Já alguma vez olharam para o passado e recordaram aquele momento na vossa vida em que lhe podiam ter dado qualquer destino? Talvez não um momento exacto, mas uma época, uma idade em que o futuro era um caminho que poderia seguir qualquer direcção. Olharem para trás e pensarem que nesse tempo, ainda era possível ter feito isto ou aquilo? Poder decidir sem pensar nas responsabilidades que o avançar dos anos trazem, na falta de coragem para arriscar, nas amarras que já não temos força para soltar.
Eu tivera esse momento. Tivera essa época, apesar de não saber muito bem quando e o que mudaria ou se mudaria mesmo alguma coisa.
As ondas do mar batiam com ruído no manto de areia que se estendia ao longo da costa. O céu trouxera um aglomerado de nuvens matinais que transformaram o ambiente numa penumbra cinzenta, escondendo ao longe o horizonte numa espécie de nevoeiro.
O ambiente estava como a minha alma, turva e triste.
Sempre gostara de ir até ao areal observar o mar, sem tempo para permanecer ou partir. E preferia fazê-lo em épocas como aquela, em pleno Outono, quando não se vê quase ninguém por ali.
Estava triste, muito triste, pois perdera uma pessoa muito importante e sabia que a minha vida mudaria dali para a frente, pois nada voltaria ser como antes. O maldito cancro levara-me aquele que fora o meu melhor amigo em toda a minha existência, o meu tio, o homem que me criara.
Naquele dia, tinha eu pouco mais de vinte e dois anos, senti o vazio deixado pela sua ausência. O meu tio era irmão da minha avó materna, a qual nunca cheguei a conhecer, pois falecera ao dar à luz a minha mãe. Foram o meu tio e a minha tia quem educou a minha mãe, mas sentiam que tinham falhado por completo.
Pouco me lembro da minha mãe, apenas as fotos e os relatos que os meus tios partilhavam comigo. Tal como haviam feito com ela, também tiveram que tomar a seu cargo a minha educação, se bem que por razões diferentes.
A minha mãe não tinha juízo, acho que não se pode descrever de outra forma. Na década de setenta do século XX, em plena liberdade pós-revolucionária em Portugal, a sua juventude levou-a a todo o tipo de maluquice que envolvia drogas e sexo. À conta disso, engravidou duas vezes e duas vezes arranjou forma de fazer um aborto. Fê-los contra a vontade dos meus tios que, mesmo condenando-a por aquela vida, estavam dispostos a apoiá-la na maternidade.
Passou uns maus bocados devido aos abortos. Na altura, a interrupção voluntária de uma gravidez era crime e só se conseguia fazer ilegalmente em lugares escondidos por pessoas estranhas que ganhavam bom dinheiro com isso, indiferentes ao que pudesse acontecer às mulheres que as procuravam.
Quando a minha mãe engravidou uma terceira vez, essa foi a gota de água para o meus tios. Estavam fartos. Por isso, o meu tio disse-lhe que se ela fizesse um novo aborto a expulsava de casa. Porém, se ela tivesse a criança, eles iriam ajudar a criá-la e a educá-la. Esta é a minha primeira dívida de gratidão para com eles.
Não sei quem é o meu pai. Nem pretendo algum dia vir a saber. E com sinceridade concluo que é bem possível que nem a minha mãe soubesse.
Seja como for, eu cheguei então a este mundo num Domingo ao início da noite de um dos últimos dias de Verão daquele ano.
A razão pela qual tenho poucas ou nenhumas recordações da minha mãe foi porque ela nunca ultrapassou a depressão causada pela gravidez e pelo parto. Sentia que tudo aquilo era uma prisão, ser mãe era uma prisão. Já não podia fazer a vida desvairada habitual e vivia ressacada com a falta das drogas, uma vez que os meus tios controlavam-na de forma a que ela não tivesse acesso a elas. E por fim, a falta de sexo, o desinteresse que percebia nos homens por não quererem nada com uma mulher que tinha de apêndice um bebé nos braços.
Tal como decidira por duas vezes optar pela interrupção voluntária da gravidez, antes do meu primeiro aniversário, optou pela interrupção voluntária da própria vida. E teve sucesso.
Não vos vou dizer que os meus tios foram os pais que nunca tive. Não vos vou dizer isso porque o meu conceito de pai e mãe não fariam justiça a tudo o que o meu tio e a minha tia foram para mim ao longo dos anos.
Se não fora fácil educar a minha mãe, ter um bebé para criar quando se é quase sexagenário torna-se ainda mais complicado.
Seja como for, eles deram tudo por mim e tornaram-me na pessoa que sou. Também tive as minhas complicações, dei-lhes muitas dores de cabeça, mas soube absorver os seus conceitos, os seus princípios e sei que ambos se orgulhavam de mim.
As nossas vidas levaram um novo rombo quando eu tinha catorze anos. A minha tia tinha um histórico de problemas de coração. Chegou uma altura em que se tornou necessária uma intervenção cirúrgica. Segundo os médicos, apesar de ser uma operação delicada, não seria complicada e iria correr tudo bem. Acho que foi a partir desta data que deixei de acreditar no optimismo dos médicos.
A operação correu normalmente, mas o pós-operatório trouxe complicações. E a minha tia partiu...
O meu tio estava inconsolável por perder alguém com quem partilhara a vida ao longo de quase cinquenta anos. Foi ele quem me deu a notícia, numa postura segura, mas sem esconder que já chorara e que isso nada tinha de mal. Foi nos seus braços que eu próprio chorei a perda.
Incansável, jamais ponderou a hipótese de deixar de ser viúvo. Tomou para si a totalidade do encargo que eu representava, sempre com um sorriso nos lábios, pronto a suprir as minhas necessidades, atento a que eu não saísse da linha, intransigente a condenar-me cada vez que eu não me portava bem. O meu tio foi tio, pai, avô, irmão... Foi toda a minha família. E acima de tudo, foi amigo.
Naquela manhã, eu estava consciente que nada voltaria a ser como antes. O meu tio falecera vítima de um cancro que, apesar de operável com sucesso, os seus oitenta anos não conseguiram resistir. Estava sozinho, solitário, órfão...
O vento soprou um pouco mais forte. O mar embatia na costa arenosa, avançando e recuando. Percebi que as lágrimas me escorriam pela face. Não me importava que alguém me pudesse ver a chorar. O meu tio ensinara-me que chorar não é sinal de fraqueza, é demonstração de que temos sentimentos.
Iria regressar a casa, ao apartamento arrendado que fora o meu lar desde que nascera e o dos meus tios na maior parte da sua vida. Iria regressar a um espaço tremendamente vazio, um espaço onde somente eu passaria a viver. Já não haveria as manhãs a encontrar o meu tio na cozinha a comer as suas papas de pão e leite, não haveria uma face para dar um beijo, um sorriso a informar que o dia iria correr bem. Já não haveria a quem dizer "até logo" ao sair ou "olá" ao entrar em casa. Já não haveria conversas na sala a ver televisão, discussões saudáveis sobre futebol, relatos de mais um dia de acontecimentos supérfluos. Já não haveria nada, nem nada, nem mais nada. Nada de nada.
Duas gaivotas passaram a voar e foram aterrar no areal, a cerca de vinte metros de mim. Observavam-me como se não existisse. Naquelas ideias ridículas que usamos para tentar colmatar a perda, imaginei-as como sendo a reencarnação dos meus tios que ali andavam a voar à minha volta, continuando a velar por mim. Porém, como se adivinhassem o meu pensamento, as gaivotas indignaram-se e levantaram voo para longe.
Não sei quanto tempo permaneci ali. Sei que não se via vivalma, pois o clima não convidava a passeios na praia. Eu apenas me encontrava ali porque era um local que sempre me apaziguara nos momentos mais infelizes. Acho que aprendi isso com o meu tio, pois era por ali que me levava a passear depois de perder a minha tia, era ali que ele gostava que ficássemos a olhar o mar em silêncio. Lembro-me que certa vez me dissera "se um dia encontrares uma mulher que te ame como a tua tia me amou, vive cada segundo com ela como se fosse o último".
Para ser sincero, nunca pensei que pudesse encontrar alguém assim. O amor que os meus tios partilhavam era de tal forma forte que bastava ver como se olhavam para perceber o quanto se amavam. Mesmo casados várias décadas, sentia-se a paixão entre eles. Porém, se eu encontrasse alguém com quem partilhasse um décimo dessa paixão, já seria imensamente feliz.
Levantei-me da areia e sacudi as calças. Caminhei lentamente, regressando à estrada para regressar a casa. O autocarro ia quase vazio. Era um Sábado invernoso, pelo que aquela rota não tinha muitos passageiros. Ninguém se interessaria em ir para a praia, logo não havia gente a regressar dela. Aquele trajecto ligava a linha costeira de praias e a cidade de Almada, onde eu sempre vivera.
A paragem de autocarro ficava a cerca de trezentos metros da minha casa, um apartamento pequeno que os meus tios haviam arrendado desde que se casaram. Graças à sua antiguidade e ao facto de eu também ter vivido ali desde que nascera, tinha direito a ser o novo arrendatário com uma ligeira diferença de valor da renda. Como já trabalhava, essa despesa não trazia grande problema.
Enquanto caminhava pelo passeio, fui surpreendido por um gato. Já era adulto e tinha um pelo muito bonito tricolor em tons de amarelo, preto e cinza. Calculei que na minha passada seguinte, como qualquer gato de rua, ele desatasse a correr para longe. Porém, ao invés, ele aproximou-se mim.
Fingi que não o vi e prossegui o meu caminho. E ele gatinhou a meu lado, como se dissesse "espera aí, quero ir contigo". Notei que não deveria ser um gato de rua. Parecia bem tratado, apesar de magro. E o facto de se aproximar e quase pedir afecto, levou-me a crer que talvez tivesse sido abandonado por uma qualquer besta sem coração.
— Vai-te lá embora. Não tenho nada para ti. — disse-lhe ao alcançar a porta do meu prédio.
O gato ficou a olhar-me como se esperasse algo de mim.
Eu abri a porta e entrei, tendo o cuidado de não o deixar entrar para a escada. Fechei a porta de vidro e virei costas. Contudo, antes de alcançar o primeiro degrau, voltei a olhar para a porta. O gato sentara-se e ficara a olhar para mim. Tentei subir os degraus... mas não consegui.
Voltei atrás e abri a porta.
— Que se passa? Também ficaste sozinho?
O gato permaneceu sentado com os olhos postos em mim.
— Não sou grande companhia. No teu lugar ia procurar uma companhia melhor.
Ele limitava-se a olhar.
Eu abri mais a porta e dei espaço para que ele entrasse, dizendo:
— Anda. Queres vir comigo?
O gato levantou-se e gatinhou para dentro do prédio. Passou por mim, contornou-me e veio esfregar-se nas minhas pernas.
— Não achas um pouco cedo para demonstrações de carinho? — inquiri. — Mal nos conhecemos.
Subimos as escadas juntos, lado a lado, até à porta do apartamento. Mal a abri, ele entrou e começou a investigar tudo, todas as divisões, todos os cantos.
— Vê lá, não estragues nada.
Fui até à cozinha e preparei-lhe uma tigela de leite. Não tinha mais nada que lhe pudesse dar.
Quando viu a tigela, confirmei que estava faminto.
Enquanto ele se saciava, pensei como lhe haveria de chamar.
— Olha lá, como é que te chamas?
Ele ignorou-me, continuando a beber o leite.
— Deves ter nome. — continuei. — Mas, como te vou chamar? Não gostava que agora me começassem a chamar outro nome que não fosse Daniel. Por isso, como é que te chamas?
O gato olhou para mim e miou.
— Não. Não te vou chamar Miau.
De súbito, veio-me à cabeça aquela fantasia que tivera ao ver as gaivotas, que elas pudessem ser a reencarnação dos meus tios. Seria aquele gato a reencarnação do meu tio? Eu sei que a ideia é absurda. Porém, eu estava fragilizado pela perda e capaz de acreditar em absurdos.
— Não tenho como saber o teu nome. Mas, o que eu mais chamava aqui em casa antes... Antes do que aconteceu. O que eu mais chamava era "tio". Por isso, vou chamar-te Tio.
O gato voltou a miar.
— Não é negociável. Não te vou chamar Miau. Vou chamar-te Tio.
Quando se saciou, Tio gatinhou pela cozinha e aninhou-se a um canto, entre a parede e o móvel. Ficou a observar-me por alguns momentos, até começar a fechar os olhos. Pareceu-me que se sentia seguro e deixou-se repousar. Não faço a menor ideia do que ele deveria ter passado na rua, mas sendo um gato habituado a estar em casa, deve ter sido assustador.
Apesar de não falarmos a mesma língua, disse-lhe que ia sair para comprar algumas coisas para ele. Limitei a movimentação do gato pela casa, fechando a porta da cozinha, e saí do apartamento.
Nunca tivera um gato, aliás nunca tivera qualquer animal de estimação. Por isso, não tinha nada em casa para o Tio. Também não tinha muito dinheiro para gastar com ele.
Não havia lojas de animais por perto, mas a alguns quarteirões existia um hipermercado onde fazíamos compras periodicamente. Pela primeira vez, desde que lá ia, passei na secção para animais de estimação com atenção nas prateleiras. Comprei ração de gato, uma caixa e a areia para colocar nela.
Quando estava a regressar a casa, reparei numa clínica veterinária. Sim, talvez fosse melhor levar o Tio até lá para verificar se ele estava bem.
O gato adaptou-se ao novo espaço. Mais uma prova de que deveria ser um animal caseiro foi o facto de não ter feito nenhum xixi ou cocó enquanto eu fora às compras. Porém, mal instalei a caixa de areia na casa de banho e o chamei, ele apressou-se a aliviar-se. Escolhi uma tigela de plástico e coloquei-a no chão da cozinha, ao lado da que tivera o leite. Enchi-a com ração. No lugar onde ele se deitara, acomodei uma manta velha para lhe servir de cama.
O apartamento não era muito grande, uma cozinha, casa de banho, uma sala e dois quartos. Apenas o quarto do meu tio permanecia com a porta fechada, pois ainda era doloroso para mim lá entrar. Por isso, Tio circulava livremente por todo o lado, normalmente procurando os mesmos espaços em que eu estava.
Nessa noite, Tio ficou a miar quando não o deixei entrar no quarto. Não me agradava a ideia de ter um gato no quarto enquanto dormia. Contudo, o gato ficou a miar, não muito alto, mas suficientemente sofrido para que eu não conseguisse dormir. Levantei-me da cama e abri a porta.
— Chato! Podes entrar, mas não vais para a cama.
Mais valia ter-lhe dito para saltar para o colchão, pois ele entrou, saltou para a cama e aninhou-se ao fundo.
Naquela altura, eu tinha um horário laboral pouco comum, entrava ao serviço às três da tarde e saía à meia-noite. Por isso, as manhãs estavam sempre disponíveis para tratar de qualquer assunto que surgisse. E no primeiro dia útil após a chegada do meu convidado felino, aproveitei essa mesma manhã para o levar ao veterinário.
Como tinha receio do volume dos custos, optei por visitar a clínica primeiro, informar-me sobre os preços e disponibilidade para o gato ser observado. Os serviços funcionavam numa espécie de loja, ao nível do rés-do-chão do edifício, com o espaço bem aproveitado onde uma recepção e uma sala de espera eram os únicos espaços visíveis a quem entrava. Fui recebido por uma jovem simpática que me pôs a par do preço da consulta e dos eventuais adicionais dependendo das necessidades do bichano. Claro que quanto mais ela falava, mais eu me assustava, pensando se tinha um gato ou uma acompanhante de luxo. No fim, inquiriu-me se tinha como transportar o gato, se tinha uma caixa transportadora. Não tinha pensado nisso, nem tinha a caixa. Bastante solícita, emprestou-me uma caixa, uma espécie de jaula portátil, para que eu transportasse confortavelmente o meu novo amigo.
Cerca de uma hora depois, estava a ser recebido pelo médico veterinário no seu gabinete, um homem que aparentava ter uns quarenta anos e com apetência natural para lidar com animais.
— Está com sorte! — exclamou. — Ela está esterilizada.
— Ela?
— Sim, é uma gata.
— Pensei que fosse um gato.
— Não. Posso garantir-lhe que é uma gata. — Afastou o pelo da barriga. — E como pode ver aqui, tem a cicatriz da cirurgia de esterilização.
Bom, pelo menos não teria essa despesa de a esterilizar, conforme ele me havia recomendado antes de a observar. Porém, ainda estava um pouco estupefacto por o Tio afinal ser a Tio.
Claro que não lhe mudei o nome. Ou melhor, não mudei a forma como a chamava, já que o nome deveria ser um outro que eu jamais saberia, a menos que encontrasse os seus donos. E em relação a isso, deixei indicações para que, se alguém aparecesse a perguntar pela gata, poderiam dar o meu contacto.
Não vou fazer suspense sobre esta parte. Nunca surgiu ninguém a procurar a minha Tio. E ainda bem, pois a gata tornou-se peça fundamental no meu dia-a-dia.
A Tio dormia, como costume, no sofá, naquela manhã chuvosa. Sem qualquer compromisso que me obrigasse a sair, fiquei por casa a olhar para nenhures, vendo as gotas a embater no vidro.
Aqueles momentos eram veneno para a minha alma, pois rapidamente me deixava cair em recordações e a saudade atingia-me como uma bala perdida à qual eu fugia diariamente. Nunca ligava a televisão àquela hora e nem para me distrair o faria. Optei por sair da sala e ir ao meu quarto. Fui em busca de nada, esperançado que algo me afastasse das memórias. Olhei para a cama, para a janela, para as prateleiras com os livros que nunca gostei de ler... O som abafado das patas felinas avisaram-me que a gata acordara e viera no meu encalço, era a minha sombra.
Olhei para o velhinho computador que os meus tios me haviam comprado pouco antes de a minha tia partir.
Na adolescência, eu tinha duas grande paixões, a informática e a fotografia, sendo que a segunda surgira primeiro e me entusiasmara mais que os computadores.
O meu tio tinha uma máquina fotográfica, uma Canon AE1, que lhe fora oferecida por um amigo, antes de eu nascer, alguém que lha trouxera dos Estados Unidos. Os meus tios tinham alguns passatempos, mas a fotografia era-lhes completamente indiferente. Por isso, no meu décimo aniversário, quando me acharam com capacidade para mexer naquele aparelho, ofereceram-ma com o meu compromisso de que a estimaria. Eles não tinham noção do poder da máquina que ali tinham, e muito menos eu, na altura. A minha maior dificuldade era colocar o rolo no aparelho, o processo de puxar a ponta do rolo, prender no local especifico e enrolar ligeiramente até esticar e ficar pronta a fotografar. Foi o senhor da loja de fotografia do centro comercial em Almada que me explicou. Perante a incapacidade de me esclarecer, o meu tio levou-me lá com a máquina. O homem espantara-se por ver um miúdo tão novo com um aparelho daqueles, porém, teve a paciência de me explicar o funcionamento de forma geral. Eu aprendi depressa e à conta disso, muitas das fotos que existiam lá em casa tinham sido captadas por mim.
A informática foi diferente. Em miúdo, computadores para mim eram jogos. E no prédio onde vivíamos, habitava um rapaz alguns anos mais velho que eu, o qual tinha um famoso Spectrum 48k com muitos jogos. Apesar de ele me convidar muitas vezes para jogarmos, eu queria ter o meu próprio computador. Penitencio-me pelas muitas vezes em que aborreci os meus tios com pedidos para que me comprassem um computador igual, ao qual eles respondiam negativamente e eu amuava.
Se pudessem, eles dar-me-iam o mundo. Porém, a vida não era fácil e só um controlo orçamental muito apertado evitava que nos faltassem os bens essenciais.
Dei dois passos pelo quarto até ficar junto à mesa do computador. Aquele fora um presente do meu tio, comprado a prestações algum tempo após o falecimento da minha tia. Talvez o tivesse feito para me compensar pela perda, não como se um computador pudesse substituí-la, mas para me afastar da mágoa. Claro que, na altura, não era aquilo que eu queria. Para um puto de quase quinze anos, o computador era para jogar e aquilo não era um Spectrum...
Contudo, o meu tio fora bem claro na sua decisão, se eu queria um computador teria de ter mais utilidade que um mero aparelho de jogos. E, claro, mais uma vez ele tinha razão.
A escolha foi feita com base naquilo que o homem da loja nos vendeu, o conceito de um aparelho que me pudesse servir de apoio aos trabalhos da escola.
A Tio miou.
— Que queres?
Ela voltou a miar e saltou para cima da cama, aninhando-se nas almofadas.
Continuando... O computador, tal como a fotografia, acabaram por vir a ter um impacto decisivo na minha vida. Resisti à tentação de abrir algum dos álbuns que tinha junto dos livros que nunca li. A minha tia adorava ler e sempre tentara incutir-me esse gosto, oferecendo-me alguns livros. Fora das poucas coisas da minha educação em que não tivera sucesso.
— Sabes o que é que a minha tia me dizia? — disse em voz alta para a gata que me observava bem desperta. — Que a vida não é uma história, é um conjunto de contos onde somos personagem, contos que juntamos ao longo da vida.
Tio miou em resposta.
Sorri para a gata que me olhava como se percebesse o que eu dizia. E talvez percebesse...
Se assim era, se a vida eram conjuntos de contos, os que se seguem são alguns dos contos que compõem a minha vida...
CONTO I
O teu nome é Tânia.
E queria estar ao teu lado.
Eu era seguramente o rapaz mais desinteressante da escola. Tinha dezassete anos e estava no 11º ano. Nunca fora popular, pelo contrário, sempre fora o elo mais fraco nas turmas por onde passara, o tipo com quem todos gozam, o alvo das humilhações. Não tinha amigos e a minha única companhia era a solidão. Nunca gostei da escola e tinha vergonha que os meus tios fossem lá para falar com os professores nas reuniões de encarregados de educação. Os meus colegas tinham pais jovens ou relativamente jovens. Eu tinha um casal de tios com aspecto de avós. Sim, era injusto e estúpido da minha parte sentir vergonha de duas pessoas que me amavam incondicionalmente. Mas por alguma razão a adolescência é dos momentos mais parvos e absurdos da nossa vida.
As directoras das minhas turmas diziam sempre o mesmo sobre mim, sem nada a assinalar no comportamento, apenas muito tímido e fechado, pouco social, algo desatento e pouco interessado na escola.
Houve um momento, um curto momento, quando eu estava no 8º ano, após o falecimento da minha tia, em que pareceu existir uma trégua por parte dos "engraçadinhos" da turma. No entanto, tal como referi, fora uma trégua curta.
Quando penso em mim naqueles dezassete anos, gostaria de ter uma máquina do tempo que me permitisse viajar até essa época para contar a mim próprio que a vida tinha mais soluções e problemas que aquela vida escolar.
Porque é que estou a pegar naquela turma neste conto? Talvez porque tenha sido a mais marcante do meu calvário de estudante.
Eu vinha de um transição de ano escolar muito complicada com uma pauta de notas que me permitiu avançar mesmo no limite. Estivera quase a ficar retido no mesmo ano pela segunda vez.
Contudo, no início desse ano lectivo, soube que na minha escola secundária, uma outra turma do 11º ano, também de Humanidades, iria ter a disciplina de Informática. Bom, na época tinha um nome mais complexo que Informática, mas resumindo era isso. Como não morria de amores pela minha turma, tal como nunca morri de amores por nenhuma das anteriores desde a 1ª classe, pedi ao meu tio que concordasse com a transferência. O processo resolveu-se a tempo de eu integrar a nova turma antes do início das aulas.
A manhã apresentava-se bonita com um Sol brilhante de final de Verão. Caminhei para a escola envolto na fraca esperança que aquele ano escolar fosse diferente dos anteriores. Vestia uma t-shirt larga amarela, calças de ganga azul que pareciam ser dois números acima da minha medida e um blusão do mesmo material muito gasto. Nos pés, os velhinhos All-Stars pretos com aspecto de precisarem de reforma. Como já referi, eu era a imagem mais desinteressante que poderia existir de um rapaz de dezassete anos.
A minha roupa não era uma escolha minha. Apesar de não passarmos fome, eu e o meu tio vivíamos com muitas limitações. E comprar roupa, só a que fosse mesmo necessária. Muito do que eu vestia era trazido por uma amiga da minha falecida tia, a qual se mantinha como governanta numa casa de família muito rica. Eles deitavam fora roupa quase nova e a senhora trazia tudo o que podia para nós. Por isso, eu ir a uma loja comprar algo que gostasse estava fora de questão.
O acaso fez com que a primeira aula do primeiro dia de apresentação fosse Informática. Entrei na escola carregando aquela sensação de que todos olhavam para mim e comentavam o meu aspecto ou faziam comentários depreciativos acerca de mim. Reencontrava rostos conhecidos, muitos que preferiria esquecer, gente popular, rapazes que eram tudo o que eu desejava ser e raparigas que eu sonhava namorar.
Enquanto me dirigia para a sala marcada no horário, ecoou o toque de entrada. Constatei que em breve iria conhecer o novo antro de malvados onde teria de permanecer diariamente ao longo dos seguintes oito a nove meses.
Se já era complicado para mim inserir-me numa turma onde a maior parte dos elementos se via pela primeira vez naquele dia, entrar numa onde a quase totalidade já se conhecia do ano anterior era ainda pior. Naquela época, as novas turmas formavam-se no 1º, 5º, 7º, 9º e 10º ano. No 11º ano, a turma já se conhecia.
Eu não era o único elemento novo. Mais tarde vim a reparar que havia outro rapaz que era novo na turma e na escola. Porém, ao contrário de mim, era tão extrovertido que rapidamente se integrou.
Os olhares curiosos alvejaram-me. Quem é aquele tipo novo? Quem é o gordo? Quem é o marreco? Se estas perguntas existiram, eu não as ouvi, eram fruto da minha imaginação que sofria por antecipação. Era o tipo novo, não era gordo, mas a roupa dava essa ideia, e tinha tendência a curvar-me para a frente, resquícios do uso de mochila pesada no tempo do Ciclo Preparatório.
Naqueles tempos, já não usava mochila, limitando-me a carregar um caderno formato A5 pautado e os manuais das disciplinas que tivesse nos respectivos dias. Era suposto passar a limpo em casa tudo o que escrevesse no caderno, só que nunca o fiz.
A sala de Informática tinha as mesas dispostas em U e com vários computadores. Como deverão ter adivinhado, o número de aparelhos era inferior ao dos alunos. Estranho? Portugal, década de 90, o computador ainda é um bicho estranho.
Os alunos espalharam-se pelas mesas, agrupando-se em associações de amizade que viam os seus contratos renovados para a nova época escolar. Meio perdido, sentei-me na primeira cadeira, ficando logo na ponta do U mais próxima da porta.
Naquela época, não era comum que um adolescente tivesse computador em casa, porém já muitos miúdos e miúdas os tinham e por vezes já se ouvia alguns a falar em jogos de disquete (novidade relativamente aos jogos do Spectrum que vinham em cassetes iguais às de música). Curiosamente, aquela turma agrupou na sua quase totalidade alunos que nunca tiveram computador.
Não me recordo de todos o colegas que tive naquele ano, naquela turma. Houve personagens que se desvaneceram da minha memória da mesma forma que outros se gravaram nela para todo o sempre. O puto novo que viera doutra escola, não me recordo do nome. Só perdurou na lembrança por esse facto, ser novidade ali tal como eu.
Contudo, houve figuras inesquecíveis pelos melhores ou piores motivos. Recordo-me da Maria Inês, a crónica delegada de todas as turmas por onde passava, uma rapariga de dezasseis anos com ares de maria-rapaz, muito carismática e de personalidade muito forte. Havia quem lhe adivinhasse um futuro na política, era assertiva e defensora intransigente dos colegas nas reuniões com os professores. Nunca soube mais nada dela após a escola. Calculo que tivesse sido advogada, pois estudava afincadamente para isso e sei que entrou em Direito na Universidade de Lisboa.
A turma chegou a produzir uma deputada, a Francisca, também com dezasseis anos. Não era uma rapariga deslumbrante, cabelos negros compridos, rosto sorridente para os amigos e arrogante para a restante Humanidade, bajuladora dos professores e segura da sua inteligência. Ignorava-me a maior parte do tempo e amesquinhava-me no que sobrava. Era uma das melhores alunas da turma, sempre com excelentes notas. Participativa nas aulas, principalmente em Português e Filosofia, nunca deu sinais de vir a ter uma carreira na política. Tal como a Maria Inês, o seu objectivo era a advocacia. Mas, a Francisca de ambições políticas será um outro conto...
Em termos de notas, Alfredo rivalizava com ela. Magrinho e da minha idade, autêntico rato de biblioteca, usava óculos com lentes grossas e não era muito participativo nas aulas, preferindo deixar a sua marca para os momentos de receber testes e ouvirmos todos "muito bem, Alfredo, mais um 18". Também era um alvo fácil para os parvalhões da turma, só que ele demonstrava viver bem com isso e não lhe dava um décimo da importância que eu dava.
Por falar em parvalhões, destacavam-se o Tiago e o Dias. O primeiro era o quebra-corações das meninas. Alto, cabelo alourado pelo Sol e pela cera que usava na prancha de surf, desportista federado de trampolins, não demorou muito a fazer de mim o alvo de piadas e chacota. O seu melhor amigo, Dias, não era desportista nem surfista. Era o mais velho da turma com dezoito anos, perto dos dezanove, péssimo aluno, ar escanzelado... O que é que os unia? Os charros. Dias era uma espécie de dealer dentro da instituição. E quantas não foram as vezes em que ambos surgiam nas aulas completamente pedrados.
Para minha enorme surpresa, naquela primeira aula, percebi que fazia parte daquela turma uma rapariga chamada Tânia.
Tânia tinha a minha idade, uma rapariga de uma beleza deslumbrante. Não era a mais bonita da sala, era a mais bonita da escola. Cabelo louro comprido, olhos verdes, rosto de boneca, corpo elegante. Usualmente vestia calças de ganga ou saias compridas que acompanhava com camisas ou camisolas dependendo do clima. Tudo nela era elegância, tudo pensado para ser atraente, cativante. Sim, ela era a quebra-corações dos rapazes. Se alguém naquela sala alguma vez poderia ter hipóteses com ela, seria o Tiago. E ele tentou. Só que ela não lhe deu qualquer abertura. E se tinha namorado, ele não estudava na nossa escola.
Obviamente que eu já a conhecia de vista de anos anteriores. E vê-la no mesmo espaço que eu trazia a esperança absurda que poderia ter alguma hipótese de me aproximar dela. Claro que ela ignorava a minha presença. O máximo que obtinha de si era um riso de desdém quando eu era alvo de uma qualquer partida humilhante.
Tânia andava sempre rodeada das suas duas melhores amigas, a Raquel e a Sofia. Raquel era um ano mais nova. Baixinha, caracóis ruivos, rosto sorridente, fosse para cativar ou para desprezar, e corpo interessante. Aluna mediana, demasiado espampanante no vestuário, o que lhe valera duas chamadas de atenção por parte do Concelho Directivo por causa das saias demasiado curtas. Já a vira namorar com pelo menos meia dúzia de rapazes da escola e as línguas afiadas diziam que já não era virgem. Qualquer miúdo, incluindo eu, se babaria ao vê-la. Só que Raquel perdia muito da sua beleza devido à vulgaridade com que se apresentava. Sofia estava nos antípodas de Tânia, dezasseis anos, usava o cabelo louro escuro curto, mal penteado, o rosto redondo segurava um par de óculos castanhos e tinha excesso de peso. Não era simpática e vestia roupa que parecia ter dificuldade em segurar a sua massa corporal. Talvez estivesse errado, mas a sensação que me dava ao vê-las com Tânia era a de procurarem aproveitar o brilho desta para resplandecerem.
Como em qualquer aula inicial, a professora apresentou-se e depois fez a chamada, enunciando os nomes de todos. Tímido como era, encolhi-me instintivamente ao ouvir o meu nome.
De seguida, falou sobre a disciplina, dos objectivos e procurou conhecer os alunos e as suas capacidades informáticas.
— Algum de vocês tem algum conhecimento de computadores? Tem computador em casa?
Ninguém se manifestou até haver um otário que levantou o braço. O otário fui eu.
— Como te chamas?
— Daniel.
— Tens computador?
— Sim.
— Mas um computador de jogos ou um deste género? — questionou a professora apontando para um dos aparelhos.
— Estes também dão para jogar. — disse eu, procurando ser engraçado. Ninguém sorriu.
— Sim. — concordou ela com aborrecimento. — Mas, refiro-me a um computador onde podes escrever e imprimir, fazer contas...
— Tenho um computador deste género. — confirmei, travando a sua listagem de possibilidades que me estavam a fazer parecer um idiota.
A professora sorriu. Os meus colegas olhavam para mim com aquele desdém de quem me toma por um lambe-botas a tentar cair nas boas graças da docente.
— Talvez nos pudesses fazer uma demonstração. — sugeriu apontando para um dos computadores.
Merda, vociferei mentalmente. A última coisa que queria era ser o centro das atenções.
Nervoso, desloquei-me para o lugar que ela apontara, sentindo toda a turma a posicionar-se à minha volta. Tentei abstrair-me da sua presença e fiz uma demonstração daquilo que sabia. Claro que não era nada de especial, mas o suficiente para que a professora me valorizasse. Para quem vivia nas sombras, aquele fora um raro momento de orgulho para mim. Só Maria Inês e Alfredo é que percebiam que aquilo não era nada de mais. Ambos tinham computadores em casa, tal como eu. Só que a primeira não se deu ao trabalho de o dizer, adivinhando que a colocariam na minha posição, enquanto o segundo ficou calado, sabendo que quanto menos desse nas vistas melhor.
No que respeita à minha imagem perante os meus colegas, a maioria estava a borrifar-se para os meus conhecimentos. E Tiago aproveitou para passar a apelidar-me de "cromo".
Perante isto, o que terá acontecido para que este pedaço da minha vida se tornasse digno de ser contado?
A Informática era a minha melhor disciplina. Enquanto nas outras alternava entre 11 e 8 valores, exceptuando o 15 a Educação Física, ali eu tirara 18 valores no final do primeiro período. E a professora destacara-me a mim, à Maria Inês e ao Alfredo para dar apoio aos nossos colegas nas aulas, quando fosse necessário.
Em finais de Fevereiro, aconteceu o dia que não mudou a minha vida, apenas iniciou uma etapa que alteraria a forma como eu a encarava.
Lá fora chovia como se toda a água dos oceanos se abatesse sobre Almada. Como era habitual naquelas aulas, a turma agrupara-se em focos de dois ou três alunos junto a cada computador. Eu estava com o Alfredo, o qual encontrara em mim alguém como quem falar de programação, apesar de ele estar muito mais à frente que eu nesse campo de conhecimento.
Não vão estranhar que vos diga que os meus olhos estavam, sempre que possível, prostrados sobre a Tânia. Sim, era mais provável que passasse um porco a andar de bicicleta lá fora à chuva do que ela dirigir-me uma letra que fosse. Porém, isso não fazia com que vê-la deixasse de ser das raras motivações para que eu caminhasse para a escola diariamente.
Naquela manhã reparei no seu rosto fechado e triste, até com as amigas ela falara de forma atravessada, quando chegara. Notava-se que estava com um "humor de cão". Tânia, Raquel e Sofia juntaram-se no seu computador e ficaram a fingir que mexiam no aparelho, enquanto conversavam sobre o que provocara aquele estado de alma na amiga.
Ao aperceber-se disso, a professora chamou-as da sua secretária. Era suposto estarmos todos a criar um documento no processador de texto e elas não tinham sequer passado do início de sessão.
— Vocês ainda mal mexeram no teclado.
— Desculpe, stora! — pediu Tânia que era claramente a líder do trio.
— Só vos vejo na conversa.
Para se mostrarem mais empenhadas, viraram-se para o ecrã e começaram a manejar o rato. Não passaram dois minutos para que voltassem à tagarelice.
— Raquel! — chamou a professora, fazendo-a quase saltar da cadeira. — Vais para junto da Maria Inês e da Francisca.
Estas não ficaram nada agradadas por terem aquilo que elas consideravam ser uma "bimba" a perturbar o seu trabalho. Só que jamais o contestariam.
— Sofia! Tu vais para ali para o computador onde está o Alfredo e o Daniel.
Por momentos, pensámos que a professora iria deixar Tânia sozinha como castigo.
— Tânia! Não vejo sinais de melhoria ou vontade da tua parte em alterar o 9 que tiveste no período passado. — lembrou a docente, iniciando uma dura reprimenda à minha paixão platónica. — Quero que até ao final da aula me apresentes um texto de uma página escrita no programa que temos para o efeito (calculo que saibas a qual me refiro). O tema é à tua escolha.
Tânia fulminou a professora com o olhar. Percebi-lhe a raiva na expressão, não pela reprimenda, mas pela forma como falava com ela, como se não passasse de uma cara bonita sem cérebro.
— Sim, stora. — suspirou, desviando o olhar para o ecrã.
Não era preciso estar ao lado da rapariga para perceber que ela estava completamente às escuras sem saber onde carregar, onde escrever, o que abrir...
A professora tinha os olhos cravados nela, consciente das suas dificuldades e aguardando que Tânia se rendesse a um pedido de auxílio.
— Então, já encontraste o programa, Tânia?
A turma toda parara e observava a cena.
A rapariga deveria estar a arder de fúria, mas manteve-se forte, procurando vencer o desafio.
— Ó Daniel! — chamou-me. Os olhares viram-se todos, quase como se fosse um movimento combinado, cravando-se em mim. — Vai, por favor, para junto da tua colega e explica-lhe como é que deve fazer.
Deus existe, foi o meu primeiro pensamento. Do nada, surgia a oportunidade de me sentar junto da rapariga dos meus sonhos e interagir com ela, falar com ela... Bom, rapidamente me apercebi que talvez as coisas não fossem assim tão agradáveis. Senti o olhar ciumento de Tiago amaldiçoar-me e o semblante quase repugnado de Tânia por me ter perto.
Levantei-me do meu lugar e caminhei, qual condenado, até ao computador dela. Tânia afastou a cadeira, como se tivesse receio de ser tocada por qualquer movimento meu. Pensei o que deveria dizer-lhe, mas perante a dúvida fiquei calado. Ela nem olhou para mim. Sentei-me onde antes estivera uma das amigas. Nunca estivera tão perto de Tânia. Ela tinha um perfume adocicado, cheirava tão bem. Super nervoso, comecei a mexer no teclado.
— Daniel! — tornou a chamar a professora. — Não quero que faças as coisas, quero que lhe expliques.
Fiquei envergonhado, acho que o meu rosto ruborizou. Afastei instintivamente as mãos do teclado como se este queimasse. Desviei a cadeira e com um gesto da mão convidei Tânia a tomar o meu lugar nas teclas.
Nunca olhou para mim, desprezava-me por completo. Naquele momento, eu estava a ser uma espécie de carrasco às ordens da docente que, verdade seja dita, nunca simpatizara muito com a rapariga.
Na minha mente, a cena seria diferente. Eu levantar-me-ia e gritaria à professora que aquilo não era forma de falar com a rapariga por quem eu estava apaixonado. E a outra responderia que eu tinha razão e pediria desculpa. E Tânia olhar-me-ia apaixonada...
— O que é que eu faço? — perguntou, despertando-me dos meus delírios.
Comecei a dar-lhe indicações, esforçando-me por não denunciar como estava nervoso. Eu era tão tímido...
Ela foi seguindo as indicações e os nossos colegas perderam o interesse em nós, excepto Tiago que nos observava aos risos, fazendo comentários ao amigo Dias, gozando com o facto de eu estar ali.
— Que merda quer esta cabra que eu escreva? — interrogou Tânia, entre dentes, para ninguém.
— Escreve sobre os teus sonhos. — respondi num impulso.
Tânia sorriu como se eu tivesse dito algo absurdo.
— Sim, vou escrever sobre o que sonhei esta noite. — concordou com ironia. — Bela ideia, cromo.
Eu odiava que me chamassem "cromo". Fora Tiago o "padrinho" daquela alcunha que muitos usavam para me gozar. E talvez por odiar tanto que me apelidassem daquela forma, perdi parte do nervosismo e retorqui:
— Referia-me aos teus objectivos no futuro, aquilo que gostarias de ser.
A forma como eu o dissera, apesar de não ter sido intencional, fê-la parecer estúpida na sua ironia, pois não percebera a sugestão à primeira.
— Não me parece que venha a ser aquilo que sonhava. — ripostou com uma mágoa mal disfarçada.
Se eu tivesse pensado ou planeado o que dizer a seguir, não teria dito:
— É por isso que estás tão triste, hoje?
Foi a primeira vez que olhou para mim. Virou a cabeça na minha direcção e encarou-me com uma mistura de surpresa e desagrado.
— Tu conheces-me de algum lado para saber quando estou triste ou contente?
Não sabia como responder, nem tivera tempo, pois a professora interveio:
— Ó Daniel, não te mandei para aí para agora estares à conversa com a menina Tânia.
A nossa parca troca de palavras era feita num tom baixo, mas a docente estava de vigia e a controlar-nos, daí o aviso.
Novamente, senti-me envergonhado e ruborizado perante o olhar crítico e jocoso dos meus colegas. Tentei abstrair-me disso e sugeri:
— Escreve então sobre o que te leva a crer que não irás concretizar os teus sonhos.
O seu olhar estava outra vez no ecrã.
— Não me parece que seja algo que me apeteça partilhar contigo ou com aquela cabra.
— Tudo bem. — concordei, vencido. — Escreve sobre o que quiseres. Eu estou aqui, se precisares que te explique alguma coisa.
Tânia começou a escrever. Iniciava uma frase, apagava, voltava a teclar, apagava, nova tentativa... Por fim, escreveu:
"Ontem ressebi uma carta"
— Recebi é com "c", não com dois "s". — corrigi, recebendo em troca um bufar irritado.
— Estás a ler o que estou a escrever? — questionou.
— Queres que me vire de costas?
Ela não respondeu, mas exigiu:
— Pelo menos, evita os comentários. Eu sei que se escreve com "c", só me enganei.
Encolhi os ombros e mantive-me em silêncio, a ver a sua escrita.
"Ontem recebi uma carta que me matou. Não me matou fisicamente, mas matou-me o sonho. Sempre sonhei ser..."
Parou de escrever. Durante alguns segundos, ficou estática a olhar para o ecrã. Por fim, apagou tudo novamente, dizendo:
— Não, não vou partilhar isto convosco.
Ficámos imóveis. Eu à espera do que ela iria fazer. Ela a tentar decidir-se a escrever algo.
De súbito, levei os dedos ao teclado.
"Não sei qual é o teu sonho, mas não acredito que uma só carta o possa ter morto."
Aguardei uma reacção agressiva, uma resposta brusca, o tom de desdém, a ironia...
Para minha surpresa, Tânia substituiu-me no teclado:
"Podes acreditar. Matou."
"Ninguém mata os sonhos de uma rapariga bonita.", escrevi.
Sem a conseguir encarar, percebi a sua hesitação. Eu seria incapaz de verbalizar o que acabara de escrever. A resposta foi ponderada e os seus belos dedos de unhas pintadas de rosa voltaram a fustigar as teclas:
"É fácil matar os sonhos de uma rapariga de dezassete anos que sonha ser modelo."
Não sabia o que haveria de argumentar. Queria ter a inspiração de escrever algo que a animasse e me fizesse ganhar pontos na sua consideração. Porém, não tive tempo. A atenção de Tânia desviou-se subitamente para a outra extremidade da sala, onde a nossa professora se encaminhava na nossa direcção. Num movimento relâmpago, Tânia pressionou violentamente a tecla "delete" e apagou tudo o que havíamos escrito.
Quando alcançou o nosso computador, a docente olhou com irritação para o ecrã que apresentava um documento de processador de texto completamente vazio.
— Já era de esperar... — suspirou, agastada.
Nesse instante, ecoou por toda a escola o toque de saída.
— Vocês os dois esperam! — ordenou. — Quero falar convosco.
Toda a turma abandonou a sala, observando-nos e conjecturando o que se sucederia a seguir. Quando todos saíram, Tânia antecipou-se:
— Ó stora, eu tentei escrever alguma coisa, mas não me saiu nada de jeito. — Apontou para mim. — Ele viu.
— Sim, é verdade. — concordei, qual cachorrinho a quem só faltou abanar a cauda.
— E era sobre o quê, aquilo que tentaste escrever?
Tânia hesitou, gaguejou...
— Acho que tu não tens noção do que está aqui em causa. — prosseguiu a mais velha. — Não tens noção que assim terás negativa no final do período e no final do ano. E se tiveres mais duas negativas, chumbas o ano. — O tom tornou-se algo escarninho. — E não me parece que essa seja uma possibilidade muito remota, pois não?
Tânia não respondeu. Tal como eu, era uma aluna mediana, safava-se bem a Português, Inglês, Francês e Filosofia, mas em História e Geografia as notas estavam abaixo da linha de satisfação. E essas duas com aquela iriam certamente retê-la no 11º ano, pois não estava a ver a professora de Informática a dar-lhe nota positiva se ela não demonstrasse mesmo que a merecia.
— Tânia! Se não queres comprometer de forma decisiva a tua nota nesta disciplina, espero que na próxima semana me tragas um texto escrito num processador de texto e mo entregues gravado numa disquete.
— Mas, stora, eu não tenho computador. — lamentou-se num tom suplicante.
— Eu tenho. Posso ajudar-te. — ofereci-me, pensando que isso me atribuiria um papel heróico. Errado!
Tânia atirou-me um olhar fulminante como um raio que, se pudesse, me teria feito em pó. Ela não queria ajuda, queria uma razão para não fazer o trabalho. E eu tirara-lhe o argumento chave.
— Estás a ver? O teu colega ajuda-te. — Olhou para mim. — E espero que ajudes mesmo. Estou muito desapontada contigo, Daniel. Mandei-te para ali para ajudares a tua colega e no final, ela é que te desencaminhou.
Obrigado, stora, o que eu precisava agora era de uma reprimenda na frente da miúda mais gira da escola. Ainda para mais, fazendo-me passar de menino da professora para cachorrinho da menina bonita.
— Podem ir!
Tânia levantou-se como se a cadeira tivesse uma mola, pegou na sua mochila e abandonou a sala. Entretanto, eu fui buscar o meu caderno e os livros das disciplinas dessa manhã e também saí.
Para minha surpresa, Tânia esperava-me no corredor.
— Obrigadinho, cromo! Eu a tentar arranjar uma desculpa para não fazer o trabalho e vens tu armado em salvador com essa proposta de usar a merda do teu computador.
A professora saiu da sala e fechou a porta. Passou por nós com os olhos em Tânia e despediu-se:
— Cá espero a tua disquete para a semana.
Quando a docente se afastou, Tânia encarou-me de uma forma menos agressiva.
— Estava a pensar... Tu podias fazer tudo e depois davas-me a disquete para entregar à professora. — Lançou-me um olhar de charme. — Ia ficar-te muito agradecida.
Tive vontade de perguntar como me iria ela agradecer. E quase o fiz, não fosse ela ter insistido:
— Vá lá, cromo.
— Não! — exclamei, debatendo-me comigo próprio. — Posso ajudar-te, mas não farei o trabalho por ti.
Ela soltou um esgar de fúria.
— Que propões então?
Eu sabia o que poderia propor, mas engasguei-me todo para o verbalizar. Não tinha coragem para o dizer, receando que ela me gozasse por sugerir semelhante ideia.
— Então, cromo? Como pretendes ajudar-me? — insistiu.
— Podemos combinar em minha casa. — respondi, sem respirar. — No fim de semana?
Tânia olhou-me como se lhe tivesse acabado de propor que ela entrasse num curral para ver o porco. O seu rosto contorceu-se com tal hipótese. Virou-me as costas e caminhou furiosa pelo corredor até desaparecer.
Hoje, quando penso naquela aula, naquela troca de frases no processador de texto, pergunto-me se não teríamos sido os precursores das mensagens de telemóvel ou das conversas online que se tornariam tão comuns, anos mais tarde.
Tânia não me dirigiu a palavra no resto da semana, ignorando-me por completo. De tal forma que o assunto foi arquivado na minha mente. Não sabia como iria ela resolver o problema, talvez encontrasse um amigo que a ajudasse ou conseguisse convencer algum ostracizado como eu a fazer o trabalho por ela. Fosse como fosse, não era problema meu.
Na Sexta, após a última aula do dia, que acontecia a meio da tarde, a minha caminhada pelo corredor foi travada por uma voz a chamar:
— Ó cromo!
Sofia gritara suficientemente alto para que todos ouvissem, provocando gargalhadas em muitos dos estudantes que se movimentavam por ali. Pensei em não parar, mas sabia que isso só serviria para que ela continuasse a gritar e a envergonhar-me.
Tiago passou por mim e no seu tom jocoso habitual disse:
— Vem aí o fim de semana, crominho. Dois dias para brincar com o computadorzinho.
Ignorei-o.
Entretanto, Sofia e Raquel pararam junto a mim.
— A Tânia quer falar contigo! Espera aqui por ela! — transmitiu a primeira, falando como se eu não passasse de um escravo de sua senhoria.
Não esperaram qualquer resposta da minha parte e foram embora.
Tânia foi a última a sair da sala. Atrasara-se propositadamente para evitar ao máximo que alguém testemunhasse o facto de ela falar comigo. Talvez não o falar comigo, mas sim o assunto em questão. Quando foi ao meu encontro, o corredor estava vazio. Olhou-me com enfado, demonstrando que aquilo seria a última coisa que lhe apetecia fazer.
— Pensaste na minha proposta? — questionou, deixando-me confuso.
— Que proposta?
— Bolas, és mesmo lerdo.
Ai, Daniel, quem me dera naquela altura saber o que sei hoje. Teria barafustado com ela por me falar naquele tom, dava-lhe um beijo na boca e ia embora dizendo "desemerda-te".
Porém, eu era tímido e estava apaixonado por uma rapariga que jamais poderia alcançar.
— Desculpa, mas não me recordo da proposta que falas.
Tânia suspirou de aborrecimento.
— Tu fazes o trabalho e depois entregas-me a disquete, lembras-te? E eu ficava-te eternamente agradecida.
Sorri com tristeza.
— O que significa isso de "eternamente agradecida"?
Foi a vez de ela parecer confusa.
— Como assim?
— De que me serve a tua eterna gratidão?
Ela não soube o que responder e alterou o rumo da conversa:
— Como é? Posso contar contigo?
— Já te tinha dito que não.
A irritação dela foi crescendo, de tal forma que cheguei a recear que me fosse dar um estalo. Deu um berro que ecoou pelo corredor vazio. Uma funcionária veio espreitar.
— Eh! Meninos! Não podem estar aí.
Não era permitido permanecer nos corredores.
Tânia ignorou-a.
— Aquela puta de Informática quer lixar-me a vida. — vociferou. — E tu não és capaz de me ajudar.
— Já te disse que te ajudava a fazer o trabalho. Mas não o farei por ti.
Ela virou-me as costas. Bateu com o pé no chão. Fiquei a contemplá-la, atormentado pelo desejo, dilacerado pela certeza que ela nunca seria minha. Tornou a voltar-se, quase apanhando-me a olhar para o seu rabo.
— Parece que não me livro de ter de ir a tua casa fazer o trabalho. Onde vives? — questionou com brusquidão.
Expliquei-lhe onde era a minha casa.
— Não fica longe da minha.
— Se quiseres, podemos combinar amanhã de manhã.
— Esquece! — exclamou, abanando a cabeça. — Vou sair com as minhas amigas esta noite. A manhã é para dormir. Passo lá depois do almoço.
Não perdeu tempo com mais uma sílaba que fosse.
Recordo-me que nessa noite quase não dormi, ansioso pela visita dela na tarde seguinte. Aquilo parecia um sonho que poderia facilmente tornar-se um pesadelo. Comecei a pensar no que ela acharia da minha casa, das minhas coisas, de eu viver com o meu tio velho, no que ela poderia pegar para fazer chacota no regresso à escola. Se calhar, aquilo fora uma péssima ideia.
O "depois do almoço" de Tânia foram as quatro da tarde, altura em que todo eu estremeci ao ouvir a campainha da porta. Na rua, o Sol brilhava intensamente, enganando a sensação fria da temperatura. Saí do quarto, onde estivera a preparar o computador e caminhei para a porta como um condenado. Carreguei no botão para abrir a porta do prédio e abri a de casa. Ouvi os passos nas escadas, o som da borracha das sapatilhas a chiar no mármore.
Há coisas que nunca esquecemos. A imagem de Tânia naquela tarde perduraria para sempre na minha memória. Vestia calças de ganga e uma camisola de lã grossa escura, por baixo do blusão de cabedal. O cabelo louro vinha preso num rabo-de-cavalo na nuca e, ao contrário do que acontecia na escola, não se maquilhara. Vinha a mascar pastilha elástica.
— Olá! — cumprimentou num tom neutro.
— Ol... Olá! — retribuí, nervoso.
Ela entrou no exacto momento em que o meu tio saiu da sala. Ele sorriu e dirigiu-se-lhe:
— Olá! Deves ser a amiga do meu sobrinho. — Olhou para mim. — Não me tinhas dito que a tua amiga era tão bonita.
Obrigado, tio, se já estava acanhado, depois disso queria um buraco onde me enterrar.
Curiosamente, Tânia sorriu.
— Eu sou o tio do Daniel. — apresentou-se. — Fica à vontade. — E afastou-se para a cozinha.
Conduzi Tânia até ao meu quarto, pedindo a todos os santinhos que ela não visse nada que me pudesse envergonhar. Apontei-lhe a cadeira, em frente ao aparelho.
— Já liguei o computador. — expliquei sem necessidade.
Tânia olhava em redor, escrutinando tudo o que nos envolvia. Despiu o casaco e colocou-o nas costas da cadeira.
— O teu tio vive cá em casa? — questionou, sentando-se.
— A casa é dele. — respondi automaticamente.
— E os teus pais?
Respirei fundo, não queria tocar naquele assunto. Fingi não ter ouvido e sentei-me na cama. Ela voltou-se e esperou uma resposta.
— A minha mãe morreu quando eu tinha meses. Nunca conheci o meu pai.
Partilhei a informação quase sem respirar. Passados dezassete anos, ainda era doloroso falar daquilo.
Tânia observou-me com um semblante diferente.
Não, pensei, por amor de Deus não tenhas pena de mim.
— Foi o teu tio que te criou?
— Com a minha tia. — adicionei.
— Então vives com os teus tios?!
Anuí, rectificando:
— Com o meu tio. A minha tia faleceu há três anos.
— Lamento! — disse intensificando o semblante.
Fod... Está mesmo com pena de mim.
Sem perder tempo, voltou-se para o ecrã. Eu tinha deixado o processador de texto aberto com um documento novo, por isso, ela poderia começar quando quisesse.
— O teu tio é simpático. — elogiou, possivelmente com a intenção de apaziguar o assunto.
Murmurei uma concordância entre dentes.
— Já pensaste o que vais escrever? — perguntei para as costas dela.
— Talvez algo sobre moda.
— Não será então sobre os sonhos.
Ela não se manifestou e começou a escrever.
Percebi que era mais fácil falar para as costas dela que encarar-lhe o olhar, quase tão fácil como escrever no computador, como fizéramos na aula.
— Lamento que tenham ferido o teu sonho. — continuei. — Posso saber o que aconteceu?
— Não tens nada com isso. — foi a resposta pronta.
— Sim, tens razão. Não tenho nada com isso. Mas, pelo que pude perceber, se o teu sonho é ser modelo, deves ter recebido uma carta de alguma agência a recusar-te.
Ela voltou-se abruptamente.
— Sim, foi isso. Estás contente? Agora já podes ir para a escola espalhar a notícia. Juntas uns tantos cromos como tu e fazem piadas acerca disso.
Olhei para ela, sério.
— Lamento que me vejas assim ou que me imagines capaz de fazer isso.
Tânia percebeu que estava a ser injusta, mas longe de se achar na necessidade de pedir desculpa. Voltou-se e regressou à escrita.
— Pensa que te feriram o sonho, não o mataram.
— Sim, sim... — murmurou na esperança que me calasse.
— Todos nós temos os nossos sonhos, não podemos desistir deles na primeira contrariedade. — Dei por mim a falar como se imaginasse o diálogo com ela, como tantas vezes fizera na solidão daquele mesmo quarto. — Eu também tenho os meus sonhos e continuo a acreditar que se irão realizar. Afinal, se não acreditarmos neles, quem acreditará?
— E que sonhos são esses? — interrogou, mantendo a atenção na escrita.
— Sei lá... — respondi. Depois, vá lá saber porquê, enchi-me de coragem. — Conseguir roubar um beijo à rapariga mais bonita da escola.
Ela parou de escrever e encarou-me, sorrindo como se tivesse ouvido um enorme absurdo e atirou:
— In your dreams. Jamais, cromo.
E virou-me as costas.
Que esperava eu? Que por a estar a ajudar, isso a faria interessar-se por mim? Contudo, não sei o que me deu na cabeça e prossegui:
— Na verdade, não queria roubar-lhe um beijo. O meu sonho era que gostasse de mim.
— In your dreams. — Desta vez nem se deu ao trabalho de se voltar.
— Achas que estou a falar de ti?
— Claro que estás.
— Tens-te em muito boa conta para quem se deixa abater tão facilmente nos sonhos que tem.
Como raio é que aquela frase me saiu da boca? Jamais em tempo algum eu teria coragem de verbalizar-lhe algo semelhante. Porém, como referi, era fácil falar-lhe para as costas e estava no meu ambiente, no lugar onde tantas vezes a imaginara comigo.
A Tânia a que eu estava habituado, a Tânia da escola, desancar-me-ia pela afronta daquelas palavras. Porém, para minha surpresa, ela prosseguiu o bater no teclado.
— Sim... Talvez tenhas razão.
Fiquei em silêncio. No quarto só se ouvia o som dos seus dedos a bater nas teclas. O meu tio passou no corredor e parou junto à porta aberta.
— Querem lanchar alguma coisa?
Abanei a cabeça.
— Não, obrigado. — recusou ela com o sorriso que nunca partilhava comigo.
Passados alguns minutos, parou de escrever. Levantou-se da cadeira e olhou-me com frieza.
— Acabei. Podes gravar numa disquete?
Não me mexi, encarando-lhe o olhar frio e desdenhoso.
— Quantas agências de modelos existem? — perguntei com naturalidade.
— Muitas. — respondeu ela, impaciente.
— Quantas te recusaram?
Tânia pareceu não perceber a questão, mas acabou por dizer:
— Uma.
Sorri.
— Percebes agora porque digo que não te mataram o sonho?
Atenção, registem o momento, gravem-no nos livros de História, os relógios marcavam dezoito horas e quarenta e um minutos de um sábado de Inverno. Tânia sorriu-me pela primeira vez.
Voltando a cadeira para mim, Tânia tornou a sentar-se. Ajeitou o cabelo, esticando o rabo-de-cavalo..
— Nem sei bem porque escrevi para a agência... Bom, sei, queria ser modelo, óbvio. Mas, não tinha planeado fazê-lo agora, nem tinha ideia de quando o faria ou até se o faria. A oportunidade surgiu porque a Raquel viu um anúncio numa revista... Procuravam candidatas a modelo. As interessadas deveriam enviar uma carta de apresentação e meia dúzia de fotos. Tanto ela como a Sofia não me largavam: "És a rapariga mais bonita da escola", diziam, "Mal te vejam, vão escolher-te". Deixei-me levar... Escrevi uma ridícula apresentação numa folha do caderno de português e arranjei umas fotos que tinha das férias. — Fez uma pausa, abanando a cabeça. — No início da semana, recebi uma carta deles, a agradecer a candidatura, mas que não reunia os atributos que eles procuravam. — Sorriu um sorriso vencido e encolheu os ombros.
— Tenta novamente. — sugeri. — Tenta noutras agências. Podemos fazer a tua carta de apresentação no computador.
Tânia não pareceu muito entusiasmada.
— Não tenho mais fotos e aquelas que mandei também não eram nada de especial.
— Eu tenho máquina fotográfica, posso fazer-te as fotos.
Ela ponderou a questão.
— Não tens nada a perder. — insisti.
Olhando para o relógio, decidiu:
— Posso aproveitar o teu computador e fazer a carta de apresentação. Depois, logo se vê.
Trocámos de lugar. Arranjei-lhe uma disquete e guardei o ficheiro que ela deveria entregar à professora. A seguir, como tinha mais prática, fiquei aos comandos do computador e, juntos, escrevemos a carta de apresentação com a informação que as agências pediam e que ela decorara.
Mal terminámos, o meu tio surgiu à porta do quarto.
— Queres jantar cá connosco? — convidou.
— Obrigado. — agradeceu com uma simpatia que não lhe conhecia. — Mas os meus pais estão à minha espera para jantar.
— Vives longe? — indagou ele.
— Duas ruas abaixo.
O meu tio olhou para mim.
— Vais acompanhar a tua amiga a casa? Já é noite.
— Não é necessário — recusou ela, sempre sorridente com o meu tio. Fiquei com a clara noção que simpatizara com ele.
— Daniel, sê cavalheiro. — ordenou-me.
— Sim, claro. — concordei, procurando o meu casaco roçado.
Nesse momento, apercebi-me da carta terminada no computador.
— Eu guardo a apresentação, vou ver se te imprimo alguma cópias.
Ela anuiu.
Fizemos o trajecto pela rua deserta em silêncio. Parecia que todos os assuntos se haviam esgotado entre nós. Não sei se lhe agradara que a tivesse acompanhado ou se aceitara só para não ser inconveniente com o meu tio. Não tinha ilusões, sabia que ela não gostava de ser vista comigo. E apesar de pouco provável, poderíamos cruzar-nos com alguém da escola.
Tânia vivia numa rua de prédios baixos, não mais que três pisos. A zona era conhecida pelas casas ricas e por lá viverem pessoas de estrato social mais elevado que o meu. Soube mais tarde que a mãe dela era advogada e o pai piloto da TAP.
Quando alcançámos a porta do seu prédio, senti que infelizmente o meu momento com ela terminara.
— Chegámos. — disse ela. — Obrigado pela ajuda com o trabalho.
— Ainda bem que pude ajudar. — retorqui. — Depois entrego-te as impressões para enviares para as agências.
Ela assentiu descrente. Depois, pareceu lembrar-se de algo e pediu-me para esperar um pouco. Vi-a entrar no prédio e desaparecer na subida dos degraus. Só esperava que não fosse uma partida parva para me deixar ali especado até ter percebido que ela não voltaria.
Voltou e trazia na mão um envelope. A noite já caíra por completo, mas o candeeiro de rua defronte do prédio tinha luz suficiente para ver o que ela me queria mostrar. Trazia a folha manuscrita que enviara e as fotos que a mostravam.
— Foi isto que enviei.
Observei tudo com atenção.
— Não fiques chateada comigo, mas vou ser sincero.
— Diz.
— Estas fotos nunca te levarão a lugar nenhum. — opinei, aguardando a sua fúria. Ela permaneceu atenta. — As agências esperam receber fotos de alguém que demonstre interesse pela moda. Nestas fotos, és apenas uma miúda a divertir-se na férias.
Seria desta que iria levar um estalo?
— Talvez tenhas razão. — concordou. — Sim, pareço tudo menos alguém que pretende entrar no mundo da moda.
— Se quiseres, eu faço-te as fotos. — ofereci.
— Não achas melhor ir a um fotógrafo profissional? — interrogou, desdenhosa.
— Custa dinheiro. — lembrei.
— E então? Se queres bem feito...
— Como queiras. — cedi. — Mas, se eu as fizer e ficarem bem, poupas esse dinheiro. — Ela ponderou a hipótese. — Não precisa de ser nada do outro mundo. Podemos ir ao jardim, fazes umas poses como as que vês nas revistas de moda e pronto.
— Quando é que o poderíamos fazer?
— Não sei... Amanhã à tarde?
— Sim. Podemos encontrar-nos no jardim lá em baixo?
Assenti, entregando-lhe o envelope com a folha e as fotos.
— Está combinado. Até amanhã.
E com aquelas palavras afastou-se e desapareceu no interior do prédio sem olhar para trás.
Nunca rezei tanto na vida para que não chovesse naquele Domingo. Só que, quando me apercebi que iria estar uma tarde radiante e solarenga, atemorizei-me com a falta de confiança em mim para fazer as fotos.
O meu tio dera-me a máquina fotográfica porque nunca se interessara por aquilo. Inicialmente, quando o amigo lha oferecera, ele tentara vendê-la, uma vez que o dinheiro que ela rendesse seria certamente mais útil que o aparelho. Contudo, as lojas não se interessavam por material em segunda mão e ainda não existia Internet para publicar anúncios a vender coisas. Sim, havia os classificados dos jornais, mas custavam dinheiro. Sendo assim, a máquina acabou por ficar esquecida até se tornar num presente para mim.
Eu sempre tivera interesse por fotografia, mas só na adolescência é que esse interesse se intensificou. Enquanto os outros miúdos pediam dinheiro para banda desenhada, eu pedia revistas sobre o tema. E não eram baratas, daí que não tivesse muitas. Procurei apurar a minha técnica com o que ia lendo e com o que o senhor da loja de fotografia me explicava. Mesmo assim, cheguei a ter rolos fotográficos completos a seguir directos ao caixote do lixo. Pois, naquele tempo, não existiam máquinas digitais com pré-visualização de fotos e cartões de memória... A malta que nasceu no século XXI não faz ideia do que era viver nos idos tempos de mil novecentos e qualquer coisa.
Seria capaz de fazer fotos decentes? Estaria tão nervoso que nem o automático da máquina me safaria? Tremeria de tal forma que as fotos sairiam todas desfocadas?
Saí de casa carregado de incertezas e nervoso como nunca estivera. A juntar ao facto de raramente passear pela rua, só mesmo para ir à loja de fotografia, sabia que estava a caminho de me encontrar com a rapariga que me tirava o sono ou entrava nele. Sabia que se tudo corresse bem, talvez existisse a mínima possibilidade de Tânia me ver com outros olhos. Mas se corresse mal... Bom, não se adivinhariam dias muito alegres.
O jardim ficava a cerca de vinte minutos da minha casa, indo a pé. Não era muito grande, cercado por cedros baixos e árvores altas onde os pássaros se acomodavam a chilrear. Como não tinha flash para a máquina, as fotos teriam de ser feitas aproveitando o máximo da claridade da tarde, evitando as sombras das árvores.
Não tínhamos combinado um local específico no jardim. Optei por ficar sentado num dos bancos e aguardar que ela aparecesse. Também não tínhamos combinado a hora... Dei por mim a concluir que era péssimo a marcar encontros.
Tânia apareceu dez minutos depois. Reconheci-a logo que atravessou a rua e se dirigiu à entrada que cortava o cedros. Acenei-lhe, mas ela ignorou-me, já me tinha visto e não precisava de fazer alarido disso.
Enquanto se aproximava na minha direcção, contemplei-a. Caminhava com uma elegância natural, como se desfilasse. O cabelo solto esvoaçava ao sabor da brisa, o rosto parcialmente escondido pelos óculos escuros. Vestia o casaco de cabedal sobre uma camisola de malha bege que lhe acentuava o peito, a saia era curta e preta, as pernas protegidas por meias de lã que surgiam por baixo da saia e desapareciam dentro das botas de cano alto.
Podem imaginar como eu me sentia um maltrapilho a seu lado, envergando as gangas largas e roçadas, a camisola de lã que em tempos fora do meu tio...
— Olá! — cumprimentou num tom distante.
— Olá!
Tânia olhou à volta, não sei se para escolher um cenário ou preocupada que algum conhecido a visse comigo.
— Então, onde vai ser?
Apontei para a clareira do jardim, onde o Sol incidia com intensidade. Ela não esperou por mim e passeou pela relva até lá. Eu segui-a.
— Está bem aqui?
Assenti.
Ela despiu o casaco e pousou-o no chão. Como o vento teimava em despenteá-la, retirou um elástico do bolso e prendeu o cabelo num rabo-de-cavalo. Retirou os óculos, inquirindo:
— Alguma sugestão?
Encolhi os ombros, obtendo dela um abanar de cabeça desapontada. Acabei por sugerir que ela fizesse poses semelhantes às modelos que víamos na televisão. Ela teria certamente melhor conhecimento disso que eu.
Confesso que a cena era estranha, uma rapariga lindíssima, elegante, resplandecente, a ser fotografada por um puto deselegante, mal vestido e desajeitado. Mesmo assim, concentrei-me na minha tarefa. Nas trinta e seis fotos do rolo, fotografei-a em posturas de corpo inteiro, da cintura para cima, de perfil e de rosto. Todos os sorrisos dela eram planeados, projectados para a lente. Contudo, houve um momento raro, um momento em que uma criança a correr e a fintar a avó lhe provocou um riso natural, um semblante de pura ternura e felicidade. E eu registei-o.
— Pronto. Acabou o rolo. — informei, puxando a pequena alavanca da máquina, a qual puxava o negativo para o registo seguinte, de forma a não fotografar sobre a foto anterior. Esta prendera, indicando que o rolo chegara ao fim.
Tânia perdeu todos os sorrisos, pois já não eram necessários. Verdade seja dita, ela parecia ter nascido para aquilo, tinha uma óptima relação com a lente o que a tornava bastante fotogénica. Claro que, na altura, isso passou-me ao lado. Seria a experiência dos anos vindouros que me fariam ter essa noção.
Pegou no casaco e vestiu-o. O Sol começava a desaparecer atrás dos prédios. Desprendeu o cabelo e colocou os óculos na cabeça, segurando-o como se fosse uma bandolete.
— E agora? — questionou.
— Vou mandar revelar o rolo.
— Quando achas que estará pronto?
— Se for lá agora, talvez amanhã. — ponderei, esperançado que ela se oferecesse para me acompanhar.
Tânia assentiu:
— Então vai lá.
Despediu-se com um virar de costas sem palavras. Só que dois passos a seguir parou. Regressou ao pé de mim.
— Não quero que contes isto a ninguém! — exigiu. — Não te atrevas a dizer a alguém na escola que andaste a tirar-me fotos.
— Podes ficar descansada. — concordei, evitando encontrar-lhe o olhar e vendo-a depois afastar-se indiferente à minha existência.
Qual cachorrinho bem mandado, eu lá segui o meu trajecto até ao centro comercial. Dei por mim a questionar-me para que estava a ter todo aquele trabalho por alguém que me tratava daquela forma. Sim, pensei que a tarde anterior a tivesse feito ver-me com outros olhos, mas estava errado, ela só me dirigia a palavra para seu interesse. Só que, quando somos adolescentes e não temos confiança em nós, quando nos sentimos uma merda e temos vergonha de existir, qualquer migalha que uma deusa como ela nos atire é ouro.
A loja de fotografia ficava a poucos metros da entrada do centro comercial. Lá dentro, o espaço era o sonho dos amantes de fotografia como eu, eram as máquinas expostas, os acessórios, as fotos de mulheres bonitas e homens atraentes usadas para mostruário de molduras... Aquele era o meu mundo.
O senhor que eu conhecia não estava de serviço. Foi um rapaz, uns cinco anos mais velho que eu, que me atendeu. Entreguei-lhe o rolo para revelar. Informou-me que poderia levantar na tarde seguinte.
— Não devias andar a passear isso por aí. — alertou, apontando para a máquina. — Ainda te assaltam.
— Eu tenho cuidado.
Já fora assaltado, quando tinha doze anos, vindo da escola. Na altura só me roubaram as poucas moedas que tinha. Perder aquela máquina, seria perder o coração ou os pulmões.
Não se preocupem, regressei a casa, são e salvo.
No dia seguinte, foi o regresso à escola, a primeira vez que me cruzaria com Tânia desde que estivera em minha casa e que nos encontrámos no jardim. Para alguém solitário como eu, aquilo poderia ser já o início de uma amizade. Tentei não alimentar muitas ilusões para não me decepcionar. Não esperava uma recepção calorosa no reencontro, mas no mínimo um cumprimento, um "olá".
Avancei pelo corredor, já toda a turma esperava que o professor de Filosofia chegasse para abrir a porta da sala. Tânia estava encostada à parede, rodeada pelas amigas. Os nossos olhares encontraram-se. Sorri-lhe. Ela ignorou-me. Não foi preciso mais para perceber que nada mudara.
O dia decorreu como costume, o calvário habitual, o entrar em cada aula a contar os minutos para sair, aguardar nos intervalos contando os segundos para regressar à sala, contabilizar as disciplinas até o dia chegar ao fim e ir para casa, marcando menos um dia no calendário para a chegada das férias.
No entanto, aquele dia não terminaria de forma tão simples.
Acho que, de alguma forma, a ida de Tânia a minha casa chegara aos ouvidos de Tiago. Ele era popular, o menino querido das meninas, gostava de se armar em bom e teria com toda a certeza interesse em namorar com ela. Tânia ria-se com as palhaçadas dele, com a forma como gozava com os colegas... Mas, nunca lhe dera qualquer hipótese de ser sequer seu amigo. Por isso, sem querer, eu alcançara algo que ele nunca experienciara, ter a bela Tânia em sua casa.
O seu único neurónio, que por sinal deveria ser coxo e vesgo, achou por bem que me deveria humilhar diante dela. Assim, num dos intervalos, enquanto eu caminhava automaticamente pelo corredor, Tiago veio por trás de mim e pregou-me uma rasteira que me fez cair desamparado no chão.
— Ó cromo, és mesmo desastrado. — berrou ele para gáudio dos comparsas. Olhou para os meus livros e caderno no chão. — Tudo espalhado. E pontapeou-os para longe.
Nestas alturas, vemos o nível de solidariedade estudantil. Todos os alunos que ali circulavam, passaram por mim a rir ou a borrifar-se para o que acontecera. Tânia assistira a tudo e também passou por mim indiferente, limitando-se a abanar a cabeça, como se quem tivesse agido errado tivesse sido eu.
O corredor ficou vazio, altura em que consegui apanhar tudo sem ter que me desviar de pernas. Levantei-me do chão com uma dor nos joelhos, resultante da queda. Foi nesse instante que ouvi passos aproximarem-se e vi Tânia a regressar sozinha.
Talvez me tivesse enganado, talvez ela se preocupasse comigo.
Num tom arrogante, inquiriu:
— As fotos sempre ficam prontas hoje?
— Sim. — confirmei sem coragem para a encarar.
— Vais buscá-las?
— Sim, depois das aulas.
— Também quero ir!
Estranhei a decisão.
— Podemos ir juntos.
— Não! — recusou peremptoriamente. — Encontramo-nos lá. É no centro comercial, não é?
— Sim...
Não perdeu mais tempo e deixou-me sozinho.
Foi uma cena absurda. Aliás, quando me recordo, pergunto-me como me deixava sujeitar a isto. O centro comercial ficava a menos de vinte minutos da escola, a pé. Seria perfeitamente natural que fossemos juntos, se íamos para o mesmo sítio. Porém, ela não quis. Caímos no ridículo de ir na rua a escassos dez ou quinze metros um do outro como se fossemos dois estranhos. Pelo menos, as amigas não iam com ela para olharem para trás e gozarem-me. Acabei por me deixar ficar para trás, não fosse alguém da escola nos ver e pensar que eu a estava a seguir.
Tânia aguardou-me na porta do centro comercial, semblante irritado de quem não gostava que a fizessem esperar. Problema dela, poderíamos ter vindo juntos. Não disse nada e retomou a passada assim que me aproximei.
Entrámos na loja. Desta vez, o meu conhecido estava ao balcão.
— Olá Daniel!
— Olá! — retribuí com a timidez do costume. — Vinha levantar as fotos que deixei para revelar ontem.
O homem olhou para Tânia e cumprimentou-a da mesma forma. Ela retribuiu com a distância habitual. A seguir, procurou no molho de pacotes de fotos reveladas e encontrou a que procurava.
— Aqui tens.
Recebi o pacote e agradeci. Mal tive tempo para o sentir na minha mão, pois Tânia pegou no grosso envelope e abriu-o. Notei a surpresa no seu rosto. Estariam assim tão mal?
Afastámo-nos para um canto da loja, um espaço com uma pequena bancada onde os clientes analisavam os trabalhos. Ela foi passando foto a foto, cada vez mais encantada.
— Afinal não és assim tão burrinho. — elogiou à sua maneira.
— A modelo também ajuda.
Ela atirou-me um olhar desdenhoso.
— Tiraste umas boas fotos, cromo.
Já sabem como odiava que me chamassem "cromo" e ela também o sabia. Porém, parecia gostar de me amesquinhar.
— Podemos fazer cópias? — questionou. — Arranjei as moradas de algumas agências. Ajuda-me a escolher seis.
Eu ia para tentar opinar na escolha, mas quando abri a boca ela já separara cinco. Nem me dei ao trabalho.
— Talvez devesses fazer as cópias em tamanho maior. — sugeri. — Dava um ar mais... sei lá... profissional?
Tânia ponderou a questão e concordou.
— Como é que fazemos, agora, cromo?
Olhei-a nos olhos.
— Primeiro, começamos por parares de me chamar "cromo".
Ela sentiu o meu desagrado e nem reagiu quando lhe tirei o envelope para retirar os negativos. Depois, peguei nas fotos que ela escolhera e levei tudo até ao balcão.
— Queria fazer ampliações destas fotos. — pedi, entregando os negativos.
— Tamanho?
— Talvez vinte centímetros por trinta centímetros.
— Quanto custa o conjunto? — interrogou Tânia atrás de mim. O homem disse-lhe a quantidade de escudos que teria de pagar. — Tudo bem, quero cinco conjuntos.
Eu não teria dinheiro para pagar a conta, mas ela retirou da carteira notas de quinhentos escudos suficientes para pagar e receber troco.
— Quando estão prontas? — perguntou ao entregar o dinheiro.
— No final da semana.
— Tudo bem. — Olhou para mim. — Depois passo cá para as vir buscar.
A mensagem foi clara, trataria do resto a partir dali e não precisava mais de mim.
Ao sair da loja, Tânia parou defronte da montra ao lado. Pensei em ignorar isso e seguir para casa com o mesmo desprezo. Só que o meu coração não deixou. Ela apontou-me o envelope com as fotos.
— Escolhe três. Escolhe as três que mais gostas.
Fiquei confuso. Para quê? Mesmo assim, peguei no envelope e folheei as fotos. Escolhi uma dela de corpo inteiro, outra só de rosto e aquela que eu mais gostava, a do sorriso natural, o sorriso de ternura.
— São para ti, pelo teu trabalho. — explicou, voltando a segurar o pacote com as outras trinta e três.
— Obrigado.
— E não te esqueças. Não quero que fales disto a ninguém. — voltou a lembrar. Assenti. — Xau!
Os dias passaram-se com a normalidade habitual. Curiosamente, choveu em todos.
A minha figura desaparecera completamente da realidade que envolvia Tânia. Era como se a última semana tivesse sido apagada da memória colectiva e a aula de Informática em que estivéramos juntos, a tarde em minha casa, a sessão de fotografia no jardim e a escolha de fotos na loja nunca tivessem acontecido.
Nessa Sexta, durante a manhã, iria haver um evento na escola e não haveria aulas. Claro que o evento não me interessou para nada, já chegava ter de ir à escola quando era obrigado. Iria ficar em casa, aproveitar para ler a revista de fotografia que comprara e olhar para as fotos que me haviam sido oferecidas.
Contudo, a meio da manhã, o telefone tocou. O meu tio foi atender, pois era raro eu fazê-lo, só mesmo se estivesse sozinho e mesmo assim, muitas vezes ignorava o aparelho. Ouvi-o confirmar algo e depois chamar-me.
— Que foi, tio?
— É a tua amiga. — informou, indicando o telefone.
Quem? Amiga? Eu não tinha amigos. Seria alguma brincadeira?
Peguei no auscultador.
— Sim?
— Olá! É a Tânia.
Deveria estar a sonhar. A Tânia a ligar-me? Eu nem nunca lhe dera o meu número. Aliás, como o conseguira ela?
— Diz.
— Tens as impressões da carta que escrevemos para as agências?
— Sim. — menti. Nunca mais me lembrara disso.
— Fui buscar as fotos e quero mandar para as agências, mas preciso das cartas. — continuou. — Podes vir trazer-mas?
— Onde?
— No jardim onde me fotografaste?
— Está bem.
— Combinado. Preciso de cinco cópias. Encontramo-nos daqui a vinte minutos.
E desligou.
Corri para o computador. Felizmente, tinha impressora em casa, um arcaico aparelho de imprimir que fazia um barulho horrível e demorava imenso a executar a função.
— Está tudo bem? — perguntou o meu tio, vendo-me em tanta agitação.
— Sim, sim. Preciso só de imprimir uma cena. E depois tenho de sair.
— Vais ter com a tua amiga? — questionou com um sorriso cúmplice.
Respondi que sim, mas mal se ouviu com as estridentes agulhas a riscar o papel.
Saí de casa atrasado, levando as folhas dentro de uma pasta. Corri pelo passeio, aventurei-me a atravessar ruas fora das passadeiras, quase que choquei com algumas pessoas. Perto do jardim, travei. Recuperei a respiração e prossegui numa passada normal. Entrei no jardim.
Tânia aguardava sentada num dos bancos, perto do lugar que servira de cenário às suas fotos.
— Cá estou.
Ela olhou-me com um semblante de desagrado.
— Estás todo transpirado.
Notei-lhe o nojo no olhar. Talvez por isso, sentei-me na ponta oposta do banco. Entreguei-lhe a pasta.
— Aqui tens.
Tânia abriu a pasta e pegou nas folhas impressas. O "obrigado" ficou esquecido algures. Indiferente à minha presença, começou a distribuir fotos e carta por cada envelope A4 que preenchera previamente com as moradas das agências de modelos. Por fim, ofereceu-me inconscientemente a visão sensual da sua língua a lamber as badanas dos envelopes para os fechar. Nunca tive tanta inveja de um pedaço de papel.
— Agora, vou aos correios.
— Posso ir contigo? — pedi num impulso. Mal terminei a frase, calculei que receberia uma recusa.
— Se quiseres... — concordou com desinteresse.
Claro que queria. Apaixonado como estava, qualquer segundo na presença dela era água no deserto.
A estação dos CTT ficava a um quarteirão dali. Chegámos lá depressa, mas deparámo-nos com uma longa fila de pessoas. Era fim do mês e havia muitas pessoas de idade avançada para levantar a reforma. Por mim, podíamos ficar ali o resto da eternidade, numa fila, lado a lado.
Tânia não dizia nada, mas de tempos a tempos bufava impaciente. Com o passar dos minutos, reparei que olhava constantemente para os envelopes. Quando só cinco pessoas nos separavam do balcão, surpreendeu-me:
— Talvez isto não seja boa ideia. O melhor é estar quieta.
Fiquei sem reacção. Queria convencê-la a não desistir, só que não me vinha à cabeça qualquer argumento decente. Acabei por dizer:
— Tiveste tanto trabalho.
Ela encolheu os ombros. Estava mesmo prestes a largar a fila e a abandonar o sonho. Então, sacrifiquei-me:
— Sujeitaste-te à minha companhia, a pousar para um cromo chato, a ter de falar comigo na escola, o gajo mais... mais blhac... Para agora desistires de tudo?
— Sim. — concordou com a atenção na fila. — Seria um desperdício perante tanto sacrifício.
Por momentos, acreditei que ela estava a ser irónica: "Oh foi um grande sacrifício". Porém, percebi que falava a sério, tinha sido de facto um sacrifício interagir comigo. Isso não me magoou. Ou não me deixou mais magoado que aquilo que eu já estava.
Não demorámos muito mais a fazer os cinco envelopes seguirem o seu destino. Saímos do local em passo apressado. Na rua, Tânia largou um "xau" distante.
— Tânia! — chamei. Ela parou e olhou para mim impaciente. — Quero que saibas que vou estar a torcer por ti. Espero sinceramente que, pelo menos, uma das agências se interesse por ti. E que isto tenha sido o primeiro passo para a concretização do teu sonho.
O seu olhar curioso aterrou em mim. Deu dois passos na minha direcção. Parecia descrente.
— Não acredito que aconteça. Mas, agradeço-te as tuas palavras. — Fez uma pausa. — E também agradeço a tua ajuda. — Depois alterou o tom para uma mistura de humor e prepotência. — Olha! Se isto resultar, talvez te ajude a concretizar o teu sonho, talvez te deixe roubares-me um beijo.
Não correspondi ao tom. Ao invés, fiquei sério.
— Esse nunca foi o meu sonho. O meu sonho era que gostasses de mim.
Tânia olhou para o céu e sorriu com escárnio.
— In your dreams, boy.
— Eu sei... girl. Mas, já fico satisfeito por sermos amigos.
Olhou-me com desdém.
— Pois... Xau!
Não duvido que a espera por uma resposta a deixasse ansiosa, mesmo que não o deixasse transparecer na escola. Se alguém, para além de mim, saberia das candidaturas seriam as suas amigas, só que também elas evitavam comentar o assunto na presença dos colegas.
Na minha ingenuidade, pensei que ela partilhasse comigo qualquer novidade acerca desse assunto, fosse por receber alguma recusa ou o interesse de alguma agência. Contudo, os dias passaram-se e nada.
Claro que o dia a dia na escola não se modificara muito, continuava a ser ignorado por ela e alvejado pelos mesmos inúteis do costume que viam na minha humilhação um passatempo divertido. Hoje, quando recordo esses tempos, questiono-me no porquê de deixar que aquelas supostas brincadeiras de mau gosto me afectassem tanto, acabando por concluir que era a vergonha que me feria com mais intensidade, ser amesquinhado perante o olhar dos outros.
Eu queria saber notícias, mas não tinha coragem de me aproximar dela e perguntar. A curiosidade nunca foi superior ao receio de ser enxotado, ser ridicularizado por ela. No entanto, quis o destino e a vontade da professora de Informática que tornássemos a ficar juntos na aula. Tânia não escondeu o desconforto e o incómodo por me ter ao lado, fazendo um esgar de agonia para as amigas, numa mistura de gozo e desprezo.
Mesmo assim, aproveitei a oportunidade.
— Tiveste alguma notícia?
— Sobre? — questionou, fingindo olhar para o ecrã.
— As agências...
— Não. — atalhou agressiva. — Não houve respostas, nem me parece que venha a haver.
— Lamento. — retorqui, procurando dizer algo que a animasse.
— Sim, bem podes lamentar. — insistiu com altivez. — Se não tivesse ido atrás das tuas tretas, evitava um desgosto.
Surpreendi-me por ela me responsabilizar pelo sucedido, afinal eu não fizera mais que tentar ajudá-la a alcançar os seus desejos.
— Até custa a acreditar... — suspirei, recusando-me a aceitar que ninguém visse o potencial da beleza dela no mundo da moda.
— Estás a chamar-me mentirosa? — interrogou num tom mais alto.
Ao ouvir, a professora interveio:
— Que se passa?
— O Daniel está a chatear-me. — disse ela, irritada.
— Ai o menino... — intrometeu-se Tiago, gozando com a cena.
— Daniel, o que é que se passa? — inquiriu-me a professora.
Eu fiquei sem saber o que responder.
— Stora, posso ficar sozinha? — pediu.
Sem perceber muito bem o que se estava a passar, a docente concedeu e eu fui recambiado para o computador do Alfredo e da Sofia.
Parvo como era, dei por mim a desculpá-la, justificando a sua atitude com a tristeza por não ver as suas capacidades reconhecidas por uma qualquer agência de modelos.
Nessa tarde, depois das aulas, decidi ir ao centro comercial, à loja de fotografia. Levava comigo a foto de Tânia com o sorriso natural com laivos de ternura, uma imagem raríssima nela. Queria ampliar a foto e pendurá-la na parede do meu quarto. Tomara a decisão de o fazer, quando estava no quarto a ouvir No One Can dos Marillion, uma música que na altura ouvia várias vezes na rádio e em que me imaginava a cantar para ela. Porém, como não tinha os negativos, não sabia se seria possível fazê-lo.
O senhor da loja ponderou a hipótese, olhando para a foto. Antes de dizer outra coisa, elogiou o meu trabalho de fotógrafo.
— A tua amiga deve estar-te bastante agradecida. — Foi a minha vez de encolher os ombros. — Graças às tuas fotos, ainda vai ser uma super modelo.
— Não me parece... — discordei, recordando a ausência de respostas.
— Olha que eu acho que vai. — insistiu. E, a seguir, iniciou o relato que me deixou boquiaberto. — Ainda ontem cá veio com as amigas. Vinha toda entusiasmada. Ouvi-a comentar com as outras que duas agências lhe haviam respondido às fotos que enviara e estavam interessadas. Queriam mais fotos e ela veio fazer ampliações de mais umas quantas destas.
— Isso foi hoje? — questionei incrédulo, procurando um engano que justificasse a mentira da manhã.
— Não, foi ontem... Desculpa, não foi nada ontem. Foi anteontem.
Foi como se tivesse levado uma facada nas costas.
Não! Não foi bem isso que senti, foi mais como se tivesse uma ferida que fora atenuada por ela e, subitamente, Tânia reabrira sem complexos, indiferente aos meus sentimentos.
— Não sabias? — perguntou o senhor, vendo o meu ar aparvalhado.
— Temos tidos dias complicados na escola. — menti. — Altura de testes... Não houve oportunidade de falarmos. — Forcei um sorriso. — Fico feliz que ela tenha conseguido.
— Acho que a tua amiga está lançada. Falou em quererem mais fotos, em entrevistas... — adicionou, recordando o que ouvira na conversa delas. Depois, parou, estacionando o olhar novamente na foto. — Bom... Mas, em relação à tua questão...
— Deixe estar. — interrompi, pegando na foto e voltando a guardá-la.
Despedi-me sem mais palavras e fui embora.
Percorri o caminho de regresso a casa numa passada vagarosa, sentindo-me destroçado pela falta de consideração de Tânia. Ao longo do percurso, tombava sobre a cidade uma chuva miudinha, a qual me molhou sem que desse por isso. Porque me mentira ela? Percebia que não tivesse tido a gentileza de partilhar a boa notícia comigo, mas porquê mentir-me quando lhe perguntara directamente?
Cheguei a casa encharcado em água e tristeza. Fora tudo um logro, eu não passara de um objecto de utilidade pontual e descartável como uma folha de papel higiénico. Fiquei muito tempo, na solidão do quarto, a olhar para as três fotos que me oferecera, três fotos que julguei que me oferecera por amizade e que afinal não passavam de uma esmola, uma gorjeta foleira por um serviço que eu fizera por carinho e ela recebera como um favor que não pudera evitar.
O meu tio, que me conhecia melhor que ninguém, percebeu o meu espírito triste. Procurou inteirar-se sobre as causas, só que não teve sucesso, eu fechei-me completamente. Porém, após o jantar, abri o coração e registei tudo o que me ia na alma numa folha de papel.
Essa folha de papel foi colocada dentro de um envelope pequeno juntamente com as três fotos. Guardei-o dentro do caderno e na manhã seguinte, encarei o novo dia na escola com o objectivo de o entregar à rapariga que me ensinara que o amor poderia dilacerar tanto quanto as lâminas de uma faca afiada.
Claro que decidir escrever uma carta e planear entregá-la chocou com a falta de coragem de o fazer na realidade. Num dia inteiro de aulas, fui adiando a entrega, sempre esperando uma oportunidade melhor que a última. À entrada do penúltimo tempo, quando todos esperávamos a chegada do professor para a próxima disciplina, decidi dar-lhe uma última oportunidade:
— Então, novidades? — indaguei, sempre naquele meu ar inseguro e quase a gaguejar.
A resposta de Tânia foi uma surpresa negra, cheia de agressividade, barafustando que eu não a largava, que estava farta que lhe fizesse sempre a mesma pergunta e com enorme brusquidão quase que cuspiu o "NÃO!!!"
Tirando Raquel e Sofia, ninguém sabia o teor da pergunta, o que despoletava a imaginação dos nossos colegas, fazendo as mais estapafúrdias conjecturas.
O professor chegou e a turma começou a entrar na sala. Aproveitando o momento em que a maior parte se distraía em ocupar o seu lugar, retirei o envelope do caderno e apontei-lho.
— Toma! É para ti.
Tânia hesitou, mas acabou por o aceitar sem disfarçar a repulsa como se receasse que trouxesse algum vírus ou bactéria.
O momento não passou despercebido a Tiago que gritou:
— Ó Tânia! Deve ser um pedido de namoro do cromo.
Falando de forma a que todos ouvissem e percebessem o seu desprezo, ela retorquiu:
— Deus me livre.
Tiago soltou uma sonora gargalhada. E a turma acompanhou-o, apercebendo-se da cena.
Nas disciplinas convencionais, onde as disposições das mesas na sala era em fila, sendo que a alternância eram salas com mesas de dois ou mesas de um, eu sentava-me na fila da ponta e na quarta cadeira a contar da frente, ficando apenas com mais uma ou duas mesas atrás. Tânia sentava-se na primeira cadeira da fila contrária à minha, encostada à janela, com Raquel atrás e Sofia ao lado.
Do meu lugar, vi-a a abrir o envelope, somente o suficiente para perceber o conteúdo. Raquel espreitou sobre o seu ombro, mas não conseguiu ver nada. Sofia deve ter-lhe perguntado o que era e recebeu um abanar de cabeça como resposta. Depois, Tânia virou-se para trás, procurando-me.
Perante tudo o que acontecera nas últimas semanas, a forma como ela se comportara comigo, a forma interesseira como me usara, o desprezo que revelava por mim, aquilo que eu esperava dela quando visse as fotos que me oferecera era que se virasse para trás, encolhesse os ombros e com a postura mais indiferente que fosse capaz de adoptar fizesse aquele ar de "que significa isto?". Contudo, fui surpreendido. Tânia olhou para trás, consciente que lhe devolvera as fotos, e encarou-me com um semblante simplesmente triste e magoado.
O professor iniciou a aula e ela voltou-me as costas, guardando o envelope dentro do livro. Não prestei muita atenção à aula, pensando no que estaria a pensar Tânia. Será que viria falar comigo? Será que insistiria para que eu ficasse com as fotos? Ou iria encarar aquilo como "não as queres, quero lá saber"?
Quando tocou para o intervalo, a maior parte da turma saiu dos seus lugares como se as cadeiras queimassem. Lá fora, começava a escurecer mais tarde e os dias tornavam-se maiores. Tânia permaneceu no seu lugar e indicou às amigas que já iria ao seu encontro no pátio da escola. Enquanto saía da sala, vi-a retirar o envelope do livro e abrir a carta para a começar a ler.
Fui para o exterior, aguardar a penosa passagem dos dez minutos de intervalo, sozinho como era habitual. Fiquei a ponderar a reacção dela à carta. O arrependimento começou a fustigar-me a mente. Dei por mim a recordar o que escrevera:
"Sei que não sou o tipo de rapaz que algum dia possa despertar interesse em ti. Sei que não sou alguém com quem gostes de ser vista. Mesmo assim continuo a gostar de ti. Acreditei na minha estúpida ingenuidade que um dia poderíamos ser amigos, verdadeiros amigos e não uma pessoa que usa a outra. Julguei que o quase nada que fiz por ti me tivesse dado um grão de poeira na escala da tua consideração. Nunca fiz nada à espera que retribuísses além de um agradecimento. Sim, gosto de ti! Gosto mesmo muito de ti, dessa forma que um rapaz gosta de uma rapariga. Mas, não pensei em qualquer momento que te interessarias por mim só por te ajudar a tentar alcançar o sonho de ser modelo. Não sou assim tão estúpido. Tu és incrivelmente linda. Sim, és o meu sonho, já to disse e não tenho problemas em o admitir. Mas, gostar de ti é como gostar de um cacto, feres-me sempre que me aproximo. Fiquei feliz quando me deste estas três fotos. Feliz porque pensei que querias que ficasse com uma recordação daquela tarde que partilhámos no jardim. Um agradecimento por te ajudar. Mas, afinal, nem sei porque mas deste. A mim a quem mentiste. Sim, eu sei que tu foste contactada por agências que estão interessadas. E apesar de tudo, fico feliz por ti. Só que me interrogo porque sou tão desprezível que nem mereça que partilhes a informação comigo? Então lembrei-me. Num dos teus momentos parvos (não encontro outra definição), sugeriste que se fosses bem sucedida me retribuirias com um beijo. E agora, temendo que eu pudesse cobrar, optas por mentir. Descansa, não quero o beijo. Sim, adorava beijar-te. Quem não gostaria? Repito, és linda! Mas, tenho de ter noção que de ti só terei repulsa e desdém. Por isso, se te sentes em dívida, deixo aqui registado que não me deves o que quer que seja. E estas fotos, devolvo-tas porque são tão insignificantes quanto qualquer beijo obrigado que me pudesses dar."
Fui despertado pelo toque de entrada.
Quando regressei à sala, Tânia conversava animada com as amigas. Deveria estar a partilhar com elas o conteúdo da carta e a fazer piadas acerca disso. Nem reparou em mim.
Não sei o que esperava com aquela carta ou se esperava o que quer que fosse. Quisera somente devolver-lhe as fotos, marcar uma posição. E cheguei a recear que ela quisesse confrontar-me com o que eu escrevera, uma vez que não saberia como reagir e arriscava-me a mais uma humilhação perante os olhares da escola.
Tânia não pareceu dar a mínima importância ao assunto. Não voltei a ver o envelope, nem ela tornou a voltar-se para trás ou olhar para mim. Mesmo assim, logo que deu o toque de saída, procurei ser um dos primeiros a abandonar a sala, mas sem dar nas vistas.
Em momento algum, notei que ela tivesse tido intenção de falar comigo. As fotos eram um assunto encerrado. E ter devolvido aquelas, possivelmente, até teria sido um descanso para Tânia. Sim, o assunto estava encerrado. No dia seguinte, a vida continuaria na escola, a mesma merda de sempre.
Contudo, antes do jantar, o telefone ecoou em minha casa. Ouvi a campainha estridente, mas ignorei, mantendo a atenção na revista que estava a ler. A minha concentração foi quebrada pela voz do meu tio:
— Daniel!
— Sim? — respondi, espreitando pela porta do quarto.
— É a tua amiga Tânia. — informou, apontando para o telefone.
Por momentos, senti-me petrificado, surpreso. Não antecipara aquilo. Não queria falar com ela. Não haveria nada de bom naquilo que pudesse ouvir, se pegasse no auscultador do telefone que me aguardava sobre a mesinha no átrio do nosso pequeno apartamento.
Pensa rápido!
O meu tio olhava-me confuso.
— Agora não posso. Diz-lhe que já lhe ligo.
A confusão não largou o rosto dele, mas fez o que lhe pedi. Regressei ao local onde largara a revista e retomei a leitura, esforçando-me por não dar atenção à voz no átrio.
Passados poucos segundos, o som do auscultador a pousar na base do aparelho chegou-me aos ouvidos, ao que se seguiu a presença do meu tio à porta do quarto.
— Ela deixou o número. — informou, apontando-me o papel onde anotara os algarismos. — Calculou que não o tivesses.
— Não estou com ideias de lhe ligar. — confessei sem tirar os olhos da revista. — Por isso, podes deitar fora.
Ele estranhou:
— Está tudo bem? Ela disse que precisava de falar contigo. — Encolhi os ombros. — Que se passou? Chatearam-se?
— Não. — respondi com um sorriso sarcástico. — Sou demasiado insignificante para isso.
— Então porque te ligou ela?
— Não sei, nem quero saber.
— Não queres mesmo? — interrogou o meu tio na sua inteligência com uma longa experiência de vida.
Sorri-lhe vencido. Não tinha porque representar para com a pessoa que mais gostava de mim e que se preocupava comigo.
— Talvez queira... Mas, é melhor não saber.
— Tu gostas dela, não gostas?
Ia dizer que sim, só que...
Uma constatação surgiu na minha mente.
— Não sei se gosto dela ou da imagem que fiz dela.
O meu tio anuiu.
— Percebo o que queres dizer.
— Ela deixou bem claro que eu não existo para ela.
Ele olhou para o tecto, como se ponderasse o que diria a seguir.
— Pois... Mas, agora foi ela quem ligou. Não me parece que as miúdas giras andem a telefonar para casa de rapazes que acham que não existem.
— Tu não percebes, tio.
— Achas que sou muito velho para perceber a vossa geração?!
— No teu tempo, as coisas eram diferentes.
— Talvez...
— Não te preocupes. Amanhã falo com ela na escola. — finalizei sem a mínima intenção de fazer o que dissera.
Eu era um tipo cheio de arrependimentos. Ponderava demasiado o que haveria de fazer, escolhia uma opção e arrependia-me com a certeza que deveria ter feito o contrário. Foi o que disse a mim mesmo, constatando que o que quer que ela tivesse para me dizer, eu estaria mais protegido atrás do telefone que frente a frente com ela na escola. Só que, quando atingi esta brilhante conclusão, já era tarde para lhe telefonar.
A manhã seguinte fora o prenúncio da Primavera que se avizinhava. O Sol brilhava e a temperatura amena trazia a sensação de conforto esquecida durante o Inverno. Fui dos últimos a chegar e, no corredor, já toda a turma aguardava a chegada do professor de Português. Tânia esperava encostada à parede na companhia das amigas. Os nossos olhares cruzaram-se. Ela não disfarçou como estava chateada comigo. Pensei que me fosse insultar em frente a todos por não ter atendido o telefonema nem ter voltado a ligar. Claro que tal hipótese só caberia na minha cabeça, pois ela jamais se sujeitaria a essa cena, a admitir que telefonara para mim. Desviei o meu olhar, queria evitá-la. Se tantas vezes desejara que conversássemos, naquela manhã só a queria longe.
Tânia correspondeu àquele desejo, uma vez que me ignorou por completo o dia inteiro. O assunto morrera. Nada tínhamos a dizer um ao outro e ainda bem que assim era.
Só que assunto não morrera...
Após a última aula, peguei no meu caderno e livros, levantei-me do meu lugar e saí para o corredor. Como era normal, no fim de cada aula e ainda mais no fim do dia, a algazarra no corredor era mais que muita. Mesmo assim, consegui ouvir os risinhos irritantes de Raquel, atrás de mim. Não sei se estava relacionado comigo ou não e ignorei.
— Daniel! — chamou uma voz lá atrás. Apesar de me recusar, reconheci-a. — Daniel!!!
Virei-me. Uns dez metros atrás, vi Tânia levantar a mão, fazendo sinal para que esperasse.
Na escola, sempre me chamara "cromo" como todos os que gostavam de me insultar. Para ser sincero, só me chamavam isso porque percebiam que me perturbava. Se desde a primeira vez o tivesse desvalorizado, a coisa caía no esquecimento. Bom, mas como estava a referir, ela nunca me chamava pelo nome. Por isso, aquilo começava a ser estranho.
Tirando as amigas, ninguém reparou, estava tudo com pressa para se pôr a milhas da escola.
Qual cachorrinho, eu esperei.
Tânia parou em frente a mim, fazendo-me sentir o perfume doce que emanava dela. O semblante zangado permanecia sem lhe tirar uma gota de beleza. Segurava a mala com os livros e cadernos no ombro e tinha as mãos nos bolsos das calças. Não pareceu importar-se que a vissem a falar comigo, como acontecia habitualmente.
— Quero falar contigo! — exigiu, autoritária.
Raquel e Sofia pararam a seu lado.
Bolas, se temia o encontro com ela, isso acontecer na presença das amigas era o pior dos meus pesadelos.
Tânia olhou para as amigas.
— Até amanhã, meninas! — despediu-se.
Elas estranharam. Raquel questionou:
— Não vens?
A forma como Tânia olhou para Raquel foi resposta suficiente. Não havia qualquer dúvida, a primeira era uma líder nata, respirava confiança e o elo mais forte daquele trio. Sofia retribuiu a despedida e afastou-se, levando Raquel consigo.
Quando dei por mim, estava no corredor da escola envolto no burburinho silencioso de um espaço vazio onde só se ouvia a debandada exterior dos estudantes. Naquele longo corredor, apenas eu e Tânia.
— Não me ligaste, ontem?! — recordou de semblante fechado. — Nem me quiseste atender.
— Estava ocupado.
Ela cravou o olhar em mim.
— És um mentiroso. Não quiseste foi falar comigo.
Sentia-me a tremer, apesar do meu corpo estar completamente paralisado. Tinha dificuldade em encará-la. Não por vergonha, mas porque a beleza dela me intimidava.
Quis dizer "se há aqui um mentiroso és tu" ou "não temos nada a dizer um ao outro". Porém, o que saiu foi um tímido:
— Que queres falar?
— Porque me devolveste as fotos?
— Acho que escrevi isso.
— Quero que mo digas na cara. — retorquiu irritada. — Eu dei-te as fotos com boa intenção e tu dizes que são insignificantes.
— Boa intenção? — interroguei sem me aperceber que começava a ripostar o tom dela. — Tu deste-me as fotos como um pagamento.
— Não foi um pagamento, foi um agradecimento.
— Agradecimento? Queres agradecer-me? Que tal a tratares-me com mais respeito na escola?
Tânia soltou uma gargalhada escarninha, como se eu tivesse dito algo ridículo.
— Eu sei o que querias, sei que agradecimento queres. — insurgiu-se, esbracejando. — Podes dizer que não, mas em vez das fotos, o que querias era um beijo.
— Acredita no que quiseres. Não me interessa.
Tânia colocou-se na minha frente. Alterou a voz para um tom condescendente, qual ser superior que se dispõe a uma oferenda ao lacaio.
— Não me importo de te dar um beijo. — sugeriu. — Talvez tenha sido um pouco injusta ou até mesmo ingrata contigo. — Levou as mãos à cabeça e puxou o cabelo para trás. — Afinal foi graças às tuas fotos que vou conseguir ser agenciada. — Cruzou os braços sobre o peito e debruçou-se ligeiramente. — Vá, podes roubar-me o beijo.
Bastar-me-ia inclinar um pouco a cabeça e os meus lábios tocariam nos dela. Seria uma oportunidade única de conhecer o sabor da sua boca por mais efémero que fosse o momento. Tinha dezassete anos e nunca beijara uma rapariga. Poderia ser o receio de falhar que me petrificava os movimentos? Não.
— Tu não consegues perceber pois não?
Tânia surpreendeu-se por eu não aproveitar o momento. Recobrou a posição anterior, afastando-se e disfarçando a novidade que era para si ter sido rejeitada.
— Não percebo o quê? — inquiriu controlando a fúria. Quem pensava eu que era para desperdiçar a possibilidade de beijar os lábios da rapariga mais bonita da escola, uma futura modelo, o desejo de todos os rapazes. — Que deves ser paneleiro? Se calhar é isso, és um cromo paneleiro.
Estremeci. As suas palavras acordaram-me para a terrível certeza de que no dia seguinte toda escola saberia daquela cena e me chamaria assim. O que eu não percebi era que a sua reacção não era mais que agredir verbalmente quem tivera a coragem de não lhe sucumbir. Senti tudo a desabar à minha volta, quase tentado a implorar que ela não repetisse aquilo. Só que, em simultâneo, senti que se estava tudo perdido, então nada tinha a perder.
— Podes continuar a ofender-me, se isso te faz feliz. — disse com uma calma que não tinha. — Não consegues perceber que apesar de ser... de... de gostar de ti, tenho a noção que nunca terás interesse em mim. E estás no teu direito. Ninguém deve ser obrigado a gostar de ninguém. Mas, desperdiçar a amizade de outra pessoa só porque essa pessoa não se enquadra naquilo que é popular... Não consigo perceber, Tânia, lamento.
— Posso não ter interesse nessa amizade. — apontou, desdenhosa.
Sim, já tinha percebido, rapariga. Era daquelas verdades que eu sabia desde o início e me recusava a aceitar. Aceitara perante a descoberta da mentira, mas ouvi-lo da boca dela foi a última cacetada no espeto que ela cravara no meu coração.
— Que queres, então? — interroguei com uma ânsia desesperada em sair dali, afastar-me dela, antes que as lágrimas me atraiçoassem.
Tânia hesitou. Acho que a pergunta a apanhou de surpresa. Que queria ela afinal? Desviou o olhar, visivelmente desconfortável.
— Quero pedir-te desculpa. Não devia ter-te mentido.
— Estás desculpada.
A facilidade do perdão confundiu-a.
— É assim tão fácil para ti perdoar?
— Não. — neguei, cansado. — Neste caso, é apenas indiferente.
— Então não me perdoas.
— Não tenho nada para te perdoar. Se tivesse, teria de me perdoar primeiro a mim por ter sido tão estúpido.
A expressão do rosto dela adoptou uma postura surpresa.
— Estás a chorar? — questionou.
A vergonha inundou-me ao perceber que pelo meu rosto escorria uma lágrima. Limpei-a atabalhoadamente, negando tal possibilidade.
— Daniel! Desculpa se não tenho sido a melhor das colegas contigo. Desculpa as vezes que fui incorrecta. — Esboçou um sorriso piedoso. — Prometo-te que não volto a chamar-te "cromo" ou outra coisa que te possa ofender. E tentarei não ser indelicada quando falares comigo.
— Não faças isso. — pedi, certo de que já não disfarçaria aquela lágrima velhaca que me atraiçoara. — Não faças isso porque faria de ti uma pessoa falsa. E eu acho a falsidade repugnante. Prefiro mil vezes que me ignores como tens feito até aqui. Sim, fico grato que não te juntes a todos os jocosos que gostam de me humilhar. Mas, faz como sempre fizeste tão bem: Ignora-me!
— Se é isso que queres... — concordou com a mesma indiferença com que a perdoara.
Tomei a iniciativa de colocar um ponto final na conversa, afastando-me. Não olhei para trás e calculo que ela tenha permanecido imóvel algum tempo. Só quando alcancei as escadas é que comecei a ouvir os seus passos tranquilos a percorrer o mesmo caminho que eu. O som seguiu-me na descida das escadas, na saída do edifício, pelo pátio da escola... sempre à mesma distância. Tive desejo de olhar para trás, olhar para ela, mas resisti. Após a passagem do portão, os passos continuaram, mas o som foi ficando mais distante, uma vez que ela tomara um caminho diferente do meu, o que me trouxe ao consciente a terrível certeza de que o nosso futuro seria assim, com caminhos diferentes.
Tânia cumpriu o estabelecido naquela conversa cuja recordação ainda hoje me embaraça. Não me voltou a chamar "cromo" nem qualquer outra coisa, uma vez que não tornou a dirigir-me a palavra. Que eu soubesse, também não partilhara com ninguém a nossa conversa. Ninguém estranhou a ausência de diálogo entre nós.
As amigas também me ignoraram por completo. Desconheço se por indicação dela ou porque não se interessaram em me aborrecer. Só mesmo o anormal do Tiago insistia nisso.
Estávamos na última semana do segundo período do ano lectivo. Os últimos teste já haviam sido feitos e somente dois ainda não tinham sido entregues. Como costume, eu estava na corda bamba entre a aprovação e a reprovação. Ainda não era preocupante, pois haveria um último período para as recuperações.
Entrei na sala sentindo uma sensação de conforto por ver que o Sol ainda brilhava lá fora, em tons de laranja, trazendo tardes cada vez mais compridas e lembrando que a mudança de estação se aproximava. Sempre me deprimira o tempo frio e os fins de tarde escuros de Inverno.
O professor de História estacionou junto da sua secretária, enquanto os alunos se espalhavam pela sala, dirigindo-se aos seus lugares sem pararem de falar uns com os outros. Eu tomei o meu lugar, a quarta cadeira da linha mais próxima da porta. Nas últimas cadeiras, Tiago e Dias faziam as palhaçadas habituais, procurando ser cativantes para as meninas ridicularizando os outros. Por acaso, só mesmo por mero acaso, desta vez, eu não fora o alvo.
História era uma das minhas disciplinas preferidas e, talvez, aquela em que estivesse mais tranquilo a seguir a Informática e Educação Física. Desde o 7º ano que não tinha uma negativa num teste daquela área de conhecimento. Após alguma conversa de circunstância, dando tempo para que os mais extrovertidos acalmassem, o professor informou:
— Como o terceiro período será mais curto que o habitual, decidi que só faremos um teste de avaliação. — Ouviu-se um ridículo regozijo dos preguiçosos que contabilizaram logo menos tempo para a obrigação de estudar. — Esse teste será perto do final do período. No lugar do primeiro teste, faremos um trabalho de grupo, o qual contará para a nota como um teste de avaliação. — Na prática, o professor poupava-se à preparação de um teste e abria a porta aos menos qualificados da disciplina a unirem-se aos mais inteligentes para tirarem boa nota a reboque destes. — Devem organizar-se em grupos de dois ou de três. — Alguns começaram logo a negociar alianças. O professor travou-os. — Não, não precisam de se organizar agora. Falem entre vocês depois das aulas e na próxima, quando fizermos a auto-avaliação deste período, faremos também a organização dos grupos.
Lá na frente, indiferente ao que tinham acabado de ouvir, Raquel e Sofia combinavam agrupar-se e convidavam Tânia a completar o trio. Porém, a outra não se comprometeu.
As formações de grupos de trabalho era algo que eu dispensava. Nunca ninguém tinha muito interesse em ficar comigo e eu acabava quase sempre por ser recambiado pelos professores para um grupo qualquer. Aquela vez não seria diferente, por isso, não perdi tempo a preocupar-me em encontrar parceiros, pois na próxima aula lá iria para onde houvesse vaga. Até já visualizava a cena, o professor a perguntar quem ainda não tinha grupo, o Daniel a levantar a mão, o professor a solicitar a boa vontade de alguém em me receber com aquele ar de quem me acha um coitadinho e o Daniel a ser agrupado.
Numa última semana, em qualquer período, as aulas são uma amostra do normal, não há matéria para leccionar, os testes foram entregues... Por isso, nem me recordo muito bem o que se desenrolou até ao toque de saída.
Se quando tocava para sair da última aula eu era dos primeiros a partir, quando era o toque de saída para um intervalo entre tempos, eu demorava a abandonar o meu lugar. Como ainda havia mais uma disciplina nessa tarde, movimentei-me vagarosamente.
Maria Inês e Francisca, quais beatas atrás do padre, interpelaram o professor para mais informações acerca do trabalho de grupo. Não percebia a razão que levava alunas extremamente inteligentes a terem a necessidade de "dar graxa" aos docentes. Um pouco mais atrás, Alfredo permanecia no seu lugar, escrevendo algo no caderno.
Numa passada lenta, saí pela porta para o corredor e deparei-me com o trio de amigas a conversar, alguns metros mais à frente. Segui o meu caminho, calculando que quanto mais devagar andasse, mais tempo levaria a chegar ao pátio da escola e menos tempo lá teria de permanecer. Porém, tendo de passar defronte delas, acelerei subtilmente.
— Daniel! — chamou Tânia. Parei e olhei-a com aquele meu ar de parvo perante a surpresa de ela se me dirigir. — Já tens grupo para o trabalho de História?
Raquel e Sofia indignaram-se ao ouvir a amiga.
— Então não íamos ficar as três? — questionou Sofia.
— Ficamos sempre as três. — recordou Raquel.
Tânia olhou para elas e abriu-lhes os olhos para a realidade:
— Somos três burras a História. E precisamos da nota. Acham que vamos conseguir alguma coisa sozinhas?
Ora lá estava a menina calculista sempre interesseira. Tornou a olhar para mim.
— Então? Tens grupo? — Abanei a cabeça como os burros sem conseguir soletrar uma sílaba. — Queres fazer o trabalho comigo?
— Então e nós? — intrometeu-se Raquel, não me dando tempo de responder.
Sofia pareceu ter encontrado a solução:
— Podemos falar com o professor e pedir-lhe para nos deixar ficar os quatro.
A ideia deixava-me em pânico. Fazer um trabalho com aquelas três? Seria mais provável eu ter má nota à conta delas que elas terem boa nota à minha conta. Só que eu seria incapaz de recusar.
— O stor quer no máximo três pessoas por grupo. — lembrou Tânia.
Raquel lançou-lhe um olhar cúmplice.
— Se fores tu a pedir... O stor é capaz de deixar.
Contudo, segura de si, Tânia recusou a sugestão.
— Ok, já percebi. — argumentou Sofia irritada. — Queres ser só tu a aproveitares-te do cromo.
Raquel juntou-se à indignação:
— Rica amiga. Tu safas-te com o cromo e nós ficamos lixadas.
Nesse instante, Alfredo saiu da sala.
— Alfredo! — chamou Tânia. Este ficou quase tão surpreso quanto eu por ela falar com ele. — Já tens grupo?
— Não. Estava a pensar...
— A Raquel e a Sofia precisam de ajuda. — prosseguiu, adoptando um tom simpático. — Achas que podem fazer grupo os três?
Percebendo a oportunidade, Raquel e Sofia sorriram-lhe para o incentivar a uma resposta positiva.
Alfredo era muito melhor que eu em qualquer disciplina. Teria sido até mais vantajoso para Tânia ter-me recambiado para as amigas e ter ela ficado com ele. Porém, não o fez e vi-o aceitar confuso a formação do grupo.
— Estamos combinados. — finalizou ela. — Vocês ficam com o Alfredo. — Olhou para mim. — E eu fico contigo.
Satisfeita pela concretização dos seus desejos, afastou-se seguida por Raquel e Sofia que pareciam ainda ir a debater entre elas o que acabara de suceder.
Alfredo prosseguiu o seu percurso pelo corredor, visivelmente feliz.
Não consegui dizer uma palavra em toda aquela cena. Nem me consegui sentir feliz por voltar a ter a oportunidade de estar perto de Tânia, pois sabia como ela era interesseira, como ela me iria usar como acontecera com as fotos. E seria doloroso estar na sua companhia sabendo que nunca existiria a mínima possibilidade de ela gostar de mim como eu gostava dela. Teria preferido ficar sozinho ou fazer grupo com o Alfredo... Só que não fui capaz de a contrariar.
Para não variar, Tânia não voltou a falar comigo, retomando o nosso acordo para que me ignorasse. Nos dias que antecederam as férias da Páscoa, ela não me dirigiu uma letra que fosse, nem para combinar qualquer pormenor acerca do trabalho.
Na aula seguinte de Historia, após a auto-avaliação, houve surpresa quando se ouviu Tânia a comunicar ao professor que formaria grupo comigo. As reacções variaram entre a incredulidade e as piadas, mas ela pouco se importava com o que pudessem pensar. A surpresa foi tal que ninguém ligou ao anúncio seguinte de Alfredo a nomear o seu grupo.
Tiago, que não conseguira esconder a inveja, atirou:
— Ó Tânia! Ao que te sujeitas para não teres nega.
Ela voltou-se para trás e, sem que o professor visse, fez-lhe um gesto pouco simpático, levantando o dedo do meio.
As férias eram um tempo abençoado. Claro que eu passava o tempo todo em casa, ora no computador, ora a ver televisão. Tinha uma vida completamente sensaborona, sem amigos e sem diversão ao ar livre. O meu tio incentivava-me a sair, até sugeria que fosse com ele ao café para apanhar ar. Eu recusava, preferindo permanecer no meu casulo, na segurança do meu quarto, não fosse ter a infelicidade de me cruzar na rua com alguém da escola.
O trabalho de História era uma incógnita, Tânia não me dissera nada na escola e eu também não tivera coragem de lhe perguntar. Vi-a a ir embora com as amigas, após a última aula, sem manifestar interesse em combinar o que quer que fosse. Como também não era fã de trabalhos de escola nas férias, atirei o assunto para o esquecimento. Quando recomeçassem as aulas, lá me preocuparia com isso.
Contudo, a meio da primeira semana de férias, Tânia ligou para minha casa. Escusado será dizer que foi o meu tio quem atendeu. Do quarto, ouvi-o chamar o meu nome, o que me levou rapidamente a concluir que deveria ser ela a telefonar.
No momento em que saí para o corredor, o meu tio informou que era ela, revelando um semblante de dúvida como quem pergunta se eu iria atender.
Envolto no nervoso miudinho que sempre me acompanhava quando tinha que falar ao telefone, peguei no auscultador.
— Sim...
Ouvi a voz do outro lado.
— Olá Daniel! Não chegámos a combinar quando iríamos fazer o trabalho. — Houve uma pausa, talvez a aguardar que eu sugerisse uma data. Eu proferi pouco mais que um som. — Achas que dá para começar amanhã?
— Sim...
— Podes vir ter comigo a minha casa? Amanhã, depois do almoço?
— Sim...
Houve um novo silêncio. Tânia aguardou que eu dissesse algo mais que aquilo, que fosse mais que monossilábico nas respostas. Isso não aconteceu.
— Ok, então. Até amanhã!
— Até... — Ouvi o clique de desligar — ...amanhã.
Não sei se estava calor ou se era eu que transpirava com a ansiedade e nervosismo pelo encontro marcado em casa de Tânia. É certo que o dia primaveril trouxera um aumento da temperatura, mas o meu "real feel" estava vários graus acima.
O meu tio ficara satisfeito por me ver sair de casa e por me ir encontrar com uma rapariga, mal sabendo que ela era um demónio a atormentar a minha existência. Já estava em idade de ter uma namorada, segundo ele. Sorri descrente, não me via a namorar qualquer rapariga que fosse.
Caminhei calmamente... Caminhei, tentando fazê-lo calmamente. Procurei vestir algo que atenuasse o meu aspecto desinteressante, escolhendo as calças menos gastas, uma t-shirt não muito larga, mas não tinha como evitar o uso do blusão velho. Numa mão levava o caderno e o livro de História, a outra ia no bolso a dedilhar o porta-chaves. Penteara o cabelo e até barbeara o rosto, algo que poderia facilmente passar sem fazer durante três dias sem que se notassem os pêlos. Não usava perfume e receei ter algum odor fedorento, daí ter exagerado no desodorizante. Felizmente, esse excesso foi desaparecendo ao longo do caminho.
Alcancei a rua dela a questionar-me onde me estaria a meter. Sentia o desejo profundo de ter tido a coragem de recusar o seu convite. Preferia mil vezes estar em casa a ver televisão.
Parei defronte da porta do prédio. Toquei à campainha, pressionando o botão do segundo esquerdo. Enquanto esperava, fiquei a olhar para o chão, mais precisamente para os meus All-stars quase rotos.
O clique do trinco anunciou a abertura da porta. Empurrei e entrei, deixando que a mola se encarregasse de a voltar a fechar. Subi as escadas, ouvindo a porta do apartamento a abrir. As pernas tremiam, quase tropecei num dos degraus de pedra.
Após o último lance de escadas, deparei com a porta aberta. Ouvi a voz da rapariga dos meus sonhos dizer:
— Sim, avó! Eu já abri.
Antes do último degrau, Tânia surgiu na entrada. O meu coração bateu com mais intensidade, ao vê-la. A sua imagem era de uma beleza simples, uma rapariga de dezassete anos como tantas outras a desfrutar das férias em casa. Recordo-me que vestia uma camisa aos quadrados de mangas compridas, as quais enrolara até aos cotovelos, e calções de ganga que não eram nenhuns "Daisy Duke", mas mostravam-me os joelhos perfeitos e as pernas bem delineadas. Tal como eu, calçava umas sapatilhas All-stars em tons claros e sem buracos. O cabelo louro estava solto e caia desordenado sobre os ombros.
— Olá! — murmurei.
Tânia recebeu-me com um olhar superior, sendo que não existia nele o habitual laivo desdenhoso de quem parecia repugnar-se com a minha aproximação.
— Entra. — convidou, abrindo a passagem.
Avancei sem saber muito bem o que fazer ou onde me dirigir. A seguir ao átrio de entrada, existia um longo corredor para outras divisões. À esquerda, uma porta larga dava acesso à sala. Na porta oposta a esta, o acesso à cozinha onde vi uma senhora a arrumar algo num armário. Ao ver-me, sorriu e cumprimentou-me com um "boa tarde" acolhedor.
— É a minha avó. — apresentou Tânia.
A senhora deveria ser quase da idade do meu tio, estatura baixa, aparência cuidada e uma fisionomia frágil. O cabelo tinha uma tonalidade que fugia dos cinzas para os roxos.
— Boa tarde! — retribuí.
— Anda! — indicou Tânia para que a seguisse até à sala. Apontou uma cadeira das seis que rodeavam uma longa mesa de carvalho. — Senta-te! Vou só buscar as minhas coisas.
Despi o blusão e pendurei-o nas costas da cadeira, observando aquela divisão que deveria ter três vezes a dimensão da sala da minha casa. A minha atenção alternou para a voz de Tânia, vinda da cozinha:
— Vá lá, avó. Deixa ficar essas coisas que eu depois arrumo. Vai descansar um pouco.
Registei o tom carinhoso como ela falava com a avó. Antes de me sentar, vi-as passarem no corredor. Nem reconheci aquela rapariga sorridente abraçada à idosa.
Prossegui na observação da sala, sentando-me na cadeira. Os armários robustos apresentavam louças de aspecto caro, as paredes tinham quadros de pinturas modernas, os sofás eram austeros e os tapetes no chão abafavam os sons.
Tânia regressou, colocando o seu livro de História e um caderno sobre a mesa. Para minha surpresa, sentou-se a meu lado ao invés de escolher a lateral oposta da mesa.
Senti o nervoso miudinho aumentar por a ter tão perto, oferecendo-me o odor adocicado do seu perfume.
— A tua avó é muito simpática. — foi o que me lembrei de dizer para não estar calado.
— A minha avó é uma querida. — retorquiu, abrindo o livro sem procurar nada em especial. — Eu adoro a minha avó.
— E os teus pais? — questionei, quase a gaguejar.
— Não estão em casa. — respondeu com naturalidade. — A minha mãe só deve chegar para jantar. O meu pai está fora, só volta daqui a uns dias.
Sem mais nada que me viesse à cabeça para dizer, abri o livro em parte incerta. Foi ela quem falou:
— Pensaste no tema que vamos escolher para o trabalho?
— Ah... Uhm... Para ser sincero não pensei muito nisso.
Tânia sorriu, divertida.
— Eu também não.
— Temos de fazer um bom trabalho, vale para nota.
— Sim. E eu preciso muito desta nota. — lembrou. — Os meus pais já me avisaram que, se não passar de ano, não haverá agência de modelos para ninguém. — Encolheu os ombros. — Se quero ser modelo, tenho de estudar.
— Farei o meu melhor para te ajudar.
Não tive essa intenção, mas dissera-o como quem tentará cumprir uma obrigação e não como quem ajuda uma amiga. Ela percebeu.
— Ainda estás chateado comigo?
A pergunta apanhou-me de surpresa. Para mim, Tânia pretendia aproveitar-se dos meus conhecimentos da matéria e da minha incapacidade em a contrariar, sabendo que gostava dela. Preocupar-se se eu estava aborrecido com ela era novidade.
— Não... — neguei pouco convincente.
Tânia falava a olhar para mim. Eu era incapaz de a encarar e fincava os olhos no livro.
— A sério que não? — insistiu. Não respondi. — Ok. Já percebi.
As emoções revoltaram-se dentro de mim, aumentando a minha insegurança. Tive receio que aquele tipo de conversa me descontrolasse ao ponto de ter uma nova lágrima a atraiçoar-me. Mesmo assim, com os olhos na imagem do livro que retratava a cidade de Florença no tempo do Renascimento, confessei:
— Não estou chateado. Fiquei magoado. E sinto que estou aqui só porque precisas que te ajude com a nota de História. Caso contrário, não te interessarias sequer pela minha existência.
Não sei como tudo aquilo me saiu da boca.
Tânia não se pronunciou de imediato, talvez ponderando o que iria dizer. Foram segundos que pareceram horas e me levaram a pensar que ela explodiria numa daquelas reacções arrogantes da escola, insurgindo-se contra mim e até pondo ponto final a um trabalho que ainda nem começara.
— Achas que sou má pessoa?
A pergunta soou sincera. Olhei para Tânia e esforcei-me para não fugir aos seus olhos verdes. A resposta foi semelhante ao miar de um gatinho pontapeado.
— Para mim tens sido.
A minha resposta deixou-a triste. Tânia não era ingénua, tinha consciência que a forma como sempre me tratara na escola era má. Porém, ouvir-me dizê-lo com aquela amargura fê-la tomar consciência da intensidade da ferida que poderia ter causado. Foi a sua vez de desviar o olhar para o livro.
Apaixonado como era por ela, recriminei-me por ter causado aquela reacção.
— Isso não quer dizer que sejas má. Tenho a certeza que és excelente para as tuas amigas, que és uma pessoa divertida. — Forcei um sorriso condescendente. — Não és obrigada a gostar de toda a gente. Não és obrigada a gostar... de mim.
O seu olhar retornou ao meu. Demasiado intenso, fazendo regressar a minha atenção ao livro aberto.
— Desculpa...
— Esquece isso. — sugeri, pegando na caneta.
O que aconteceu a seguir foi surreal.
Tânia estava realmente desgostosa por perceber como fora cruel. É fácil ser altiva e desprezar os outros de forma fria, quando se é desejada, quando se é invejada, amesquinhando indiscriminadamente para elevar o estatuto e grandeza. Porém, ouvi-lo da boca de alguém que depois disso tudo ainda a ajudava...