com o namorado, ela sentia‑se nas nuvens. Ele partira cedo, foi pena, não se importaria de passar o resto do dia… da vida, na cama com ele. Nos seus vinte e poucos anos, Diana era independente, extrovertida e rebelde. Gostava de vestir roupas que lhe mostrassem as costas nuas para que se visse o magnífico trabalho que lhe custara uma pequena fortuna, a leoa tatuada na pele com olhar feroz. Também gostava de saias curtas, estivesse frio ou calor, orgulhosa das pernas envoltas em collants ou despidas. Por vezes calçava botas, mas na maior parte das ocasiões andava em sapatilhas.
O cabelo tinha uma cor fora do normal, em tons de azul-marinho e roxo, era comprido em cima e atrás e quase rapado nas laterais. Os olhos desafiantes davam-lhe um ar carismático.
— Já sei qu’hei-d’arder na tua fogueira. — continuou alegre e feliz. — Mas será sempre, sempre à minha maneira.
Desde muito nova que gostava de cantar e sonhava ser uma vedeta do rock. Os pais preferiam que fosse médica ou engenheira. Aos dezoito anos perseguiu o seu sonho e entrou para uma banda de covers, contra a vontade dos pais, para ser vocalista. A banda sobreviveu quatro anos a tocar por todo o país até se desmembrar por os fundadores, um casal de namorados composto pelo guitarrista e o baterista, se terem desentendido, logo após um concerto em Castelo de Vide.
Não passava pela cabeça de Diana regressar à sua terra natal, Chaves, muito menos a casa dos pais. Quis o destino que se cruzasse com Olinda, a amiga com quem partilhava a casa, uma mulher de trinta anos que trabalhava no bar onde a conhecera. Olinda arranjou-lhe emprego no bar como empregada e como cantora nas noites de quinta-feira e convidou-a a viver no seu apartamento, uma vez que desesperava por encontrar alguém com quem partilhar as despesas.
— E as forças que me empurram. E os murros que me esmurram. — A voz melodiosa de Diana ecoava pelo pequeno apartamento de dois quartos. — Só me farão lutar. À minha maneira. À minha maneira.
Olinda, a amiga com quem partilhava o apartamento estivera fora naquele fim de semana, fora visitar o namorado que vivia em Portalegre. Só regressou a meio da tarde, quando parte da felicidade de Diana começava a esmorecer por ainda não ter notícias da chegada do amante ao Algarve. Já passara tempo suficiente para ter ido, voltado e tornado a ir. Diana foi trabalhar numa noite de pouco movimento sem o conseguir tirar do pensamento e olhando para o ecrã do telemóvel a cada pausa.
Felisberto não ligou nessa tarde, nem à noite, nem na manhã seguinte. Diana começou a ficar preocupada e mandou-lhe uma mensagem para saber se estava tudo bem. Não obteve resposta.
O trabalho de empregada de bar ocupava-lhe as tardes e as noites, quando não estava de folga. Por norma, folgava nas noites de segunda-feira, de terça-feira e, uma vez por mês, a de sábado, como acontecera naquele fim de semana. Talvez por não ter de trabalhar, a espera e a falta de notícias de Felisberto metralharam-lhe o espírito ao longo do dia. Na tarde de segunda tentou ligar-lhe duas vezes, ele não atendeu, tentou mais duas à noite e nada. Na terça de manhã insistiu mais três vezes e… nada. Durante a tarde voltou a ligar-lhe e ele rejeitou‑lhe a chamada. Algo não batia certo.
Sabia o quanto estava apaixonada, mas uma nova constatação começou a espicaçar-lhe a mente, a possibilidade de ele se ter mostrado apaixonado unicamente com a intenção de a levar para a cama. Custava‑lhe a acreditar que, depois da tarde e noite que haviam partilhado, ele não quisera mais que fodê-la. Não! Recusava-se a acreditar nisso. Se assim fosse, não desistiria até ele ser homenzinho e assumir-lho.
E não desistiu, pegou no telemóvel e ligou-se sucessivamente até que ele atendesse. E ele atendeu.
— Que queres? — foi a forma como a atendeu, sem um “olá” ou uma justificação por a ignorar nas últimas quarenta e oito horas.
Apesar de tudo, Diana ficou chocada com o tratamento, não reconhecia aquela voz no homem cativante que a encantara.
— Ficaste de ligar… — acabou por dizer, refazendo-se do choque.
— Fiquei? Não me lembro. — ripostou com agressividade. — Mas, isso não te dá o direito de estares constantemente a ligar.
— Não atendias. E eu estava preocupada. — justificou Diana, sentindo a voz retomar o tom normal.
— Que queres? — repetiu.
Diana respirou fundo e levantou os escudos de jovem rebelde.
— Pensei que fosses diferente.
— Diferente?
— Sim. Pensei que fosses um homem decente. — continuou com amargura. — Afinal, não passas de um gajo que só me quis foder.
No outro lado da linha, ouviu uma gargalhada.
— Achas que a finalidade foi essa?
— Não foi?
Nova gargalhada, algo sádica.
— Não, não foi, miúda.
Diana encaixou o “miúda”, percebendo que ele a tentava ridicularizar.
— Estou enganada?
— Mais ou menos.
— Que queres dizer com isso?
— A finalidade não foi só foder-te.
Sem perceber muito bem donde, Diana sentiu uma sensação estranha que lhe fez os cabelos da nuca eriçarem-se. Algo lhe dizia que vinha aí um golpe. As dúvidas subiram-lhe ao pensamento, mas começava a vislumbrar uma certeza, ele não gostava dela. Tentou falar, mas soluçou. Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto. Acabou por balbuciar:
— Só me quiseste foder, cabrão. Eu fui cega.
— Não me chames cabrão, puta de merda! — vociferou Felisberto, disparando as palavras. — Não passas de uma puta. Abres a cona a qualquer gajo que te apareça à frente.
— Isso é mentira! — afirmou sem controlar o choro. — Isso é mentira, filho da puta.
E era mentira, Diana não se entregava facilmente, fizera-o por estar apaixonada pelo homem que a vinha a encantar na Internet durante semanas e que correspondera a todos os seus anseios quando se conheceram pessoalmente e quando repetiram o encontro.
O tom de voz de Felisberto modificou-se. Ela esperava que ele replicasse as ofensas, mas ao invés, falou-lhe num tom tranquilo e com alguma ironia na voz:
— Como te disse, não quis só foder-te.
— Que queres dizer com isso, cabrão?
Nova gargalhada.
— Este “cabrão” tem SIDA. — informou com toda a naturalidade. — E agora tu também tens.
Diana ouviu-o rir. Ficou em choque, petrificada. Seria verdade ou apenas mais uma agressão verbal? Só conseguiu proferir um:
— Tu não…
— Faz o exame e logo verás.
— Tu…
— Chupa, puta de merda!
E desligou-lhe o telefone na cara.
Diana permaneceu imóvel por alguns minutos, na mesma posição, como se continuasse ao telemóvel com aquele traste. As lágrimas corriam‑lhe pelas faces. Recusava-se a acreditar naquilo, ninguém seria assim tão malévolo.
Com o coração partido e a sombra da possibilidade de estar infectada com um vírus incurável, Diana deu passos perdidos, sem nexo, pela casa, pensando, tentando organizar as ideias. E se fosse verdade? Só nesse instante ganhou consciência de que chorava, o rosto revelava-se lavado em lágrimas. Que haveria de fazer? Tinha de fazer um teste…
Não dormiu nessa noite.
Olinda ficou preocupada, quando a viu na manhã seguinte. Diana surgiu pálida com olheiras e muito abatida. Não foi capaz de contar nada à amiga, não seria capaz de o contar a ninguém. Porém, tinha de procurar ajuda, talvez marcar uma consulta…
Castelo de Vide era uma localidade relativamente pequena, Diana teve receio que a partilha daquilo com o médico ou médica que a atendesse no centro de saúde se tornasse numa notícia a espalhar-se pelas pessoas. Sentiu um medo profundo do que pudessem dizer, de como a doença afectaria a relação das pessoas consigo, desesperou perante a evidência de a sua vida terminar muito antes daquilo que ela imaginara.
Diana não foi trabalhar nessa tarde e mentiu à amiga dizendo-lhe que não se sentia muito bem, estava indisposta e pediu-lhe que explicasse ao patrão a ausência. Olinda descansou-a, mas não escondeu a preocupação.
— Isto passa. — disse-lhe. — Amanhã já estou bem.
Dificilmente estaria.
Sozinha, Diana tomou uma decisão, a ida ao médico estava fora de questão. Teve uma ideia melhor ou, pelo menos, mais segura. Pegou no computador, onde tantas horas passara a conversar com o sacana do Felisberto, e fez uma pesquisa sobre a doença, onde fazer testes, quem contactar, grupos de apoio…
O maior impacto, não contando com a possibilidade de ter contraído a doença, foi descobrir que só daí a quatro semanas é que poderia fazer o teste de forma a obter um resultado fiável.
Quatro semanas? Tenho de esperar um mês?
No meio de toda a pesquisa, descobriu que existiam grupos de apoio online, inclusive uma sala de chat onde anónimos falavam do vírus e procuravam esclarecer dúvidas. Entrou na sala virtual com a segurança do anonimato.
Quis o destino que só estivesse um único utilizador online naquele momento. Diana não sabia muito bem o que dizer, nem se haveria de dizer alguma coisa. Talvez aquilo não fosse boa ideia. O melhor seria tentar esquecer por uns tempos o que acontecera e daí a umas semanas fazer o teste.
“Olá!”
O cumprimento surgiu no ecrã. Diana ficou sem reacção. Queria sair dali, estava farta de conversas online, fora a Internet e a merda dos chats que a tinham levado àquele desespero.
“Posso ajudar-te?”
Ninguém me pode ajudar.
A cabeça decidiu sair da sala virtual, o corpo usou os dedos para escrever:
“Olá!”
“Bem-vinda!”, escreveu o utilizador que se identificava como “Emídio”. Diana definira para si, na entrada, o utilizador “uma rapariga”.
“Posso saber o teu nome?”
“Diana”, escreveu sem se importar.
“Eu chamo-me Emídio”
— Já tinha reparado. — disse ela em voz alta para o espaço. Sorriu sem saber porquê.
“Posso ajudar-te? Esta é uma sala de discussão e apoio a doentes com SIDA”
“És médico?”
A resposta foi um emoji sorridente.
“Não, sou apenas mais um que anda por aqui”
Diana procurava respostas, mas tinha receio de se revelar, medo de encarar o assunto como seu, como se isso fosse uma confirmação da doença que tinha esperança de não ter contraído.
“Tenho algumas dúvidas”, digitou para ele, “uma amiga minha está com receio de ter apanhado o vírus”.
“Uma amiga?”
“Sim”
“Este espaço é seguro, Diana. Podes falar livremente e colocar todas as tuas questões. Eu tentarei esclarecer-te acerca da doença”
Nesse momento, entraram mais pessoas na sala, novos utilizadores.
“Eu volto noutro dia”
“Espera”, leu ela no ecrã.
Emídio percebera que a presença de outros utilizadores reprimira Diana de prolongar o diálogo. Ele continuou a escrever e deu-lhe o endereço do seu perfil no Facebook para que ela o adicionasse e continuassem a conversar no Messenger com toda a privacidade. Diana jamais iria adicionar um desconhecido… Ele pareceu ler-lhe a mente.
“Não tenhas receio, não sou nenhum tarado. Chamo-me Emídio, tenho trinta anos e sou seropositivo, por isso, talvez consiga esclarecer as dúvidas da tua amiga”
Diana agradeceu e saiu da sala virtual.
Nos minutos que se seguiram, ficou a pensar naquilo.
Que tenho eu a perder?
Sim, queria manter tudo no anonimato. Adicioná-lo iria revelá‑la ao desconhecido. Porém, ele fora o primeiro a confiar, mostrando-lhe a sua identidade… Se calhar, era um perfil falso sem fotos e sem informação, uma armadilha, mais um gajo a querer foder, a querer fodê‑la.
No entanto, embalada pela curiosidade, Diana entrou no seu Facebook e procurou o perfil de Emídio. Para sua surpresa, tinha pouco de perfil falso, ou então, estava muito bem construído para enganar os outros. Diana viu um homem moreno, magro, algo abatido, mas sempre feliz nas fotos. O perfil já tinha muito tempo, havia publicações com vários anos. O lote de amigos era vasto, não era um daqueles perfis de gajo com centenas de gajas oferecidas no grupo de amigos. Tudo ali parecia normal e autêntico. Diana decidiu arriscar e mandou-lhe um pedido de amizade.